Revisada por: Lightyear 💫
Última Atualização: 12/06/2025Deu seus dados para a recepção do prédio comercial e foi para o elevador, apertando o 10° andar e checando seu visual, não estava com a melhor das feições, mas não se importava, sempre fora apenas ela e seu pai. Agora ela estava sozinha, podia se permitir parecer triste, pois era assim que se sentia, triste e sozinha. Claro, tinha amigas que estavam sempre conversando com ela, assim como o amigo de seu pai, Osvaldo, que sempre fora como um tio para ela e estava sendo seu maior rce nesse momento tão difícil.
Assim que o elevador anunciou o 10º andar e as portas se abriram, deu de cara com um corredor cheio de portas, típico dos prédios comerciais da região central da cidade. No final do corredor, era possível ver a porta imponente do escritório de advocacia que a ligara, alguns dias atrás. Parece que seu pai havia deixado um testamento e estava na hora de enfrentá-lo e descobrir o que havia nele.
Entrando pela porta, logo foi recepcionada pela secretária, dando seu nome completo. , um nome um tanto comum, se vissem por fora, do jeito que deveria ser, afinal, sempre vivera a vida de maneira mais reservada. Mas seu sobrenome trazia um certo poder aquisitivo implícito, uma vez que seu pai construíra um império em vida, tendo uma das maiores empresas de administração do estado. Se sentou em uma poltrona para aguardar ser chamada, parece que mais pessoas deveriam estar presentes para ouvir o testamento. Estranho. Mas ela não precisa ficar pensando muito no porquê da espera. Logo Sergio , o melhor amigo de seu pai, ele fala algo para a recepcionista também e olha em volta, notando a presença de , sentada na recepção.
— , minha querida, como está?
— Estou bem e o senhor?
— Por favor, não me chame de senhor, assim faz parecer que sou um velho. — Ele passa a mão nos poucos cabelos grisalhos que tinha apesar da idade enquanto dá uma piscada marota, fazendo a mulher rir de lado. — Mas estou bem também.
— Pai, sabe muito bem que você está, sim, velho. — Quem diz isso é .
se vira na direção da voz e encontra os olhos castanho-escuros que conhecia tão bem. estava ali, com o mesmo sorriso debochado de sempre e a postura casual que fazia parecer que nada o abalava. Usava um blazer escuro por cima de uma camiseta preta, e os cabelos estavam um pouco mais longos desde a última vez que se viram, o que, ela percebeu, já fazia alguns meses. Tempo o suficiente para que ele parecesse quase um estranho… mas ainda assim familiar. Não tinha como esquecer o amigo que crescera junto dela.
— Oi, . — Ela sorriu, enquanto ele dava um beijo em sua bochecha. — Veio ouvir o testamento também?
— Pelo visto, sim. Não faço ideia do porquê, mas seu Osvaldo me ligou ontem à noite e disse que era importante. E quando ele diz que é importante… — deu de ombros.
— A gente aparece. — completou , em um tom cúmplice. Os dois se olharam por um breve momento, da mesma maneira que faziam quando crianças.
Logo a recepcionista os chamou.
— Senhorita , senhor . Podem entrar.
O escritório do advogado era amplo, revestido de madeira escura e com prateleiras que iam até o teto, repletas de livros de direito. Atrás da mesa, um homem baixo, de óculos e expressão cansada, os recebeu com um gesto.
— Bom dia. Sou o doutor César Monteiro. Obrigado por virem. Meus sentimentos pela perda, senhorita .
assentiu, formalmente, só queria se livrar disso logo e poder voltar à sua vida.
— Antes de começarmos, preciso informar que o conteúdo deste testamento possui cláusulas específicas que requerem a presença de ambos. — Ele os olhou por cima dos óculos. — E, como já devem saber, não se trata apenas de uma partilha de bens, mas de uma sucessão empresarial. O senhor deixou orientações muito claras quanto à sua herança.
sentiu um leve desconforto no peito. Sabia que o pai era metódico, mas o que quer que estivesse por vir, ela não fazia ideia.
O advogado então puxou um envelope pardo e o abriu com cuidado.
— “Eu, Henrique , em plena consciência, deixo registrada minha vontade final…” — começou a leitura formal, passando pelos pontos tradicionais, doações, fundos de investimento, uma menção a uma casa de praia, outra à fundação beneficente criada nos últimos anos. Mas então, veio o trecho que fez congelar.
— “…e deixo como condição para que minha filha, , assuma a presidência da Administração, que ela esteja legalmente casada, por pelo menos seis meses, com , filho de meu melhor amigo e sócio de longa data. Esse casamento deverá ser validado perante a lei, com registro civil, e todas as obrigações que um casal tradicional assume. Caso contrário, o controle da empresa passará para o conselho administrativo, e minha filha terá apenas o direito à parte líquida da herança, sem voz na gestão.”
Um silêncio denso caiu na sala.
encarou o advogado, como se não tivesse entendido.
— Você está brincando, não é?
— Tenho medo de que não, senhorita. Está tudo documentado. A cláusula foi registrada legalmente há dois anos e seu pai foi muito claro: ou você casa com o senhor , ou abre mão da presidência.
Ela virou-se devagar para , que estava tão boquiaberto quanto ela.
— Isso é… insano. — ele murmurou.
— Vejo que foram pegos de surpresa.
— Bota surpresa nisso — tem a voz quase derrotada, não seria capaz de fazer isso. Um casamento sem amor? E prender a tudo isso?
— Vou deixá-los a sós para conversarem, caso concordem, já temos todos os papéis necessários, as certidões de nascimento foram atualizadas e todos os documentos necessários para um casamento civil já estão adiantados. Podem fazer isso hoje, caso aceitem. — Com mais essa bomba, o advogado sai da sala e deixa-os sozinhos. Há um silêncio tenso no ar, nenhum dos dois falava nada.
— É isso, acabou. — está derrotada, coloca as mãos na cabeça enquanto apoia os cotovelos nos joelhos e solta um suspiro frustrado.
— É sério? Vai desistir assim? — A voz de só demonstra incredulidade, recebendo um olhar confuso da mulher — Deve ter algum jeito.
— O jeito é a gente se casar, ! É um testamento, aprovado e registrado em cartório, não tenho como fugir disso. — Ela se levanta e começa a andar de um lado para outro no escritório. — Estudei minha vida toda para isso. Me preparei para esse momento, e tudo para quê? Para perder assim de uma vez, e agora, o que eu vou fazer da minha vida?
— Se controla, mulher — se levanta e a segura pelos ombros, fazendo-a parar de andar e olhar para ele. — Você não vai perder a sua empresa. A gente vai casar. — Quando ele termina de falar, ela solta uma gargalhada nervosa.
