Revisada por: Hydra
Última Atualização: 06.04.2025— WILDE, O. O Retrato de Dorian Gray.
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e sempre foram melhores amigos.
Ao ponto em que não se saberia dizer possível a quanto tempo eram de fato, pois há muito, já não se contava mais a passagem de tempo. Ou como haviam se conhecido, uma vez que, dada a memória compartilhada, a história parecia sempre divergir-se da original. Sempre com um detalhe a mais adicionado a ordem cronológica, ou com aquela confusão característica bem humorada de inúmeros momentos vividos juntos que se sobressaiam um entre os outros. Chegava a ser apenas uma constatação factual mais prática apenas assumir que nenhum dos dois sabia como viver sem ter o outro presente em sua vida, tamanha a familiaridade que possuíam.
Consideravam-se, portanto, não apenas amigos, mas um complemento conjunto de si mesmos. Alguns usariam a termologia, se conveniente, para tal descrição de irmãos de alma, ou alma gêmeas platônicas. Duas metades diferentes de uma mesma moeda.
Ocorreu assim: os dois meninos se conheceram ainda na primeira infância, por um completo acaso. Havia sido a irmã adotiva de , Daphne, quem havia começado a confusão, ao jogar um livro no rosto de um colega de sala que estava puxando suas tranças e atormentando-a o dia inteiro. Vendo a irmã em tormento, não hesitou em tomar as dores da garotinha para si: duas mordidas, um soco no nariz e uma criancinha chorando aos berros, foi enviado imediatamente para a diretoria para responder por seus atos. É claro, não havia sido apologético sobre, pelo contrário, , mesmo com cinco aninhos, parecia perfeitamente orgulhoso de ter defendido a irmãzinha.
Com uma presença espirituosa, e a incapacidade de recusa por uma aventura, a ideia de deixar que o pequeno se sentasse no banco ao lado de , havia sido, sem sombra de dúvidas, um péssimo erro —— ao menos, para os professores —— pois um havia acabado de encontrar no outro o parceiro que tanto buscavam. Sendo a criança curiosa, imediatamente havia desenvolvido um interesse no outro garotinho, quase imediatamente. Talvez fosse os cabelos bagunçados, ou o band-aid do homem aranha que o tinha em seu nariz, não porque estava machucado, mas porque, segundo o menino, “lhe dava sorte” que havia fascinado o pequeno , mas de imediato, sua curiosidade havia sido despertada, e, pelas próximas semanas, o menino havia passado seu tempo vigilante. Escondia-se por entre as janelas e os vãos das portas, primeiro com a intenção de assustar até o desmaio qualquer um dos membros estudantis —— especialmente sua professora, a Senhora Lee ——, mas então, posteriormente, a brincadeira evoluiu para uma mais elaborada. Neste, ele desempenhava o papel de explorador, como via em seus desenhos preferidos, e sua missão era descobrir quem era, e, com muita sorte, fazer amizade.
, para sua própria vantagem pessoal, sempre havia sido encantador, e fazer amizade não era um problema para ele.
Conseguia cativar facilmente, fosse pelas bochechas rosadas e a risada gostosa, fácil que contagiava as pessoas ao seu redor, ou fosse pela sua disposição de participar das conversas, o garotinho era encantador por natureza. De discussões muito sérias sobre qual brinquedo era o melhor ou qual personagem do desenho que havia acabado de assistir seriam, sem se incomodar quando a irmã adotiva, Daphne, escolhia por ele, porque, bem, ela o conhecia muito bem —— melhor do que ele mesmo ——, à conversas chatas e bobas de adultos, onde ele contava curiosidades aleatórias que havia descoberto em algum livro, ou vídeo na internet, ou simplesmente começaria a fazer uma série de perguntas sobre algum tópico muito específico que havia ouvido que o adulto parecia gostar, simplesmente demonstrando seu interesse absurdo sobre o que era falado, mesmo que não estivesse entendendo absolutamente nada. sempre havia gostado, no entanto, de ver as expressões que pessoas faziam quando contavam algo que gostavam muito; achava-as engraçadas.
