Revisada/Codificada por: Pólux
Última Atualização: 06/03/2025Ouviu um chiado do micro comunicador em seu ouvido direito e parou. Se escondeu atrás de uma das máquinas ouvindo as instruções de Penny. Enquanto , Dax e Selina estavam espalhados em diferentes pontos da fábrica, Penny, uma mulher engenhosa e teimosa que conseguia aprender a lidar com qualquer tipo de maquinaria, estava no caminhão controlando o sistema de vigilância e direcionando os outros. Penny informou que Dax e Selina já haviam derrubado os seguranças presentes no local, deixando o caminho livre. Com as instruções de Penny, rapidamente alcançou o corredor que a levaria ao seu objetivo.
Assim que avistou a larga porta de metal, sua respiração ficou pesada e, a cada passo que dava, seu coração acelerava cada vez mais. A porta estava apenas encostada e com um chute ela foi aberta. A mulher teve apenas alguns segundos para avaliar a situação: havia três homens do outro lado da sala marrom mal iluminada. Do lado esquerdo estava um homem magro de cabelos pretos, segurando uma lâmina curva em suas mãos sujas de sangue. Do lado direito um ruivo um pouco acima do peso, tinha uma seringa com um líquido amarelado já bem próximo do terceiro homem, esse no centro, estava preso a uma estrutura de metal que o mantinha de pé. Os dois homens armados se viraram assustados, mas não tiveram tempo de tentar se defender, desferiu dois tiros certeiros na cabeça de ambos. Não eram os primeiros a morrer por suas mãos. Matar havia se tornado uma parte de sua vida. Só matava quando achava extremamente necessário, mas ainda assim isso a assustava. Pensar que um dia o ato poderia ser tratado com frieza e indiferença a preocupava. Então seus olhos focaram no homem a sua frente e a culpa pelas mortes se dissipou. Vê-lo naquele estado, desacordado, com fios, vários hematomas, vergões, cortes e machucados espalhados pelo seu tórax e braços fizeram cada centímetro de seu corpo ser tomado pelo pavor. Caminhou até ele e notou a mesa de metal do lado esquerdo, com diversos instrumentos de tortura, alguns modernos e outros que vinham sendo usados há séculos.
- – chamou com a voz falha assim que o alcançou. Ele não se moveu e o desespero começou a preencher seu peito. – , por favor. Acorda – insistiu tocando o rosto dele. Ele tinha a testa coberta por sangue misturado a suor e um corte profundo no canto direito da boca. A boca rasgada significava uma coisa: ele havia recebido uma visita de Bishop, o sádico torturador que tinha o hábito de “alargar o sorriso” de suas vítimas. Mas o corte na boca de era pequeno. Bishop apenas tinha começado o serviço.
O comunicador voltou a chiar, mas não conseguiu prestar atenção em uma só palavra que Penny dizia. Segurou o rosto de entre suas mãos e chamou novamente, dessa vez um pouco mais alto e logo dois grandes olhos a encararam.
- ... – a voz dele era quase um sussurro. Ela suspirou aliviada e retirou os fios espalhados em seu tórax.
- Você vai ficar bem, vou te tirar daqui – cortou as correias que prendiam os pés dele e a mão esquerda. Antes de cortar a da mão direita, colocou seu braço direito em volta dele sustentando seu peso. – Desculpa ter demorado tanto a te achar – ela sussurrou após colar sua bochecha a dele e então cortou a última correia que o prendia ali.
Estavam no caminhão indo para casa e isso deveria tranquilizar , mas o aperto em seu peito ainda estava presente. estava deitado em uma cama improvisada feita com duas cobertas dobradas e ela estava sentada ao seu lado acariciando seus cabelos. Geralmente evitava demonstrações de intimidade e qualquer proximidade, mas naquele momento nada disso importava, precisava tocá-lo, se certificar que ele estava bem e que não sairia de perto dela.
