Tamanho da fonte: |

Revisada por: Saturno 🪐

Última Atualização: 31/05/2025.

DIVORCED | AGORA

Graz, Áustria.

Vladimir estava tendo um péssimo dia.
Primeiro, ele havia acordado atrasado, após seu celular ter descarregado no meio da noite ainda preso no loop de um vídeo pornô, já que ele tinha praticamente apagado na noite anterior, cansado demais para bater uma. Então ele se confundiu com suas roupas, na pressa de se vestir, e só percebeu que estava usando as roupas sujas quando foi erguer seu braço para pegar o maldito pó de café na prateleira de cima do armário da copa ao lado da sala de segurança que trabalhava e sentiu o cheiro pungente de suor de sua axila. Mas foi só trinta minutos depois, após ouvir uma longa reclamação de seu chefe, Leonid, e finalmente colocar seu celular para carregar que seu mundo efetivamente desabou. Uma mensagem apenas do advogado de Martha, sua esposa: os papeis de divórcio.
Assinados.
Merda! Porra! Vladimir desejou chorar no mesmo segundo, mas se orgulhou ao conseguir ocultar dos olhares curiosos de seus outros colegas. A verdade era que Vladimir sequer se importava com Martha em si. Claro, ele deveria ter se apaixonado por ela em alguns dos seis primeiros meses, mas puta merda, ela falava tanto! E sempre havia alguma coisa nova para resolver, alguma merda que ele tinha feito e a deixava mal humorada. Ou então era simplesmente tão grudenta, tão ciumenta, tão irracional! Mas, quer dizer, ela era uma puta gostosa quando eles se conheceram, e tinha uma bunda incrível, além disso, os amigos de Vladimir adoravam dizer como ele era sortudo por ter conseguido fisgar alguém como Martha. Vladimir era a porra de um herói. E não importava o que Vladimir fizesse, Martha sempre voltava. Ela era segura. Estável. Foi por isso que ele havia se casado com ela. E, por uns seis meses, ele realmente achou que estava com a mulher de sua vida, mas bem... ele tinha necessidades, e detestava a ideia de ficar limitado. Seus amigos enfatizavam que Vladimir era muito novo para ficar limitado a apenas uma mulher, e muito bonito para descartar suas outras opções.
E bem, não era como se as mulheres fossem inocentes também.
Mas ele havia sido fiel. O tempo inteiro. Durante todo aquele tempo, ele não havia se apaixonado por nenhuma outra mulher: nem mesmo Lydia, Carol, Nilce, Ksenya... não! E olha que haviam melhores, muito melhores do que Martha! Vladimir só queria variedade, era uma coisa de homem! Só isso, ele não queria o fazer! Mas Martha ainda descobriu, e Vladimir tinha completa certeza de que Martha o perdoaria, que eles iriam superar aquela fase ruim do casamento deles, até agora.
Depois de tudo o que ele havia feito por ela! Como ela podia fazer aquilo com ele? Como podia ser tão baixa e mesquinha ao ponto de largá-lo assim? De assinar aqueles malditos papeis! Era uma puta mesmo, deveria o estar traindo também e estava usando o erro dele para conseguir a desculpa perfeita para sair como vítima, mas ele sabia a víbora que ela era. E se Martha achava que ele deixaria barato...
Para a porra de um autointitulado segurança, eu não faço ideia do que mantém seu emprego aqui, Vorobyov, mas definitivamente não é a inteligência — Leonid Novokov resmungou com um tom de voz afiado, ameaçador. Vladimir se tencionou, praguejando baixo ao perceber que não havia ouvido, outra vez, Leonid se aproximar. Vladimir bloqueou a tela de seu celular, se endireitando, assumindo sua postura mais profissional e durona ao encarar o moreno. Mas algo no fundo de sua mente o deteve. Que Vladimir iria adorar cortar a garganta de Leonid, isso não era dúvida, mas, puta que pariu, se Vladimir não tinha medo do desgraçado, no fim das contas. Leonid estreitou o olhar, o observando em completo silêncio. Havia algo perigoso em Leonid. Algo que soava... insano. Os olhos escuros como a noite pareciam sempre alerta, observando, absorvendo, como se ele fosse capaz de ler a todos, mas ninguém, simplesmente ninguém sabia o que se passava por sua mente. Até onde Vladimir sabia, Leonid era um completo mistério. Não falava muito. Não tinha amigos ali. Passava a maior parte do tempo calado e ninguém sabia se ele tinha família, pais, irmãos, inferno, nem uma stripper o filho da puta havia sido capaz de foder como qualquer outro homem normal. A única coisa que ele dizia era que ele havia sido casado antes, mas a esposa havia morrido há alguns anos. A maioria do Departamento especulava que Leonid provavelmente havia a matado, era a ideia mais lógica e provável, considerando que o cara parecia ter saído de uma página policial de procurados. Leonid tinha aquele tipo de olhar. Mas Vladimir acreditava piamente que a esposa morta dele deveria ter se suicidado. Porra, ele também se suicidaria se tivesse que conviver vinte e quatro horas com Leonid. — Vou precisar dizer mais devagar para que você entenda, Vorobyov?
Vladimir tencionou a mandíbula com força, negando lentamente com a cabeça, antes de voltar sua atenção para as pastas nas mãos de Novokov. Uma sensação de incerteza atingiu o fundo de seu estômago, mas ele habilidosamente conseguiu mascarar suas emoções antes que o olhar cortante de Leonid pudesse perceber mais do que deveria. Por um breve segundo, Vladimir sentiu uma confusão de emoções. Ele sabia que ele estava ali para fazer o trabalho, não era uma questão, e durante todo aquele tempo ele tinha feito. Sem questionar, sem tremer ou hesitar. Mas sempre que Vladimir via as pastas novas que chegavam — e sempre chegavam pastas novas — e ele lia os nomes impressos no material, sempre que ele via as fichas, algo dentro de seu peito apodrecia mais e mais. Era impossível não se sentir sujo ao observar as fotografias. Elas eram tão pequenas... tão frágeis... algumas sequer tinham mais do que 4 anos!
Mas antes elas do que ele.
No fim do dia, infelizmente, ele não tinha escolha. Não havia muita coisa que Vladimir poderia fazer, havia? Estavam condenadas. Era o que era. Quer dizer, é claro que ele se sentia culpado. Ele não era um monstro! Seu coração doía por elas, mas era assim que o Departamento X funcionava. Era assim que as coisas ali funcionavam. O laboratório demandava novas cobaias, e as meninas eram trazidas conforme a demanda pedia. Havia sempre mais de onde aquelas vinham. Ele sentia muito pelas garotinhas, mas era melhor elas pagarem o preço do que ele. Ninguém merecia ser tratado daquela forma! Absolutamente ninguém.
Quantas dessa vez? — Vladimir questionou, tentando mascarar o tremor em seu tom de voz e manter a postura profissional e indiferente que Leonid sempre exibia. Vladimir soltou um pigarro, unindo as sobrancelhas, enquanto tomava das mãos de Leonid Novokov as pastas, erguendo preguiçosamente uma sobrancelha para convir desinteresse. Vinte e nove pastas. Vinte e nove garotinhas. As idades variavam entre 6 a 13 anos.
Dezessete. Lyudmila deixou claro que não quer nenhuma maior de 8 anos. São mais difíceis de controlar, maior o risco de resistência — Novokov respondeu com um tom de voz baixo. Sua voz gutural raspou os ouvidos de Vladimir como unhas agressivas, mas era clara, estupidamente clara, desprovida de quaisquer espaços para dúvidas. Direta, como sempre. E assustadora. Puta que pariu... os dedos de Vladimir seguraram com mais intensidade as pastas, engolindo em seco.
Merda, porra, cacete! Ele não conseguia olhar, ele não conseguia olhar, ele não conseguia olhar...
Vladimir obrigou-se a voltar seu olhar para as pastas, assentindo sem dizer mais nenhuma palavra a Novokov, enquanto repousava as pastas sobre as mesas. Sentiu-se travado, como se seus músculos estivessem se transformando lentamente em meras placas de metal, enferrujadas e enroscadas entre si, que o impossibilitavam de se mover. Como se houvesse gelo percorrendo por sua corrente sanguínea, o prendendo no lugar. Mas ele precisava se mover. Demonstrar franqueza na frente de Leonid seria pior. Demonstrar que estava sendo afetado por tudo aquilo seria condenar a si mesmo a um destino cruel. Um destino o qual ele não merecia. Aquelas garotinhas estavam condenadas. Fizeram por onde, deveriam culpar a si mesmas. Elas haviam confiado na pessoa errada. Elas estavam vulneráveis. Elas estavam no lugar errado, na hora errada! Não era culpa dele. Não era culpa dele. Não era culpa dele! Não era culpa dele! Não. Era. Culpa. Dele! Não era culpa dele!
NÃO ERA CULPA DELE!!
Dezessete. Dezessete garotinhas entre 6 à 8 anos foram selecionadas por Vladimir. O restante foi descartado em uma pilha e entregue a Leonid novamente. Leonid sequer pareceu reagir às pastas como nada mais do que apenas trabalho tedioso. O que era esperado. Ele sequer piscou ou hesitou. Não. Leonid Novokov era incapaz de exibir quaisquer sinais de humanidade em sua expressão, mesmo se fosse necessário. Mesmo se sua vida dependesse disso. Um arrepio desconfortável percorreu pela espinha de Vladimir, que percebeu, pela primeira vez em toda sua vida, que a implacabilidade de Leonid não era, exatamente, algo a qual deveria se admirar, mas sim, ser observada com atenção. Se ele era tão insensível assim àquelas pastas, então, o quão fácil seria para ele...
Click, clack.
Leonid engatilhou sua arma, estreitando o olhar enquanto se aproximava das pastas descartadas, os olhos escuros percorrendo-as rapidamente. Não estava lendo as fichas, muito menos os nomes, estava memorizando as fotografias. Os rostos das garotinhas que haviam sido trazidas para a base e que em breve seriam descartadas. Não era culpa dele. Não era culpa dele. Não era culpa dele. Não era culpa dele...