Então quando o pequeno descobriu onde o coleguinha morava, após uma aventura com o irmão mais velho para descobrir quem pedalava a bicicleta mais rápido —— claro que ele havia ganhado, não o irmão mais velho, Matteo, que havia chegado primeiro, havia sido mais rápido. O garotinho havia avistado a casa amarela, estranha e abandonada do outro lado da rua, brincando com os inúmeros gnomos de jardim, . não hesitou em agir como a borboletinha social que era, e questionou-lhe tudo: por que a entrada da casa tinha tantos gnomos? —— porque a tia dele os achava engraçados, como um pequeno exército particular para proteger a casa. Por que a tia dele precisaria de um exército para proteger a casa deles? —— porque ela tinha um tesouro escondido por ali, e não queria que outros monstros pudesse aparecer ao anoitecer roubassem o tesouro. O que era esse tesouro? Ele poderia contar para ? Se tivesse que guardar segredo, ele poderia contar para sua irmã, pelo menos? Ela também era super boa em guardar segredos, e eles poderiam jurar de dedinho —— se me ajudar a tampar os buracos depois...
E entrou no jardim sem cerimônia ou hesitação alguma, curioso para saber qual era o tesouro que a tia de escondia em seu jardim, e especialmente, curioso para saber se gostava de jogar pega-pega porque ele estava cansado de jogar esconde-esconde, especialmente porque ele sempre era o primeiro a ser encontrado por sua risada fácil. e estavam tão entretidos com a caça ao tesouro, que o pequeno não havia percebido a presença furiosa do irmão mais velho até ser arrastado pelo colarinho jardim a fora, com uma série de pedidos desculpas da parte de Matteo —— sabe-se lá para quem ——, e xingamentos genuinamente coloridos direcionados ao pequeno .
Ver a cena, havia feito gargalhar —— algo raro, para ser sincero ——, e com entusiasmo, o menino prometeu ao pequeno que eles continuariam a caçar tesouros no intervalo, na próxima semana.
Chegando em casa, o discurso sobre como era um menininho inconsequente por simplesmente entrar na casa de estranhos sem saber se era perigoso ou não, e por nunca poder ser deixado sem supervisão, foi longo. E sequer ouviu uma palavra.
Pediu, então, para Matteo, com toda sua seriedade infantil, para chamar para participar do 4 de Julho também, e Matteo, com um suspiro resignado —— e é claro, o familiar comentário sobre ter encontrado o irmão mais novo no lixo —— explicou em detalhes, uma semana depois, para a tia de sobre o costume da vizinhança de se reunir na casa de praia da família , em Miramar, para comemorar o 4 de Julho, e que se e a tia dele não tivessem como ir, Matteo poderia ver com Ernst de conseguir carona para eles, o espaço do carro era bem limitado, mas eles conseguiam incluir sempre mais um.
Embora a tia de tivesse recusado o convite, acabou indo na viagem, do mesmo jeito, com o consentimento da tia, e o segredo oculto do tio.
Durante o caminho, havia prometido que os dois iriam explorar a praia em busca de mais tesouros escondidos. E cumpriu a promessa —— porque nunca quebrava suas promessas, custasse o que custasse.
Estava tão animado com a nova amizade que mal havia entrado em casa e já estava contado tudo o que havia acontecido. Contou para todo mundo, até mesmo para Oberon —— o Akita Inu especial de Ernst, que não tinha um olho e que roía as meias de sempre que tinha chance ——, mesmo quando o animalzinho escondeu o rosto por entre as almofadas antes de uivar acusadoramente para o dono. repetiu tantas vezes seus planos, e a história para Daphne que a garotinha simplesmente passou a imitá-lo toda vez que o escutava, adquirindo uma sincronia proposital que os dois usavam, sempre que tinham chances, para assustar Matteo —— e nunca falhavam.
Portanto, pode-se dizer que se Daphne não tivesse perdido a paciência com seu coleguinha de sala, e não tivesse arremessado o livro e quebrado o dente de leite do menino. O coleguinha de classe não tivesse avançando para empurrá-la, e não tivesse interferido, mordendo o coleguinha, e não tivesse sido mandado para a diretoria.
e nunca teriam se conhecido.
E, talvez, pudesse ter sido outra pessoa agora. Menos amargo. Mais feliz. Menos teimoso. Daphne teria menos uma ruga de preocupação permanente em sua testa, e jamais iria depender de nicotina para sentir-se, outra vez, calma, ou, ao menos, sob controle das situações —— que não possuía. Matteo não seria tão cuidadoso com as verdades que desejava contar para as pessoas, e, tampouco, teria uma cicatriz de culpa permanente, ocultada por baixo de sua personalidade efusivamente despreocupada. Luna, a irmã biológica de Daphne, teria aprendido a comunicar-se mais rápido o que sentia aos pais adotivos ao em vez de internalizar tudo, com receio de ser abandonada novamente —— ela nunca seria, e nunca foi. Lukas e Theo teriam amado conhecer Oberon.