— Essa foi boa. — Limpa uma lágrima que cai da risada. — Eu nunca vou te obrigar a fazer isso, não é justo você se comprometer por um desejo maluco de meu pai.
— Se essa cláusula está no testamento do seu pai, deve estar no meu também. Se fosse ao contrário, você deixaria eu perder tudo por causa disso? — Ele não a deixa responder, pois sabe que ela faria o mesmo que ele está disposto a fazer agora. — Então, pronto, 6 meses passam rápido.
— Mas… nós não estamos apaixonados. — A voz de é apenas um sussurro, enquanto tentava colocar os pensamentos nos eixos.
— Isso eu sei, mas podemos fingir quando estivermos próximos de algum acionista, sei que não vão comprar essa história tão fácil. — falava calmo, como se bolasse um plano.
— E não é justo que você se prenda a mim quando não temos nada de verdade. Então, você pode continuar saindo com outras pessoas. — Ela acrescenta, abre um sorriso de lado. Parece que estavam bolando um ótimo plano aqui.
— Assim como você. Vamos precisar morar juntos, sabe disso, né?
— Meu apartamento tem 2 suítes boas, podemos ir para lá, tem bastante espaço. E não me olhe com essa cara, se acha que vou morar no seu loft em Moema, está muito enganado.
— Okay, você tem um ponto. — Ele levanta as mãos em rendição. — Então, estamos combinados?
— Acho que sim, apenas um casamento de fachada, por 6 meses. — Ela estende a mão para selarem o acordo.
— Sem sentimentos envolvidos, apenas 2 amigos se ajudando. — Ele envolve a mão dela.
Assim que separam as mãos, dão um sorriso tímido um para o outro. Seria um desafio para ambos. De uma hora para outra, iriam começar a dividir uma vida, sua rotina e todos os hábitos um com o outro. Só não era mais assustador por crescerem juntos, ainda assim, havia uma certa ansiedade na mente dos dois. Como se soubesse que era a hora de voltar, o advogado retorna à sala, batendo na porta antes de entrar.
— E então? Decidiram o que vão fazer?
— Decidimos, sim. — dá uma piscadela para .
— Pode trazer os papéis, doutor. — fala de cabeça erguida, decidida do que vão fazer, mesmo que seu coração esteja acelerado pelo que concordara. — Nós vamos nos casar.
— Você não me falou que tinha um gato. — É a primeira coisa que ele diz quando ouve a mulher se aproximar. não olhava para ela diretamente, mas sim para a enorme gatificação que ocupava quase uma parede inteira.
— Sim, tenho. — Ela olha em volta, procurando o gato laranja que era seu companheiro há quase 5 anos. — Félix está por aí.
— Ótimo, já vira que vou ficar com as roupas cheias de pelos. — Ele resmunga mal-humorado.
— Pode tirar essa carranca do rosto, ele não vai entrar no seu quarto. E eu não fico com a roupa cheia de pelos, e ele é um amor, tá? — Ela coloca a mão na cintura enquanto observa o homem parado em sua sala, com algumas malas a tiracolo. Por incrível que pareça, ela não se sentia desconfortável em pensar que a partir de hoje, pelos próximos 6 meses, eles iriam dividir o mesmo teto. Era estranho, mas não de uma maneira ruim. Ela via como uma oportunidade de se reaproximarem, já que a correria da vida adulta havia afastado-os um pouco. — Vem, deixa eu te mostrar seu quarto.
Ela caminha pelo corredor, mostrando os cômodos da casa para que de situe.
— Meu quarto é aquela porta ali. — Ela apontou para a porta branca, que estava fechada. — Aqui é o seu. — abre a porta, deixando entrar.
O homem observa em volta do quarto espaçoso, mas clean. A cama box estava posicionada no centro do quarto, com a cabeceira na parede. Na parede ao lado, um guarda-roupa que ia do chão ao teto, claramente todas as suas roupas iriam caber e sobraria espaço. Do outro lado da cama, havia uma mesa de escritório ampla com uma cadeira do estilo presidencial de couro preto. A porta da suíte ficava ao lado do guarda-roupa e na última parede havia uma pequena sacada com uma porta de vidro que poderia ser coberta por uma cortina com blackout.
— Wow, seu quarto é quase do tamanho do meu loft todo.
— Fazer o que se gosto de espaço? Nunca entendi essa tara por apartamentos pequenos que São Paulo tem. — Ela deu de ombros, enquanto desencostava do batente da porta. — Vou te deixar à vontade para guardar as coisas. E ficar à vontade aqui em casa também, afinal, minha casa é sua casa. — dá uma risada baixa enquanto se afasta.
Ela se senta no sofá e volta a ler seu livro. Enquanto está esparramada, seu gato aparece, ronronando baixo e se deitando em seus pés. Era estranho saber que iria dormir em sua casa, pelos próximos meses, mas não queria admitir que, por outro lado, estava feliz por não ter de ficar sozinha em casa mais. Há algumas semanas, estava pensando em se mudar para um apartamento menor, ainda bem que não o fez.
— Prontinho, tudo arrumado. — aparece algum tempo depois, voltando para a sala e encontrando o gato sentado no encosto do sofá, o encarando como quem o julga. — Ele não vai me atacar, vai?
— Normalmente, ele gosta de pessoas. Só atacaria se você tivesse com cheiro de gato — comenta enquanto abaixa o livro e observa se aproximar lentamente do gato, que continua o observando como se julgasse o humano que invadira sua casa.
Ela não pôde deixar de dar um sorriso de lado ao ver um homem de 1,80 de altura se aproximar, cauteloso, de um gato gordo de 7 kg. , por outro lado, só pensava que precisava conquistar aquele gato, que parecia ler sua alma com o olhar. Aos poucos, ele estende a mão até o gato, que a cheira com cautela, antes de esfregar sua cabeça laranja no dorso, pedindo um carinho.
— Viu só? Melhores amigos já. Agora me diga, quer pedir algo para jantar ou quer jantar em algum restaurante? — apoia os cotovelos no encosto do sofá enquanto observa Félix deitar de barriga para cima para que pudesse acariciá-la.
— Acho que podemos pedir algo e comer por aqui, pode ser? Acho que ainda precisamos conversar algumas coisas, não? — assente enquanto pega o celular e começa a procurar algum restaurante no aplicativo de comida.
Alguns minutos depois, estavam sentados na mesa da sala, terminando de comer um combinado grande de sushi enquanto relembravam os momentos da infância. Como quando colou chiclete no cabelo de porque achava que ela estava sendo muito birrenta, e de fato estava.