Convoque o restante do esquadrão. Feche os portões no Leste e Norte, avise que a ordem é para que nenhuma escape. Se tiver que caçar, irá caçá-las. Fui claro? — A voz de Leonid foi autoritária, mas estranhamente neutra, e, por um segundo, Vladimir não soube dizer se era capaz de respondê-lo ou não. Era fácil deixar-se levar pela raiva e frustração quando se tratava de Novokov. Era fácil deixar-se convencer de que ele era apenas um esquisitão que não se encaixava em nenhum espaço, que tinha aquele maldito olhar de Vale da Estranheza. Mas então, em pequenos momentos, momentos como aqueles, Vladimir era relembrado dolorosamente que, de fato: ele não sabia nada de Leonid. Leonid era a porra de um livro codificado, e Vladimir mal sabia ler. Era sempre um choque ser lembrado disso. Vladimir forçou um pigarro, se endireitando, desesperado para manter sua postura de profissional, desesperado para manter as rachaduras ocultadas dos olhos de Novokov, então ele apenas assentiu lentamente. — Onde está a porra da sua arma, Vorobyov?
Vladimir arregalou os olhos, praguejando entre dentes, e assentiu para Novokov outra vez, incapaz de dizer quaisquer palavras. Ele tocou o rádio preso em seu uniforme, esperando ouvir a resposta de Kuznetsov ou Sokolov antes de repassar as ordens de Novokov, avisando o restante dos esquadrões do comando “Código Azul”. Vladimir se aproximou das mesas um pouco mais ao fundo da sala de segurança, onde alguns servidores estavam, junto a geradores de energia reservas que funcionavam como uma terceira assistência caso a energia principal e os primeiros geradores fossem cortados durante algum ataque ou incidente. Ele havia deixado sua arma ali quando havia chegado aquela manhã. Merda, onde ele havia colocado? Porra, era por isso que ele tinha que deixar sua arma dentro do coldre, toda vez ele se esquecia de colocá-la de volta no lugar! Os olhos dele percorreram pelas mesas um pouco mais ao fundo da sala, prendendo, instintivamente, a própria respiração, sem sequer que ele percebesse o que fazia. Havia algo de estranho dentro de seu peito. Uma agitação que ele costumava decodificar como reação à Martha, toda vez que sua esposa — bem, ex esposa agora — parecia estar perto de clicar no botão errado de seu celular e abrir acidentalmente alguma conversa com alguma das outras mulheres com quem Vladimir havia a traído.
Sua garganta estava estranhamente seca, fazendo com que o gesto de engolir sua própria saliva se tornasse desconfortável. Sua respiração parecia ser curta e superficial, visivelmente controlada, escapava por suas narinas, mas o oxigênio nunca parecia entrar, como se ele estivesse em algum tipo de estado permanente de falta de ar — e crescente. Então, Vladimir encontrou a merda de sua arma. No canto que ele havia deixado, como sempre, mas havia se esquecido porque estava mais desesperado para carregar o celular do que prestar atenção em alguma outra coisa. Vladimir avançou para pegar a arma, a destravando e retirando o pente com a munição, verificando quantas balas tinha disponíveis. Doze. Um pente inteiro. Engolindo em seco, Vladimir se obrigou a retornar o pente de novo à arma, a engatilhando, mas suas mãos estavam trêmulas demais.
Ele não sabia porque estava tremendo, mas era impossível conter.
Teve a estranha sensação de suas mãos estarem começando a formigar, amortecidas, por algum motivo, quando Vladimir conseguiu, finalmente, destravar e engatilhar sua arma. Seu coração nunca esteve tão acelerado. Sua pulsação nunca esteve tão alta aos seus próprios ouvidos. Não, não era medo, não podia ser medo. E, todavia, era inegável. O martelar intenso de seu coração contra sua caixa torácica começava a ser tornar desconfortável, doloroso ao seu peito, enquanto sua corrente sanguínea estava afundando-se em adrenalina e mais adrenalina. Vladimir se voltou, hesitante, na direção de Novokov, como se estivesse determinado a perguntar se ele também estava sentido aquela estranha sensação. Como um sussurro, suave e convidativo na nuca, como se seu sangue estivesse começando a queimar dentro das veias, como um oceano agitando-se em frente à tempestade. Mas da boca de Vladimir não saiu nada.
Novokov não parecia estar prestando atenção. Porra, sequer parecia estar ouvindo alguma coisa. Os olhos escuros estavam fixos no chão, com aquele maldito ar de Vale da Estranheza que ele sempre adquiria quando ficava muito tempo em completo silêncio. Como se estivesse fora de seu corpo, ou fosse a porra de um boneco e nada mais, nunca nada mais humano que isso. Por um breve momento, Vladimir se permitiu observar Leonid Novokov sem preocupação alguma de acionar o lado perigoso ou ser intimidado por Novokov. Os dedos de Vladimir agarraram o punho da arma com tamanha força que o metal gélido machucou a palma da mão dele. Leonid Novokov era estupidamente bom no que fazia. Ele era o melhor entre todos que tinha ali. Ninguém sabia de onde ele vinha, claro, sequer poderiam dizer se ele era humano, mas havia algo que eles não poderiam negar, era a eficiência de Novokov em quaisquer situações. Um super soldado — talvez, melhor. Leonid Novokov era um soldado estoico, impossível de ser lido. Mas, naquele momento, os olhos dele cintilavam com alguma coisa incompreensível. Leonid virou-se instintivamente na direção de uma das telas de monitoramento, como se estivesse alguém e não a porra de um dos laboratórios. Ele parecia estar prestes a fazer algo, os músculos de seu corpo se tencionado enquanto as mãos se fechavam em punhos firmes. As sobrancelhas se arquearam em uma expressão que não era vulnerável, mas explicitava uma dúvida, uma mínima, quase imperceptível hesitação. Os olhos dele buscando alguém... alguma coisa... do outro lado da tela. As mãos de Leonid começaram a sangrar, as unhas entrando nas palmas e as cortando.
Vladimir se tencionou. Não, não estava com medo, longe disso! Vladimir não sentia medo de nada, era apenas... apenas precaução. Pura e somente precaução. Eles não podiam falhar em seus trabalhos e Leonid claramente não estava concentrado no que estava fazendo, encarando a porra de tela como se estivesse em algum tipo de transe, acabando de se lembrar de alguém amado que estava esperando-o do outro lado, ou seja lá o que aquela porra de homem poderia ter em sua mente que fosse assim tão digno de nota. Mas então os olhos de Vladimir registraram algo esquisito, grotesco começar a acontecer. Da narina direita, uma grossa gota de sangue escorreu, deslizando por entre o lábio superior de Novokov e desabando de seu queixo, pingando sobre a mesa de metal à frente das telas de monitoramento. O brilho azul das telas deixou o sangue de Novokov mais escuro do que de fato era.
Vladimir engoliu em seco. Nunca em sua vida havia acreditado que Leonid Novokov era sobre-humano, longe disso. O cara era o mais esquisito que ele já havia conhecido, mas com toda certeza era humano. Mas, para Vladimir, Novokov sempre havia sido intocável. Impenetrável. Até agora... o coração de Vladimir se acelerou ainda mais e ele se questionou se iria infartar a qualquer momento, ao mesmo tempo que, a outra parte de sua mente, uma parte traiçoeira e desesperada, começou a espiralar a ideia que tinha em mãos. A oportunidade. Novokov estava vulnerável agora. Completamente e indubitavelmente vulnerável. Leonid Novokov nunca veria o que havia o acertado, tudo o que Vladimir precisava ter era coragem o suficiente para erguer seu braço e puxar o gatilho. Tudo o que ele precisava fazer era erguer sua arma e disparar, e ele nunca mais precisaria se preocupar com Leonid Novokov outra vez. Ele estaria seguro e tranquilo, talvez até ganhasse uma promoção com Leonid Novokov fora de seu caminho. Vladimir era o único que sabia como lidar com toda a merda daquele lugar, talvez Vladimir soubesse mais. Tudo o que ele precisava fazer era erguer a porra da arma...
Mas ele estava paralisado.
Porque se algo conseguia afetar Leonid, então... o que não faria com ele?
O momento se esvaiu com um piscar de olhos. Novokov pareceu voltar a si mesmo com uma inspiração funda e afiada, levando a mão esquerda imediatamente na direção de seu nariz e limpando o sangue que fluía dali com uma expressão mais sombria que o normal. Vladimir se esforçou, com muita dificuldade, para manter uma expressão cínica e desprovida de quaisquer outros questionamentos que não fossem apenas um: “e aí? Vai ficar parado?”, sentindo o olhar penetrante de Novokov quase expor sua alma, nua e crua, aos seus pés. O que esse cara tinha de tão errado dentro de si? Vladimir já havia conhecido muita gente merda, mas aquilo... aquilo não era normal.
Se mexe — foi tudo o que Novokov disse, e Vladimir não era burro o suficiente para contestar.
Inspirando fundo, tentando acalmar sua pulsação cardíaca desenfreada e obrigar a seus músculos tensos a se mover, Vladimir engoliu em seco, seguindo a alguns passos atrás de Novokov em direção onde as garotinhas deveriam estar esperando.
Os corredores que seguiam para a parte subterrânea dos laboratórios, alguns consideráveis níveis abaixo da terra, eram estranhamente organizados e sufocantes, pálidos e esterilizados. Nada parecia fora do lugar, nem mesmo uma gota de sangue. Os elevadores pesados, com portas duplas, eram revestidos e à prova de balas, mais parecidos com cofres de segurança do que elevadores em si. Altamente tecnológicos, funcionavam com base em voz e reconhecimento ocular. Ainda assim, dos três elevadores, um possuía marcas de mãos perturbadoras, como alguém que havia tentando abri-las à força. Mas era impossível para que um humano o tivesse feito. O mito era que havia sido o Wolverine o culpado por o fazer quando escapou, mas Vladimir não tinha muita certeza. Toda vez que eles eram obrigados a descerem até aquela parte da base, nos níveis subterrâneos, era sempre perturbador. Havia uma estática estranha que pairava no ar. Uma tensão invisível que carregava o espaço e o fazia parecer sufocante. Branco demais, limpo demais, silencioso demais.