Assim que se afastaram da fábrica, caiu em um sono profundo, precisava descansar após tudo que tinha passado e nem mesmo o ambiente abafado ou os sacolejos do velho caminhão seriam capazes de acordá-lo. Caminhão esse que fora achado em um ferro velho e pelas mãos de Penny foi reformado para parecer com mais um dos veículos de distribuição da República. Com o caminhão e os documentos falsos podiam transitar por aí livremente. Selina e Dax, que sempre ficavam na cabine, costumavam se vestir como meros trabalhadores da República e cumpriam bem o seu papel de enganar policiais e oficiais de segurança. Penny sempre ficava no baú, na maioria das vezes estava mexendo com alguma parafernália tecnológica ou então invadindo algum sistema de segurança. No momento, Penny havia largado o pequeno dispositivo de rastreamento que tentava consertar e apenas observava os amigos recostados do lado oposto do baú. Chamou a amiga após algum tempo:
- – ao ouvir a voz de Penny, levantou os olhos que antes encaravam . Até então não tinha conseguido parar de encarar os machucados e cicatrizes, observando também como ele estava mais magro e debilitado. – Dorme também. Precisa descansar.
- Não estou com sono – seus olhos pesados contradiziam suas palavras.
- Temos algumas horas de viagem e você não dorme direito desde o dia que o foi levado – acusou e franziu a testa. – As manchas roxas e as bolsas nos seus olhos confirmam isso.
- Eu estou bem. Sério.
- Você está olhando para ele como se fosse perdê-lo a qualquer momento – a voz de Penny agora soava não apenas preocupada, mas também cheia de compaixão.
- É só que... – começou a falar, mas se calou, não queria dizer tudo que estava sentindo agora, não quando havia a possibilidade de ouvir algo.
- Ele está bem agora. Está com a gente. Tenta dormir um pouco. Estou aqui para cuidar dele, assim como a Selina e o Dax – insistiu vendo a amiga suspirar. – Dorme um pouco, vai, tente não ser uma mula teimosa – completou sorrindo.
- Ok - concordou com um pequeno sorriso. – Mas se me comparar com uma mula novamente, vamos ter problemas – ameaçou divertida.
- Só dorme, vai – insistiu e viu a amiga se ajeitar e em menos de dois minutos ouviu sua respiração calma e profunda.
Poucos minutos antes do amanhecer, eles chegaram ao seu lar: uma casamata situada entre uma cadeia de montanhas. A enorme construção de concreto e aço tinha quase um século e havia sido construída para garantir proteção diante de um conflito nuclear. Agora abrigava aqueles que decidiram fugir das garras da Nova República. Sua localização garantia a segurança dos dissidentes que ocupavam o local há pouco mais de quinze anos.
Durante noventa e três anos a nação esteve sob o comando de um regime ditatorial, repressivo e assassino. Vários levantes ocorreram, mas apenas nos últimos oito anos do regime é que uma oposição forte conseguiu se organizar e articular ataques que foram enfraquecendo o governo. Nesse período, muitos foram assassinados e torturados, mas a fagulha da revolução incendiou a nação e o governo foi finalmente derrubado. Um novo regime foi instaurado, chamado Nova República, mas este sofreu desde o início com a instabilidade. Alguns estados buscavam emancipação e muitas pessoas rejeitavam os ideais dos novos governantes. Diante desse cenário e com a permanência de muitas pessoas do antigo regime no novo sistema político, não demorou muito até que o novo governo traísse os ideais que proclamava. As tensões foram crescendo e a tão sonhada Nova República passou a ser um regime repressivo e assassino. Heróis, soldados e trabalhadores morreram nos conflitos, e a situação piorava a cada dia. Muitas pessoas que ainda acreditavam nos ideais da revolução abandonaram o conforto da vida nas cidades e se juntaram a guerrilhas, agora lutando contra seu velho inimigo travestido de “novo regime”.