— Meu pai teve que me levar no cabeleireiro para tirar aquilo do meu cabelo sem cortar — ela reclama em meio aos risos de .
— Ah, mas vamos admitir, você era insuportavelmente chata quando tinha 10 anos. — limpava uma lágrima enquanto tentava parar de rir.
— Só porque você é dois anos mais velho que eu, não quer dizer que você era o mais legal, tá? — Ela fingia estar irritada, mas havia um sorriso em seu rosto que a denunciava.
Aos poucos, as risadas diminuem e o silêncio chega até eles. Sabiam que precisavam conversar melhor sobre esse acordo todo.
— Certo, por onde vamos começar? — pergunta, enquanto começa a recolher os pratos e embalagens.
— Precisamos ver como será essa dinâmica. — pega os copos, ajuda e colocá-los na lava-louças.
— Concordo, então… para as pessoas ao nosso redor e os acionistas, nos casamos. — liga a máquina e se vira para o amigo.
— Sim, mas para desconhecidos, seguimos solteiros. Se precisarmos fazer alguma aparição pública juntos, agiremos como um casal, pelo bem das aparências. — assente, concordando com a fala de , enquanto pensa numa última coisa.
— Ah, e nada de trazer algum ficante para casa, vamos manter esse lugar neutro — ela diz, enquanto começa a sair da cozinha, sendo seguida por , que pega algo em seu bolso no meio do caminho.
— Fechado, e se você estiver em algum encontro ruim, é só me mandar um emoji de pinguim que vou te buscar. — A fala de arranca uma risada surpresa de , mas ela assente enquanto se senta no sofá, com o amigo ao seu lado. A essa altura, Félix já estava dormindo completamente esparramado na poltrona, nem ligando para os humanos que estavam combinando detalhes da sua farsa. — E quando der 6 meses, nós separamos no papel e seguimos nossas vidas.
— Perfeito. — estava com um sorriso no rosto, enquanto concordava com o que ela dizia. — Agora, eu, bem, comprei uma coisa para você, quer dizer, para a gente. — Ele parecia nervoso ao falar, afinal, nunca tinha feito isso para ninguém.
— O quê? — olhou para ele com entusiasmo.
— Bem, se vamos entrar nessa de cabeça, precisamos de… Bem, alianças. — Ele mostra uma caixinha de veludo para e a entrega, esperando que a mulher abra. — Eu espero que goste e que sirva — ele ri pelo nariz, enquanto passa a mão em seus cabelos, coçando a nuca em nervosismo. — Nunca havia comprado uma dessas, mas sei que você nunca gostou de nada muito grande em relação a joias e, quando vi na loja, ela parecia a sua cara, então, comprei.
Assim que abriu a caixa, agradeceu por estar sentada. Eram alianças de ouro, junto de um solitário delicado, com a pedra pequena e simples, do jeito que ela sempre sonhou em receber quando ficasse noiva — algo que nunca aconteceu. Não que não tivesse namorado na vida, mas nenhum parecia o certo. Todos acabam por motivos diversos que só faziam acreditar que essa história toda de amor não era para ela. , por outro lado, nunca sentiu que as garotas com quem namorou gostavam dele o suficiente para poder entrar num relacionamento tão profundo como o casamento. Teve uma única garota, anos atrás, que ele achou que seria a escolhida, mas quando pensou bem, percebeu que não gostava o suficiente dela para assumir um compromisso tão sério. Mas quando pensou em comprar isso para , pareceu certo, então, em um momento de impulsividade, comprara.
— É — limpa a garganta, para disfarçar a voz embargada. — É lindo, … — Sua voz saiu como um suspiro enquanto ela admirava aquela caixa.
— Óbvio que quando você for sair com alguém, você vai tirar, mas como sei que está indo bastante para a empresa, achei que seria bom ter uma. — Ele dá de ombros, enquanto se oferece para pegar a caixa e pede a mão de , e desliza o solitário e a aliança lentamente pelo anelar da mulher.
Ela apenas assente, ainda admirando o gesto e a pequena joia em seu dedo. não sabia o que havia feito, mas ali, naquele momento, com um simples gesto, algo se acenderá no coração de .
Era o que repetia mentalmente enquanto colocava água para ferver no fogão. Dois meses desde que tudo começou, quando assinou um papel que a tornava, tecnicamente, casada. Desde que passou a dividir o espaço que antes era só dela.
Lembra-se como se fosse ontem os sócios perguntando detalhes de um relacionamento que nem existia, afinal, era muito estranho que ela se casasse assim, do nada. Não era novidade que iriam tentar investigar tudo o que havia por trás de toda essa história, para poder desmascarar ambos e terem motivos para tirar a presidência de , até porque, onde já se viu uma mulher, na cadeira mais poderosa da empresa?
Já havia se acostumado com coisas que, no início, deixavam-na desconfortável. Como a cantoria no chuveiro às 6h da manhã, os chinelos largados no corredor, as risadas altas que vinham da sala quando ele assistia a vídeos no celular. Aos poucos, o espaço que ela sempre cuidou com tanto zelo foi se tornando mais vivo. Mas o que ela não esperava era como o simples convívio com estava mudando algo dentro dela.
Era nas pequenas coisas: o jeito como ele se preocupava quando ela chegava tarde, o modo como sabia exatamente como ela tomava o café, o hábito novo de deixarem música ambiente na casa mesmo quando estavam em cômodos diferentes. Aquele silêncio confortável, algo que ela não sabia que precisava até o ter. não sabia explicar. Só sentia. Sentia quando ele passava por ela no corredor e o perfume ficava no ar. Sentia quando ele ria baixo das mensagens que recebia. Sentia, principalmente, quando ele saía.
Ouviu barulho do guarda-roupa abrindo e se virou, ainda com a xícara nas mãos. A porta do quarto dele estava entreaberta, e o espelho refletia a imagem de ajeitando a gola da camisa social azul escura. A mesma que ele usava quando queria impressionar alguém. Seu cabelo estava penteado com mais cuidado, o relógio de couro no pulso e um leve toque de colônia completavam o visual. Ele se olhou no espelho com uma expressão casual, mas conhecia aquele olhar. Ele estava satisfeito com o resultado.
— Vai sair? — perguntou da porta, tentando soar neutra, enquanto se debruçava no batente da porta, fazendo se virar para ela, não tendo percebido que ela estava ali. Algo na maneira como ele estava vestido, ou talvez fosse o seu cabelo, ou o perfume que ele usava, deixou mexida. Não era novidade que estava sentindo algo diferente, mas estava fácil de ignorar. Até agora.
