Revisada por: Júpiter
Última Atualização: 24/11/2024Para ele e para todos os outros que estavam ali em suas portas, preocupados, era como perder um símbolo da guerra na luta contra alguma doença maligna. era paciente em tratamento contra lúpus e batalhava para livrar-se dos tumores reumáticos que insistiam em maltratar suas articulações. Sua caminhada até ali estava sendo como um espelho de muita influência positiva para os pacientes da oncologia, porque sua garra de continuar lutando e querendo ser vida era impossível de ser ignorada. O jeito dela de não desistir até que, pelo menos, pudesse se despedir do amor de sua vida inspirou a muitos, desde os mais jovens até os mais velhos, que muitas vezes não encontravam esperança em seus piores momentos.
Amber, a filha acompanhante, apertou sua mão quando percebeu que o pai estava vacilante apoiado no batente da porta, ansiosamente preocupado com o que acontecia dentro do quarto de . O entrar e sair dos enfermeiros, preocupados e em uma velocidade extraordinária, estava lhe deixando cada vez menos esperançoso. E então o coração falhou dentro de seu peito assim que viu a maca de ser retirada dali de dentro com ela e cheia de enfermeiros à sua volta.
— ! — A voz de Kimberly, sua irmã e chefe da neurocirurgia do hospital, ecoou quando ela chegou no exato momento daquela saída, desesperando-se ao ver o estado da irmã. — O que houve? Qual o quadro clínico?
— Ela teve uma parada, estamos transferindo para a UTI e, depois dos exames, iremos saber melhor o-
O médico, Kyle, não pôde terminar, pois novamente teve complicações. Outra vez ela estava tendo uma parada cardíaca.
— Tragam o carrinho de parada!
— Entrem todos em seus quartos!
— Adrenalina! Adrenalina!
— A saturação despencou!
— Doutora Morris, por favor, se afaste… Venha comigo. — Dentre toda a correria em volta de , somente o enfermeiro Kobe soube lembrar que a médica ao lado era parente da paciente sendo tratada. Além do protocolo ético, ele sabia que deveria ser horrível para ela estar vendo a irmã ali.
Aliás, toda a equipe médica e da enfermaria sabia que, para Kimberly Morris, ver sua única parte de família ainda restante em cima daquela maca sendo reanimada pela segunda vez era, no mínimo, tortuoso. Ainda mais quando ela havia sido a principal chave para ter mantido a irmã viva e bem até os quase 20 anos, com todo seu tratamento sendo sempre bem-feito e não esquecido. , por seu lado, achava exagerado o modo de superproteção da irmã mais velha, justamente por ser médica e saber tecnicamente, e pelo olhar da ciência, que seu estado era terrivelmente delicado.
Mas Kimberly não arredaria o pé dali, colocaria em risco o seu diploma e sua licença médica, mas não deixaria de tentar trazer sua irmã de volta. E, com isso, tirou toda a atenção em cima dos espectadores daquela cena, que deveriam ser prevenidos de tal, pois a preocupação maior ficou em cima de sua reação.
— Cadê o ultrassom? — pediu rapidamente e firme, ignorando Kobe para se aproximar mais da maca. — Por que ela não está entubada ainda?
— Doutora Morris, por favor, se afaste — Kyle pediu, outra vez, chocando .
Todos olharam para o monitor que detectava os batimentos dela, com expectativa em cima de uma demora totalmente significativa. Mas, quando os batimentos voltaram a ser registrados, voltando lentamente, o alívio foi geral, tanto de quem olhava, quanto quem estava agindo.
— Doutora Morris! — Kyle exclamou descontente ao vê-la se movendo para a cabeceira da maca, tirando a proteção e vestindo as mãos em luvas.
— Até você chegar na UTI com ela, terá outra parada. A abordagem protocolar é entubar sua paciente quando os níveis de pressão estão como os dela… não seja negligente, doutor Kyle. Nunca espere — Kimberly dizia, enquanto iniciava o procedimento de intubação da irmã. — Por favor, … espere só mais um pouco, ele está chegando — finalizou, dizendo baixinho para ela.
— Está infringindo um-
— Eu sei que não posso tocar nela como médica. Mas não vou deixar que médicos como você negligenciem minha irmã! — Ela se afastou, apontando um dedo a ele. — Ela é a minha única família e... Por Deus, Kyle! Eu tento respeitar residentes competentes como você, ou então não estaria na equipe dela, mas, por favor, da próxima vez, seja com ou qualquer outro, não faça merda. Ou então chame outro médico e espere por seu atendente.
Kyle engoliu a seco, assentindo para ela, vendo os olhos furiosos de uma médica cirurgiã que tinha muito mais noção do que estava acontecendo. E isso deveria estar corroendo-a por dentro.
O residente olhou para a equipe a sua volta e, movendo-se, os alertou:
— O que estão esperando? Vamos! Doutora Edwards quer todos os exames prontos quando chegar.
Kimberly ficou parada no lugar, tremendo como um bambu no meio de uma tempestade de vento. Tinha olhares curiosos sobre si, mas não conseguiria agradecer nenhum deles pela preocupação e força que emanavam naquele momento. Apenas encarava o vazio que o corpo maltratado de havia deixado, ecoando em seu consciente a dor do arrependimento e culpa. Precisava deixá-la decidir o rumo da própria vida pela primeira vez, sem controle de nada. Era uma decisão pessoal sobre ir ou ficar, e estava lutando naquele momento, contra o que era preciso, para esperar pela despedida que precisava fazer.
A culpa que sentia não dava espaço para agregar mais uma. Pediria à divindade que fosse preciso para conseguir ter forças e esperar pelo amor de sua vida.
— Ela vai conseguir… — A voz suave e envelhecida do senhor Grandi lhe captou a atenção e ela o encarou com um sorriso travado. Assentiu, com as mãos na cintura. — Eles irão se despedir em tempo, senhora Morris.
— Vai. Mas será que eu vou conseguir também, Pietro?
Ele sorriu calorosamente, olhando da filha para ela.
— Você sabe que vai. Ela já te deixou preparada para isso.
— Você não quer me ouvir, como sempre. Então não tem por que eu continuar tentando. É como falar com a parede. — continuou subindo os degraus da escada, apressada para chegar em seu quarto e esquecer que tinha tentado uma conversa com sua irmã.
De tão apressada que subia, já estava virando para o corredor quando ouviu a voz de Kimberly soar mais alta:
— Pois me desculpe se estou sendo inconveniente e cuidando para que você não tenha complicações na sua saúde!
Parou no lugar, respirando fundo e voltando, se colocando na ponta de cima da escada, enquanto Kimberly permanecia no segundo degrau lá embaixo.
— Você não presta atenção em nada do que eu falo, não é? Na sua cabeça apenas cuidar da minha saúde física é o suficiente… — Riu nasalado, olhando brevemente para o lado e voltando a encarar a irmã mais velha. — Eu tenho dezoito anos, Kim, e toda a minha vida não é de fato minha desde que papai e mamãe morreram. Não estou pedindo nada demais, apenas que me deixe viver!
— Estou te deixando viver, ! Cuidar de você é uma forma de deixar que viva e você não pode me julgar por querer que você seja saudável e-
— Me diz, Kimberly, quando você ficava doente, papai e mamãe te prendiam numa casa assim? — Abriu os braços, mensurando o tamanho da casa. — Eles te proibiram de viver fora dessas paredes?
— Não é a mesma coisa. Você está sendo irracional. — Kim subia mais degraus, porém parou logo com a fala da irmã.
— Estou apenas lutando para ter controle da minha vida. — A voz dela saiu baixa e afetada pelo cansaço. — Escuta, Kim, eu só quero aproveitar as oportunidade que a vida me dá. Eu tenho esse direito e você me tira ele todos os dias. Eu ganhei uma bolsa em um curso em Paris, para aprender e me aprofundar em música clássica! Você sabe o quanto eu amo tocar violino e como isso me conecta com ela!
— , eu não acho seguro! Você vai passar seis meses longe e eu não vou poder cuidar de você.
— Tenta confiar em mim! Eu vou saber me cuidar, Kim… caramba, qual a dificuldade em confiar em mim? — gritou mais alto outra vez, deixando Kimberly sem resposta. — Você não sabe como é horrível não ter noção de como a vida é lá fora e viver sem expectativas, presa dentro disso aqui.
— Vou deixar você pensar um tempo sobre isso, May.
— Não tenho o que pensar, eu já sei bem o que quero, e eu quero ir para Paris! — continuou, firme. — Eu quero ter a minha chance também e encontrar Yoongi!
Kimberly revirou os olhos, relaxando mais o corpo, mas sem avançar os outros degraus.
— É claro que tem a ver com ele… — Riu nasalado. — Ele sabe sobre você? Porque não é possível que alguém saiba e seja irresponsável a ponto de te convencer a cruzar o oceano.
— Kimberly! Fui eu quem convenci ele a ir.
— A ir? Então a senhorita já tem tudo pronto?
a encarou por cima, com o maxilar e mandíbula travados. Seu braço se esticou e a mão alcançou o corrimão, usando ali mais como uma forma de se manter equilibrada e não ceder para as pernas que insistiam em falhar vez ou outra.