No interior da casamata, foi imediatamente levado para enfermaria, ficando sob os cuidados de Ivy, a competente médica da comunidade. Assim que se separou de , ciente de que ele estava em boas mãos, foi em direção a sua cabine. O pequeno espaço que dividia com Penny, possuía dois quartos minúsculos, um cômodo que era sala e cozinha e um banheiro estreito. Assim que entrou na cabine, ela estalou as costas e fez um rápido alongamento antes de se despir e entrar no chuveiro. Ficou alguns minutos ali enquanto sentia seus músculos relaxarem. Quando tocou sua região lombar ao se ensaboar, sentiu uma dor aguda que provocou uma careta. Tentou ver o que seria a causa da dor sem sucesso e então assim que saiu do chuveiro, se posicionou em frente ao espelho ao lado da pia. Diante do espelho, conseguiu ver o enorme hematoma arroxeado, mas não conseguia lembrar quando e onde o havia adquirido. Além do hematoma, uma enorme e horrenda cicatriz cobria aquela região. Após algum tempo analisando o local, a imagem dos diversos hematomas cobrindo o corpo de tomaram sua mente. A dor de cabeça até então ignorada voltou e um nó se formou em sua garganta. Ela se apoiou a pia sem conseguir continuar encarando seu reflexo. Se sentia tão incompetente por não ter encontrado antes. Ele havia passado três semanas sendo golpeado e eletrocutado por causa da sua incapacidade de conseguir rastreá-lo. Por sorte, ele ainda estava vivo e pelo que pôde observar de seus ferimentos, se recuperaria. Bom, se recuperaria fisicamente. Ela não sabia tudo o que ele tinha passado, mas de uma coisa tinha certeza, tortura psicológica podia ser muito pior que a física. Imaginar as diversas torturas que ele podia ter passado lhe causavam uma dor tangível. Respirou pesadamente por alguns minutos e então sentiu fortes dores nas mãos. Percebeu que apertava a pia com tanta força, que os nós de seus dedos estavam esbranquiçados. Se afastou da pia, abriu e fechou as mãos algumas vezes e depois jogou água no rosto. Considerou ir visitar , mas logo desistiu da ideia. Se enrolou na toalha, foi até seu quarto e se vestiu rapidamente logo buscando o conforto de sua cama. Queria dormir e não pensar em nada por um tempo. Escapar da culpa e dor que a aprisionavam e ir para um mundo de sonhos onde todos os problemas podiam ser resolvidos. A verdade era que dormir não significava paz e bons sonhos para ela. Sabia disso, sabia que na maioria das noites tinha pesadelos e costumava acordar ainda mais miserável do que estava quando havia ido dormir, mas ela se iludia. Mentir para si mesma era o que quase sempre a impedia de ter um colapso.
Após vários minutos, ela finalmente conseguiu dormir e por sorte, naquele dia teve bons sonhos e conseguiu relaxar. Dormiu por quase vinte horas, tirando o atraso de parte das horas de sono perdidas. Seu sono tranquilo foi interrompido já na madrugada do dia seguinte, quando foi afligida por uma dor de cabeça lancinante. Dessa vez era diferente, não era por causa da privação de sono ou culpa. levou algum tempo para conseguir sair da cama, e quando finalmente se levantou, cambaleou até o banheiro. Com cuidado, retirou o armário do banheiro do lugar, revelando um compartimento secreto. De trás de um cano, retirou uma pequena caixinha metálica que continha algumas ampolas com líquido azulado. De outra caixinha retirou uma seringa e depois aplicou o líquido azulado em seu braço esquerdo enquanto fazia careta e trincava os dentes. Se apoiou na pia por alguns segundos, sua testa coberta por um suor frio que escorria por todo seu corpo, depois se arrastou de volta ao quarto. Assim que a dor passou, pegou novamente no sono, dessa vez indo de encontro ao usual mundo de pesadelos.
Quando finalmente acordou, procurou se manter ocupada. Além de manter sua mente longe de divagações que iam da culpa ao medo, também era necessário para compensar o dia anterior, desperdiçado na cama. Enquanto a Nova República primava por membros “felizes” e submissos na sociedade, a comunidade que vivia na casamata precisava de membros livres e úteis. Para garantir o funcionamento, todos deveriam ajudar nos diferentes setores necessários para a sobrevivência da comunidade. Estavam engajados em uma luta material e psicológica contra a Nova República e por isso precisavam manter a casamata autossuficiente.
No caso de , a negligência com o trabalho significaria, além de outras coisas, aumentar a antipatia de muitos membros da comunidade. Evitar inimizades era sempre a melhor opção. Ela participava de muitas missões de todo o tipo em cidades, desertos ou florestas, mas nos momentos em que estava na casamata, precisava ajudar em algum setor. Revezava entre o setor de soldagem, o de energia e o de mecânica. Nesse dia decidiu ficar no setor de soldagem onde tinha a companhia de Dax. O membro mais velho de seu grupo de combate era muito calado, não desperdiçava tempo questionando como ela se sentia ou querendo saber seus pensamentos mais profundos. Apenas trabalhavam, sendo que seus comentários eram limitados a como criar estratégias que facilitariam a atividade e isso era exatamente o que ela precisava. No caminho de volta a sua cabine, após passar quase o dia todo trabalhando, encontrou Ivy que lhe deu notícias sobre a situação de . Apesar dos machucados, desidratação e desnutrição, ele ficaria bem. Não tinha ferimentos graves ou internos. Estaria fisicamente recuperado em algumas semanas. A notícia trouxe alívio, mas também levantou algumas dúvidas.