Ou, talvez, se quer saber, os dois garotos fossem se conhecer eventualmente. Embora as possibilidades sejam apenas um convite incômodo e desnecessário para uma dança perigosa com a ansiedade e que, no fim, não possuíam embasamento algum que não fosse apenas o empírico, de nada adiantava mantê-las. O fato era: e cresceram juntos.
E não houve momento de suas vidas que ambos não estivessem, de certa forma, diretamente ou indiretamente envolvidos na vida do outro.
Foi que percebeu que a madeira da casa na árvore dos não parecia segura, e foi ele que segurou quando cedeu sobre o peso do garoto. O que deveria ter sido um acidente consideravelmente grave, provou-se apenas um braço quebrado, e uma série de discussões entre Daphne e para saber quem poderia fazer um novo desenho no gesso de —— Daphne, é claro, ganhou todas, mas viria a deixar que somente desenhasse no gesso de seu braço quando ela quebrou.
Foi quem enfrentou os meninos mais velhos que estavam incomodando quando, tentou defender a integridade de sua tia, atacada erroneamente por boatos maldosos. E mesmo que tivesse ficado de castigo, ele não se arrependeu de bater nos meninos mais velhos, principalmente porque eles o evitavam na escola, após o ocorrido, como se fosse algum tipo de pessoa perigosa, e, naquela época, queria muito, mas muito mesmo ser um pirata.
Foi quem ensinou a falar francês —— porque parte da família dele era francesa, apesar do sobrenome que ele tinha. Foi que abraçou e prometeu que não importava o que acontecesse, eles nunca —— nunca mesmo —— deixariam de ser melhores amigos, quando sentiu que não havia mais ninguém no mundo que fosse capaz de amá-lo —— quando percebeu que ninguém, além de , o amava o suficiente para ficar ao seu lado, para não ir embora. Foi quem percebeu as manchas roxas que apareciam com mais frequência na pele de depois que eles se tornaram adolescentes. Foi que apresentou , o velho Eddie, o zelador aposentado que havia feito amizade na escola, e que havia ensinado à: “como acertar um soco da forma certa”.
Velho Eddie, em sua juventude, havia tentado a carreira em MMO, infelizmente, uma doença crônica havia o impedido de seguir carreira. E por um breve período de tempo, realmente considerou seguir carreira também.
Foi entregou a os materiais antigos de escrita de sua tia, e deixou claro para o melhor amigo que, mesmo que ela nunca tivesse o ensinado, ela sempre falava como era bom que alguém a entendesse neste aspecto —— algo que, de certa forma, nunca foi capaz de o fazer. Foi que arrastava para cima e para baixo, e que apresentou a a maioria dos amigos que possuía —— porque nunca havia sido difícil amar Hal.
O amor, portanto, era profundo.
Enraizado na alma. Jamais omitido.
E com a mesma profundidade, ambos, eram capazes de se odiar.
A primeira vez que brigaram, tinham 11 anos, estavam de férias em Nova York, e foi por causa de um maldito pedaço de papel. Daphne, uma mediadora muito frequente e comum entre os dois meninos, não estava por perto no dia, devido a uma audição para participar de mais um comercial como modelo, e entraram em um argumento acalorado sobre o papel.
O que aconteceu foi o seguinte: havia encontrado o que parecia ser uma carta antiga de algum veterano da segunda guerra por entre as coisas do porão da em que seus pais haviam tentado custear para que Daphne conseguisse participar tanto das apresentações de patinação no gelo, as competições que estava inscrita, quanto as audições durante as férias.
Até onde sabiam, o apartamento industrial, em Hell’s Kitchen, havia pertencido a alguns nomes boêmios conhecidos pelas redondezas, e a carta em questão, era uma declaração de amor consideravelmente apaixonada do veterano de guerra, direcionada a um ponto, em caso de sua morte.
, por sua vez, acreditou que tinha o direito de ler a carta primeiro, porque, se não fosse por ele, os dois sequer teriam ido parar naquela casa, já que sua falecida tia conhecia a proprietária e graças a intervenção desta, e, é claro, os muito convincentes olhos pidões de , haviam conseguido abaixar muito o preço do aluguel —— não que os dois meninos, na época, soubessem como o processo todo funcionava de alugar casas, e pagar contas ao fim do mês.
, no entanto, declarou que aquilo era um absurdo, só porque havia sugerido uma ideia não o tornava responsável por executá-la.
É claro que não gostou disso, porque sempre roubava os momentos importantes de . , por sua vez, gritou ser mentira, porque os momentos mais importantes da família , ou eram de Daphne, ou eram de . retorquiu que não era um mentiroso, , gritou que ele estava mentindo sim, e tentou pegar a carta para si. E antes que se pudessem dar conta, a briga escalou, catastroficamente.