— Sim. Eu vou para Paris, com você confiando em mim ou não, Kim. — Ela encerrou a discussão, sumindo pelo corredor.
Ao entrar no quarto, não teve delicadeza alguma para fechar a porta, batendo a madeira com força. A primeira coisa que entrou em seu campo de visão foi o que ela jogou contra a parede, sendo o vaso de girassóis em cima da cômoda na parede lateral à porta. O barulho foi alto e estridente pelo vidro se quebrando, mas não sobressaindo o grito que ela expeliu do mais profundo de seus pulmões. Estava extremamente cansada da mesma discussão de sempre com Kimberly, tendo que implorar pelo mínimo de liberdade possível; até mesmo suas visitas ao jardim da própria casa eram controladas e isso pesava como se vivesse em um século passado, da era medieval.
E tudo por uma doença que ela tinha que lidar desde a infância.
Ter o diagnóstico autoimune desde os nove anos rendeu para uma cadeia simplificada da vida: tudo que fosse fazer deveria ser em casa, salvo exceções para o que precisasse ser feito em hospital, sem chances de adaptações caseiras. E sua falta de liberdade vinha desde o falecimento dos pais em um acidente de carro, poucos dias antes de Kimberly ter em mãos os exames da irmã. Na época, a mais velha dos Cafrey estava iniciando seu período de residência e só não trocou a especialidade cirúrgica por reumatologia porque, por razões éticas, não poderia tratar a irmã, permanecendo na sua paixão de toda a vida, a neurocirurgia.
Não era ingrata pelo cuidado que recebia, mas estava exausta de viver apenas da curiosidade, imagens e vídeos da internet que apresentavam um pouco mais do que tinha além das paredes do seu quarto e da enorme mansão deixada como herança. Queria muito mais do que viver apenas pela sobrevivência e, a cada dia que passava, sabia compreender a bomba relógio que tinha em seu organismo. Ser atacada pelas próprias células fora de controle não era fácil, porém todo o cuidado que tinha e recebia deveria ser motivo suficiente para que pudesse ter expectativas além do quadro clínico.
Estar viva era relativo, até porque não era assim que se sentia muitas vezes.
Quando sua respiração normalizou, encarou os cacos de vidro no chão, arrependida por ter jogado com tamanha violência a última imagem revelada que ainda tinha de sua mãe sorrindo, meses antes dos primeiros sintomas e problemas que se acarretaram. Foram meses até o primeiro diagnóstico concreto, porque somente ter com uma doença autoimune não bastaria… precisava ter de passar pelo inferno ainda criança para finalmente descobrirem que seu problema era o próprio organismo em um puro descontrole, causando o pior dos sintomas para suas articulações, e fazendo dela uma criança confusa, muito mais desanimada que uma simples preguiça infantil poderia gerar, sem apetite e totalmente sensível à luz solar – o adendo que lhe fez amargar a vida, gostava de dias ensolarados e do que o verão sempre lhe proporcionava com brincadeiras aquáticas e idas para parques incríveis, o que foi podado de sua vida assim que o lúpus foi diagnosticado. E era assim que pensava: não havia sorte e bênçãos nas vezes que teve seu quadro estabilizado, porque de nada adiantava estar clinicamente viva enquanto seu coração se espremia na infelicidade de ser vida somente em diagnóstico.
A prática será sempre diferente da teoria.
Isso ela aprendeu por si só, porque, no meio de todo esse marasmo de ser apenas uma paciente fugindo do sol e das complicações para qualquer um, encontrou um meio de não enlouquecer. Pode não ter sido nas melhores condições, mas tinha conseguido um passatempo que, com o correr dos anos, desde os nove, a fazia sentir uma mínima expectativa para estar bem. Seria cruel admitir em voz alta que Kimberly não era o primeiro nome que vinha a sua mente ao tratar-se de motivações, mas não seria mentirosa. Yoongi era o primeiro e quem fazia seu coração se acalmar em todas as vezes que estava acelerado por ansiedade.
Mesmo estando do outro lado do mundo, cada um respectivamente, haviam criado uma conexão intensa e verdadeira. Ela conseguiu criar nele um porto seguro para estar mesmo que fosse de longe. E, dentro de sua mente, trabalhava os cenários desse encontro dia após dia, planejando cada movimento para ser perfeito de forma surpreendente e natural, deixando com que tudo acontecesse como deveria ser.
Iria viver, iria experimentar tudo, desde o respirar na rua, até as possíveis dores que o amor te daria.
Se tinha o tempo contado, usaria ele vivendo.
A movimentação de pessoas no desembarque era intensa e se movia roboticamente, não tinha nenhuma experiência com aeroportos e tudo o que sabia sobre despacho de malas e afins vinha dos filmes que passava tempo assistindo nas muitas horas tediosas que seus dias podiam render. Quando desembarcou do avião, teve uma breve crise ansiosa pelo medo do que iria fazer agora que estava em um lugar diferente e completamente distante da sua casa, até mesmo temeu por Kimberly estar tão certa sobre a ideia de que ela não deveria ter ido ou o fato de ter passado tanto tempo embaixo dos olhos da irmã, dentro de um viés em que ela ditava todos os seus passos com a visão de proteção, que pensou ser impossível se virar sozinha em um país que nunca tinha visitado.
Andava pelo meio das pessoas com o pescoço erguido, olhando cada detalhe, lendo toda e qualquer placa, por menor que fosse a informação. Estava empolgada, ansiosa, preocupada, afogada em uma mistura de emoções e desejos. Queria parar em algum café do aeroporto e comprar um chá, ou comer um croissant. Estava disposta a tudo, porém, ainda estava mais ansiosa para ver Yoongi; era ele quem seus olhos procuravam.
Quando saiu, por fim, da sala de desembarque, parou no meio do extenso corredor, pegando o celular do bolso exterior da sua bolsa transversal para discar o número dele. Pela hora, Yoongi já tinha feio seu desembarque também. Com o coração acelerado, esperou que ele atendesse, submergindo em uma atmosfera alheia, enquanto as pessoas desviavam de seu corpo parado no meio do caminho e a encaravam com olhares sérios – nem mesmo se preocupou em prestar atenção no que diziam e traduzir os idiomas que conhecia.
— Alô?
A voz dele do outro lado, rouca e grave, causou o mesmo arrepio de sempre. respirou fundo, pressionando o celular contra a orelha e fechou os olhos.
— Essa é a hora que você me dá uma desculpa qualquer e diz que não está em Paris? — disparou, tentando controlar sua ansiedade nas palavras.
Yoongi ficou mudo, o que a preocupou mais. Depois de alguns segundos, que duraram muito mais do que poderia parecer, ele disse:
— Me desculpa.
umedeceu os lábios, abaixando o rosto, ainda que estivesse com os olhos fechados. Riu fraco, realmente acreditando no tom sereno dele; dos quatro anos que já conhecia Yoongi, sabia que ele dificilmente pregava peças nas pessoas ou mentia.
— Tudo bem… Você pode pegar outro. Se ainda quiser. — O volume da voz diminuiu de acordo com a sua expectativa.
— , me desculpa-
— Não, tudo bem. Sem problemas, você não era obrigado a vir mesmo, e eu também vou estar estudando… — ela o cortou, afobando-se.
— ! — Yoongi disse mais firme, para ter a atenção dela, que murmurou uma simples sílaba. — Você vai me desculpar, mas ficar parada no meio de um corredor que divide salas de embarques e desembarques dentro de um aeroporto internacional é maluquice.
Instantaneamente, ergueu o rosto e abriu os olhos, rodando nos próprios calcanhares para encontrar ele com seus olhos desesperados e atentos. Mas não via, na verdade, voltou à tamanha euforia que não conseguia se concentrar na figura dele e os detalhes das roupas que ele disse que estaria usando.
Ouviu a risada dele ainda na ligação e franziu o cenho.
— Onde você está? Por que não te vejo? — Ela continuava procurando. — E como sabe quem eu sou?
— Eu lembro bem do estojo que te enviei para o Bae…
O sorriso de se alargou e ela sentiu o corpo tremer em uma ardência de felicidade, de carinho, sentindo-se amparada. Era como Yoongi a fazia se sentir, o tipo de relação que tinham, sempre os mínimos detalhes sendo responsáveis por deixá-la flutuante mesmo estando sobre os próprios pés.
— Você não existe.
Foi tudo o que ela conseguiu dizer, ainda buscando ele com seus olhos. Devagar, a atmosfera ao seu redor foi se tornando mais fechada, inundando-a no que entrou em seu campo de vista, como se encontrar Yoongi a poucos metros de distância mais a frente tivesse sido consequência de uma reação magnética. Era assim que ela se sentia em relação a ele desde que tinham iniciado a primeira conversa, e como foi por todos os anos que se passaram então, sempre sendo puxada para Yoongi como um imã puxa um metal. Não importava se ele residia do outro lado do mundo e se ela precisava gastar madrugadas acordada para poder falar com ele, reorganizar sua rotina para ter ele nela todos os dias havia sido a melhor decisão que poderia ter tomado em toda a sua vida.
Ele era um bom complemento para as suas paixões que a levaram até Paris.
Conforme dava passos adiante, Yoongi a respondeu:
— Eu existo sim, felizmente. Porque agora eu posso fazer igual nos filmes e te girar no ar.