Por entre as celas e capsulas de contenção, haviam monstros por todos os lados acorrentados até a boca e contidos contra a parede, suspensos no ar, aprisionados dentro de máquinas de contenção que estalavam com o eco de choques elétricos, ou então submersos em um estado de coma induzido. Trancas pesadas impediam que pessoas de fora acessassem aquele lugar, nem mesmo Vladimir possuía acesso ali, apenas o alto escalão o tinha, e dentre eles, estava, é claro, Novokov. Vladimir ignorou a sensação de desconforto que começou a emergir e inundar seus pensamentos, ignorando o tremor que percorria por todo o seu corpo, engolindo em seco, e se preparando para o que estava por vir, ouvindo alguns gritinhos desesperados de garotinhas sendo arrastadas de uma das salas para a outra, as separando das mais velhas, quando um movimento em sua visão periférica chamou sua atenção.
Vladimir uniu as sobrancelhas, se virando na direção de onde a mancha havia chamado sua atenção, hesitando. Não, ele não deveria se afastar de Novokov. As ordens eram claras, seguir o que Novokov dizia, não fazer perguntas, esquecer o que acontecia ali embaixo. Vladimir não era exatamente a pessoa certa para arriscar sua vida por pura curiosidade. Então ele tentou ignorar, mas bastou seus olhos encontrarem os dela que tudo desapareceu.
Por um breve segundo, Vladimir só conseguiu encará-la, estupefato.
Ela é a criatura mais linda que ele já havia visto em toda sua vida. Nem mesmo em seus sonhos mais selvagens, nem mesmo quando ele viu Ksenya de joelhos, entre suas pernas, engolindo praticamente tudo, seria o suficiente para compará-la. Ela era completamente de tirar o fôlego. Cabelos pendendo delicadamente por seus ombros, olhos cinzas prateados, intensos, fixos no rosto dele com uma mistura de inocência e medo, e algo dentro de seu peito se apertou para chegar até ela para protegê-la. Vestida de bailarina impecavelmente, se escondendo atrás de uma das paredes e o encarando... o encarando como se ele fosse o único que pudesse salvá-la. A respiração de Vladimir se perdeu em sua garganta, e então ele tomou sua decisão. Ele iria salvá-la. Não importava o que acontecesse, ele iria salvá-la. Seu coração martelou dolorosamente contra seu peito, com uma crescente arritmia, descompassado e amortecendo suas mãos de leve. Vladimir engoliu em seco, lançando um breve olhar para as costas de Novokov, antes de disparar na direção contrária da qual deveria seguir, em direção da mulher. Ele precisava alcançá-la. Ele iria salvá-la.
Custasse o que custasse, ele iria salvá-la.
Mas a mulher soltou um chiado baixo, desprovido de quaisquer sons possíveis, arregalando os olhos quando ele a flagrou e imediatamente começou a correr em desespero. Vladimir sentiu o desespero aumentar por seu peito, enquanto ele se obrigou a correr mais rápido que seu corpo permitia. Por que ela estava fugindo dele? Ele não era um monstro ali! Ele só queria ajudar! Ele iria ajudá-la! E então ela ficaria grata pelo o que ele havia feito, e eles seriam felizes. Era assim que funcionava. Era assim que sempre funcionaria.
Os cabelos dela deslizavam pelo ar, suavemente, pareciam ser tão macios ao toque, tão sedosos ao toque. As pernas elegantes de bailarina se moveram com surpreendente força, velocidade, para alguém tão frágil como ela. Como ela havia entrado ali? Quem era ela? As perguntas espiralavam pela mente de Vladimir enquanto ele tentava alcançá-la, descendo escadas e virando em corredores pálidos e mais pálidos, em um labirinto de celas que se tornavam mais grossas e mais antigas do que deveriam. Os números gravados nas portas quase desaparecendo, enquanto o espaço adquiria um ar esquisito de ter sido esquecido pela passagem do tempo, um ar de contenção proibida e restrita que nem mesmo alguns do alto nível pareciam parecer, e, todavia, lá estava, as portas estranhamente abertas, com manchas de sangue obscurecidas, secas e antigas demais para que ele se preocupasse com sua própria segurança.
Espera! Eu... eu só quero...! — Vladimir balbuciou sem fôlego, quase implorando para que a mulher parasse de correr para que a linda mulher não tivesse medo dele. Ele não era um monstro, ele estava ali para ajudá-la. Ela deveria parar de fugir dele!
Mas tudo o que ela fez foi olhar por cima do ombro dela, o encarando com uma ponta de horror, os olhos cinzas prateados, doceis e frágeis exibindo uma nítida vulnerabilidade como se ela fosse quebrar a qualquer momento, o que fez Vladimir querer abraçá-la e a proteger. Pior, o fez querer manter somente para si mesmo. Pureza. Era isso que Vladimir havia buscado sua vida inteira. Pureza. Não a merda que ele havia encontrado em todas as outras mulheres com quem ele havia estado, que caíam tão fácil, desesperadas por atenção, vadias e corruptas. Não, era alguém como ela. Pura. Intocada. Delicada como uma brisa.
Vladimir piscou, e então a mulher desapareceu completamente.
Por um breve momento, ele encarou o vazio à sua frente completamente estupefato e em choque. Para onde ela havia ido? Ela estava à sua frente não fazia nem mesmo dois segundos! Mas então os olhos dele repousaram na entrada de uma sala ampla, obscurecida pelas luzes apagadas e coberta por uma camada densa de poeira, enquanto um ruído contínuo, elétrico, ecoou pelo espaço. Uma escadaria feita de cimento queimado se abriu à sua frente, quando ele se aproximou das portas que deveriam ter pelo menos 70 centímetros de grossura, em uma mistura de metais poderosos e vibranium. As trancas, antigas e renovadas, altamente tecnológicas, estavam quebradas, havia um glitch contínuo em um dos painéis, enquanto o vidro estava trincado, piscando em um alerta que Vladimir não conseguiu ler direito devido às fissuras no vidro e do cristal líquido das telas. Um cheiro intenso de borracha e carne queimada espalhou-se pelo ar, enquanto os olhos dele absorviam o espaço com uma expressão assustada.
Câmaras de criogenia.
Em sua maioria, estavam vazias, exceto por uma. Ao centro da sala, um pouco mais ao fundo, enterrada entre o chão e escorada por inúmeros tubos e fios vindos do teto com estrutura industrial, com pilhas e pilhas de papéis espalhados pelo chão, esquecidos e abandonados, enquanto ele se aproximava de onde a câmera de criogenia estava. Um arrepio percorreu o corpo inteiro de Vladimir, enquanto seu coração martelava de maneira intensa contra sua caixa torácica, o peito dele a essa altura estava dolorido e incômodo, mas ele sequer prestou atenção nisso. Não. Os olhos dele estavam fixos no rosto da mulher presa entre os tubos, praticamente congelada, dentro da câmara de criogenia. Lá estava ela, presa pelos cabos e inconsciente, sequer parecia estar viva, os cabelos emoldurando o rosto dela, flutuando ao redor de si, os cílios tremendo suavemente e o peito subindo e descendo fracamente sendo a única indicação de que ela estava, na verdade, viva, provavelmente em um estado de hibernação profundo se fosse considerar a quantidade de fios que a enroscavam no lugar.
Vladimir prendeu a respiração, sem conseguir desviar os olhos dela. Ele precisava fazer alguma coisa, qualquer coisa.
Ela se moveu.
Vladimir arregalou os olhos, prendendo a respiração ao observá-la esticar a mão na direção dele, os olhos tão vulneráveis, tão assustados. Vladimir não percebeu que deu um passo na direção dela, quase que instintivamente, sentindo em seu peito o aperto de alguém que finalmente havia tomado uma decisão — ele iria salvá-la; se ele fosse seu salvador, então ela seria sua. A mão de Vladimir tocou o vidro gélido e espesso, hipnotizado, sequer capaz de perceber que sangue fluiu, agora, de seu nariz com mais intensidade, pingando na frente de seu uniforme e no chão à sua frente. Tudo o que ele conseguia pensar era na mulher. Na maneira com que ela parecia estar se sufocando, desesperada para alcançá-lo. Então, a mão dela tocou o vidro no mesmo lugar em que a mão de Vladimir estava, e ele soltou uma exclamação baixa, encantado. A mão dela era tão delicada, mesmo coberta por camadas de gelo que deveriam estar doendo para porra. Ele nunca quis tocar uma mulher em toda sua vida. Ele quase podia senti-la. Quente, macia, adoravelmente frágil em suas mãos... porra, ele estava ficando duro só de pensar. Os olhos de Vladimir voltaram a se encontrar com os cinzas prateados dela, mas o sorriso de Vladimir desapareceu, dando espaço para uma expressão de horror. Nos olhos cinzas prateados havia nada se não apenas pura fúria. Um monstro. Era isso que ela era. Um completo monstro. Mas era tarde demais para Vladimir. As unhas dela fincaram-se contra o vidro espesso, com as manchas do sangue onde as pontas dos dedos dela haviam sido completamente esmagadas com a violência que ela tentou agarrá-lo. O rosto contorcido por dor e alguma coisa impossível de compreender, mas que chegava próximo a apenas fúria. Uma violência profunda e enraizada, profundo demais dentro de si mesma. Mas era tarde dema...
Vladimir explodiu.



LONGING | AGORA

Coney Island, New York


De todas as ideias que ele já tinha tido, aquela era de longe a mais estúpida.
Mas ainda assim... o aroma de funnel cake, hot dog, óleo queimado e urina a céu aberto permeiava os arredores. Os gritos de pura animação das crianças correndo em disparada para conseguirem tempo o suficiente para irem ao máximo de brinquedos se espalhavam ao redor. Algumas tropeçando em seus pés e apenas evitando atingir o chão, porque Bucky instintivamente os segurava, oferecendo seu sorriso mais gentil e o aviso de “cuidado” ou “sem correr”, antes de assistir, com uma expressão contemplativa, elas voltarem a correr para longe, ouvindo um agitado “obrigado!” que seria consumido e esquecido completamente com os outros gritos e o barulho das máquinas do parque de diversões. Havia um ponto de hesitação que percorria a expressão de Barnes. Por um breve segundo, ele foi transportado para 1939, antes da guerra, e onde a única preocupação dele era apenas conseguir alguns trocados para conseguir impressionar alguma garota bonita que havia aceitado sair com ele para algum encontro, e, é claro, encontrar uma garota que desejasse conhecer Steve também, porque Bucky jamais deixaria Steve para trás. Ou sairiam a quatro, ou não haveria encontro. E por mais que isso soasse meio questionável — para dizer o mínimo —, Bucky era leal demais para isso.