— Ah, vou sim. Jantar com a Juliana. Lembra dela? — ajeita a roupa mais uma vez, em frente ao espelho.
— Claro. Lembro sim — assente com a cabeça, lutando para não franzir a testa.
— Ela me chamou. Achei que seria legal distrair um pouco. — Ele sorriu confiante para o espelho, nem percebendo o que estava acontecendo ali.
— Legal. — forçou um sorriso.
— E você? Algum plano? — Ele se vira para enquanto sai do quarto e ambos andam até a sala.
— Vou ficar por aqui. Fazer um spa caseiro, talvez — ela responde dando de ombros…
— Boa ideia. Relaxa um pouco — assente, ajeitando o colarinho.
Ela ficou ali por mais alguns segundos, observando enquanto ele pegava a carteira, as chaves e retirava a aliança. Um ato que eles sempre faziam antes de sair com outras pessoas, mas dessa vez sentiu um leve aperto em seu peito.
— Boa noite, .
— Boa noite, .
Assim que ele saiu, o apartamento ficou diferente. Mais vazio. Mais frio. Ela deu um suspiro e deixou a caneca dentro da pia, para lavar depois, enquanto se encaminhava para a sala. Iria assistir alguma coisa, não poderia ficar na fossa por algo que ela não sentia, certo?
não conseguia explicar. Mas o que sentia no peito não era só incômodo. Era como se uma parte dela tivesse sido esquecida naquela porta que ele cruzou. Ela olhou para Félix, que pulou para o encosto do sofá e a encarou com seus grandes olhos amarelos.
— Nem começa, Félix. Eu sei o que parece.
Mas não sabia, no fundo, não sabia o que parecia.
Ela estava apenas… estranha. Só isso. Com esse pensamento, apenas balançou a cabeça e voltou para o quarto. Não iria ficar em casa se martirizando por um relacionamento de mentira, iria sair, iria se divertir e, quem sabe, tentar tirar , seu amigo e marido de mentira, da cabeça.
O clima estava leve. A cidade parecia preguiçosa, como se também estivesse tentando se recuperar da semana, nesse domingo calmo. E eles, sem compromissos marcados, passaram o dia em casa. , por mais que tivesse saído de casa e voltado tarde da noite, ainda chegara antes de , ela não havia perguntado que horas ele havia chegado, não iria fazer isso. E causar uma cena? Jamais.
— Sessão de cinema caseira? — sugeriu, enquanto saía da cozinha com um balde de pipoca e duas latas de refrigerante.
— Aceito. Mas hoje eu escolho os filmes. — respondeu, ajeitando as almofadas no sofá. Por mais que tenha respondido animada, havia um certo nervosismo em sua voz.
— O que houve? Tem algo te incomodando? — A voz de demonstrou preocupação.
— Não é nada, são só os acionistas da empresa de meu pai. Eles acham muito estranho essa ideia de termos nos casados tão rápido, acho que estão tentando fazer algo para nos desmascarar. — Ela solta um suspiro nervoso enquanto se deita no sofá, sentindo-se derrotada.
— Ei, vai dar tudo certo. — Ele pega a mão dela e acaricia com o dedão, de forma tenra. — Eles não vão descobrir nada, já estamos nisso há dois meses e está tudo correndo como o planejado, não? — Ele passa a mão no cabelo de , que o encara por mais tempo que o normal, antes de desviar os olhos. — Agora, vamos relaxar, escolhe um filme, mas se for drama, eu durmo — alertou, sentando-se ao lado dela.
— Você sabe muito bem que, independente do filme, assim que a pipoca e o refrigerante acabarem, você vai dormir, sempre acontece — ela ri enquanto se ajeitava no sofá e segurava o balde de pipocas e colocava o primeiro filme.
Aos poucos, o clima foi se ajustando. Félix se esparramou no encosto do sofá, entre os dois, com a barriga para cima, pedindo carinho. mexia no pelo dele de vez em quando, e , com o braço estendido sobre o encosto, repousou a mão sobre a perna de . Um gesto natural. Quase automático.
O polegar dele começou a fazer movimentos circulares sobre o tecido do moletom dela, de forma lenta, constante. sentiu um arrepio leve, mas não comentou. Apenas ajeitou a perna, se acomodando melhor. não percebeu o quanto aquele gesto afetava. Ou talvez percebesse. Mas preferia não pensar sobre isso. Na metade do segundo filme, ela encostou a cabeça no ombro dele. Com naturalidade demais.
— Tá confortável? — ele perguntou, sem olhar, ela estava muito próxima e ele não queria que um simples movimento de cabeça fizesse com que ela saísse. Não queria admitir, mas gostava de ficar assim com ela. Gostava mais do que pensava que gostaria um dia.
— Uhum. — ela murmurou, quase dormindo. não se mexeu. Sentia o peso leve da cabeça dela, a respiração lenta, o calor da pele dela através do moletom. Era bom. Tranquilo.
Ele pensou em mexer a mão. Em se afastar. Mas não conseguiu. Continuou ali, fazendo carinho devagar na perna dela, como se aquele fosse seu lugar desde sempre. Algo parecia certo novamente, assim como quando ele teve o impulso de comprar a aliança. A televisão seguia passando imagens, mas nenhum dos dois estava prestando atenção. mantinha os olhos levemente fechados, mas não dormia. Seu corpo estava quieto, mas sua mente rodava em círculos.
— Acho que tô com sono. — disse, baixinho, se afastando com calma. O filme havia acabado, e nenhum dos dois tinha se movido imediatamente.
— Vai deitar. Desligo tudo aqui. — Ele se afastou a contragosto, mas já foi pegando o pote de pipoca vazio e se encaminhando para a cozinha.
Ela se levantou devagar, e antes de sair, olhou para as costas de por um momento mais longo do que o necessário.
— Boa noite, .
— Boa noite — Ele virou a cabeça em sua direção apenas para dar um sorriso tímido, antes de entrar na cozinha.
Ela caminhou até o quarto em silêncio, fechando a porta atrás de si com cuidado. Mas, mesmo deitada na cama, com as luzes apagadas, o toque dele ainda estava presente em sua pele.
, por sua vez, quando voltou para a sala para terminar de arrumar as coisas, se viu sentado no sofá, olhando para a televisão desligada, pensando no que acabara de acontecer. Eram apenas amigos que estavam vendo filme juntos, não? Tudo estava normal, nada havia mudado, correto? Mas algo, definitivamente, havia mudado. E nem ele sabia como voltar ao ponto de partida.
Levantou-se com preguiça, passou a mão nos cabelos bagunçados e caminhou até a sala. Encontrou de avental, mexendo alguma coisa na frigideira. O cheiro de alho e cebola já tomava conta do espaço.