— Yoongi… estamos em público — o repreendeu, duvidosa. — E você é reservado demais para isso.
A distância estava muito mais curta.
— Mas a minha vontade de te abraçar é maior que qualquer vergonha.
Agora ele estava tão perto que ela podia ouvir a voz dele sem a chamada. Seu braço caiu na lateral do corpo, segurando o celular sem muita força, enquanto se mantinha presa aos olhos dele em sua direção. Havia pedido tanto ao universo que tivesse essa chance de encontrá-lo, poder olhar nos olhos dele e sentir seu coração disparar assim como fazia quando estavam em chamadas ou via uma simples foto dele pela tela de algum aparelho tecnológico.
Parecia surreal o que estava acontecendo. Que estava prestes a sentir o perfume dele e ouvir a voz real, sem nenhuma modificação por gravação e chamadas. E iria tocar em Yoongi, isso significava muito mais do que qualquer pessoa achava que compreenderia. Não estava em nenhum livro de romance de Nicholas Sparks como exemplificativo, o que atingia Cafrey naquele instante, no momento que teve alguém tão próximo e a ponto de abraçá-la sem ser Kimberly após as inúmeras formas de desinfetar-se e em momentos específicos – o que raramente acontecia, na verdade; o único contato que ela se lembrava foi até o último abraço recebido de sua mãe.
Tal lembrança a fez engolir em seco, tentando não demonstrar como estava emocionada e a ponto de desabar em lágrimas.
Era tanta coisa que não havia explicações coerentes naquele momento, ela precisava sentir primeiro. E a primeira sensação foi a do hálito de Yoongi batendo contra sua pele facial ao, tão próximo, dizer:
— Você não tem o direito de me impedir, . Eu já esperei muito por isso e a vida não é um drama coreano.
Ela estava com o rosto inclinado para cima, a fim de olhar nos olhos dele, e apenas assentiu para as palavras. Não pensou tanto ou absorveu o que ele disse, não conseguia compreender nada além da gritante sensação de conexão que sentiu ao olhar nos olhos de Yoongi. Parecia com a mesma sensação que teve há muito tempo de lar, de conforto, de segurança. Sem o medo, sem a insegurança e as limitações de Kimberly. Desejava encontrar na irmã esse porto seguro, muito disso porque queria que todo o esforço dela fosse recompensado de uma forma; do contrário que se fazia parecer, apreciava a forma como era cuidada por ela, somente estava se sentindo sufocada.
Precisava respirar, conhecer o mundo para se conhecer melhor, criar perspectivas e se enfrentar diante de um diagnóstico. Sentia como se, dentro do quarto ou das inúmeras paredes esterilizadas de sua casa, vivesse em um labirinto em que ter coragem era perigoso. O abraço de Yoongi, naquele instante, aliviou sua alma porque, se tal ato corajoso, de ter contato com outra pessoa sem se preocupar com as fraquezas de seu organismo, era colocar-se imprudentemente em perigoso, então queria viver uma vida de consequências.
Inspirar o perfume amadeirado de Yoongi, no corpo dele – diferente de comprar sorrateiramente na internet e passar em almofadas e quaisquer outros itens de seu alcance –, pareceu lhe dar um outro tipo de gás para querer continuar mais daquele jeito, e a enxurrada de lembranças que foram lhe atingindo de acordo com os segundos que se passavam do abraço apertado que recebeu, impunham mais intensidade em seus braços em volta do tronco dele. Assim como as lágrimas que não conseguiram serem impedidas de rolarem por suas bochechas, começando lentamente até formarem um batalhão desastroso, molhando a camiseta que ele usava, por seu rosto estar contra o peito dele.
No terceiro soluço, Yoongi se preocupou, afastando a contragosto. Franziu o cenho, segurando nos ombros dela.
— ? Você… está bem?
Ela assentiu, não conseguindo falar. Yoongi se apressou em secar as lágrimas dela, puxando-a outra vez para seus braços a envolverem, afagando seus cabelos. Demorou, mas os soluços cessaram e conseguiu respirar melhor, dado o fim do seu momento de emoção.
Nessa altura, já não se importava com os olhares alheios. Estava se sentindo segura demais para se preocupar com julgamentos. Entretanto, um casal ter esbarrado neles e quase feito estojo do violino dela cair, fez os dois entrarem na atmosfera compartilhada e saírem da pessoal que dividiam.
Novamente, ele passou os polegares abaixo dos olhos dela, recebendo um sorriso tímido e simples.
— Vem cá… — Yoongi selou a testa de , também lhe dando um sorriso acolhedor. Depois de se afastarem outra vez, notou a ausência de volume. — Você não pegou suas bagagens?
— Não? — fungou o nariz, olhando ao redor e notando que ele tinha uma enorme mala ao lado do corpo. Estava tão concentrada nos olhos dele que mal notou o resto. — Estava ansiosa pra te encontrar… Onde eu faço isso?
Yoongi sorriu, achando graça, além de extremamente fofo, a voz fanha que ela assumiu por causa do choro, com os olhos, as bochechas e a ponta do nariz vermelhos.
— Certo. Primeiro vamos sair daqui do meio das pessoas e pegar suas malas, depois vamos para o hotel e aí teremos muito tempo juntos. Ok?
— Considerando a relatividade do tempo, não vou concordar e nem discordar da sua afirmação, apenas ignorar e aceitar o lance das malas porque elas são necessárias — ela dissertou com uma leve pontada de distração.
A risada fraca dele a rendeu um sorriso. Yoongi entrelaçou sua mão na dela automaticamente, sem notar como isso a afetou positivamente, além das faíscas que percorreram pelo corpo de . Pegando na alça da mala de rodinhas, preparado para andar, ele disse:
— Céus, eu vou passar seis meses com uma discípula de Einstein em Paris!
O clima era diferente. Aliás, não tinha como não ser.
sorria sem parar, fazendo Yoongi questionar se realmente era o motivo pelo qual ela esbanjava tanta felicidade ou se tinha algo a mais. Não queria criar um cenário egocêntrico em sua cabeça, mas ela estava tão radiante, esbanjando tanta luz, que ele ficou confuso. Ela era divertida pelas videochamadas, empolgada nas mensagens e, em todas as formas de comunicação que tiveram, sempre pareceu animada, porém, havia algo diferente. Poderia ser o reflexo de estar em outro país ou até mesmo a diferença de estarem ali, pessoalmente, sem os muitos quilómetros de distância que os separavam.
O que importava, na realidade, era como ele se sentia renovado com a felicidade dela.
Estavam caminhando em um bairro que, certamente, Yoongi não conhecia, mas conseguia se sentir familiarizado com a localidade porque ainda enxergava a famosa torre; ele se deliciava em seu café americano descafeinado e ela, num enorme sorvete de chocolate com granulados coloridos em sua volta, tendo a noite como testemunha de tamanha conexão. Depois de se alocarem em seus quartos no hotel que iriam residir temporariamente pelos próximos seis meses, passaram a noite dormindo, sequer conversaram, por tanto cansaço. Então, o outro dia chegou e tinha alguns compromissos agendados com os responsáveis por seu curso básico no Conservatório de Música e Dança, podendo estar com Yoongi somente à noite e, por exigência dela a ele, que aceitou sem pestanejar, caminhavam sem rumo depois do jantar, aproveitando o verão parisiense.
— Você tem certeza de que tudo bem estar aqui por seis meses? — Com a boca cheia, perguntou, ainda concentrada em seu sorvete do sabor mais doce que ela jamais tinha tido a chance de comer.
Yoongi murmurou uma sílaba, respirando fundo para responder coerentemente.
— Sim, já disse para não ficar preocupada. — Se virou para ela, sorrindo. continuou o encarando, cética, com o sorvete na boca. — Foi difícil de convencer, confesso, mas consegui e ainda tenho um emprego.
— Pelo menos você não vai ter que encontrar o seu tão adorável amigo tagarela.
— Quem? O Hobi? — Ele riu fraco e ela assentiu, voltando a olhar para frente. — Na verdade, eu vou sentir falta dele, não do escritório. Trabalhar em um quarto de hotel, usando apenas a camisa e podendo ficar de-
Yoongi parou a fala bruscamente, notando o que iria dizer e sentindo as bochechas arderem. Levou o canudo até os lábios e olhou de canto de olho para , ela ainda continuava atenta em seu sorvete, segurando firmemente no cone de casquinha, como se qualquer leveza em sua mão fosse capaz de fazer seu doce ir embora. Mas, ainda assim, estava prestando total atenção à conversa.
— Você ia dizer que vai usar só uma camisa. Eu entendi — disse em seu tom casual. — Deve ser confortável, mas ter uma rotina fora de casa é imprescindível. — Deu de ombros.
— Eu odeio rotinas iguais. Se torna cansativo, o que é estressante. — Yoongi franziu o cenho, olhando para o caminho a frente e apreciando a vista da torre. — E mesmo que eu não conseguisse convencer meu chefe a me dar o trabalho remoto, estaria aqui com você de qualquer forma.
— Meu convite ainda está de pé.
Dessa vez, foi ele quem a encarou, cético.
— Que convite? — questionou.
mordeu o primeiro pedaço de sua casquinha e, sem olhá-lo, disse:
— Sobre você trabalhar para a empresa da minha família. Você não teria uma rotina cansativa e estressante. Lá, eles prezam pela qualidade de vida profissional, não só financeira.