Embora fosse um pouco maior naquela época, , era mais forte, e não demorou muito para que os meninos, rolando escada abaixo, adquirissem hematomas pelos braços, pernas e uma bela mordida no antebraço esquerdo —— porque , em seu desespero pessoal, não havia achado outra alternativa senão morder a mão de .
Fim deu-se quando Ernst os separou, e se propôs a entender a situação, mesmo que sua mente não estivesse ali no momento —— estava, na verdade, no quartinho do segundo andar, onde os gêmeos Lukas e Theo, bebês de no máximo 1 ano, ainda estavam queimando em febre ou simplesmente chorosos, sem previsões, para o desespero de Ernst, de cessar.
Não houve gritos. Não houve puxões de orelhas, e muito menos os tapas bruscos, como os que o tio de costumava a acertar-lhe —— bem ao pé da cabeça, próximo de sua orelha direita, onde por vezes, surgia um zunido irritante, sempre que estava com raiva, o que era muito frequente. Não. É claro que não. Não era assim que os funcionavam, e, certamente, não era assim que Freya e Ernst desejavam criar os filhos.
Acontece que sempre havia sido muito convincente, e não pode deixar de sentir-se rejeitado pelo próprio pai quando Ernst, por precisar ser rápido, o censurou por seu temperamento, que ele não deveria escolher violência sempre que não soubesse usar suas próprias palavras, que deveria ter como exemplo, ao comunicar o que estava sentindo, e que se os dois não podiam chegar em um acordo, então não iriam ler a maldita carta até que encontrassem um lugar comum, e uma boa solução para ambos. Para a decepção dos meninos, todavia —— e o alívio de um pai exausto —— durante a briga, a carta havia sido rasgada aos pedaços. Sem chance de ser recuperá-la quando o filhotinho de cachorro recém resgatado por Luna, Marlo, já havia tentado comer metade do papel picado no chão.
Então, a segunda vez que brigaram, eles tinham 14 anos, estavam em Los Angeles, no período de feriados americanos, especificamente no dia de Ação de Graças —— que não comemorava, já que estudava fora, em Londres, mas que, ainda assim, participava todos os anos ——, e foi por causa de uma maldita câmera.
Veja bem, teoricamente, não era uma câmera em si, mas uma carcaça de uma câmera. Algo que levaria tempo e dedicação para concertar e remontar caso desejasse reutilizá-la novamente. Àquela altura, as poucas memórias que ainda restavam na mente de , de sua tia, e do que ela havia sido começavam a desaparecer, e a culpa ao considerar-se a única pessoa que ainda a amava o suficiente para tentar se lembrar de quem ela havia sido estava começando a consumir o rapaz. Das poucas coisas que Marjorie havia deixado, após sua morte, pouco realmente havia sido entregue a . Na verdade, o tio do rapaz havia achado uma ideia mais eficiente se, ao em vez de mantê-las por perto do rapaz, fosse mais efetivo doá-las a alguma instituição relevante e que pudesse ser utilizada como algum tipo de acervo a ser visitado.
Além disso, não era necessário dizer que afetava diretamente a saúde de , quando era uma evidência comprovada o quão problemático o rapaz estava tornando-se, de acordo com o tio —— não precisava que Marjorie influenciasse mais ainda este desvio.
O pouco que possuía, todavia, daquele passado tinha sido entregue a seu outro “tio” Billy para manter seguro, e todos os anos, por volta da semana que faria aniversário, Billy entregava algum dos presentes que Marjorie havia deixado para ele —— uma tentativa de certificar-se de minimizar a emoção de abandono que a criança poderia desenvolver, eventualmente, com a falta de sua presença na vida dele, ao longo dos anos, embora, para , não passasse de uma maldita piada cruel.
Certamente que os presentes haviam, de fato, duplicado depois que entrou na vida dos dois. Talvez fosse apenas uma piada de mal gosto da própria tia —— que se recusou, até o último momento, enxergar em o que via com tamanha clareza e facilidade de ——, ou talvez, fosse apenas uma confirmação silenciosa de uma verdade que, ao longo dos anos, o rapaz havia começado a supor sobre si mesmo. Marjorie havia se dado ao trabalho de comprar um presente para cada um dos aniversários que perderia até a maioridade do sobrinho —— porque aniversários eram importantes para ela, certo? —— teve a porra do cuidado de deixar cartas —— que ainda tinham o mesmo cheiro do perfume dela, intacto, que ainda soavam como ela, mesmo que a muito ele já tivesse se esquecido de como um dia ela soara.