— Isso é cheiro de almoço às nove da manhã? — ele perguntou, ainda sonolento, enquanto se aproximava para ver o que aquela mulher cozinhava a essa hora da manhã.
— É marmita. — respondeu sem virar, com uma naturalidade que o fez sorrir. — Tenho reunião na hora do almoço, então decidi adiantar tudo.
— Você é assustadoramente eficiente — ele comentou, pegando uma maçã da fruteira e dando-lhe uma mordida generosa.
— Você é assustadoramente preguiçoso — devolveu ela, rindo e voltando a cozinhar.
Ele se sentou no balcão, observando a movimentação dela. Era curioso como, em tão pouco tempo, ela parecia completamente inserida na rotina de “vida a dois”. Fazia as refeições dos dois com facilidade, sabia as marcas que ele preferia no mercado, lembrava de detalhes bobos, como a forma exata com que ele gostava dos ovos mexidos.
Mas ainda era só amizade. Era o que ele dizia a si mesmo.
— Ah, antes que eu esqueça — virou-se com a colher de pau na mão. — Hoje, um colega meu vai passar aqui mais tarde. André. Ele vai me trazer uns documentos que esqueci na empresa. Só avisando para você não aparecer com aquele seu pijama rasgado bem na bunda.
— André? — parou de mastigar.
— Uhum. Do jurídico. Trabalha conosco há um tempão. Super gente boa. Ele mora aqui perto e se ofereceu para trazer. É só isso.
Ele assentiu, tentando manter a naturalidade. Mas havia algo naquela fala que incomodou mais do que deveria. Ela havia falado o nome com facilidade demais. E o “super gente boa” ainda ecoava em sua cabeça. Era como se ele fosse mais do que um colega de trabalho, mas não deixou se abalar, eles tinham um acordo de não trazer nenhum affair até o apartamento e estava funcionando muito bem, quase 3 meses depois do início de tudo.
— Que ótimo. Mal posso esperar para conhecê-lo — respondeu, mordendo a maçã com mais força.
— Você tá bem? — levantou uma sobrancelha, desconfiada.
— Tô. Só… fome — disse, levantando-se, jogando o caroço da maçã no lixo e indo direto pro banheiro.
O dia passou arrastado. tentou trabalhar em um projeto novo de design que seu pai havia pedido, para a campanha de marketing da própria empresa, mas sua concentração estava fragmentada. A cada notificação no celular, ele olhava para a tela esperando, temendo que fosse , dizendo que o tal André havia chegado.
Quando, no fim da tarde, ouviu a campainha tocar e o som abafado da porta se abrindo, seu corpo reagiu antes da mente. Foi até o corredor devagar, os passos leves. A porta da sala estava entreaberta e ele pôde ouvir a voz masculina conversando com .
— Achei que fosse só um envelope. Isso tá parecendo um contrato da ONU — ela brincou, rindo.
— É o estilo da diretoria. Cem páginas pra dizer “sim”. — A voz desse tal de André era grossa, mas não tão confiante quanto ele havia imaginado.
A resposta dela causou um leve comichão, era uma risada fácil, solta. Daquelas que ela normalmente soltava com ele. O que só demonstrava o quão à vontade ela estava desse “colega” de trabalho. parou ali mesmo, antes de ser notado. Respirou fundo, como se estivesse prestes a entrar em um palco. E então abriu a porta.
virou-se primeiro, sorridente.
— Ah, esse é o ! — Disse, como se estivesse apresentando um troféu de vitrine.
— Prazer. Já ouvi bastante sobre você. — André estendeu a mão.
— Tudo coisa boa, espero — disse , apertando a mão dele com mais firmeza do que o necessário.
— Só elogios — respondeu André, simpático demais.
os observava, mas havia algo no olhar dela. Como se sentisse que aquele momento estava mais carregado do que aparentava. Como se estivesse tentando demonstrar menos do que realmente queria.
— André trouxe os relatórios que os acionistas pediram pra eu revisar. E aproveitou para trazer um vinho, olha só. — estava sorridente, erguendo a garrafa como se fosse um troféu de boas maneiras.
— Um gesto de agradecimento por toda a correria que ela tem enfrentado — completou André.
— Agradecimento. Claro. — respondeu com um sorriso forçado.
André ficou mais alguns minutos, entregou os documentos, comentou sobre um projeto da empresa e depois se despediu. o acompanhou até a porta, agradecendo de novo pelo favor. ficou parado na sala, os braços cruzados, o maxilar tenso.
Quando ela voltou, encontrou-o com a expressão carregada.
— O que foi? — Ela levou suas mãos até a cintura, tentando entender o que havia acontecido, enquanto segurava os documentos com uma das mãos.
— Nada. Só achei interessante como ele parece íntimo. Muito “super gente boa” mesmo. — A fala dele saiu cínica, o ciúme claramente estampado em sua voz.
— Sério, ? — Ela apoiou os documentos sobre a mesa com mais força do que o necessário. — A gente tá fazendo um teatro há três meses. Um acordo, lembra? Sem sentimentos. Sem cobranças. Sem… cenas. — Ela indicou para os dois, como se fosse exatamente isso que estava acontecendo, uma cena.
— Não tô fazendo cena. — ele rebateu. — Só achei curioso. — Sua voz saiu baixa, como uma criança teimosa que não quer admitir que estava errada.
— Curioso? — Ela cruzou os braços. — Se fosse ao contrário, e eu estivesse de cara emburrada porque você saiu com uma ficante, você também ia dizer que é “curioso”?
não respondeu. o encarava como se esperasse que ele fosse dizer a verdade. Mas ele não disse.
— André é só um colega. Ele trouxe os documentos porque pedi. Você que tá criando coisa.
— Tá bom, . Você venceu. — Ele virou de costas, caminhando para a cozinha. — Foi só um comentário.
Mas ela sabia que não foi. E ele também.
O resto da noite foi estranhamente silencioso. Jantaram separados, cada um no seu canto. Félix, percebendo o clima, escolheu dormir na poltrona do corredor, longe dos dois.
Mais tarde, já deitado, encarava o teto do quarto escuro. A cena de rindo com o tal André repetia na sua mente como um loop irritante. Ele sabia que estava sendo irracional. Sabia que o combinado era “sem envolvimento”. Mas algo dentro dele começou a rachar. Mais. Rachar mais do que já tinha acontecido antes, como se as coisas não estivessem mudando gradativamente, dia após dia.
Porque não era só sobre ciúme. Era sobre pertencimento.