— May, já falamos sobre isso. — O tom baixo dele trouxe um sotaque diferente, por conta da intensidade que estava falando e o bico em seus lábios. — Eu agradeço, mas quero conquistar as coisas por mim, essa é a minha promessa aos meus pais. Igual você com a sua mãe e o violino.
— Bae — corrigiu.
Não foi um tom sério, mas Yoongi notou uma mudança na forma de falar, parecendo que sua empolgação tinha diminuído mais do que o perceptível.
Bae era o violino inseparável dela e, pelo que ele bem sabia dos anos da relação virtual, tinha a ver com a mãe dela. nunca tinha sido muito aberta sobre o que havia acontecido com seus pais, por mais sutil ou direto que Yoongi tivesse tentado extrair tal informação. Aliás, depois de muito tentar, compreendeu que era um assunto delicado e que, em algum momento, ela enxergaria a hora certa de lhe contar e compartilhar mais essa parte de sua vida. Não queria causar nenhum desconforto nela, então sempre respeitava os limites, mesmo achando que ela acabava parecendo misteriosa demais em alguns tópicos de sua vida. Tudo o que ele sabia sobre a vida mais pessoal dela era que tinha feito dezoito anos há dois meses, morava com a irmã neurocirurgiã numa enorme mansão em Manhattan, tinha um husky siberiano tagarela para além do comum e as paredes de seu quarto, já que faziam muitas chamadas de vídeo.
E sobre Bae.
Porque Bae, segundo o que dizia, era um complemento do seu ser. Ela amava música clássica e tudo o que pudesse envolver o estilo; também tocava piano perfeitamente e tinha o sonho de estar ali para fazer o curso intensivo do Conservatório, alegando sempre que a mantinha conectada com sua mãe e isso automaticamente lhe dava conexão a si própria.
Preocupado em ter dito algo errado, Yoongi a encarou, no exato momento que os passos de cessaram, obrigando-o a parar também. Estavam em frente a um prédio histórico e muito bem conservado. Ele notou como os olhos dela estavam acesos na direção da estrutura, carregando um brilho tão satisfatório, que, por tabela, acendeu nele a mesma gratidão. Afinal, ver quem ama feliz e completo, como parecia estar, também te torna feliz e completo. O que o outro sente pode ressonar em você – era assim que ele pensava desde que havia a conhecido e reconhecido como se sentia em relação a ela.
— Está tudo bem? — perguntou, esticando o braço para a lixeira logo ao lado, despejando ali o copo do café.
estava em um ângulo ladino para ele, olhando o lugar do qual estavam parados logo em frente. Yoongi a observava de perfil, um pouco preocupado porque a postura dela estava completamente diferente e menos brilhante como minutos atrás. Ela encarava o que seus olhos alcançavam com intensidade e ele notou a ponta do nariz dela assumindo uma cor rosada aos poucos.
Tocou em seu ombro sutilmente.
— ? — tentou outra vez.
A viu respirar fundo, virando somente o rosto para ele, com um sorriso simples e de lábios fechados. Respondeu:
— Minha mãe se formou nesse prédio em música clássica. Ela também fez o curso do Conservatório aqui em Paris e foi nesse prédio. — Seu sorriso não sumiu, mas o brilho voltou a fazer parte de si, também aos poucos. — Antes de morrer — Yoongi precisou ser firme no lugar ao ouvir a verdade, sem perder a atenção antes que pudesse dizer algo —, mamãe me deu o Bae e eu prometi pra ela no… no… — Limpou o bolo da garganta. — Quando ela estava na UTI, pouco antes de desligarem os aparelhos, eu prometi que faria o mesmo que ela fez. E ela conheceu meu pai aqui, ele estudava medicina e ela música.
— Sinto muito, May…
— Obrigada. Mas não precisa. — Ela sorriu, lhe dando conforto de que estava tudo bem. — A música é minha paixão, mas muito disso é porque ela me conecta à minha mãe e todo o tempo que não podemos ter porque ela faleceu e eu tinha apenas nove anos. Quando eu te conheci…
A frase morreu, mas Yoongi bem sabia. Não insistiu, mas completou, com seu sorriso maior.
— Quando eu te conheci, a música me conectou a você.
— Por isso sempre falou sobre o Conservatório… Sempre achei que fosse alguma fissura, igual as pessoas têm com Harvard e o MIT. Desculpe… — Ele fez uma leve careta, se cobrando pelo comentário.
Em resposta, sorriu e riu fraco.
— Não. Além de ser o nosso meio do caminho, também é o lugar que eu posso me sentir mais próxima deles. Não só da minha mãe, mas do meu pai também.
Ele assentiu, acariciando o ombro dela por cima da alça do vestido que usava. Seu coração não aguentou ao ver a lágrima solitária rolando pelo canto do olho direito, parecendo fazer um caminho muito lento e doloroso. A puxou imediatamente para um abraço e passou os braços pelo seu tronco, com cuidado para não quebrar a casquinha do sorvete, em uma espécie de quase abraço ladino; Yoongi a beijou na têmpora, afagando seus cabelos.
— Obrigado por compartilhar isso comigo — lhe disse em seu tom genuinamente compreensivo.
— Obrigada por esperar.
— Eu não poderia ter feito menos… — Ele maneou a cabeça para o lado levemente.
Uma troca de olhar significativa que fez sorrir o sorriso mais sincero que seu coração poderia gerar. Parecia que, naquele exato momento, criava-se uma memória mais real do que sentia pelo homem à sua frente, como se uma grande e brilhante luz piscasse em sua direção, mais iluminada do que os telões sublimes da Times Squares. Yoongi era uma luz forte, tão mais intensa quanto uma fagulha.
Estar tão perto dele era como o efeito de um carregador: ela era o corpo necessitado de energia, da energia que ele poderia oferecer. E, vidrada nos olhos dele, de uma forma tão natural, foi percebendo o quão próximos estavam. Conseguia ver os poros dele e o seu reflexo nas pupilas dilatadas.
E seu corpo tremeu. Se lembrou do estudo que dizia que uma pupila dilata 45% a mais quando está na presença de quem ama.
Não evitou as borboletas em seu estômago e desejou, mais do que qualquer outra liberdade, que as suas estivessem dilatando também. A única coisa da qual queria ficar presa era naqueles olhos, naquela dilatação e em todas as borboletas que abrigava.
E, certamente, naquele encontro de lábios. Tão macios, tão aconchegantes e confortáveis. Como um lugar perfeito para nunca mais deixar.
Por esse momento, em seu primeiro beijo na vida, sendo com quem ela tinha um amor germano, se sentiu egoísta porque já estava preparada para se despedir quando ao menos havia se iniciado verdadeiramente o que acontece depois da chegada.
Era uma manhã ensolarada exatamente como a qual se encontrara na sacada de seu quarto quando trocou as primeiras mensagens com Yoongi em um fórum sobre música. Ele foi o primeiro a dar atenção para sua disponibilidade em falar do estilo clássico, descobrindo, posteriormente, que o coreano tinha interesse porque sua terapeuta havia o recomendado escutar o gênero erudito para fins terapêuticos. De imediato, ela se sentiu patética por acreditar que encontraria na vida real uma outra pessoa que tivesse tanta vontade de estudar instrumentos e continuar a história clássica de compositores como Bethooven e Mozart, os tão famosos e clichês. Entretanto, depois de responder algumas perguntas dele e acreditar que acabaria somente naquilo, no dia seguinte, ao ver que ele estava no mesmo fórum procurando por seu usuário, se sentiu intrigada.
Por que um adolescente coreano, com acesso ao tão famigerado kpop e seu estilo cheio de fru-frus, queria insistir terapeuticamente na música clássica? A resposta acabou lhe deixando um pouco arrependida, mas ainda intrigada.
passou muito tempo acreditando que precisava encontrar pessoas sem nenhum problema na vida e que isso realmente existia, que a utopia não era uma falha da ilusão humana. Porém, Yoongi pareceu ter sido um personagem em seu caminho destinado a mostrar exatamente o contrário, porque, quando ele se abriu com ela, mesmo sendo uma estranha que morava no outro lado do mundo, pôde ver que não era a única com alguma desilusão.
Os pais dele também tinham falecido, ambos por um acidente, porém caseiro, enquanto ele estava no colégio. Na época que o conheceu, fazia pouco menos de dois anos do falecimento, e ele morava com uma tia em Seul, a capital coreana, estudava em tempo integral e passava parte do seu tempo fazendo terapia para não ser um completo adolescente problemático, como mandam os clichês cinematográficos. Ao decorrer do tempo, foi se abrindo com ele, mas parecia que servia mais do contrário e, enquanto Yoongi a tinha como uma fonte de força, ela automaticamente o usava para se impulsionar e criar perspectivas. No fim, sequer lembrava como tinha sido o processo de sair do fórum em uma rede social aleatória e passarem para a troca de e-mails, depois Skype, número de telefone e todo o resto.