Mas observar agora o parque de diversões, com todas as luzes em neon, com todas as músicas estranhamente agitadas e que pareciam pulsar pela cabeça de Bucky sobre beijar milhões de garotos a beber para esquecer alguém, era no mínimo uma experiência curiosa. Quer dizer, a montanha russa Cyclone ainda estava ali, evidenciando a fé absurda que algumas pessoas possuíam em um objeto que estava, teoricamente, fadado ao fracasso de certa forma, ou pelo menos não estava exatamente tão seguro assim para sequer ter carrinhos correndo a toda velocidade, quiçá carrinhos com pessoas dentro. Era uma receita para desastre, mas, ainda assim, parecia divertido o suficiente para que pessoas se sujeitassem a tal de qualquer forma.
Quanto tempo faz que você não anda no Ciclone para tá encarando-o como se fosse seu ex-namorado? — A voz irritante de Sam não ocultou o tom de divertimento, enquanto Barnes rapidamente piscou, voltando a si mesmo e lançando um olhar ao redor, irritadiço. Não era como se Sam estivesse observando-o muito a fundo, na verdade, se olhasse pelo ombro esquerdo, um pouco mais ao noroeste, de frente para um pequeno carrinho que estava vendendo batatas chips e pipoca com corante doce, Sam Wilson, ou, para a completa frustração afetiva de Bucky, o novo Capitão América, estaria discretamente fingindo que estava esperando sua vez para ser atendido como qualquer pai divorciado ausente esperando conseguir um presente barato para agradar seus filhos. Mas o fato era que Bucky ainda sentiu suas bochechas se aquecerem, um claro sinal de que ele havia corado, e isso significava que a piada de Sam havia o pegado desprevenido e, para a satisfação do Capitão América, Bucky sabia que Sam estaria o atormentando pelo resto da semana por causa dessa maldita piada. — Quer saber? Terminando aqui, a gente vai andar nessa montanha russa. Se amarelar, vou dizer para as crianças que você é uma galinha.
Bucky negou com a cabeça frustrado, pronto para retorquir ao que Sam havia dito com algum comentário sarcástico e igualmente infantil — apenas por fazê-lo —, mas se conteve abruptamente quando os olhos azuis esverdeados do soldado se encontraram com os desconfiados, enrugados e evidentemente aborrecidos de uma senhora de meia idade, claramente uma mãe, com cabelos chanel loiros e uma expressão de alguém que parecia discutir em um caixa porque estava faltando um centavo no troco que lhe foi entregue, lhe lançando um olhar torto. Bucky sabia que não precisava dizer nada, mas seu impulso falou mais alto, então, com apenas seu sorriso mais fácil possível, Bucky retirou o celular do bolso, apontou para a orelha na qual o comunicador estava enterrado e disse, em sua voz mais cínica possível:
— Minha esposa. — Bucky voltou a andar antes que sequer pudesse ouvir algum comentário de volta, exalando baixo, mal humorado. Não porque estava realmente incomodado com alguma coisa, bem, na verdade estava, mas não era com as piadas de Sam. Não, era aquela maldita situação. E, todavia, ele não conseguia convencer a si mesmo a dar meia volta e ir embora. É claro que não. Se havia algo que Bucky havia se tornado proficiente nos últimos tempos, era em sentir culpa, e àquela, bem... ele não podia exatamente pedir desculpas a alguém morto, mas poderia ao menos tentar fazer as pazes com o fantasma e oferecer reparações, por menores que fossem.
Muito discreto, Robocop, cê sabe que não dá pra levar a sério o seu papo de espião, né?
Cala a boca — Bucky retorquiu ao comentário de Sam e apenas revirou os olhos, ajeitando a lapela de sua jaqueta por mais alívio de um tique nervoso do que por estar realmente desajeitada. Bucky tencionou a mandíbula bem marcada, um pequeno músculo movendo-se sob a pele, enquanto os olhos azuis esverdeados dele deslizavam pelas outras pessoas, buscando por um rosto em específico. — O ponto inteiro da espionagem é não ser pego. Como você explicaria um comunicador, Sam? Você faz parecer óbvio para ocultar a intenção por trás.
Sam ficou em silêncio por alguns segundos antes de praguejar baixo, com um riso discreto. Bucky se aproximou de uma banca de jogos chamada de Palhaço, que consistia em apenas uma série de cabeças de palhaço se movendo da direita para a esquerda, e então ao contrário, consecutivamente, enquanto o único propósito era arremessar bolinhas de isopor pintadas de laranja na boca do palhaço e assim conseguir um prêmio. Bucky apertou os lábios, assentindo para o dono da barraca quando ele entregou a bolinha de isopor para ele, antes de unir as sobrancelhas e voltar sua atenção para as bocas dos palhaços com uma ponta de nostalgia. Ele era muito bom naquele jogo. Um sorriso nostálgico quase surgiu pelos lábios dele ao lembrar-se de como ele tinha o truque de sempre acertar no canto superior da boca do palhaço para conseguir fazer cair dentro, como ele conseguia os ursinhos de pelúcia e boneca para Dotty — ele nem lembrava mais como ela era, qual a cor dos olhos, como era o rosto, era apenas um manequim —, como Steve iria reclamar que Bucky estava trapaceando…
Se vai jogar essa bolinha, é melhor fazer do jeito certo, Bucky. Sem roubar — Steve disse, pelo comunicador, e a respiração de Bucky se perdeu em sua garganta. Bucky negou com a cabeça, mas sem conseguir conter o sorriso torto que surgiu por seu rosto, ao arremessar a bolinha no primeiro palhaço. Seu peito se aqueceu, e, por um momento, Bucky quis só largar tudo e ir abraçar o melhor amigo, mas ele rapidamente afastou o pensamento de sua mente, revirando os olhos, fingindo sentir uma exasperação que de fato, não existia.
Consegue guardar muitos segredos, hein, Sam.
Não vem me culpar, não. Eu não tenho nada a ver com isso, Robocop. To seguindo para o sul, vou cobrir as saídas do leste — Sam retorquiu, sem ocultar o próprio divertimento de seu tom de voz ao dar mais um apelido a Bucky, como se ele não estivesse o chamando por aquele nome fazia semanas. Quer dizer, ele já havia arriscado pesquisar na internet sobre o que diabos era um Robocop, e Bucky havia definitivamente ficado irritado, porque obviamente ele não era um policial. Barnes só assumiu, por fim, que Sam era redundantemente estúpido, mas bem, onde estava a surpresa nisso? Eles eram amigos de Steve, maior bandeira vermelha, seja lá o que isso significasse, era o suficiente para representar Bucky e Sam naquela situação. — Tenta não começar um incidente internacional, Homem de Aço.
Bucky revirou os olhos, sem conseguir conter a própria frustração naquele momento.
É vibranium! Eu tenho um braço de vibranium.
Homem de vibranium soa estúpido — Sam contra atacou, e meio a parte Bucky quase conseguiu ouvir a risada contida de Steve do outro lado da linha de comunicação. Barnes mordeu o interior de suas bochechas, contendo o impulso de responder Sam, com um ataque inteligente e preciso, porque não era exatamente o melhor momento para fazer aquilo, então Bucky apenas concentrou-se nas bocas dos palhaços giratórios, unindo as sobrancelhas, enquanto se concentrava em arremessar as duas bolinhas restantes que tinha em sua mão.
Ele inspirou fundo, e, desta vez, fez como Steve havia pedido.
Ele mirou a bolinha, mas dessa vez não no cantinho em que ele sabia que iria entrar, mas como qualquer outro civil o faria. Bucky se deu ao luxo até mesmo de dar alguns passos para trás, para conseguir construir um espaço bom o suficiente para que pudesse arremessar a bolinha sem que atrapalhasse a trajetória, e, inspirando fundo uma única vez, a arremessou. E então a última, seguida. Steve soltou um riso nasalado, mas havia uma ponta de nostalgia no eco da voz dele transmitido pelo comunicador preso na orelha de Barnes.
Exibido — Steve resmungou, e Bucky apenas ofereceu um sorriso meio desconfortável meio plástico para o atendente da barraquinha, que indicou para que ele escolhesse um dos prêmios, e, por um breve segundo, Barnes precisou pausar e tentar lembrar-se. Do que ela gostava? Ele não tinha a mínima ideia. Mas então os olhos azuis esverdeados de Bucky se tornaram pesarosos, mais nublados do que antes, enquanto repousavam em uma raposinha esquisita e ridícula, feita de tecido, esguia, com patinhas que mais se pareciam com rolos de tecido laranja e branco, e detalhes em preto, e botões pretos no lugar dos olhos. O gosto amargo em sua boca era pungente, mas era mais do que isso. Bucky sentia culpa. Bucky não hesitou em pedir pela raposinha anêmica de pelúcia, gentilmente a pegando e a observando com uma expressão distante por um breve momento. A ponta de seu polegar acariciando o tecido, mais instintivamente do que conscientemente, antes da voz de Steve ecoar pelo comunicador, dessa vez mais suave: — Você tem realmente certeza de que quer fazer isso?
Bucky exalou pesado, lançando um olhar novamente para as pessoas ao redor do parque antes de tencionar a mandíbula com força, oferecendo um sorriso educado para o atendente da barraquinha e então voltando a caminhar por entre adultos em encontros ou apenas conversando tranquilamente entre si, pedindo para que as crianças agitadas e com rostos sujos de doces parassem de correr. A nota sombria de seu olhar pareceu se aprofundar um pouco mais, enquanto Bucky se aproximava de onde a estrutura espetacular de lona e metal do circo, onde a fila, apesar de grande, estava se movendo rápido para as pessoas que assistiriam o espetáculo. Bucky passou por Steve, mas os olhos dos dois homens não se encontraram. Steve tinha um folheto em suas mãos, parecendo estar lendo atentamente algo sobre algum tipo higiene e proibições na cabine da Roda Gigante, enquanto Bucky apalpava casualmente o bolso de seu casaco pesado, para encontrar onde o ticket dele estava, os dedos biônicos envolvendo o pescoço da raposinha anêmica de pelúcia com um pouco mais de força do que deveria.