Após o banho, se sentou no pequeno sofá cinza em sua sala e recostou a cabeça fechando os olhos. Sua mente estava novamente turbulenta e confusa. Ficou ali no escuro refletindo sobre algumas coisas até ser interrompida pela chegada de Penny. A graxa cobria seu macacão e pele, o que contrastava com sua palidez. abriu os olhos assustada com o barulho, mas fechou novamente com uma careta incomodada pela claridade.
- Boa noite, dorminhoca – Penny falou animada.
- Boa noite, porquinha. Devia ir direto para o banho.
- Vou daqui a pouco. Achei que fosse passar o dia no setor de mecânica – comentou sentando-se no piso de cimento queimado.
- Mudei de ideia. Dax falou que precisava de ajuda na soldagem – tocou a sobrancelha esquerda, sinal de que estava mentindo. Realmente era dia dela ficar no setor de mecânica, mas ao contrário de Dax, Penny iria passar o tempo todo questionando seus sentimentos e querendo conhecer seus pensamentos mais profundos.
- Foi visitar o ? – indagou retirando suas botas pretas.
- Ainda não.
- Devia ir. Ele perguntou por você – diante da expressão de confusão de , Penny continuou. – Passei lá hoje de manhã. Agnes está como um cão de guarda em um sofá do lado da cama dele. – revirou os olhos jogando as botas no canto da sala.
- Imaginei que estivesse. Mais um motivo para adiar a visita.
- Talvez ela passe a gostar de você, agora que salvou o filho dela – argumentou abraçando as pernas.
- Ela deve estar sentindo um pouco de gratidão, mas gostar de mim já é demais.
- Ela não te odeia. Ela só...
- Me odeia sim – discordou se afastando do encosto do sofá irritada. - Odeia o que represento e todas as memórias que trago à tona. Sou um constante lembrete de todas as merdas que ela já passou. Não só para ela – a raiva e a magoa foram aumentando durante o desabafo, mas ao ver a expressão piedosa de Penny resolveu mudar de assunto. A considerava a pior pessoa para falar de seus problemas, pois ela sempre tentava resolvê-los.
- ... – começou com a voz terna.
- Vamos mudar de assunto, vamos falar do – o modo como falara deixava claro que não daria continuidade ao assunto anterior, o que fez Penny suspirar.
- Ele está bem. Em algumas semanas estará completamente recuperado – afirmou feliz.
- Encontrei com a Ivy e ela falou que ele está bem até demais – o comentário deixou Penny confusa. Não havia felicidade nele, apenas preocupação. – Podia ser muito pior, muito pior mesmo e é isso que não sai da minha cabeça.
- Não estou entendendo.
- Ele ficou lá por quase um mês, nas mãos de terríveis forças paramilitares. “Justiceiros” e torturadores manipulados pelo governo. Ele está machucado, mas não parece que ficou lá por tanto tempo – explicou externando suas preocupações.
- Está preocupada que ele não tenha sido torturado o suficiente? – questionou não escondendo a incredulidade e horror em sua voz.
- Sim – confessou e viu Penny arregalar os olhos. – Estou feliz que ele esteja bem, mas Penny... Nós conhecemos a ação deles – sentou na ponta do sofá estalando os dedos repousados em seu colo. – Já resgatamos outras pessoas e também já encontramos corpos descartados por eles. Uma semana é suficiente para vários ossos quebrados, lesões internas e amputações – falava rápido enumerando nos dedos. – está machucado, mas inteiro. Isso não faz sentido. Especialmente se eles sabem quem ele é. Ele é filho de uma das líderes da maior guerrilha em atividade. Líder da organização que tem causado muitos transtornos para o governo. Porque tratar ele “bem”? – argumentou esperando uma reação da outra que apenas a encarava, ainda digerindo aquelas palavras. – Olha... eu estou muito feliz que ele está bem e inteiro. Só estou confusa e preocupada com os possíveis motivos por trás disso.