Só tinha sido extremamente natural desde o início, em uma conversa simples, até histórias profundas compartilhadas. Ela, no entanto, se limitava a não contar sua real face porque tinha medo. Medo de que Yoongi passasse a encará-la como Kimberly e as paredes da enorme mansão, ou todos os outros que tinham contato com sua história, até mesmo os médicos cada vez mais descontentes com sua falta de evolução positiva ao tratamento. Quando precisou se ausentar por um tempo das redes sociais e de toda a internet, passou por um pânico, pensando que poderia perder o que já havia construído com Yoongi; era perto do aniversário dele, o primeiro que iriam comemorar tendo uma amizade e o plano era ajustado com a diferença de fuso-horário de ambos, de maneira alguma ela poderia perder. Mas perdeu e, quando retornou para casa, logo depois de conseguir passar por sua quimioterapia a fim de combater os inúmeros tumores que apareceram em suas articulações, teve muito medo de ele não estar lá, que não fosse somente o oceano os separando.
No fim, Yoongi estava. Yoongi e suas milhares de mensagens, ligações e todo e qualquer tipo de tentativa de contato. O desespero que ela teve, ele também tinha.
Foi então que disso surgiu a primeira ideia de um encontro pessoalmente. Em uma conversa cômica, dizia que se recusava a cruzar o mundo por um homem e ser mais uma na estatística, enquanto ele alegava sua realidade de não herdeiro. Yoongi precisaria guardar muito dinheiro para cruzar o mundo e encontrá-la, mas a existência de um "meio do caminho" acabou por selar entre eles o acordo de se encontrarem em algum lugar na Europa – embora pudesse soar mais perto para ele; mas ela não seria contra, fez parte de seu plano futuro de conseguir a sua chance no Conservatório, só precisaria se cuidar para chegar até os dezoito anos: a idade hábil para se matricular e encontrar ele.
E mesmo que ela não conseguisse a vaga, o meio do caminho foi decidido de qualquer forma. A cidade do amor ou das luzes, que fosse, seria o ponto de encontro.
As noites iluminadas iriam testemunhar os dois.
Assim como a manhã ensolarada.
precisava se esconder do sol o máximo que pudesse e conseguisse, e mesmo estando em seu ato rebelde de querer viver os dias como as demais pessoas saudáveis, ainda estava se cuidando para que nada acontecesse, até mesmo acatou o desejo e condição de sua irmã para ir à França: fazer exames regulares. Porém, não poderia se esconder por completo daquele sol, daquele céu azul, e desperdiçar os três meses que já tinha de aprendizado. Inclusive, na aula anterior, de sexta-feira, tinha conseguido acertar perfeitamente as notas de Angel do Aerosmith – depois de muito praticar e insistir; queria tocar para Yoongi em uma serenata. Tomar sol era algo tortuoso para ela, diagnosticada com lúpus, mas faria aquilo por ele ou não se aguentaria.
Yoongi conhecia muito sobre música, não só por sua terapeuta querer usar desse tópico para lhe ajudar psicologicamente, mas porque ele também gostava muito. Ela se lembrava de quando ele passou a ouvir os clássicos do rock ocidental e descobriu Aerosmith, como falava sobre as letras e as canções cantadas por Stevie Tyler com tanta emoção e sensualidade. Foi um papo engraçado, aliás, porque ambos não tinham experiências extras com relações mais físicas e tão pouco conheciam sobre libido. Nenhum dos dois faziam parte do comum e tão falado modo adolescente de viver a vida, dando vazão à libertinagem. E foram poucas as vezes que se aprofundaram nesse assunto entre si.
A manhã ensolarada, uma serenata em Paris e Angel no violino pareciam coisas que harmonizavam em conjunto para um início de dia que seria celebrado o aniversário de vinte anos dele.
se esforçou e conseguiu alcançar a sacada do quarto dele; não era muito difícil, já que o seu era ao lado e as grades não tinham uma altura impossível de serem puladas, além de estarem apenas no segundo andar, nada muito longe do solo. Claro que passou pelo julgamento dos olhares alheios lá embaixo, das pessoas que andavam pela calçada, mas pouco se importou ou se reteve. Usava sua camisola e os cabelos soltos, tinha lavado apenas o rosto e feito a higiene básica. Ansiosa que estava para acordá-lo, nem mesmo se lembrou de calçar algum sapato.
Segurava Bae com muito carinho conforme tocava e, tão absorta nas notas sendo tocadas, de olhos fechados, não viu quando a porta da sacada foi aberta por ele e nem mesmo o aglomerado de pessoas no chão, olhando tudo.
Ao abrir os olhos, em dado momento da música, perto do final, encontrou os orbes brilhantes de Yoongi. O rosto inchado e a feição sonolenta denunciaram que ele tinha demorado pra dormir, assim como já suspeitava quando acordou e viu que a última vez que ele tinha visualizado o aplicativo de mensagens fora no meio da madrugada. Porém, naquele momento, ela queria apenas apreciar como ele parecia lindo demais, usando uma camiseta e um shorts curto do pijama comum dele.
E pôde jurar que ele ficou com os olhos marejados, principalmente quando, no fim da música, Yoongi mirou a parte de baixo, pelas palmas que ressoavam em massa.
— Feliz aniversário, neném.
disse sorridente, relaxando o corpo e deixando os braços caírem às laterais do corpo. Ele umedeceu os lábios, mordendo o inferior, totalmente envergonhado, mas não pela exposição em si, e sim por ter sido pego de surpresa.
— Uma serenata… Você… Uau. — Ele suspirou, coçando a nuca.
— A gente pode entrar? O sol está me incomodando… — May sussurrou, fazendo uma careta.
Yoongi teve um estalo no lugar, lembrando-se do que havia reparado dela nos últimos meses: a necessidade de ficar o mais longe possível do sol. O que ele tomou como uma paranoia de sua cabeça, já que ele mesmo não gostava muito de tomar sol também.
— Claro! — A puxou para dentro em um movimento rápido, também fechando a porta, passando o braço pela cintura dela, o que fez os corpos se chocarem por completo.
Estavam tão perto, que ele podia sentir o coração dela batendo forte. E vice-versa.
Mantiveram os olhos grudados, banhados em uma tensão inabalável, porém sobriamente ligados no que aquilo significava. Não tinha mais como esconder, não existia saída, não tinham sequer o desejo de tais opções.
— Você está cheirando sabonete.
Foi a única coisa que ela conseguiu pensar, para quebrar o silêncio.
— Eu acordei há pouco tempo. Estava no banho. — A voz dele saiu rouca e baixa, com o hálito fresco cortante na pele de , que tinha o rosto levemente inclinado para cima, por conta da diferença de altura.
— Gosto do seu cheiro.
passou a ponta do nariz pelo queixo dele, sentindo a pele macia contra a sua e fechando os olhos brevemente. E ele resmungou com o toque, respondendo com um aperto do seu braço na cintura dela, fechando os olhos e apreciando.
— Do calor do seu corpo.
O nariz de continuou passeando, descendo para o pescoço e inspirando toda a fragrância dali, encontrando algumas gotículas de água pelo caminho.
— Você não se secou direito…
— Eu saí apressado do banho para ver quem estava na minha janela — respondeu, abrindo os olhos.
Os dois se encararam firmemente, por mais do que alguns segundos.
— Me beija… — Outra vez, foi quem cortou o silêncio.
— May… se eu te beijar agora, a gente vai se atrasar para o café da manhã.
Ela umedeceu os lábios e se afastou minimamente para colocar o violino encostado naa parede lateral da porta da sacada, voltando a colar-se em Yoongi, com a mão no pescoço dele.
— Podemos pedir para comer no quarto. É seu aniversário, você é quem escolhe tudo hoje — disse, suavemente.
Ele respirou fundo, levando a mão ao rosto dela, em direção à bochecha.
— Você tem certeza?
May assentiu veementemente.
— Quero tentar. Com você. Quero essa experiência compartilhada porque confio em você, confio em nós — respondeu, completamente consciente. — Se você também quiser, claro.
Yoongi sorriu, beijando a testa de May.
— Não teria nenhuma outra pessoa com quem eu gostaria de ter essa experiência.
O frio na barriga não era nada refrescante, muito pelo contrário, estava atormentando como uma caminhada debaixo dos raios solares em um deserto. Ela se sentia ansiosa e nervosa, muito distante da jovem aluna confiante e determinada do Conservatório de alguns meses antes, que vinha encantando a todos – todo mundo se questionava como a jovem prodígio de dezoito anos, que nunca tinha sequer tocado em grupo e havia apenas adquirido experiências por aulas gratuitas do YouTube, possuía tamanho talento e postura para tocar um instrumento tão pouco valorizado fora de uma bolha; enchia os olhos de muitos e o coração de alguns com suas performances sentimentais e profundas, muito se falava sobre como ela, grande fã de uma violinista julgada pela ausência de sentimento em seus movimentos robóticos, possuía tanta paixão ao tocar. Se ela pudesse entrar em um buraco e se fechar dentro, faria sem hesitar, levando tudo o que pudesse, incluindo Bae.
Porém, nem todo nervosismo seria o suficiente para lhe abater em sua primeira apresentação, depois de quatro longos meses praticando e estudando. Em cima do palco, poderia acontecer de tudo, mas ela não arredaria o pé enquanto não finalizasse sua interpretação de Hilary Hanh, violinista da qual tinha tamanha admiração. Nem mesmo o cansaço físico iria abalar sua estrutura naquele momento, principalmente tendo Hilary na plateia. Daria seu máximo para fazer valer a pena a presença dela e de todos os outros, incluindo a de Yoongi.