Mas o objeto que mais tinha carinho, o objeto que sempre havia visto a tia segurar e manter perto de si, e ao qual ela tinha, aparentemente, uma conexão profunda, ela havia escolhido entregar para . Se deu ao trabalho de até mesmo deixar uma nota, cuidadosamente escrita, para o rapaz que sequer era seu parente, mas, de alguma forma, havia passado a ver como.
“Use-as para mostrar ao mundo como você enxerga, solzinho.”
não entendeu porque diabos havia ficado tão irritado quando leu a nota deixada por Marjorie. Ou porque havia feito questão de iniciar uma discussão estúpida sobre o presente, se havia sido , quem tinha sempre escolhido dar a ele —— mesmo dizendo de forma efusiva que eram muito mais importantes para , do que para ele —— as câmeras e rolos de filmes antigos de Marjorie. teria entregado o presente sem hesitar. Se tivesse contado toda a verdade, sequer o teria aceitado, para começa de conversa.
Aquela altura, tinha bem definido em sua mente que jamais arriscaria perder a amizade de —— fosse por quaisquer bobeiras possíveis que ambos poderiam encontrar para discutir. Mas não foi isso que fez. Não, longe disso. Enquanto perto de todos o rapaz demonstrava seu sorriso mais amável ao melhor amigo, feliz por poder compartilhar aquele momento com ele, e até mesmo dizendo que era uma boa coisa finalmente dar um uso para aquela quinquilharia, o rapaz esperou até que os dois ficassem sozinhos para que iniciasse o problema.
Desta vez, pegou desprevenido.
Anos de prática e experiência em brigas, fossem para defender Daphne, com os comentários ridículos que ela recebia, fosse para defender a melhor amiga, Coral, dos bullyings constantes, nada, simplesmente nada havia o preparado para ser pego desprevenido por . Não pelo melhor amigo. Não pela a única pessoa que deveria estar ali por ele, como ele estava. O soco não doeu mais do que a acusação injusta. Por que tinha ganhado aquele? Não era sequer algo de valor para , por que então ficaria? deveria devolver a ! Isso era o justo! E talvez, até mesmo o tivesse feito, se não estivesse, a meses começando a se frustrar com a maneira com que estava o tratando.
Veja, não era como se os garotos simplesmente tivessem aberto mão da forma pacífica que viviam quando eram pequenos, mas, agora, pareciam ter desenvolvido uma estranha competição entre si. Ridículo, infantil, e até mesmo inconsciente, não menos verdade, todavia. Embora considerasse a si mesmo como alguém que possuía muita paciência —— algo que Daphne e Luna facilmente discordariam veemente, já que, de todos os seis , era o que tinha o temperamento mais explosivo —— havia algo na maneira com que Alec propositalmente ignorava ou simplesmente descartava alguma das conquistas, no máximo do que isso significava quando se era irmão de Daphne e melhor amigo de , que estava enfurecendo .
sempre precisava adicionar algo que ele havia feito também, não é? Se não fosse por , não teria feito, simplesmente nada, certo?
Aprendeu desde pequeno que não havia nada de errado em competir com alguém que amava, desde que fosse respeitoso e saudável. Ele o fazia com Matteo, uma tentativa ainda infantil de ganhar a admiração do irmão mais velho, que sempre havia sido o filho perfeito dos . Mas então, havia . Assumindo, espontâneo, que não tomaria iniciativa alguma se não fosse por ele. Competindo pelos mesmos interesses amorosos. Roubando pequenos momentos que considerava conquistas pessoais, e fazendo-as, outra vez, não só uma evidente diferenciação entre os dois, como mostrando o quão melhor era capaz de ser.
não se importava que fosse melhor que ele, não se importava que o melhor amigo fosse incrível porque acreditava que ele o fosse também.
Mas todas as vezes que acreditava ter conseguido fazer algo —— ou ao menos atingido o padrão de excelência que considerava que os esperavam dele ——, que pudesse convencer o pai de que ele não era assim tão ruim —— afinal, não era cego, ele via a decepção nos olhos de Ernst a cada briga e confusão que o rapaz se envolvia ——, aparecia com uma nova conquista, e roubava-lhe o momento. aparecia e menosprezava o que quer que fosse capaz de fazer. Porque era melhor. Porque era mais inteligente.
Porque era justamente o que Ernst esperava que fosse —— e que jamais seria.
Porque Ernst era a pessoa que sempre havia desejado impressionar. E quem sempre o fazia, era .