- Tem uma outra possibilidade – Penny começou com uma expressão triste. – Talvez eles não tenham machucado tanto ele fisicamente por que investiram a maior parte do tempo machucando a sua mente.
- Essa possibilidade é ainda mais assustadora – falou baixo encarando o chão. Imaginar aquilo lhe causava calafrios. Haviam várias formas de tortura psicológica: todo tipo de ameaças, simulação de afogamento e de execução, privação sensorial e do sono, entre outras. Algumas levavam a uma vida cheia de noites infestadas por pesadelos, em outros casos, o dano era muito maior levando a loucura e até ao suicídio. A intenção era clara: quebrar o espírito, seja para tornar o sujeito mais suscetível a um interrogatório, para aterrorizar, ou simplesmente punir. Imaginar passando por qualquer uma delas era doloroso demais. – A tortura física é algo horrível, mas a psicológica é muito pior – os pensamentos cruzando a mente de faziam seus olhos arderem. – As cicatrizes que ela deixa são profundas e duradouras. E é muito doloroso pensar nele passando por isso.
- Foi só uma suposição – afirmou agitada. Ver o estado de havia feito ela se arrepender de mencionar aquilo. – Aposto que ele está bem. Talvez a razão para ele não estar “tão” machucado não seja tão horrorosa quanto pensamos.
- Queria muito que estivesse certa – sussurrou encarando as próprias mãos.
- ...
- Eu preciso vê-lo – num ímpeto levantou-se do sofá e foi em direção a porta.
- Se quiser, posso dar um jeito de tirar a Agnes de lá – Penny falou já firmando a mão direita na parede para se levantar.
- Não precisa. Vai tomar seu banho. No momento, encarar a Agnes é a menor das minhas preocupações – completou fechando a porta em seguida.
Na entrada da enfermaria, Ivy a recebeu com um largo sorriso e apontou para o quarto onde estava internado. Apressou-se até a porta, que foi aberta antes que tivesse a chance de bater. Agnes a encarou com sua usual expressão impassível. Seus olhos analisaram .
- Você – o desprezo estava presente em sua voz.
- Vim ver como ele está – ignorou o tom de voz da outra tentando manter a civilidade.
- Volto em alguns minutos – se afastou da porta mas logo virou-se. – Obrigada, por ajudar a salvar o – apesar das palavras serem de agradecimento, seu tom era desgostoso.
- Só estava fazendo meu trabalho.
- É. Tem razão – suspirou e se afastou. Agnes detestava encarar , seus olhos eram idênticos ao do pai. Era como encarar seu algoz. Todas as vezes que a olhava lembrava dos choques e das sessões de estupro desempenhadas por Hugo Bormann. Mesmo que nunca tivesse dado sinais de ser parecida com o pai, Agnes não conseguia separar as coisas, olhava para ela e só conseguia pensar em toda a imundície presente no seu sangue. Ter que ver a proximidade entre e a irritava profundamente.
entrou no quarto e avistou de olhos fechados. Após observá-lo por alguns segundos, sorriu ao ver que apesar da perda de peso e machucados, ele aparentava estar bem melhor. Decidiu deixá-lo descansar e voltar outra hora. Ao abrir a porta, o rangido despertou que logo se pronunciou:
- Nem pense em fugir – a voz rouca dele soou divertida. fechou novamente a porta e se aproximou da cama com um pequeno sorriso. – Estava me sentindo abandonado, achei que não ia me visitar.
- Eu salvei seu traseiro e ainda me quer de babá? – questionou com falsa indignação. Ele riu mas logo fez uma careta.
- Não me faça rir – ordenou e bateu a mão na cama para que ela pudesse se sentar ali.
- Desculpa.
- As pessoas vão fazer piada sobre meu novo sorriso, não é? – perguntou com uma sobrancelha arqueada apontando para a cicatriz no canto da boca. estava sendo o mesmo de sempre fazendo piada e rindo da própria desgraça. considerou inicialmente que estava errada, ele estava bem, era o mesmo. Mas então pensou que talvez ele apenas estivesse se protegendo, fazendo o que ela sempre fazia: mostrar uma expressão feliz para as pessoas enquanto sofria sozinha.
- Alguns vão com certeza, mas vão esperar você estar totalmente recuperado. Enquanto isso, vão falar nas suas costas – ele riu e novamente fez careta. – Desculpa.