— Você não para de andar em círculos, assim irá afundar no chão. — A voz dele a fez parar os passos que dava, um tanto ofegante e um pouco zonza. Estava em seu camarim compartilhado com diversas outras pessoas que se apresentariam na noite, mas quando o viu, pareceu que só tinham os dois ali.
— Como você conseguiu entrar aqui? — perguntou a ele, assustada pela presença repentina. Esperava que Yoongi estivesse em seu lugar com o resto da tão cheia audiência, e não ali.
— Não podia deixar de vir aqui ver como você estava. — A mediu de cima a baixo. — Acho que fiz o certo… — Ele arqueou a sobrancelha.
suspirou, sentindo-se derrotada.
Não era uma derrota apenas de seu sistema nervoso atacado por uma ansiedade pela primeira ida ao palco, prometida como uma violinista prodígio, ela também não estava se sentindo bem fisicamente há algum tempo e isso completava sua cartela de preocupações. Ainda não tinha recebido o resultado dos últimos exames, mas sabia que eles viriam alterados, mais ainda do que o do último mês, que havia lhe assustado um pouco; era uma sensação física que ela estava tendo porque reconhecia o próprio corpo, as próprias dores, e não fazia pouco tempo que sentia-se exausta até mesmo para se alimentar, forçando-se a parecer bem o suficiente a ponto de não preocupar Yoongi e acabar com o tempo deles juntos.
Ainda restava pouquíssimo para acabarem os seis meses, não queria estragar nada. Estava tão feliz, tão completa e bem, que qualquer detalhe físico não deveria fazer diferença. Não entraria em lástima pelo seu próprio organismo que insistia em se auto atacar.
Vestiu o melhor sorriso que tinha, ignorando a dor em todas as juntas de seu corpo, e apenas o abraçou, passando seus braços pela cintura dele e se aconchegando no peito macio e coberto pela camisa branca embaixo do blazer bem passado. Ele estava lindo, cheiroso e, como sempre, sendo um enorme e inconfundível local de conforto para ela. Um simples abraço e afagar em seus cabelos, como prosseguiu Yoongi, deveria ser capaz de lhe acalmar por ora, sem a necessidade de discursos ou qualquer palavra de justificativas.
E foi.
— Você estava certo mesmo. Obrigada por passar aqui — disse, ainda no abraço, soando abafado.
— Não precisa agradecer… Eu estava preocupado, você não parecia muito bem hoje pela manhã — ele respondeu, não usando um tom tão carinhoso, parecendo mais preocupado.
Ela apenas engoliu a seco.
— Isso se chama nervosismo. Eu estava nervosa e… Na verdade, ainda estou. Mas agora acho que tenho mais forças.
Yoongi riu nasalado e fraco, obviamente não parecendo ter sido convencido. Ele já demonstrava estar reparando em e suas desculpas que não convenciam muito, mas ambos passavam por cima da rotina, sempre distraindo-se com outras coisas – ela não se esforçava tanto para isso, no entanto conseguia fazer com que ele desviasse das perguntas repetidas sobre seu bem-estar, temia que, sendo pressionada, acabasse encontrando nele a mesma figura de Kimberly.
E caso isso acontecesse, no fundo, em seu inconsciente, sabia que deveria ser a única a assumir uma devida culpa, já que era ela quem se esquivava da verdade.
Quando ia se afastar, a mão de Yoongi fez um longo carinho em sua coluna, parando mais tempo na cintura ao sentir um leve relevo de pele em formato de bola. , no mesmo instante, desgrudou dele, ficando a um passo de distância. Para seu breve alívio, Joane se aproximou, avisando que deveria subir para o palco por ter chegado sua hora.
Os dois se encararam.
— Me deseje sorte. — tentou sorrir, como se nada tivesse acontecido.
— Você não precisa disso. — Ele suspirou, colocando as mãos nos bolsos da calça social. — Sei que irá se sair muito bem.
Yoongi apenas deu o passo que lhes separava e, carinhosamente, selou a testa de .
— Te vejo depois, meu bem.
Ela assentiu, sorrindo com os lábios fechados, enquanto ele se afastava e fazia sua caminhada em retorno para o local onde deveria se sentar e apreciar como um membro a mais da plateia. Estava tão ansioso que suas mãos suavam mais do que o comum dentro dos bolsos, tinha muito a ver com a vitória de ser a dele também, tendo o mesmo tom especial.
Evitou olhar para trás, mas fez seu caminho pensativo, querendo jogar para longe as ideias malucas em sua cabeça de que algo de errado estaria acontecendo com e ela não queria contar. Chegou a listar o que sabia sobre saúde e eliminou uma possível gravidez, sabendo conscientemente de que, desde a primeira vez, as relações sexuais passavam pela proteção necessária – não era a fim de evitar apenas uma gestação indesejada, até porque, de todos os males sexuais, um filho poderia ser o menos lastimável. Pensou até que poderia ser algum problema tratável com terapia, afinal, ele passou muitos anos de sua vida se curando de um luto que não parecia ter fim e que o consumiu por toda a adolescência, sabendo que alguns sintomas psicológicos poderiam chegar a atingir o físico, e isso explicaria a perda de peso de , dentre outros detalhes.
Embora houvesse uma intimidade, não negaria que também tinha medo do que ela diria. Talvez os hematomas em seu corpo fossem resultados das formas mais intensas que ele a tocava durante o sexo mais caloroso e menos carinhoso ou poderia ser que ela estava se esforçando demais no Conservatório e não quisesse contar sobre como a disciplina era tratada lá. Seria estranho ouvir sobre um abuso psicológico envolvendo agressão física em pleno século vinte e um dentro de um lugar de estudos, só por tratar-se de um ambiente clássico.
Ele não sabia, só fazia suposições e se sentia péssimo em sequência por tantas ideias descabidas.
Se sentou em seu lugar, lendo o folheto que detalhou sobre a apresentação dos alunos, sendo um tipo de teste e explicitamente mencionada como um conjunto amador. Riu, apostando em toda a sua soberba, sem culpa, porque poderia ser iniciante teoricamente, mas na prática ela mostrava o contrário e não somente no violino. Parecia que ele tinha contato direto com um gênio a cada dia que passava, por ela ser tão inteligente e desenvolta, sempre o fazendo sentir como se pudesse descobrir mais sobre si.
Não existia monotonia e nenhuma regra linear. O relacionamento com , em um gráfico, só tinha uma linha de subida constante. E mesmo que estivesse perto do final do semestre planejado, Yoongi queria fazer o pedido que esteve silencioso nos últimos meses e faria naquela noite, quando chegassem de volta ao hotel e tivesse as luzes de velas acesas, a mesa do jantar privado preenchida e todo clima da cidade das luzes que tanto adorava ali, em um espaço totalmente particular.
Um espaço que representaria uma porcentagem mínima do amor que tinha por ela e que iria expressar, sentindo que faltava mais a ser feito sobre isso.
Somente a respiração ofegante dos dois ecoava em todo o quarto, com cada um deitado em um lado da cama; Yoongi encarava a porta da sacada aberta, deixando em um lindo ângulo a imagem da noite parisiense com a tão famosa torre brilhante no horizonte, com as luzes externas sendo a única claridade a iluminá-los, enquanto , tentando organizar-se, silenciosamente se encobria com a dor no peito e a respiração que insistia em não retornar. Ela encarou algum ponto fixo à lateral da cama, na parede, mas não durou muito, fechando os olhos de forma apertada. Mal estava se suportando, sentindo cada centímetro de seu corpo em uma ardência descomunal, não podendo aproveitar a sensação do prazer atingido há poucos segundos quando ainda tinha Yoongi dentro de si. Estava exausta e mal conseguia se endireitar na cama e deitar-se normal, ficando de bruços, complicando mais a sua respiração.
— Eu achei que iria querer jantar lá embaixo hoje — Yoongi comentou, um pouco baixo e rouco, com a sua respiração mais controlada. — Não que estar aqui com você seja ruim, mas pensei que-
— Estava cansada, e aquele monte de gente me deixou esgotada. Minhas energias foram sugadas — respondeu, o cortando, ainda de olhos fechados.
Yoongi comprimiu os lábios e olhou para ela, tendo a visão de suas costas nuas e o quadril coberto pelo lençol que se enrolou nela quando rolou na cama ao sair de cima dele. Ainda tinha a observação pertinente em sua mente sobre como ela estava diferente, com manchas no corpo, ondulações em algumas partes e a perda de peso que estava evidentemente se tornando maior.
Não tinha como ser paranoia de sua cabeça sendo detalhes visíveis.
— Aparentemente não é só a sua energia que tem sido sugada — ele comentou, suspirando.
abriu os olhos, virando a cabeça para a direção do lado dele.
— Já disse que você está vendo coisas demais, é só o cansaço… Logo acaba. — Se esforçou ao máximo para sentar-se em cima das próprias pernas dobradas, de frente para ele, carregando junto o lençol para manter o tronco enrolado. Mas não pareceu como o ato de sempre, alto natural e automático, e sim como se quisesse esconder-se. — Logo você vai para sua casa, eu vou para a minha…
— Quer mesmo mudar de assunto assim? Falando sobre isso? — Yoongi riu fraco, se levantando da cama, em busca de sua cueca.