Nos últimos dias, tinha se tornado a primeira pessoa com quem ele queria conversar ao acordar. Era com ela que dividia os silêncios, as piadas bobas, os detalhes do dia. Ela sabia o que ele queria no mercado antes mesmo dele pedir. E agora, ao vê-la sorrindo daquele jeito com outro homem, algo dentro dele gritou.
Ele não queria que ninguém mais a fizesse sorrir daquele jeito. Mas não podia dizer isso. Porque, afinal, aquilo ainda era um acordo. Ainda era, não era?
— Bom dia. — Sua voz estava levemente seca, ela não olhou para ele.
— Bom dia. — A voz de saiu rouca.
Sentaram-se à mesa sem dizer mais nada por um tempo. Ao olhar a mesa, pôde ver que, mesmo que ela estivesse irritada com ele, não deixara de fazer o café do jeito que ele gostava. Pelo cheiro, ele estava forte, do jeito que sempre tomou pela manhã. Percebeu também que ela havia saído para comprar pão, uma vez que eles ainda estavam mornos, como se tivessem comprados há pouco tempo.
— Desculpa pelo meu humor ontem. — ele disse, por fim. — Foi… infantil.
— Foi, foi mesmo. — Ela olhou para ele depois de um tempo, enquanto passava manteiga de uma fatia de pão.
— Mas é que — ele hesitou. — sei lá. Acho que tô me acostumando demais com isso aqui. E quando vi alguém entrando nesse espaço, me incomodou. Mesmo que eu não devesse me incomodar.
Ela apenas assentiu, baixando os olhos para a xícara de chá à sua frente.
— Eu também estou me acostumando demais. É perigoso.
O silêncio voltou, mas dessa vez ele era compartilhado, como se ambos entendessem o que estava acontecendo, mas estavam receosos demais para poderem admitir que alguma coisa estava mudando.
Não mudando, havia mudado. Aos poucos a convivência deles estava ficando cada vez menos forçada e mais real, como se eles fossem mesmo um casal, sem, é claro, a parte de serem um casal de verdade. sabia disso quando encostou levemente a mão sobre a dele ao pegar a colher. E ele não recuou.
Sabia porque, no fundo, não queria que ela saísse com mais ninguém. Não queria que aquele espaço fosse de outro. Ele só não sabia como lidar com isso.
Ainda não.
não voltou ao trabalho nos documentos naquele dia. Mesmo dias de André deixá-los lá, os papéis ficaram empilhados sobre a mesa, intocados. Ela sentou-se na beirada do sofá com uma xícara de chá nas mãos e os olhos fixos na TV desligada. A voz de ecoava em sua cabeça. “Curioso.”
Foi a palavra que ele escolheu. Fria. Passivo-agressivo. Um comentário que dizia mais do que queria admitir. Ela ficava remoendo a conversa que tiveram, não a daquela manhã, mas na noite anterior, quando a cena aconteceu. Aquilo era ciúme? não sabia dizer. Ou sabia?
Ela sabia. Sentiu o tom, o olhar, o incômodo mal disfarçado. E, no fundo, aquilo também a incomodou. Não pelo ciúme, ou não só por isso, mas pelo peso que aquilo trouxe. Até aquele momento, ela vinha se esforçando para manter as coisas leves. Amistosas. Práticas. Mas o jeito como olhou para André foi... diferente. Um reflexo de algo que ela não queria nomear.
Félix subiu ao sofá e se enroscou ao seu lado, ronronando suavemente.
— Ele ficou bravo. — murmurou para o gato, como se ele pudesse entender.
Félix miou baixinho, como quem confirma.
— Mas ele não tem o direito de ficar bravo, tem?
Ela recostou a cabeça no sofá, apertando a xícara entre as mãos. A imagem de cruzando os braços, os olhos duros, o jeito como ele quase estrangulou as palavras, repetia em sua mente. Ela odiava brigar com ele. Mesmo que aquela nem tivesse sido uma briga.
Era um deslize. Um aviso. Alguma linha tênue estava sendo cruzada.
Era quase meia-noite quando levantou-se para beber água. A casa estava escura, exceto pela luz fraca da cozinha que vinha do corredor. Caminhou devagar, vestindo uma camiseta longa e os cabelos soltos, já levemente bagunçados pelo travesseiro. No caminho, ouviu passos. também vinha da direção oposta, de camiseta e calça de moletom, segurando o celular na mão. Pararam diante um do outro, quase colidindo.
— Ia beber água. — Sua voz saiu baixa, quase um sussurro, como se ela tivesse medo de levantar a voz e deixar tudo mais tenso do que já estava.
— Eu também. — imitou o tom de voz de , com a mesma voz contida.
Foram juntos até a cozinha, silenciosos. abriu a geladeira e tirou a jarra. pegou dois copos.
— Obrigada — agradeceu, enquanto ele os colocava na bancada.
— Claro.
Ela o observou por um instante enquanto ele bebia. O silêncio entre eles parecia pesado, como se algo estivesse prestes a ser dito, mas nenhum dos dois encontrava as palavras.
— … — Ela começou, mas depois parou.
Ele a olhou, esperando.
— Esquece. — ela desviou o olhar, bebendo o resto da água.
— Boa noite, . — ele disse, por fim, quase num sussurro.
— Boa noite.
Ela o viu desaparecer no corredor, a sombra projetada na parede como um reflexo do que ambos estavam se tornando: uma silhueta de algo que antes era simples.
Quase uma semana depois do ocorrido, estava em seu quarto trabalhando em outro projeto de design quando ouviu a porta se fechar de supetão e a fechadura eletrônica trancar. Os passos de são duros e tensos. Algo deve ter acontecido na empresa.
Sem pensar duas vezes, deixa seu notebook de lado e sai de seu quarto, para tentar entender o que está acontecendo e o porquê da mulher ter chegado, aparentemente, tão irada. Ao chegar na sala, encontra sentada no sofá, com as mãos na cabeça e os cotovelos apoiados nos joelhos, respirando pesadamente, com raiva. Felix, o gato, observava a dona com as pupilas dilatadas enquanto tentava chamar sua atenção com a patinha. Se não estivesse tão nervosa, o que preocupava , ele teria achado a cena, no mínimo, fofa. Mas, naquele momento, ele só queria entender o que estava acontecendo com ela.
— Ei, ? — aproximou-se lentamente, tentando ter alguma reação. O clima entre eles ainda estava tenso, não queria que as coisas ficassem ainda mais estranhas, mas não conseguia ignorar o sentimento de preocupação.
— Acabou . — É a única coisa que ela diz, fazendo com que o coração dele sofra um solavanco.
— Como assim acabou? O que aconteceu? — Ele se senta calmamente na poltrona ao lado de , ainda preservando seu espaço pessoal.