- O lado bom é que agora eu aparento ser um cara durão – comentou forçando uma voz grave.
- Talvez deva raspar o cabelo e fazer umas tatuagens, para complementar esse visual – comentou mexendo no cabelo dele e ajeitando de forma a parecer um moicano.
- Ótima ideia.
- Como você está? – questionou após alguns segundos de silêncio.
- Bem. Ainda com dores, mas logo estarei completamente recuperado – respondeu com um sorriso que desapareceu ao ver a compaixão nos olhos dela. – Não me olha desse jeito. Você não. Não pode – trincou os dentes, aborrecido.
- As pessoas estão preocupadas. Eu estou preocupada – afirmou, tocando o braço dele carinhosamente.
- Não tem que se preocupar. Eu estou muito bem. Bem o suficiente para aproveitar sua presença para começarmos a investigar esses caras – ele se ajeitou na cama e seus ossos aparentes chamaram a atenção dela.
- Investigar o que exatamente?
- Enquanto eles me transportavam de uma sala para outra, eu vi alguns baús de metal. Aparentemente, algo que tinham roubado recentemente. Algo importante, mas que segundo eles, o governo não sentiria falta – abaixou o tom de voz durante a explicação.
- O que acha que pode ser? – questionou curiosa.
- Não tenho a mínima ideia. Mas temos uma pista. Tinha um desenho gravado neles. Uma mulher com roupa romana e uma árvore do lado. Pega papel e caneta que eu desenho para você – ele apontou para o sofá. Havia um bloco de notas e uma caneta, esquecidos ali por Agnes. os pegou e entregou para . E então finalmente reparou em suas mãos. As mãos feridas estavam trêmulas, tão trêmulas que ele mal conseguia segurar a caneta. Ele não conseguiu desenhar, a tremedeira aumentou de tal forma que só saía rabiscos. Ele quebrou a caneta e soltou um xingamento com uma expressão de dor e frustração. pegou papel e caneta e jogou no sofá. Diante da expressão derrotada dele, ela segurou suas mãos e as apertou com delicadeza. Ele até tentou retribuir o gesto, mas suas mãos estavam fracas e ele mal podia controlá-las. Depois da tentativa falha de desenhar, ele ainda não tinha a encarado.
- – ela chamou. – Está tudo bem. Ainda é muito recente – o jeito que ele a encarou fez seu coração doer. – As coisas vão melhorar. Vai levar um tempo, mas seus sentidos vão voltar a funcionar – ele sustentou o olhar que misturava angustia e descrença.
- Não tenho certeza disso.
- Confia em mim. Eu sei que vão – apertou novamente as mãos dele e depois as soltou mantendo a proximidade. – Me conta o que aconteceu lá – continuou após alguns segundos de silêncio.
- Não quero falar sobre isso – escondeu as mãos sob o lençol que o cobria e encarou o teto.
- Precisa conversar, desabafar – insistiu tocando seu tórax.
- Não vou.
- Isso vai ajudar – a insistência de o irritou.
- Como? – questionou nervoso finalmente a encarando. – Como isso vai me ajudar? – ele segurou o braço dela e a afastou. – Como relembrar toda essa porcaria vai me ajudar?
- ... – suplicou encarando seus olhos que agora transbordavam fúria.
- E como você vai me ajudar? Justamente você? – estava vermelho e veias saltavam em sua testa. – Se tem algum dom inato, esse provavelmente é o de provocar sofrimento, não curar – rosnou e viu ela rapidamente se afastar da cama. A sentença a atingiu como um soco no estômago. Não conseguiu encará-lo e decidiu fugir dali. Assim que alcançou a porta, ouviu seu nome e se virou. – Me desculpe – ele respirava profundamente enquanto massageava a nuca. – Eu não quis... Eu não quis te machucar.
- Não somos nossos pais. Você mais do que ninguém devia saber disso – afirmou sentindo os olhos arderem.
- Eu sei. Me desculpe – ele estendeu a mão pedindo que ela se aproximasse. – É só que... eu... eu não posso falar sobre o que aconteceu. Todo mundo tem me perguntado, mas já tem sido difícil o suficiente sem me esforçar para relembrar tudo. Só consigo dormir com medicação e mesmo assim meus sonhos são assombrados. Pensar em tudo que aconteceu é muito doloroso. Eu só quero esquecer – completou enquanto uma lágrima rolava por sua bochecha.