Perceba que a informação mal interpretada, e, igualmente, jamais abordada, não era responsável apenas por apresentar lacunas no relacionamento, mas eram, igualmente, destas lacunas deterioradas e putrefatas, que, com o passar do tempo, desgastavam e até mesmo, findavam amores que, supostamente, deveriam durar para sempre.
Agora se Ernst não tivesse confiado tanto que seus filhos eram capazes de compreender que seus gestos de amor, compreensão e, acima de tudo, aceitação existiam apenas para assegurá-los que o pai sempre iria amá-los, independentemente do que fizesse. Se Ernst não estivesse tão certo que eles sabiam, sem levar em consideração que, de todos, era o filho mais próximo de refletir sua própria personalidade —— e não que Ernst não amasse menos por ter herdado acidentalmente a parte da personalidade que Ernst mais desprezava em si mesmo, mas sim, porque preocupava-o em seu âmago, afinal, era tão inconsequente quanto o pai já havia sido uma vez, talvez, pior, as coisas que o jovem poderia acabar fazendo atormentavam-no em profundidade —— que o garoto sempre teria aquele lado de si mesmo. E se não fosse tão cético sobre as ações de outras pessoas em relação a si mesmo. Se não soubesse que as pessoas que se aproximavam dele, o faziam puramente para aproximar-se de Daphne ou . Então, talvez —— apenas talvez —— o resultado daquela discussão teria sido diferente.
Mas não era.
E, desta vez, foi o culpado por fazer a discussão escalar.
Havia sido um dos poucos momentos em que os dois melhores amigos, havia sido tão honesto um com o outro. Não por dizerem o que se passavam no íntimo de seus cernes, é claro que não, mas por exibirem um lado adormecido que estava começando a ganhar intensidade dentro de si mesmo. A competição. Velada. Profusa. A beira de uma explosão iminente, embora impossível de se prever. Não era justo que ficasse com algo que pertencia a mãe de —— algo que Marjorie amava. Não era justo que se sentisse no direito de usurpar para si tudo o que pertencia a , mesmo que fosse o espaço minúsculo que o rapaz supunha que possuía no coração do pai. E no meio de tudo isso, havia Daphne.
Como sempre, a garota de alma gentil e personalidade terrivelmente doce, viu-se presa em um dilema. Embora a tendência intrínseca, e terrível, diga-se de passagem, de evitar conflitos, movida pelo medo de desapontar quem amava, do que qualquer outra coisa, viu-se presa entre os dois meninos.
A quem defenderia? O irmão mais velho, que incendiaria o mundo inteiro por ela sem hesitar —— mesmo que o custasse tudo, ele entregaria de bom grado, sem sequer considerar os prós e contras, porque era esse tipo de idiota, com qualquer um que amasse o suficiente —— simplesmente para vê-la feliz? Ou ao melhor amigo de seu irmão mais velho, que nunca havia hesitado em dizer-lhe as palavras mais doces, oferecer-lhe os gestos mais gentis, estes a quais ela dificilmente conseguiria esquecer conforme os anos passariam —— e a quem, a cada vez mais, pegava-se buscando pelo olhar, pelo toque, pela proximidade que julgava possuir, mas que, agora, questionava-se se realmente a tinha?
No desespero, a garota fez a única coisa que lhe ocorreu a mente. Antes que a situação piorasse ainda mais, ela interveio. E este foi exatamente o momento em que tudo ficou ainda pior.
Daphne tentou apartar a discussão acalorada dos dois rapazes. Tentou trazê-los de volta à razão, embora não tivesse ideia do motivo de discutirem. E embora fosse uma pessoa de raciocínio rápido e propenso a ceder com mais facilidade. , era a porra de uma porta emperrada tamanha teimosia possuía, e recusava-se, pela primeira vez, em muito tempo, a dar um fim aquela discussão —— principalmente porque, para o rapaz era nítido como estava tentando coloca-lo como um monstro quando não tinha ideia do que realmente estava acontecendo. E até mesmo Daphne havia tentado impedir de acertar outra vez —— já que até onde ela sabia, tinha a tendência a se esquecer dos limites em tais situações ——, sabia que a cada um dos sorrisos do irmão mais velho significava, e sabia que, quando ele sorria com raiva, nada bom se seguiria.
E, no meio da confusão, sem ter certeza de quem o havia feito, a garota acabou sendo empurrada para longe, e acidentalmente, cortou superficialmente o braço direito em meio as quinquilharias que a família nunca havia encontrado coragem o suficiente para dor, e que, agora, acumulavam-se no sótão.