— Falei para você que os acionistas estavam fazendo de tudo para nos desmascarar, para provar que isso tudo — ela aponta para os dois — era uma farsa. Conseguiram um bom motivo. — Ela apenas entrega para ele um papel, de uma gramatura chique. Quando ele olha para o conteúdo, entende o desespero da mulher.
Contamos com sua presença, nosso casal de anfitriões, e , farão um breve discurso sobre amor, parceria e o futuro da Administração.”
Ele observa o convite por um tempo antes de levantar o olhar e olhar para o rosto de , que demonstrava um misto de desespero e derrota.
— Simples, nós não vamos — ele fala decidido, jogando o convite na mesa central da sala.
— Não é tão simples assim. Assim que recebi esse convite, entrei em contato com o escritório de advocacia que estava com o testamento de meu pai.
— Certo, e?
— Havia uma clausura que o bastardo do advogado não nos disse: — Ela passa as mãos nos cabelos, tentando se acalmar, mas em vão. Seu olhar procura o de , fixando-se em seus olhos castanhos. — Precisamos fazer um discurso no Dia dos Namorados, ou o contrato é anulado.
— Não é possível, deve haver uma brecha. Nós só precisamos consultar mais advogados e...
— Não existe brecha. — Ela apenas suspira derrotada, tentando controlar as lágrimas. — Quando recebi esse convite, saí da empresa e consultei praticamente todos os advogados mais renomados de São Paulo. Não temos o que fazer. — Ela funga levemente, fazendo com que , em uma atitude desesperada, tomasse o rosto dela com as duas mãos, de forma gentil, obrigando-a a olhar para ele.
— Ei, vamos dar um jeito — ele falou, de forma calma, sem desviar os olhos dos dela.
Nesse momento, é como se o mundo parasse. Ela respirou fundo, olhando para ele, sentindo suas mãos em seu rosto de forma tão terna que parecia que ela era feita de porcelana e iria quebrar a qualquer momento. Os sentimentos que ambos estavam começando a ter e que estavam em negação, ficam aflorados. Eles estavam muito próximos e isso só deixa a tensão cada vez maior. Depois de um tempo, parece voltar a si, balançando levemente a cabeça, se livrando do transe.
— Nós vamos para esse evento. — Sua voz é firme e decidida, enquanto uma das mãos solta o rosto dela e coloca uma mecha de cabelo atrás de sua orelha. — E vamos fazer o melhor discurso, tudo bem? — Ele dá um sorriso tímido para ela, que assente timidamente também. Ele então se aproxima e dá um beijo em sua testa antes de se afastar. — Vai dar tudo certo, tudo bem? Estamos juntos nessa.
No fim, escolheu um vestido longo de seda verde-musgo. A cor trazia um contraste elegante com sua pele e fazia seus olhos parecerem mais escuros. O tecido fluía como água quando ela se movia, abraçando a cintura com delicadeza e descendo em uma fenda discreta que se abria a cada passo. A parte de trás era quase completamente nua, com apenas duas alças finas cruzando em X nas costas. Nos pés, um salto nude de tiras finas. Prendeu os cabelos em um coque baixo e solto, deixando alguns fios estrategicamente escaparem.
Passou um batom discreto. Um par de brincos finos. E ficou parada por alguns segundos, respirando fundo, os brincos escolhidos combinaram perfeitamente com a aliança e o solitário que ele havia comprado para ela, quase 4 meses atrás. Ela se olhou novamente no espelho, fazia tempo que não se arrumava daquela maneira. Não estava se arrumando para ele. Era só um evento. Só mais uma encenação. Mas, mesmo assim, o coração batia mais rápido do que deveria.
Pegou a clutch dourada e, respirando fundo, abriu a porta de seu quarto, caminhando para a sala. Mas assim que chegou ao final do corredor, deu de cara com… um novo .
estava junto à estante, terminando de ajeitar os punhos da camisa. Usava um terno escuro de caimento perfeito, ajustado ao corpo com a precisão de um alfaiate experiente. A gravata preta de tecido acetinado refletia a luz da luminária em pontos sutis, e o colarinho branco dava contraste ao conjunto. Os cabelos estavam penteados para trás com um pouco de pomada, e o perfume dele, amadeirado, seco, sofisticado, chegou até ela antes mesmo que ele se virasse. O que a poupou de ser pega de surpresa, encarando-o descaradamente.
Mas o perfume cítrico e o barulho de seus saltos, mesmo que de forma suave, chegaram a ele, que se virou lentamente para encará-la. E quando o fez, se sentiu petrificado.
sentiu o olhar dele atravessá-la de cima a baixo, sem nenhuma pressa. Não foi um olhar disfarçado, casual. Foi profundo. Presente. Como se estivesse tentando memorizar cada curva, cada dobra do tecido, cada centímetro de pele exposta pelo vestido.
Ele abriu a boca, mas não disse nada por um segundo.
— Você... — Ele engoliu em seco. — Está maravilhosa.
— Você também. — Ela sorriu, com as bochechas levemente coradas. Desde quando ficava tímida em sua presença? Desde quando estava na expectativa em saber se ele iria aprovar sua roupa ou não?
Por um momento, o silêncio entre eles foi mais barulhento do que qualquer conversa. Todas as palavras não ditas nas últimas semanas, todas as pequenas cenas de ciúme e os toques que, mesmo inofensivos, faziam o coração de ambos acelerar, pareciam querer gritar, saltar para fora de suas bocas nesse momento. Mas nenhum dos dois ousou falar alguma coisa.
passou a mão no cabelo, desviando o olhar com dificuldade. pegou a clutch sobre o aparador e caminhou até ele, o som delicado do salto ecoando pela sala. Quando ficaram lado a lado, ele pareceu precisar de um segundo para respirar de novo.
— Vamos? — Ela disse, com a voz baixa.
Ele assentiu. E saíram juntos.
O salão do evento beneficente era grandioso. Localizado em um espaço histórico no centro de São Paulo, o pé-direito alto e os vitrais coloridos nas janelas criavam um efeito de luzes difusas que refletiam em todos os detalhes da decoração. Havia arranjos florais vermelhos e brancos sobre as mesas, castiçais dourados com velas reais tremeluzindo, e um quarteto de cordas tocava discretamente ao fundo, preenchendo o espaço com uma atmosfera digna de um filme.
prendeu a respiração por um momento antes de entrar com ao seu lado. Era agora. Iriam fazer uma aparição grandiosa na frente de muitos acionistas e possíveis investidores na empresa. Não poderiam errar, teriam de ser perfeitos.