- Eu sinto muito – sentou novamente na cama e colou a bochecha à dele, depois encaixou o rosto na curvatura de seu pescoço e continuou. – Por tudo que teve que passar, por causa da minha incompetência.
- Não é sua culpa – passou a acariciar o cabelo dela. – Você só é culpada de uma coisa: me achar e me trazer de volta a salvo.
- Mas eu demorei tanto a te encontrar – ela se afastou um pouco o encarando.
- Você me achou e eu serei eternamente grato por isso – tocou o rosto de que em seguida pousou a mão sobre a dele. Se afastaram quando a porta foi aberta.
- Me desculpe. Não quis interromper – a enfermeira Martinez entrou no quarto e se aproximou da cama. – Preciso levá-lo para mais alguns exames e testes.
- Estará aqui quando eu voltar? – questionou e viu negar.
- Mas volto amanhã.
- É uma promessa? – questionou erguendo a sobrancelha e viu ela assentir com um sorriso.
saiu do quarto se sentindo ainda pior. Além de perceber que os danos deixados pelos dias sob tortura eram muito maiores do que deixava transparecer, também se sentia miserável. Tinha ido até lá para saber mais sobre a situação dele e então tentar ajudá-lo. Mas o que tinha feito era demonstrar suas próprias fraquezas para então ser consolada. Se sentia egoísta demandando ajuda, enquanto era ele quem precisava de todo o apoio e atenção possíveis. Seguiu em direção a saída, mas mudou o trajeto quando avistou Ivy. Seguiu a médica até a porta do pequeno consultório, a alcançando antes de entrar.
- Além dos tremores, quais são os outros sintomas? – questionou quase atropelando as palavras.
- Vamos conversar aqui dentro – Ivy abriu a porta e entrou logo sendo seguida. Assim que as duas sentaram, a médica continuou. – Precisa entender que a tortura faz a pessoa ser reduzida a um extremo estado de angustia e isso deixa marcas – explicou com o tom de voz calmo, o que deixou um pouco irritada. Não queria ser poupada.
- Eu sei. E eu quero saber quais as marcas nele – exigiu ansiosa e viu Ivy suspirar.
- Além dos tremores, também apresenta desorientação sensorial, sua capacidade normal de percepção está abalada. Ele vê algumas coisas de modo distorcido e apesar de não admitir, acredito que tem sofrido alucinações – diante da expressão surpresa de , esclareceu. – Martinez o flagrou falando sozinho algumas vezes. Além disso, também apresenta dificuldades para se concentrar. Distúrbios de humor e do sono.
- Sintomas comuns, certo? – estalava os dedos pousados em seu colo. – Para toda a pressão insuportável que ele deve ter passado.
- Sim. Essa confusão mental é comum. Sinal de estresse pós-traumático.
- E o que mais os exames contam?
- Tem indícios de afogamento, mas sem sinais de violência sexual – o rosto de se contorceu enquanto sua mente formava a imagem de um já machucado tendo seu rosto coberto por um tecido e então água em abundância sendo despejada nele. A experiência de passar por uma simulação de afogamento era desesperadora, ter seus pulmões se enchendo de água sem poder reagir, com pés e mãos amarrados. – Tem muitos ferimentos e hematomas, mas nenhum deles trouxe complicações.
- E ele vai ficar bem? – questionou em um sussurro sentindo um aperto no peito.
- É difícil dizer – admitiu enquanto tentava escolher bem as próximas palavras. – Em alguns casos, os sintomas desaparecem em dias ou semanas...
- E em outros eles não desaparecem e o dano se torna permanente – ponderou sentindo novamente um nó se formar em sua garganta.
- Ele vai superar tudo isso – Ivy afirmou buscando os olhos de que pareciam perdidos. Talvez se dissesse aquilo com firmeza suficiente, a sentença se tornaria verdadeira.
não conseguiu dormir, e mais uma vez o motivo era . Sempre que fechava os olhos, sua mente produzia imagens de sendo torturado de diferentes formas. Uma mais sádica e dolorosa que a anterior. Era desesperador. Mesmo com corpo e mente cansados, passou o dia seguinte no setor de soldagem. Precisava focar no trabalho e aproveitar o silêncio que a companhia de Dax lhe proporcionava. No fim do turno, correu até a cabine, tomou um banho rápido e seguiu até a enfermaria. A pressa era para evitar encontrar Penny, que com certeza faria diversas perguntas sobre a visita na noite anterior.