O corte renderia a garota uma pequena cicatriz, suave demais para sequer ser percebida, entre o pulso direito e a parte interna de seu braço. Sequer precisou de algum ponto, tamanha superficialidade. Ela provavelmente deveria ter gritado. Céus, deveria ao menos recolhido os pedaços da câmera, agora completamente obliterado pelos dois rapazes, e arremessado em ambos, como retaliação, mas não o fez.
Não teve tempo de o fazer.
Veja, não teria feito nada contra . Ele teria aceitado apanhar do melhor amigo se soubesse que isso o ajudaria a aliviar a combustão emocional em que se encontrava. Ele teria apenas recebido os golpes, como o fazia na escola, quando se certificava que ele seria o alvo das agressões, e não Coral, sem reclamar, sem soltar um grunhido de dor, e quando perguntassem a ele sobre, simplesmente negaria encontraria uma desculpa. Uma desculpa que Ernst nunca iria acreditar, é claro, mas respeitava o espaço do filho e seu tempo para dizer as coisas e não pressionaria. Uma desculpa qualquer que pudesse usar para justificar as manchas roxas. Mas Daphne estava envolvida. E a culpa era inteiramente de .
Sentia que era sua responsabilidade proteger os irmãos. E pobre daqueles que ficassem em seu caminho.
Então quando viu a irmã encolher-se com o braço machucado, os olhos grandes, arregalados, não de medo, porque Daphne não era o tipo de garota que sentia medo —— ao menos não daquela forma ——, em completo choque —— afinal, como duas pessoas que eram tão amorosas entre si, poderiam adquirir nuances tão autodestrutivas como aquela? —— pelo comportamento dos dois, viu vermelho.
Avançou sem pensar duas vezes no rapaz, e desta vez, estava determinado a machucá-lo. A briga só acabou quando o barulho alto das caixas desabando, e objetos se quebrando chamou a atenção de Ernst. Talvez, fosse o pânico de ver a filha tentando estancar o corte, mesmo que fosse superficial, a visão do sangue, para alguém desacostumado, observar esvair-se com tamanha facilidade, sempre seria algo “chocante”. OU talvez fosse a preocupação em perceber que, ao em vez de dizer a verdade a ele, como ela sempre havia feito, a garota preferiu dizer que tinha apenas escorregado em meio a bagunça sem querer, tentando proteger os dois rapazes.
E, no entanto, tudo aquilo poderia ser resumido ao gatilho acionado pelo inconsciente de um passado tortuoso distante —— igualmente enterrado, é claro —— ao qual Ernst tinha apenas vagas cicatrizes, todas curadas, mas ainda cicatrizes.
não teve como defender-se.
Embora tivesse insistido com veemência que ele não havia começado, que a culpa não era dele, era a vítima. O garoto que havia perdido a tia muito cedo, seu único apoio emocional, e que não tinha nenhum outro tipo de apoio que não fosse aquele. deveria saber melhor que o período era delicado para o melhor amigo. Pouco pode fazer, a não ser, em um silêncio frustrando, ouvir o sermão impaciente de seu pai sobre seu temperamento volátil estar começando a roubar o que havia de melhor nele, e que deveria desculpar-se com —— além disso, não havia percebido que a irmã estava machucada? Era tão mais importante assim vencer um argumento do que amparar alguém que precisava dele? ——, que os dois meninos deveriam chegar em um acordo o quanto antes, porque Ernst não iria permitir que aquilo se estendesse mais do que já havia.
Pela primeira vez, todavia, recusou-se.
Ressentia-se com a forma com que havia o tratado —— que culpa tinha ele? —— e, acima de tudo, ressentia-se ainda mais com a maneira com que o pai parecia estar determinado a não o escutar, como se não importasse as palavras ou o quanto o rapaz tentasse vocalizar o incômodo, elas não pudesse chegar até o mais velho. Porque todas as confusões em que se envolvia a culpa era automaticamente dele, mesmo que não tivesse feito nada desta vez? O pai o odiava tanto assim para só conseguir esperar isso dele?
A falha de comunicação, proporcionou a instabilidade.
Anos depois, não muito, na verdade, uma questão de três anos à frente, apenas, seria responsável por causar a ruptura. Porque é isto que acontece quando sentimentos não são honestamente expostos. Porque é isto que acontece quando escolhe-se poupar alguém de uma verdade em prol de sua proteção. Uma pequena fissura em uma parede, pode ser irrelevante, mas com o tempo, e o atrito constante, não demora para se tornar uma fresta, então uma fenda e antes que possa se perceber, a rachadura já está grande o suficiente para que paredes caíam, e a casa seja derrubada. No fim, não havia motivos para dizer que existia surpresa, certo? Ambos mereceram.
De castigo, pelas próximas semanas, os dois meninos se evitaram.