— Não é mudar de assunto. Só não quero que você alimente na sua cabeça algo que não existe, a gente precisa se preocupar com outra coisa, não com isso. — Ela revirou os olhos, apertando mais o nó do lençol contra seu corpo.
Em pé, já vestido com a peça íntima, Yoongi se virou para ela.
— Me preocupar com seu bem-estar não é ilusório, ! — disse, indignado, em um tom mais alto. Respirou fundo, puxando o ar pela boca e colocando as mãos na cintura. — Mas tudo bem, respeito seu espaço. Quando quiser falar sobre isso, sabe que estarei aqui.
— Ou na Coreia — rebateu.
Yoongi apenas assentiu, virando-se para a direção do banheiro. ia dizer algo para trazê-lo de volta, notando o quão idiota havia sido a discussão que tiveram, cogitando dar atenção ao seu lado racional que insistia bater na tecla de que ela deveria ser honesta e contar a ele o que estava acontecendo. Sabia muito bem o que eram os detalhes que Yoongi vinha prestando atenção nela, as diferenças em seu corpo e tudo o que estava lhe atingindo.
Só precisava de coragem para se encarar diante da situação e assumir que tinha entrado em uma ilusão ao acreditar que poderia viver uma vida com ele escondendo sobre o que de fato acontecia com sua saúde e bem-estar.
Estava sendo egoísta, reconheceu.
Porém, no mesmo instante que percebeu isso e se preparava para ir atrás dele, as batidas na porta do quarto a deixaram confusa.
— Você já tinha pedido o jantar? — Se levantou da cama, deixando o lençol em cima do colchão e indo em direção ao cabideiro para pegar seu roupão.
De dentro do banheiro, ele respondeu:
— Não! Mas talvez seja algum serviço de quarto, eles sempre surpreendem a gente.
Caminhou casualmente até a porta e abriu sem pestanejar. Entretanto, desejou poder bater a madeira de volta e trancá-la logo quando viu quem era a figura do outro lado. De repente, passou a se sentir acuada novamente, mas, desta vez, um pouco menos invadida e sim resgatada.
Talvez fosse o universo lhe dando a resposta racional que queria.
— Kimberly!? — Seus olhos arregalaram e a mão na maçaneta apertou-se.
Sua irmã moveu o olhar de cima a baixo para medir cada centímetro de seu corpo, não parecendo nada feliz e descontraída. Muito pelo contrário, Kimberly parecia extremamente furiosa.
— Se Maomé não vai à montanha, a montanha deve vir até Maomé! — Kimberly respondeu, logo entrando. — Espero que esteja vestido, seja lá qual for seu nome, porque tenho pressa.
se virou para a direção, fechando a porta e, somente então, notou os envelopes na mão dela, que se prostrou no meio do quarto. Yoongi saia do banheiro, ainda usando somente a peça íntima, e se assustou no lugar ao ver a irmã dela.
— Você pode se vestir, por gentileza? — Kimberly se virou de costas para ele, cruzando os braços.
Os dois trocaram um breve olhar, com ele confuso e automaticamente preocupado pela feição empalidecida de e seus olhos arregalados, perdidos. Parecia que ela tinha diminuído em tamanho e se encolhido dentro de si, como uma implosão.
Não demorou a pegar o roupão e vesti-lo, aproximando-se das duas.
— Me desculpe, eu não…
— Essa é a minha irmã — disse, com os braços abraçando a própria cintura. — Kimberly.
Ele assentiu, se situando melhor.
— Peço desculpas… não me disse que você faria visita. — Estendeu a mão para ela ao dizer, nervoso, e carregando o sotaque. — Prazer em conhecê-la.
Kimberly olhou para a mão dele e em seguida para , com sua feição impassível. Não deu o aperto em cumprimento – o que sua irmã mais nova tomou como falta de educação, já que usualmente a forma de cumprimentar coreana não envolvia contato e Yoongi estava fazendo desta forma para ser mais simpático; ela teria debatido sobre isso se não estivesse tão calada.
— Pelo jeito ela não te conta muitas coisas. Ou melhor, prefiro acreditar nisso — disse num tom normal, não baixo, nem sereno.
— Kimberly… — resmungou, respirando fundo. — Yoon, você pode ir para o seu quarto, eu vou conversar com a minha irmã.
Ele franziu o cenho, mas não teve tempo de responder.
Yoongi havia acabado de entrar no meio de um fogo cruzado.
— Não, ele fica. Ele fica porque eu tenho certeza absoluta de que o que vim fazer aqui é novidade. — Kimberly foi apressada. Virou o rosto para Yoongi, questionando-o diretamente: — Você sabe sobre a condição de saúde dela? Sabe que, pra se enfiar ali, tem que estar 100% com a sua imunidade em dia e não porque corre perigo, mas para não colocar a vida dela em risco?
— O que? — Ele claramente não entendeu. — Desculpe, não estou entendendo.
— Kim… — May disse arrastado outra vez.
— Tá aqui, olha. — Ela esticou o braço com os envelopes para ele. — Leia. Isso é de semana passada. — Yoongi tomou em suas mãos, olhando para , que já tinha os olhos marejados e desviou o olhar dele. Certamente, enquanto ele lia os papéis de exames, Kimberly continuou para a irmã: — Eu realmente não sei o que você quer para a sua vida, . O que você acredita e até que ponto se odeia. Olha seu corpo, quanto peso perdeu nos últimos meses?
— Isso já aconteceu outras vezes.
— Mas nas outras eu estava junto e, pelo visto, se não estivesse, você já teria morrido, ! — Apontou o dedo, dizendo mais alto.
— Você não tinha que ter vindo até aqui… — sussurrou, não segurando o choro.
— Sim, ela tinha.
Yoongi não foi calmo e sereno em suas palavras. Ele disse firmemente, tomando a atenção das duas. Não conseguiu encarar o rosto molhado de , devolvendo para Kimberly os papéis. Estava tremendo por um conjunto de muitas coisas, sendo a maior delas, a preocupação excessiva.
Poderia ter contribuído sem saber para o adoecimento dela. Isso se já não estava acontecendo naquela altura.
— Não vou me prolongar nessa discussão, . Não me importa quantos anos você já tem, ainda sou sua irmã e, enquanto sua saúde estiver em risco e você não souber agir como uma pessoa adulta e madura, terá de aceitar os meus termos. — Kimberly respirou fundo. — Você tem uma hora para arrumar suas coisas, nosso voo tem liberação para sair ainda hoje.
Não esperou resposta, apenas saiu.
Assim que a porta bateu, deixando e Yoongi no meio do silêncio, ela se virou para ele, o rosto vermelho e os olhos escondidos embaixo das lágrimas denunciavam a ausência de qualquer controle. Era somente um caos e ele conseguia ver muito bem.
— Yoon — disse, dando um passo à frente.
Ele se afastar com um passo para trás foi o mesmo que dizer que estava a negando.
— Você mentiu pra mim — devolveu, falando baixo, dolorido.
suspirou, umedecendo os lábios e desviando o olhar brevemente. Estava envergonhada, sentindo a dor das palavras dele. Uma dor diferente da sua, mas que ela reconhecia e estava se sentindo esmagada por causar aquilo justamente a ele.
Entretanto, não soube pensar no que dizer ou como externar sua consciência.
— Uma mentira é uma história contada diferente do que aconteceu.
— Que seja, … — Ele riu, decepcionado. — Omissão, mentira… Você não me contou a verdade! — As mãos foram à cabeça, gesticulando nervosas.
— Isso não era tão importante.
— Claro que era. Eu sou apaixonado por você, ! — Yoongi aumentou novamente o tom de sua voz, não aguentando o bolo em sua garganta que se formava. — Eu… Eu… Eu amo você e não era assim que as coisas deveriam se desenvolver!
deu um passo para trás, prendendo as lágrimas.
— E o que isso mudaria, Yoongi? Saber que eu não tenho uma perspectiva de vida tão longa e que meu organismo pode me matar a qualquer momento mudaria o que na sua vida? Iria apenas te prevenir de se apaixonar por uma pessoa doente — respondeu com seu corpo também, mostrando o medo que sentia em seu modo de falar. Sendo irracional e não filtrando o que doía em si, para atingir a ele.
— Eu teria aproveitado muito mais o tempo que tivemos aqui, — ele disse tão baixo quanto se sentia naquele momento. — Você me privou disso ao não me contar. — Por fim, caminhou até a porta.
— O que você está fazendo? — o seguiu até o corredor. — Yoongi, você vai embora? — insistiu. — É assim que acaba?
Ele se virou para ela, um pouco mais distante. Seus olhos marejados a cortaram como facas afiadas em compartilhamento com flechas.
— Não, eu vou me trocar e avisar sua irmã que você está arrumando as suas coisas, tentar acalmar ela enquanto me acalmo também.
— Yoongi… — chamou uma última vez, mas ele não mudaria de ideia.
— , não… — negou, movendo a cabeça para os lados. — Você tem que ir para casa, não deveria sequer ter vindo.