Assim que atravessaram as portas duplas, todos os olhares se voltaram para eles. Era como se o ambiente tivesse mudado. O barulho caiu alguns tons, o som dos passos ecoou no chão de mármore. , com uma naturalidade quase teatral, estendeu a mão, fazendo com que ela olhasse por alguns instantes para aquele gesto. hesitou por menos de um segundo antes de entrelaçar os dedos nos dele. A mão dele era quente, firme, segura. O toque parecia familiar. Assustadoramente familiar.
— Hora do show — ele sussurrou, com um leve sorriso, sendo correspondido com outro.
Começaram a andar entre as mesas, cumprimentando convidados, acenando com discrição. percebeu alguns olhares de canto, cochichos sussurrados entre taças de espumante. Alguns rostos sorridentes. Outros, céticos. Foi então que sentiu: a mão dele pousou em suas costas.
Primeiro com leveza, depois com firmeza. A palma inteira sobre a curva de sua coluna, com os dedos apoiados como se estivessem ali há anos. congelou por dentro. Seu corpo reagiu com um arrepio involuntário que percorreu sua pele até a nuca. O toque era quente, sólido e, ao mesmo tempo, cuidadoso. Protetor. Como se dissesse: "Ela está comigo".
não olhou para ela. Continuou sorrindo, conversando, mantendo a postura perfeita de um marido apaixonado. Mas seus dedos se moviam em círculos lentos, quase imperceptíveis, como se tivessem vontade própria.
— Está tudo bem? — ele perguntou, se inclinando um pouco, os lábios perto demais do ouvido dela.
— Sim. Está tudo ótimo. — engoliu seco.
— Você está tremendo. - Ele parecia levemente preocupado a essa altura.
— Estou apenas nervosa com tudo isso, ser o centro das atenções em eventos assim não é nenhum pouco fácil — ela diz uma meia verdade.
Ele riu baixinho.
— Vai tudo ficar bem, nós estamos indo muito bem. — Ele passou o dedão em suas costas.
Seguiram em frente. Um dos membros do conselho da Administração, um senhor de cabelo branco impecável, fingiu não os ver. percebeu e se encolheu por dentro.
— Ele nem nos cumprimentou. — sussurrou.
— A gente compensa com presença. — respondeu , apertando levemente a cintura dela com a mão livre.
A forma como ele dizia aquilo. A forma como ele a tocava. Tudo estava emoldurado com tanta precisão que ela não sabia mais onde terminava a encenação e começava… outra coisa. Conversaram com outros convidados. Tiraram fotos para a imprensa. Riram juntos em momentos cuidadosamente ensaiados. Mas o que ninguém via era como o toque dele a fazia se contorcer por dentro.
Como o calor da mão de no braço dele fazia esquecer por instantes que tudo ali era fingimento. E, conforme os minutos passavam, a tensão aumentava. Como uma corda sendo puxada entre os dois. Esticando, esticando, pronta para arrebentar.
O coordenador do cerimonial surgiu perto do palco. Chamou-os com um gesto discreto.
— Senhorita , senhor … o discurso será dentro de cinco minutos. Estamos prontos para anunciá-los. sentiu o estômago revirar. Não era medo do palco. Era medo do que poderia escapar nos olhos, no tom, no jeito de segurar a mão dele.
— Vamos? — perguntou.
Ela olhou para ele por alguns instantes, engoliu em seco e assentiu com a cabeça. Ele então indicou para que ela fosse na frente e, sob uma salva de palmas, eles subiram ao palco, ficando parados um ao lado do outro. Um microfone foi entregue a , que o segura com firmeza, tentando não deixar o nervosismo transparecer.
— Boa noite a todos. — Sua voz saiu mais firme do que esperava.
O salão respondeu com silêncio e expectativa.
— Em nome da Administração, e também em nome pessoal, quero agradecer a presença de todos aqui esta noite. Esse jantar foi pensado para celebrar o amor em suas diferentes formas: o amor que constrói, que acompanha, que respeita. E... — respirou fundo, tentando não deixar a voz trêmula. — O amor que surpreende.
— Quando meu pai me falava sobre o futuro da empresa, ele usava palavras como “responsabilidade”, “legado” e “continuidade”. Mas, nos últimos meses, aprendi que liderar uma empresa é também sobre aprender a ceder. A confiar. E, mais do que isso: a dividir a caminhada com alguém.
sentiu a mão de pousar novamente em sua cintura. Um gesto natural, mas que a fez respirar com mais calma. Ele se aproximou e ela deu um passo para o lado. Ele tomou o microfone com suavidade. Seus dedos tocaram os dela por um instante. Um toque rápido. Quente. Intenso.
olhou para a plateia. E então falou.
— Eu não sou um empresário. Nem um orador experiente. Mas aprendi muito observando a nesses últimos meses. — A voz dele era baixa, mas firme. — Ela é uma mulher inteligente, determinada. Alguém que sabe o que quer e, o mais importante, sabe o que fazer quando não sabe o que quer.
Risadas suaves espalharam-se pelo salão. sorriu, mas não encarava mais a plateia, os olhos de estavam nos dela. E se viu impedida de desviar, naquele momento eles estavam em um momento que claramente era só deles, esquecendo-se de que estavam na frente de tantas pessoas.
— Nossos dias juntos têm sido de aprendizado. A gente aprende quando briga pra decidir o lado da cama. Quando ela reclama da minha bagunça, e eu reclamo da obsessão dela com a cor de toalhas que cada um vai usar — ele riu, ainda sem desviar o olhar do dela. — Mas, no meio dessas pequenas guerras, descobri algo muito maior: o conforto de estar ao lado de alguém que conhece você além do superficial.
sentiu os olhos arderem, mas se segurou de forma incrível, não queria demonstrar tais sentimentos naquele momento. Quando ela achou que ele havia acabado, voltou a falar.
— Amor não é só sobre beijos e flores. É sobre dividir silêncio, sobre saber a hora de ceder, sobre ouvir até o que o outro não diz. — Ele fez uma pausa, encarando a plateia. Depois, voltou os olhos para ela. — E, às vezes, quando a gente menos espera, isso aparece disfarçado. Num acordo, num gesto, num cotidiano que não parecia importante até se tornar indispensável.
prendeu a respiração. Ele não estava mais atuando. Ou, se estava… ela não sabia mais distinguir onde acabava o papel e começava a verdade. Aplausos explodiram ao redor. O cerimonialista voltou ao palco, agradecendo com entusiasmo. devolveu o microfone. , ainda em silêncio, desceu com ele pela lateral do palco.
Eles voltaram para o salão de mãos dadas, como haviam subido. Mas agora, a mão de estava trêmula.
E a de , mais firme do que nunca.