Não. Não tenho certeza — Bucky admitiu silenciosamente, mas de maneira honesta, finalmente conseguindo alçar o ticket de dentro de seu bolso, tencionando a mandíbula enquanto os olhos azuis esverdeados repousavam nos dizeres: “Maravilhosa Luna” do espetáculo que aconteceria nos próximos minutos.
Steve ficou em silêncio por alguns segundos.
Você não precisa fazer isso, Bucky. Você já fez o trabalho. Encerrou tudo isso há um tempo. Recebeu o perdão da Corte Americana, você está finalmente livre — Steve disse, com um tom de voz compassivo, e a compreensão familiar conseguiu, ao menos, passar a falsa sensação de segurança a Bucky. Barnes tencionou a mandíbula com um pouco mais de força, enquanto unia as sobrancelhas, encarando com intensidade o funcionário que estava recebendo os tickets, mas não o enxergava de fato. Não, seus olhos estavam presos no passado, em um amontoado de cabelos desgrenhados e despenteados, e olhos cinzas prateados intensos que beiravam a pura insanidade; medo. Bucky percebeu que, pela primeira vez em muito tempo, ele não se sentia completamente incerto, sozinho, perdido. Aquecia seu peito de uma maneira que ele havia achado que tinha morrido completamente após 1945, quando ele havia sido capturado pela primeira vez pela Hydra. Uma parte que ele nunca recuperaria. — Bucky, escuta... às vezes cometemos erros. Erros que não tem como consertar, que não tem reparação. Precisamos aceitar que cometemos essa falha e aceitar que, por mais que desejemos mudá-la ou repará-la, não há nada que possa ser feito. Não há desculpas ou gestos redentores. O melhor que podemos fazer é enterrar. Algumas coisas precisam ficar enterradas. Para o seu próprio bem.
Corajoso ser você a dizer isso, Rogers. — Apesar das palavras afiadas, o tom de Bucky foi mais incerto do que agressivo, quase nostálgico e pesaroso. Bucky inspirou fundo, entregando o ticket para o funcionário e acenando com a cabeça em agradecimento, seguindo para as arquibancadas, buscando por seu assento.
Steve soltou um riso seco, sem humor.
Por ser quem sou, que estou dizendo, Bucky. Às vezes, o melhor que podemos fazer é recomeçar.
As luzes do picadeiro se acenderam com um chiado eletrônico e o eco da voz do apresentador ecoou pelas caixas de som, dispostas ordenadamente a cada quatro em quatro pilares, convenientemente, com uma bem abaixo do assento de Bucky — sorte a dele, não era como se ele tivesse assim também uma boa audição, graças à Hydra e aos choques. Mas seus olhos não estavam presos no apresentador em questão, animando a plateia e introduzindo o espetáculo de acrobacia e contorcionismo que iria acontecer em breve. Não. Os olhos azuis esverdeados de Bucky estavam fixos no púlpito de no mínimo cinco metros de altura, em que a figura se encontrava, fantasiada como se fosse feita de pequenos cristais espalhados pelo corpo inteiro dela, enquanto os cabelos estavam repuxados para trás, envoltos em pequenas correntes e contas de ouro espalhados pelas mechas. Os olhos cinzas prateados, três tons mais claros e mais vívidos, refletiam as luzes com tons gélidos, enviando uma onda de tensão pelo corpo de Bucky. Ele tencionou a mandíbula novamente, unindo as sobrancelhas, determinado. Os dedos biônicos de seu braço soltaram pequenos estalidos eletrônicos quando se fecharam com força o suficiente para rasgar a pelúcia.
.

•••


Você precisa ter muita coragem para vir até aqui, Sargento.
Bucky moveu a mandíbula, mas não respondeu, ao menos não imediatamente. A voz adulta de soou mais esquisita do que ele lembrava, mas, bem, ele havia a conhecido quando ela era apenas uma garotinha de 6 anos, assustada, se escondendo nos cantos das celas ou espiando por entre as grades de ferro. Sua garganta se apertou, enquanto Bucky tentou se obrigar a não se lembrar atrás de quem se escondia quando era só uma garotinha, a maneira com que agarrou a roupa dela, ou como se colocava sempre à frente de , não importasse quão machucada estivesse — não importava o quanto sua vida dependesse disso. O cheiro de , todavia, era o mesmo: madeira, maçã e cigarro. Coçava o nariz dele, mas não era desconfortável, só familiar o suficiente para ser desconfortável. permaneceu sentada em sua cadeira desconfortável de metal, se projetando na frente do que parecia ser uma penteadeira saída diretamente dos anos 50, com as lâmpadas de fundo amarelado formando quase uma linha ao redor do espelho, ressaltando a maquiagem pesada e artística que enfeitava seu rosto, ou a maneira com que os cristais e ouro refletiam contra a luz, criando pequenos reflexos suaves na madeira e no chão, ao redor de .
Sem desviar o olhar de , Bucky aproximou-se cautelosamente devagar até onde ela estava sentada e repousou, um pouco meio sem jeito, e, em uma oferta de paz, a raposinha anêmica de pelúcia que ele havia conseguido ganhar na barraquinha de palhaços, com a única intenção de entregar à a pelúcia. É claro que, agora, com o rasgo, era inútil, mas ele esperava que, ao menos, pudesse servir como uma oferenda pacificadora e significativa à que ele, pelo menos, havia tentado apaziguar as coisas. Não era o suficiente, nunca seria o suficiente, mas era um começo, certo?
não se mexeu. Os olhos dela apenas acompanharam o movimento que Barnes fez, e então ela se deixou recostar contra a cadeira de metal em que estava sentada, erguendo o queixo de maneira desafiadora. Um sorriso preguiçoso surgiu pelos lábios dela, repletos de descrença e uma raiva contida, que não seria exposta, ele sabia, mas que não estava sendo, igualmente, ocultada de ninguém. Os olhos dela queimavam o rosto dele, e Bucky se sentiu imediatamente desconfortável com a atenção que recebia. Ele tentou ignorar a descrença, a raiva e o nojo que havia nos olhos cinzas prateados de , e, apesar de tudo, Barnes não pôde deixar de sentir seu coração afundar em seu peito, o peso desconfortável e sufocante, indesejado, mas não menos verdadeiro. Talvez esse fosse o problema de sentir-se culpado, a consciência de que nada, absolutamente nada que ele pudesse oferecer poderia apagar o erro que havia cometido. Mesmo que não estivesse em seu controle naquela época, não mudava o fato de que havia feito. Bucky engoliu em seco, percebendo, tardiamente, que havia sido, de fato, um erro ir até ali, mas agora era tarde demais para voltar atrás.
Mas se Rogers não era um calhorda!
Porra… negou com a cabeça com um riso contido, desprovido de quaisquer traços de humor, enquanto o tom de incredulidade era pungente em sua voz. Quando ela era pequena, era uma criança doce, até mesmo meiga, extremamente tímida. Agora? Parecia agressiva, instável, e com um tom de voz rouco e arrastado que o fez se questionar internamente quão sóbria ela estava naquele momento. Bucky não a culpava. De todas as coisas que ele poderia fazer, de todas as coisas que ele havia sido subjugado a executar, a última coisa que ele poderia acusar de algo era culpá-la por qualquer coisa, por mínima que fosse. Ainda assim, engolir o gesto tinha um gosto amargo. Bucky trincou os dentes com força, mas se obrigou a desviar os olhos do rosto de para a mesa com a maquiagem que ela havia usado para o espetáculo. se empurrou para trás, se colocando de pé com um rangido metálico irritante da cadeira, e então encarou Barnes, os dentes expostos em um sorriso afiado, mas que mais parecia com uma careta felina, se preparando para atacá-lo. Ele não a julgaria se ela fizesse. Ele não a impediria. Mas não fez nada, e talvez aquilo fosse a pior parte de tudo. — Tá fodendo com a minha cara, seu merda?! Cê tá achando mesmo que pode entrar aqui e me obrigar a te ajudar, huh?! A audácia que cê tem...
Bucky engoliu em seco, dando um passo para trás e erguendo as duas mãos para cima, em um aviso silencioso de rendição a . Ele não estava ali para lutar, e definitivamente não iria iniciar um confronto, não com .
, por favor... — Bucky disse, hesitante, tentando apelar para a parte da mente de que não o via como ameaça, a parte da mente de que era a garotinha que ele havia segurado em seus braços, arriscado sua vida para protegê-la enquanto escapava da Hydra pela segunda vez. Alguma coisa daquela garotinha que confiava nele, que havia segurado sua mão sem soltar e implorado para que voltasse por deveria estar ali. Precisava estar ali. Se não estivesse, então... — Eu só preciso de informações. Isso não precisa acabar de maneira ruim, por favor, . Não me faz ter que te atacar, por favor...
Mas o riso de foi cortante, e a súplica morreu na garganta de Bucky antes que ele pudesse fazê-la.
Me atacar? Quem disse que você consegue chegar assim tão longe?
arremessou bruscamente as maquiagens na direção de Bucky, que instintivamente usou seu braço direito para cobrir seu rosto, enquanto o braço biônico dele se acionava. Um estalido eletrônico escapou, e, antes que Bucky pudesse se dar conta, o braço biônico agarrou com força o braço esquerdo de , a impedindo de acertar-lhe um soco, usando o punho direito para atingir com força o suficiente para impedir e não machucar a mulher no ombro dela, a empurrando para trás, ao mesmo tempo que tentou acertar um cruzado no rosto de Barnes. Bucky agarrou com o braço biônico o pulso de , apoiando a mão direita no ombro dela, tentando imobilizá-la, mas foi mais rápida e conseguiu atingir um chute bem colocado na lateral de seu joelho. Um grunhido escapou da garganta de Bucky, seu joelho cedendo ao próprio peso e desabando em seu joelho, usando o momento para desviar de uma joelhada de em direção ao seu rosto, girando rapidamente para a esquerda, e se obrigando a colocar-se de pé.