Ter a visão das costas dele outra vez foi como quando viu os aparelhos de sua mãe serem desligados e lentamente se despediu do pouco que ainda restava de vida ali, num corpo flagelado e inerte. Foi como formar uma cicatriz em cima de um amor que ela queria ter tido mais maturidade para ter mantido e aproveitado.
Não queria, não podia e não se sentia preparada para enfrentar a verdade.
Mas, o pior de tudo, não estava pronta para enxergar que havia sido a primeira a deixar Yoongi ir antes mesmo dele chegar.
— Eu sinto muito por isso, Doutora Morris. Mas não temos mais nenhuma esperança…
Kimberly se sentou na cadeira, quase jogando o próprio corpo para trás contra o estofado fino e com as mãos no rosto, tentando inibir a vergonha de desabar no meio da enfermaria da UTI, em frente a todos os funcionários que a viam diariamente por ali, vestindo um outro papel. Mas era parte dos ossos do ofício, ela tinha escolhido ouvir o médico responsável pela admissão de no setor naquele local, poderia muito bem ter ouvido Edwards quando lhe aconselhou acompanhar a equipe médica para a sala de reuniões, num local mais privado, porém sua teimosia falou mais alto e nem mesmo o marido ao seu lado conseguiu converter a situação. Agora estava em prantos, desolada e desesperada diante do que ouviu, tendo toda uma plateia em sua volta.
Quando recebeu os primeiros exames de no período em que a irmã estava em Paris, conseguiu se controlar e decidiu deixá-la colocar a vida nos seus próprios trilhos. Só que não teve a mesma capacidade de soltar o controle de acordo com os meses que se passaram, observando cada vez mais de perto, até perceber que os resultados só pioravam. O que significava a negligência em se cuidar. Então, não tendo respostas e sendo ignorada, Kimberly fez o que julgou ser o correto e foi atrás de sua irmã. E do contrário que achava, Yoongi poderia ter feito muito mais se soubesse do que se passava bem embaixo do seu nariz.
Mas agora ela não poderia mais julgar a irmã ou ralhar com a mais nova, tampouco continuaria cuidando de . A não ser que um milagre acontecesse.
— Daremos mais algum tempo, mas não temos respostas neurológicas e o coração não está funcionando sozinho, então-
— Eu sei, Edwards. — Kimberly cortou a reumatologista, a mesma que acompanhava desde o princípio. — Me desculpe. — Abaixou a cabeça outra vez, tocando a mão do marido que estava em seu ombro –, vou esperar ele chegar. Passe o tempo que for. Ele disse que viria e… Eu prometi a ela. — Um soluço escapou. — Eu prometi… — repetiu, tornando a chorar.
— Calma, querida. Ele irá chegar — ele a acalmou, afagando seus cabelos, numa breve troca de olhares com Doutora Edwards. — Deve estar chegando, na verdade. Ele chegou de Seul hoje pela manhã.
Em um longo suspiro de Kimberly, a médica juntou o restante, se afastando para darem mais privacidade à Morris.
Diretamente de onde estava sentada, Kimberly via a porta do quarto de , totalmente de vidro, podendo ver exatamente o corpo da irmã na cama, coberto por aparelhos e tudo o que fosse necessário para manter seu corpo ali, vivo. Mesmo que fosse uma vida mentirosa, causada por máquinas mantendo-a em funcionamento forçado, porque era exatamente isso que significava ela ainda estar ali.
Kimberly não tinha coragem de, outra vez, assinar para que fosse tudo desligado. Já fora difícil com sua mãe anos antes, agora parecia impossível com a irmã.
Mas a teimosia de havia levado elas para esse destino. As escolhas não poderiam ser julgadas, embora causassem tremenda dor nela e, certamente, em quem estava ficando. Não vivia na pele dela para saber como era a vida que tinha e tentou não se culpar demais pelas escolhas que tomou para preservar a saúde da irmã.
Não tinha mais como voltar, e rebater no arrependimento só iria causar mais sofrimento.
Teria de se acostumar com a perda. Tinha tido uma vida toda para se despedir de e sabia que, posteriormente, iria enxergar em si que havia feito o seu melhor e vivido os melhores momentos que pôde ao lado dela. Agora, naquela cama, só existia um corpo à espera de uma única despedida, e não era ela.
Era Yoongi.
E ele estava ali, entrando em seu campo de vista, com um buquê de girassóis em mão, de costas para si e frente para a única coisa que o separava de : a porta de vidro. A mão do buquê estava caída na lateral de seu corpo, enquanto a outra espalmava a camada transparente, olhando por ela para dentro do quarto. Queria ter forças para chegar até ele e lhe confortar, sabendo que também deveria existir dentro daquele peito um grande peso e dor, do caso contrário ele não teria cruzado o mundo para simplesmente de despedir. Principalmente sabendo que não seria um "até logo" e sim "adeus".
Yoongi ficou algum tempo ali, enquanto ela o observava, impedindo o marido de se aproximar e cortar o momento que ele estava tendo. Reconhecia aquela pausa dramática, era um momento de recarregar as estruturas e escanear a situação. Quando ele finalmente se movimentou para entrar, olhou para trás e ela apenas assentiu para que continuasse o que iria fazer. Então ele entrou, caminhando por volta da cama para deixar o buquê de girassóis em cima do balcão na parede lateral da porta.
Não conseguiu desprender sua atenção do que ele fazia lá dentro, mesmo querendo lhe dar privacidade, mas ainda existia uma fagulha de esperança dentro do seu ser, fazendo com que uma ilusão se formasse em sua cabeça.
Ilusão essa que foi preenchida quando, alguns minutos depois, Yoongi surgiu na porta dizendo que estava acordando.
Kimberly ficou petrificada no lugar, ela sabia muito bem que tipo de despedida era essa. E não era para ela esse súbito, não podia partir com as costas de Yoongi sendo a última visão que tivera dele. Ela havia sido honesta e dizia à irmã todos os dias, desde que tinham chegado em Nova York, que sentia falta somente dos olhos aconchegantes dele.
E o sorriso, queria se despedir do sorriso.
Kimberly ouvia muito disso. Em contato com a medicina todos os dias e muitos pacientes com quadro de morte encefálica, nunca tinha tido nada em suas mãos, porém. Até sua irmã não corresponder mais aos tratamentos em combate à doença autoimune e entrar em sepse por consequência.
Talvez a ciência não pudesse mesmo explicar porque era algo etéreo, o que explicaria sua irmã ter acordado logo quando Yoongi chegou.
Mas, infelizmente, não foi algo tão duradouro. Na mesma noite que ele tinha aparecido no hospital, lá estava , fraca e voltando a perder sua consciência gradativamente.
— Eu vou deixar ele entrar. — Kimberly fungou o nariz, apertando a mão da irmã.
apenas assentiu, fechando os olhos brevemente, com o esboço de um sorriso em seus lábios fechados.
"Obrigada", foi o que conseguiu fazer de mímica.
Já tinham ouvido o que uma tinha a dizer para a outra e Kimberly saía do quarto com menos uma bigorna em cima de seus ombros, mais preparada do que parecia horas antes. Isso não significava que tinha parado de doer, mas sim que tinha dado um passo para frente em relação à superação.
Sabia que, eventualmente, iria se acostumar com a nova rotina e outra perda de sua família. Só precisava passar por um dia de cada vez.
Assim que passou pela porta e foi recebida pelo marido, direcionou o olhar para Yoongi, sentado na cadeira um pouco mais a frente, o mesmo lugar que ela usou mais cedo para desabar.
— Você pode entrar. — Tentou ser o mais cordial possível.
Ele apenas assentiu, fazendo o caminho.
Quando entrou, Yoongi precisou de um tempo para se acostumar outra vez. Ainda doía em seu mais profundo íntimo saber que não tinha lhe contado a verdade, mas ele não queria mais culpar ela e nem ninguém por isso. Nem mesmo a si. Seria grato pelo que viveram no tempo que tiveram e levaria consigo todas as coisas boas, entre todas as memórias, guardadas como um tesouro, muito bem protegidas.
Mesmo que lhe doesse a alma perder seu primeiro amor.
— Yoon… — A voz de saiu por um fio, fraca e quase inaudível, tirando-o de seu mundinho afastado.
Não diria, mas estava lutando internamente para não criar uma ilusão própria de que aquilo tudo não estava acontecendo.
— Sim? — Ele segurou o bolo quente na garganta que estava fazendo doer seu corpo inteiro.
Antes de dizer, tossiu pesado, fechando os olhos por mais tempo e assustando o coração dele. Não parecia ser a hora ainda, Yoongi queria continuar olhando nos olhos dela por muito mais. A tarde que teve não tinha sido suficiente, parecia que o som da risada dela não ecoava mais em sua memória, e isso lhe causou um desespero.
— Obrigada por me deixar ir.
Ela não abriu as pálpebras, não moveu nenhum músculo do corpo e a mão que estava presa à dele pareceu perder a pouca força que tinha. O sorriso fechado em seus lábios foi a única coisa que permaneceu, sendo uma imagem dolorosa para Yoongi, não somente por, ao redor, ouvir o barulho do monitor apitando a ausência de batimentos cardíacos do amor que sua vida tinha alcançado, mas pela saudade que já sentia.
Não importava quem tivesse criado essa teoria sobre deixar o outro partir, Yoongi só queria ser vindas e, por ora, odiava as idas.