Sentindo-se culpado pelo incidente, passou a tentar fazer de tudo para compensar Daphne. Comprou todas as suas comidas preferidas, mesmo as que eram difíceis demais para encontrar, e não se importou de usar o nome do tio para conseguir o malditos macaroons que até então o rapaz não tinha ideia de onde encontrar, mas por um breve momento, havia se tornado sua sobremesa preferida também. Alugou todos os filmes que sabia que ela gostava, e não se importou de passar horas sentado no chão, ouvindo-a tagarelar sobre as melhores partes do filme, mesmo que o irritasse ter que pausar o filme a cada cinco em cinco minutos para poder ouvi-la com atenção. Buscou em sua mente todas as piadas mais inteligentes e engraçadas que sabia, todas as que tinham no maldito livro de piadas de Marjorie, e que, àquela altura, o rapaz já havia decorado e podia recitá-las de olhos fechados, embora tivesse certeza que eram estúpidas ou bobas demais para serem realmente engraçadas.
E sentiu-se aliviado quando a viu rir. Era perturbador, mesmo que Daphne e Luna fossem adotadas, as vezes, especialmente Daphne, elas se parecia demais com , principalmente quando se permitiam a rir de verdade; talvez por isso tivesse passado a fazer piadas com frequência. Conseguiu encontrar todos os livros que ela gostava e se propôs a ler junto com ela. até mesmo se empolgou quando chegaram aos de fantasia. Por vezes, esgueirou-se pelos corredores, em plena madrugada, apenas para acordá-la, e passar o restante da noite debatendo, teorizando e discutindo sobre o rumo que o livro tomaria. havia até mesmo se dado ao trabalho de montar um caderno com tudo o que ele havia percebido, e as partes que havia mais gostado apenas para que pudesse a entreter.
concluiu que se desaparecesse, não perceberiam.
Tinham , afinal, e céus, ele se encaixava bem melhor na família do que o rapaz jamais conseguiria.
Foi somente na véspera de natal que, sem dizer uma palavra, aproximou-se do melhor amigo e entregou-lhe o presente que havia passado semanas tentando restaurar. teve o trabalho de passar dias no porão procurando pelos pedaços da câmera, e embora não tivesse conseguido encontrar todos, havia conseguido recolher o suficiente para reconstruir o objeto.
E foi o que havia feito.
Com os dedos cortados, arranhados e com farpas para serem retiradas por dias que se seguiriam, mas acreditou ser o presente adequado para . Porque se algo era importante para , também seria, para ele.
não chorava.
havia ouvido a mãe dizer uma vez, entre sussurros para o pai, enquanto achavam que os filhos estavam distraídos, que não se sentia bem com o fato de não chorar. Como se o rapaz estivesse permanentemente quebrado a um ponto que não existia mais retorno. Mas conhecia o melhor amigo, e sabia que ele o fazia, só não quando estava na frente de alguém, e muito menos, na frente de alguém que tinha uma grande consideração —— como no caso de seus pais.
Principalmente porque sabia que haveriam perguntas, a menos que tivesse algum tipo de retorno em troca, e isto, nunca era algo bom. Foi só quando os dois estavam sozinhos, permeados pelo silêncio sepulcral na casa da árvore que outrora havia pertencido a e Daphne, mas que agora era dos gêmeos, que o ouviu chorar.
Baixinho, sem soluços, sem nenhum som esganiçado. Era como se, de repente, seus olhos tivessem transbordado de água e, agora, estivessem vazando, como uma estátua, estranho demais para que o rapaz não ficasse encarando. , por fim, pouco se importou com o boneco, na verdade o quebrou uma segunda vez. Separou dois pedaços da carcaça da câmera. Disse que os transformaria em chaveiros, e pertenceria aos dois —— mesmo que tivesse, agora, insistido com veemência que não o queria ——, e que se quisesse poderia ser um amuleto da sorte que eles compartilhavam, já que era um para Marjorie. Não pediu desculpas, todavia —— nunca pedia desculpas ——, mas confidenciou-lhe baixinho: estava com medo, aterrorizado, na verdade, pela a ideia de que não conseguia mais lembrar da mãe, e que isso lhe dava a certeza que precisava ter de que não era uma boa pessoa.
, é claro, assegurou o melhor amigo que ele jamais seria uma má pessoa, mesmo que tentasse muito e fosse bem otário quando queria. ainda era gentil, e ainda era bom, igual lembrava-se de que Marjorie era. E ninguém que era capaz de ser gentil poderia ser, no fim, uma pessoa má.
Tamanho erro havia cometido, e sequer percebido.