Trincando os dentes com um estalo, Bucky parou ao lado de , envolvendo o pescoço dela com seu braço direito, apertando o suficiente para roubar o fôlego dela, mas não o suficiente para machucá-la, praticamente tentando fazer ouvi-lo:
! , por favor!
Mas é claro que, se havia algo em que era boa, era justamente em ser completamente incapaz de ouvir alguma coisa que era dita a ela. Maldita teimosia desgraçada que ela possuía! Bucky rosnou baixo meio grito de pura frustração, sentindo o cotovelo dobrado de se conectar com suas costelas, lhe roubando o fôlego de seus pulmões — algo difícil de ser feito, se fosse ser honesto —, enquanto aproveitava a distração para chutar o calcanhar direito de Bucky e usar a queda para lançar-se para frente, o derrubando e rolando por sobre seu ombro afim de livrar-se dele. acertou um soco violento no rosto de Bucky, que grunhi entre dentes, sentindo seu rosto ser lançado para a esquerda bruscamente, a dor explodindo por trás de seus olhos, enquanto a pele queimava com o contato do punho da mulher.
O braço biônico de Bucky se acionou novamente, agarrando o pulso de bruscamente, a ouvindo soltar um grito estrangulado pela maneira com que o sonoro crack escapou, evidenciando que Bucky deveria pelo menos ter deslocado o membro fora do lugar, enquanto a puxava para o lado, tentando tirá-la de seu caminho e disparar em direção à saída do camarim — ele realmente não queria machucá-la, porra! Mas é claro que não o deixaria escapar, deixaria? Não. sempre precisava levar tudo ao extremo, não era? Ela sempre tinha que passar de todos os limites até que não tivesse mais outra escolha se não matar ou morrer. Merda, Rogers! Por que de todas as pessoas você tinha que estar certo?
Ainda no chão, deslizou na direção de Bucky, lançando um chute que Barnes conseguiu desviar, mas, antes que ele pudesse registrar, acertou outro chute forte na altura de seu peito, o mandando para trás. Barnes avançou na direção de , desta vez deferindo um golpe rápido e preciso na altura da costela dela, a ouvindo grunhir com raiva e dor, antes de acertar o rosto dela, tentando encontrar uma abertura na postura de para conseguir imobilizá-la, mesmo por meros segundos, no lugar. Bucky trincou os dentes com força, mas o peso em seu peito era maior, mais sufocante, e ele não podia escapar da própria culpa que havia enterrado há tantos anos. Ou queria escapar.
Eu sei que você queria que as coisas fossem diferentes, , eu gostaria que as coisas fossem diferentes... — A voz de Bucky desceu uma oitava, mais grave, mais pesarosa, enquanto ele lutava contra a parte de sua mente que gritava que aquela era uma luta perdida. Não. Não! Ele não podia perder a garotinha que estava em sua memória. Não, não porra! Se ele a perdesse, então... então era tarde demais para cumprir aquela última tarefa. Então era tarde demais para perdão e ao menos fazer as pazes com o passado, e tudo o que lhe sobraria era a consciência de que não havia mais nada a ser feito, que a Hydra havia o transformado em uma arma e usado, e que ele não poderia corrigir isso, não para . Não na visão dela. Ele precisava que ela acreditasse que ele não era o Soldado Invernal. Ele precisava que ela visse. — Eu não tinha controle... por favor, , acredite em mim....
O riso de era implacável e afiado, como facas se fincando lentamente pela pele de Barnes, e um arrepio gélido percorreu por sua espinha como ácido, corroendo tudo que estava pelo caminho. A respiração dele se perdeu momentaneamente em sua garganta, enquanto o aperto dele ao redor do pescoço de se apertava um pouco mais do que deveria. A reação era instintiva. Talvez Rogers estivesse mais certo do que deveria. Talvez tivesse sido um erro terrível ter ido até ali. Talvez mortos devessem ficar enterrados pela sanidade e bem de todos. Talvez ele não desejasse que ...
É isso que diz para você mesmo? Que não tinha escolha aquele dia? ofegou com um rosnado, enquanto o riso desprovido de quaisquer traços de humor rasgava por seu peito. Ela não se debateu contra Barnes, as unhas dela apenas fincaram-se com mais força contra o braço direito dele, tirando sangue. Ela estava tremendo, mas se de raiva ou algo além disso, Bucky não sabia dizer, porque, no momento que as palavras ecoaram pelo camarim, era tudo o que ele conseguia pensar e ouvir apenas. — Ninguém estava te controlando aquele dia, estava? Você tinha quebrado o código e estava fugindo. Que ordens a Hydra poderia ter te dado aquele dia? Eu sei muito bem por que você a matou, Barnes.
Bucky não reagiu. Os olhos azuis esverdeados dele apenas encontraram-se com os de , em uma súplica silenciosa — pelo que tampouco ele poderia saber —, mas ele não disse nada. Ele não a impediu, dessa vez, quando se livrou de seu aperto, puxando com força o braço direito de Bucky para o lado, apoiando sua mão esquerda sobre o ombro de Barnes e então o puxando com força para frente, usando o joelho para atingir o rosto de Bucky. Dor explodiu por seu rosto, e um sonoro crack ecoou, onde seu nariz deveria ter acabado de ser quebrado. O ataque o desorienta e Bucky cai para trás, quando chuta novamente seu peito, tossindo e tentando se forçar a respirar, enquanto um grunhido baixo escapava por seus dentes cerrados, mas Bucky não se defendeu.
Os olhos azuis esverdeados dele acompanharam se aproximar de novo de sua penteadeira, enquanto Bucky se arrastava um pouco para trás, tentando colocar-se sentado, enquanto limpava o sangue que escorria de seu nariz. Ele cuspiu o sangue que se acumulava em sua boca, unindo as sobrancelhas e então congelando no lugar, quando se voltou na direção dele com uma arma em suas mãos. É claro que ela teria escondido uma pistola automática em algum lugar do camarim, ele havia ensinado isso a ela. Havia uma parte traidora de sua mente que não podia deixar de se orgulhar pela mulher. Ela havia aprendido afinal. Sua garotinha havia crescido. E, de repente, Bucky percebeu-se mais disposto do que deveria a aceitar sua morte se realmente estivesse determinada a matá-lo. Seria o justo.
Cê não tem ideia de como eu sonhei com esse momento, Tovarisch. cuspiu entre dentes, erguendo a arma na direção de Bucky que não moveu um músculo. Os olhos azuis esverdeados de Bucky se encontraram com os cinzas prateados de e havia uma nota de compreensão, mesmo que ele não desejasse evidenciar nada a ela. Não porque ele não desejasse que ela compreendesse de onde ele vinha, mas porque sabia que ela não gostaria de ver remorso ou culpa no rosto de Barnes. Mesmo que ele se culpasse e sentisse o remorso corroer sua mente todos os dias por tudo o que a Hydra havia o obrigado a fazer, não cabia a Bucky mesurar o sofrimento que ele havia causado. E se pagar com sua vida era o preço justo que havia estipulado, então... ele estava em paz com isso. Bucky fechou os olhos, esperando o disparo.
Mas ele nunca chegou.
soltou um grito abafado baixo, se lançando para frente quando um risco metálico praticamente cortou o ar à frente de onde ela estava, se enterrando contra a parede do camarim, enquanto Steve Rogers praticamente saltou na direção de . Bucky abriu os olhos de supetão, surpreso, e encarou a cena à sua frente com uma breve confusão, antes de saltar sobre os ombros de Rogers, girando pelo ar e desabando no chão, antes de disparar para fora do camarim, correndo o mais rápido que conseguia. A arma esquecida no chão. Steve tossiu baixo, tentando recuperar seu fôlego, enquanto se levantava no chão. Bucky soltou um grunhido de dor baixo, colocando seu nariz de volta ao lugar e então balançando a sua cabeça ao se levantar, oferecendo uma mão na direção de Rogers, que a aceita sem hesitar.
— Eu tinha tudo sobre controle — Bucky disse com um tom de voz irritado, mas era mais do que isso. Barnes não queria que Steve tivesse visto sua decisão no final, porque sabia que eles teriam que conversar sobre isso mais tarde. Sabia que Steve faria perguntas e Bucky não estava assim tão disposto a respondê-las. Sequer supunha que estava disposto a responder a si mesmo, como poderia falar algo para Rogers?
Steve ergueu uma sobrancelha, com um sorriso seco, negando com a cabeça.
— Bem, para mim, você parecia precisar de ajuda — Steve confessou, seu cenho se franzindo enquanto parecia tentar recuperar o fôlego, e Bucky apertou os lábios com uma careta. Barnes sentiu o incômodo dos golpes de , que não eram precisos, mas eram fortes o suficiente para machucar. Mesmo que Bucky Barnes não tivesse um organismo humano, por assim dizer, ainda era um experimento; pior, ainda era uma mutante, então, de certa forma, após tantos anos, ela deveria ter aprendido a canalizar seus poderes para conseguir resultados mais efetivos. Inspirando fundo, Bucky observou Steve levar a mão esquerda em direção à orelha, apertando o botão do comunicador, tentando conseguir avisar Sam a tempo. — Sam, ela está seguindo na sua direção. Hostil. Comando para subjugar e imobilizar.
Tenho ela na mira, mas é melhor vocês virem rápido.
Cuidado, Sam — foi tudo o que Bucky respondeu, pela linha do comunicador, pegando a arma de do chão e a destravando rapidamente. Ele uniu as sobrancelhas, retirando o carregador da pistola automática para verificar quanta munição havia, seis balas, e então colocando-a de volta no lugar, destravando a arma e a guardando atrás de si, lançando um olhar na direção de Steve com um aceno de cabeça, disparando atrás de .