Assim que se afastou da cabine, passou a caminhar lentamente enquanto respirava fundo e tentava espantar todas as perturbações presentes em sua mente. Quando alcançou o corredor que levava a enfermaria, observou uma movimentação de oficiais de segurança entrando no local. Correu até lá e se deparou com a agitação de enfermeiros e pacientes. A preocupação cresceu dentro de si quando viu um segurança em frente ao quarto de , afastando curiosos. Ao chegar a porta também foi barrada e tentou forçar a entrada. A tentativa falhou, mas lhe permitiu observar o que acontecia lá dentro. Uma enfermeira aplicava algo no pescoço de que estava desacordado e tinha os membros superiores e inferiores cobertos por marcas vermelhas. As marcas e o modo como o ambiente estava bagunçado indicavam luta. A cena lhe causou angustia e irritação, o que levou a outra tentativa de entrar lá. Pouco tempo depois, Agnes e Clint Graham, o chefe da segurança, surgiram em seu campo de visão, obrigando que ela se afastasse para permitir a saída deles.
- O que aconteceu? – questionou Agnes que tinha uma expressão preocupada.
- atacou uma das enfermeiras – chefe Graham respondeu com sua usual expressão carrancuda.
- O que? Mas como?
- Ele a empurrou contra uma parede – Graham berrou sem se importar com as pessoas que tentavam ouvir a conversa.
- Está machucada? – virou para Agnes que se mantinha calada.
- Não. Ele não seria capaz disso – Agnes se apressou em responder. – Ela só está assustada.
- Não podemos deixar isso se repetir – o chefe abaixou o tom, mas a irritação e impaciência ainda estavam presentes em sua voz. – Precisamos garantir a segurança dele e dos profissionais de saúde.
- O que isso significa? – questionou tentando entender o que estava por trás daquelas palavras.
- Graham acredita que é melhor mantê-lo imobilizado – Agnes sussurrou, ainda ponderando se aquela era a melhor opção.
- Você quer amarrar ele? – gritou se aproximando de Graham.
- Essa não é a definição correta – respondeu com deboche. – Mas é basicamente isso.
- Não vão fazer isso com ele.
- Essa decisão não é sua.
- Nem sua.
- Você não tem voz aqui. E nesse caso a contenção é sim necessária – Graham fez um sinal e o oficial que até então apenas assistia a discussão segurou o braço de .
- Muitas pessoas daqui foram torturadas em algum nível...
- A maioria pelas mãos do seu pai – a interrompeu irritado.
- Sim, eu sei. E eu acredito que nenhuma delas ia querer ser acorrentada como um animal enquanto lida com esse evento traumático – rosnou para o chefe e então se virou para Agnes. – Não pode fazer isso com ele - implorou sentindo o desespero encher seu peito. – Ficar amarrado vai fazê-lo reviver tudo. Essa porcaria toda já está sendo dura o suficiente. Não pode deixar ele fazer isso. já sofreu demais.
- Ele é um perigo para si mesmo e para os outros – argumentou tristemente. – Que opção eu tenho?
- Me deixa cuidar dele – arriscou apresentar a ideia que tinha acabado de cruzar sua mente. – Posso vigiá-lo dia e noite.
- Foram necessários 3 homens para segurá-lo, o que te faz pensar que consegue fazer isso sozinha? – Graham questionou com desdém.
- Ele confia em mim – respondeu raivosa. – E agora preciso que você confie, Agnes – encarou a mulher cujo rosto transparecia a dúvida que tomava seus pensamentos.
- Não acho que isso seja uma boa ideia.
- É melhor do que torturar ele de novo, fazendo ele reviver o cativeiro e todas as merdas de lá – afirmou e viu Agnes olhar para o chefe Graham e depois para ela, avaliando qual decisão seria a correta.
- Tudo bem – falou após alguns segundos de reflexão. – Você fica responsável por acompanhá-lo. Continuarei vindo todos os dias e vou manter um oficial na enfermaria – completou vendo assentir.
- Isso é um erro – Graham murmurou.
- Se algo acontecer, a culpa é sua – Agnes ignorou Graham e apontou o indicador para . – E vai pagar por isso.