Bucky e Steve disparam por entre os civis, tentando tirá-los do meio do caminho para que não se tornassem casualidades, enquanto, pela linha do comunicador, eles podiam ouvir Sam direcionando-os para onde ele estava em confronto com . Barnes soltou um grunhido, deixando Coney Island e seguindo em direção à praia, praguejando alto quando ele observou deferir uma rajada de energia pálida em direção de Sam, o arremessando para trás, o derrubando. Bucky rosnou, disparando na direção de Sam, saltando para conseguir agarrar Sam e usando seu próprio corpo como escudo para amortecer a queda. Os dois rolam pela areia, e Bucky fez uma careta quando o cotovelo de Wilson acertou bruscamente a mandíbula de Barnes, e Bucky atingiu alguma coisa de Sam, mas os dois ignoraram, tentando se ajudar a se levantarem enquanto Steve tentava conter sozinho. Os dois dispararam na direção de , tentando impedi-la de escapar.
congelou no lugar, visivelmente irritada, mas, surpreendentemente, não lutou contra os três heróis, pelo contrário. Resignada, apesar da fúria que parecia cintilar e acender seus olhos, ergueu suas mãos lentamente para cima, fuzilando Bucky com o olhar furioso contido. Ele sabia, naquele momento, que havia a perdido. Não havia mais nada que Bucky pudesse fazer para tentar ao menos se desculpar por ter destruído o mundo e a vida de , por tê-la a livrado dos tormentos da Sala Vermelha, mas condenado por consequência e matado sua irmã mais velha antes disso. Por ter abandonado a garotinha sozinha em um mundo cruel, sem amparo algum. Ele sabia que não era digno de sentir o luto por matar — mesmo que ele não pudesse evitar.
Então, não era mais o Sargento Barnes à frente de , tentando fazer as pazes e consertar os erros que a Hydra havia o obrigado a fazer e pela a crueldade que ele sabia que manchava suas mãos e alma em profundidade ainda. A crueldade que sempre mancharia. Não. Este havia desaparecido, agora restava a implacabilidade do Soldado Invernal. Quisesse Bucky ou não, aquela parte sempre estaria duramente fundada em seu ser, era também quem ele havia se tornado, e, diante de , naquele momento, não havia mais outra escolha. Ela havia escolhido seu caminho, e não restava mais nada a Bucky se não usar a força agora. De qualquer forma, ele teria as respostas que precisava.
Zephyr — Bucky rosnou entre dentes, dando um passo na direção de e então mais outro, até que estivesse a centímetros de distância da mulher, os olhos presos nos dela, sem desviar, pronto para atacá-la e subjugá-la se fosse necessário. — Eu sei que você sabe onde os códigos estão. Você vai dizer tudo, e se tentar mentir, eu vou quebrar seu pescoço. Então é melhor começar a falar, , agora.



FOX | 1951.
Berlim Oriental, Alemanha.


Retira o pente. Verifica. Nove balas. Doze inimigos. Insere de volta. Destrava. Mira. Dispara.
Uma.
Duas, três.
Quatro.
Cinco, seis, sete.
Quatro corpos no chão. Oito ainda em pé. Puta merda….
Com os dentes trincados, se lança para a frente, rolando por seu ombro esquerdo e se chocando bruscamente contra a parede. Sua mente não registra o hematoma recém adquirido, imediatamente se preparando para receber o golpe imediato que se segue. solta um chiado alto, usando os dois antebraços para proteger seu rosto, sentindo o impacto brusco do contato da sola da bota pesada de combate do inimigo acertar o nervo de seu braço, e, por consequência, ela derruba sua única arma. Mas ela não tem tempo. Porra! Precisa ser rápida. Precisa ser rápida! Um grunhido escapa por entre os dentes dela, enquanto ela usa o antebraço esquerdo para impedir que outro chute acerte bruscamente a lateral de sua cabeça. O impacto a empurra violentamente contra a parede, e ignora a dor que explode na lateral de seu corpo, rolando outra vez para frente, chutando com violência a panturrilha do quinto inimigo, ouvindo o satisfatório crack ecoar por seus ouvidos. Usando a fração de segundos de distração, se lança para frente, apoiando o pé esquerdo sobre o joelho dobrado do quinto inimigo, o usando como apoio para alçar-se para cima, enroscando as pernas ao redor do pescoço do quinto inimigo em um aperto sufocante, enquanto lança seu corpo para trás, tentando alcançar o sétimo inimigo, próximo de onde os dois estavam, a fim de derrubar ambos os inimigos com um único golpe.
As mãos travam ao redor do pescoço do sétimo inimigo e um grito abafado escapa por entre os lábios dela quando dois disparos são feitos. Ambos atravessam sua costela direita, mas não o solta, usando o peso de seus inimigos e o empuxo para derrubá-los. não tem tempo de reagir ou avançar para finalizar seus dois oponentes. O oitavo inimigo é mais rápido. Um grito abafado escapa do fundo de sua garganta, enquanto desaba escada abaixo, rolando por seu próprio corpo, sentindo uma dor intensa atingir seu pulso esquerdo quando o osso se parte. Mais disparos são feitos.
não tem tempo para verificar o novo ferimento. Ela se arrasta o mais rápido que consegue pelo chão, se lançando bruscamente contra uma das portas dos apartamentos, agora abandonados do prédio, engatinhando desastradamente, escorregando em seu próprio sangue, ao conseguir esconder-se no balcão enquanto os disparos se alojam nas paredes. Pouco tempo. Merda. se escora contra a parede gélida do balcão do apartamento abandonado, tremendo, enquanto trinca os dentes com força, os olhos arregalados enquanto ela acessa a situação.
Sem armas. Pulso dominante comprometido. Oito inimigos aproximando-se. Menos de um minuto para resposta. Porra. Porra! PORRA! prende a respiração, compartimentalizando suas próprias emoções, deixando o desespero e a ansiedade assumirem um assento de carona enquanto se concentra na praticidade da situação. Sua mão dominante está comprometida, a dor irá nocauteá-la nos próximos cinco minutos. O corpo está começando a entrar em choque. Duas balas alojadas na caixa torácica, o aperto no peito provavelmente é indicação de que algumas costelas haviam sido quebradas. Então a linha de ação começa a se formar por sua mente: eliminar a dor, encontrar uma arma, ferir o máximo que conseguir, escapar pela janela do apartamento abandonado. Porcentagem de falha: 42%, em aumento. inspira profundamente, fechando os olhos por alguns segundos enquanto tenta acessar a parte de sua mente que lhe foi ensinada desde que se lembrava por gente. Inspira, segura, e então exala pela boca. Ao fundo de sua mente, ela encontra o maldito botão a sua espera. Não há outra forma de exemplificar, se não a sensação de um botão imaginário gravado ao fundo de seu cérebro, e como fora treinada para o fazer, ela gira o botão ao contrário, contando mentalmente, meio à parte, os segundos, tentando cronometrar suas ações com os inimigos que se aproximam.
Uma onda elétrica gélida percorre o corpo dela por completo. A adrenalina mistura-se ao alerta em seu sangue, enquanto, aos poucos, a dor vai dando espaço para uma sensação esquisita de formigamento crescente. Então se torna apenas um amortecimento suave, e, após uma fração de segundos, não há mais nada. O nível da intensidade de sua dor poderia ser controlado por aquele maldito botão projetado em sua mente devido às práticas involuntárias e obrigatórias. trinca com força os dentes, mantendo sua concentração em sua respiração, tentando estabilizá-la ao máximo.
Os olhos dela se voltam para seu próprio pulso, estreitando os olhos ao perceber o quão torto está. Sua mão está praticamente no ângulo contrário. Um dos ossos se projeta para fora. Tem quase certeza que ela terá que amputá-lo se sobreviver a essa merda de missão, mas sem a dor para corroer seu raciocínio lógico, a situação se torna mais prática do que de fato é. tateia desesperadamente por alguma coisa que ela possa usar ao seu favor, encontrando um guardanapo de algodão qualquer próximo da bancada onde ela está se escondendo e, com um grunhido de pura impaciência e agitação, enrola o guardanapo ao redor de seu pulso, tentando conter o sangramento e manter a mão no lugar certo.
Mais disparos.
se encolhe instintivamente, ouvindo os projéteis se fincarem nas paredes de concreto, e pequenos fragmentos atingem não apenas o chão, mas igualmente a estrutura de concreto do balcão onde ela está se escondendo. Porra! agarra a primeira coisa que vê, a porra de um banco de metal com o assento em um tom verde neon excruciante para os olhos, e tenta concentrar-se em apenas ouvir os passos em sua direção. Sua mente está a mil por hora, as pupilas contraídas, enquanto o tremor aumenta por seu corpo, trincando os dentes com força, tentando desesperadamente manter sua respiração regular. Lufadas de ar, todavia, escapam por entre os dentes trincados dela. Cinco, quatro, três, do…
acerta a panturrilha do quinto inimigo bruscamente com o banco de metal com o assento de neon, usando o antebraço direito, segurando ainda firmemente o banco para atingir o braço esquerdo de seu oponente, empurrando a arma que ele empunha, a ouvindo disparar próximo demais de seu ouvido. A explosão do disparo causa um ruído alto no ouvido direito de , e antes que ela possa perceber, seu ouvido direito fica completamente abafado — sangue escorre por seu pescoço, mas ela está ocupada demais para prestar atenção nisso. empurra o quinto inimigo contra a bancada, usando todo o peso de seu corpo enquanto o atinge bruscamente na cabeça com o assento do banco de neon, ouvindo um satisfatório crack, antes de agarrar com sua mão machucada o colarinho do quinto inimigo, o usando como escudo quando o sexto, sétimo e oitavo inimigo disparam na direção dela. o arrasta para trás, os olhos vidrados, arregalados, fixos em seus outros três oponentes, observando o sétimo inimigo sinalizar para a direita dela, indicando para o oitavo e sexto inimigo seguirem pelo flanco dela e a atacarem ao mesmo tempo, enquanto arrasta o corpo agonizante do quinto inimigo, ao qual ela se agarra como um escudo junto consigo, tentando manter sua cobertura.
Ela rapidamente lança um olhar ao seu redor, tentando acessar a situação, então ela segura com sua mão machucada, o osso se projetando um pouco mais para fora de sua pele por consequência, o corpo do quinto inimigo e se volta na direção das bancadas da cozinha, encontrando uma frigideira média de ferro fundido sobre o fogão. Puta merda, se isso não é conveniente. Foda-se. empurra o corpo do quinto inimigo sobre o sétimo, como distração, ao mesmo tempo que ela se volta para o sexto, o atingindo no rosto com a frigideira violentamente, usando toda a velocidade que ela possui para executar o golpe. Um guincho engasgado escapa do sexto inimigo, que desaba no chão, momentaneamente inconsciente, enquanto arremessa a frigideira de ferro fundido na direção do oitavo inimigo, o acertando com precisão. O cabo abre um buraco grotesco entre o nariz dele e o olho direito, se enterrando em sua bochecha, antes do oitavo desabar em um baque molhado e nojento no chão.
dispara na direção do oitavo inimigo estatelado no chão, buscando por algo que ela possa usar contra o sétimo inimigo, praguejando entre dentes ao encontrar apenas uma faca, imediatamente se levantando e se preparando para atacar seu último inimigo, mas ele é mais rápido. O sétimo inimigo dispara na direção dela, usando o restante de sua munição para tentar abatê-la de uma vez. sente o impacto dos disparos, os ombros e corpo sendo empurrados para trás e a sensação como se fosse algo queimando sua pele se espalha de maneira familiar, mas não há explosão alguma de dor, apenas o típico característico amortecimento que ela havia se habituado a sentir. Três projéteis se afundam em seu tronco, dois em seu flanco esquerdo, um no centro de seu abdômen. Ela sente uma breve contração em seu estômago e seu corpo tem um espasmo. Sangue inunda sua boca, enquanto seu tronco se projeta precariamente para frente, enquanto sangue escorre por sua boca de maneira involuntária e consequente do disparo. Ela está amortecida demais para compreender com exatidão o que havia acontecido, mas seu nariz de repente fica permeado pelo cheiro sufocante de ferro e sangue, enquanto sua boca está amarga, e até mesmo o ato de engolir lhe provoca uma sensação esquisita de impossibilidade. Mas ela está sem tempo. Ela não para. avança na direção do sétimo inimigo, acertando com força a caixa torácica dele com um, dois, três, quatro golpes seguidos, afundando a faca até o punho, antes de retirá-la e a fincar no supercílio de seu último oponente, estrategicamente entre o olho e o início do crânio, a fincando fundo o suficiente para se alojar no cérebro do sétimo inimigo. então chuta com o restante de suas forças o tronco do sétimo inimigo, o ouvindo meio à parte desabar no chão com um gorgolejo incômodo.
cambaleia para trás, desabando sentada enquanto faz uma careta. Mesmo com a falta de dor por seu corpo, ela ainda pode sentir a exaustão, e, enquanto ela tenta normalizar sua respiração e se colocar de pé, novos gostos e sensações provindas de ferimentos recentemente adquiridos começam a permear sua mente. Ela pode sentir o sangue, cálido, encorpado e viscoso escorrer de determinados pontos de seu corpo, umedecendo o tecido de seu uniforme e a aquecendo de maneira inconvenientemente desconfortável. Seus pulmões estão ardendo. cospe o sangue que se acumula em sua boca, balançando a cabeça uma, duas vezes, como se pudesse tentar limpar ou ao menos manter sua mente estável e focada, mas a sensação de sua cabeça estar ficando mais leve e a propensão de um provável desmaio aproximando-se é o aviso para ela que seu tempo havia se esgotado.
Continue se movendo. Levanta, porra, continua se movendo!
trinca com força os dentes, exalando de maneira irregular e pesada por entre os dentes, enquanto se obriga a tentar se levantar outra vez, desabando mais duas em seus joelhos e acertando bruscamente uma das paredes, antes de engatinhar na direção dos corpos de seus inimigos. Um deles está apenas inconsciente, ela sabe, mas pouco se importa com isso no momento. Os olhos cinzentos da mulher percorrem quase em desespero, buscando pelo o motivo dela estar ali com uma ponta de frustração. Ela puxa e aperta um pouco mais o guardanapo servindo como bandagem em seu pulso esquerdo, se certificando de manter a porra do seu pulso no lugar, antes de começar a procurar por entre os bolsos de seus inimigos. Pelos próximos minutos, apenas pragueja entre dentes a cada um dos bolsos que ela abre, alçando um carregador, com cerca de seis projéteis à disposição. guarda em um dos bolsos de seu cinto, junto à arma que ela havia encontrado, antes de voltar a procurar pelo motivo dela estar ali.
A chave está no segundo bolso do uniforme do oitavo inimigo, dentro de uma caixa de cigarros. estreita os olhos, se esforçando para manter sua visão focada, embora as laterais comecem a se obscurecer, como se pequenos pontinhos de luz se projetassem por sua visão, dificultando para ela entender o que é real e o que não é. Merda, seu tempo está no limite. Ela concentra-se em verificar se esta é mesmo a chave de sua missão ou alguma outra tentativa de armadilha criada por seu inimigo. Não é incomum criarem falsas estratagemas para se distrair ou comprometer uma missão, e não será a primeira vez que ela se depara com uma armadilha em seu caminho. Sua mente volta para os detalhes da missão outra vez. Ela repassa os detalhes, de novo, e de novo, se questionando o que havia deixado passar desta vez. Os olhos fixam-se no rosto dos inimigos, unindo as sobrancelhas grossas e bem marcadas, enquanto os analisa com atenção. O gosto amargo de sangue pungente em sua boca. Reconhece os traços, havia os memorizado antes da missão, gravado os traços, cabelos loiros ondulados, bigode grosso, cicatriz no lado esquerdo da mandíbula, lóbulo esquerdo obstruído. Se ela puxar as pálpebras, sabe que irá encontrar um olho com heterocromia, um verde, o outro castanho claro. Graham Ward, este era o nome dele. Ex-CIA, agora agente da SHIELD. Um alvo. Mas há algo de errado…
Cabelos loiros ondulados, bigode grosso e marcado, cicatriz no lado esquerdo da mandíbula, lóbulo esquerdo obstruído. Cabelos loiros ondulados, bigode grosso, cicatriz no lado da mandíbula, lóbulo esquerdo obstruído. Cabelos loiros ondulados, barba por fazer, cicatriz no lado esquerdo da mandíbula, lóbulo direito obstruído. Cabelos loiros ondulados, barba por fazer, cicatriz no supercílio direito, lóbulo direito obstruído. Ela pisca uma vez. Nada acontece. Ela pisca de novo, encarando fixamente o corpo. Cabelos escuros, lisos, barba por fazer, cicatriz no supercílio direito, nariz quebrado, a respiração de se perde em sua garganta, sufocando um grito. Não é ele. Não é Graham Ward. Porra. Porra. O que está acontecendo.
pisca algumas vezes, sentindo sua cabeça girar, enquanto a iluminação do espaço parece oscilar. Ela sente o ar começar a lhe faltar, se tornando mais e mais rarefeito, acidentalmente caindo sentada. Sua mão esbarra no crachá do corpo, aumentando ainda mais sua confusão quando ela lê o nome. É russo. Estranhamente familiar. Novokov…? Onde ela havia ouvido aquele nome antes?...
É como se estivesse presa em um sonho esquisito no qual o rosto da pessoa com quem você está falando não é possível de ser visto. Como se estivesse presa em uma falha. Merda, ela deve estar alucinando, não há outra explicação para isso. leva as duas mãos em direção ao seus ouvidos, tentando abafar o pequeno ruído que começa a se formar ali, enquanto fecha os olhos com força. Por uma fração de segundos, ela apenas consegue escutar o seu ritmo cardíaco, acelerado, descompassado, mas constante. Bip. Bip. Bip. abre os olhos, confusa, não soa como o barulho de seu coração, mas sim…
Ela abre os olhos, confusa.
lança um olhar ao seu redor, tentando registrar onde diabos está. A pulsação de aumenta, criando um pico de adrenalina que faz com que sua cabeça comece a girar. Seu estômago afunda e ela tem quase certeza de que irá vomitar. Sua garganta está seca, e sua respiração de repente se torna mais rápida, superficial, irregular, como se ela estivesse prestes a começar a hiperventilar. Ela franze o cenho, voltando a encarar o rosto de seu outrora inimigo — por que ele era seu inimigo? —, agora desacordado. Ela pisca uma vez, e o rosto continua o mesmo, a sensação de iniquidade lentamente aumentando. Quem supostamente ela deveria estar procurando? Onde estava ? O que ela…? pisca outra vez, como se estivesse tentando clarear seus próprios pensamentos, estendendo sua mão esquerda, dominante, completamente intacta na direção do rosto do homem desacordado no chão ao seu lado, tremendo mesmo que ela sequer perceba que o faz. Os dedos dela se esticam para tocar na pele do homem, mas a luz oscila de um tom amarelado para vermelho antes que ela possa sequer tocá-lo direito.
Que porra está acontecendo?!
Os olhos dela se arregalaram, se fixando na lâmpada por um longo momento. Por uma fração de segundos, realmente teme o que vê. Ela está enlouquecendo. É o efeito de um gás. O que ela não percebeu desta vez? Merda! O que ela não havia percebido dessa vez?! O QUE ELA NÃO HAVIA PERCEBIDO DESSA VEZ?!... A ar começa a ficar mais rarefeito, e ela não sabe mais dizer o quanto de tudo isso é proveniente de um ataque de pânico, o quanto é sua mente apenas elaborando uma das inúmeras armadilhas que ela tenta evitar, e o quanto é verdade, mas, pelos próximos minutos, apenas congela no lugar. Ela não consegue se mover. Precisa pensar racionalmente, ela sabe disso, mas a sensação gritante é que ela está em perigo — alguém está a vigiando, alguém a está caçando, está ali! Ela pode sentir! Bem ali!... ali onde?! — praticamente joga sua mente em uma espiral de loucura crescente. Seu ouvido direito ainda está ensurdecido, o eco vago de um zunido aumentando a cada segundo, persistente e contínuo, e está doendo. Muito. Ela sente que algo quente e encorpado escorre de dentro de seu ouvido ferido e surdo para fora. Assemelha-se à água, mas é quente demais para o ser. Escorre lentamente por sua mandíbula, e então desliza por seu pescoço, pingando em seu ombro. Ela quer tocar, quer verificar o que é, mas não consegue sequer se mover. franze o cenho, lançando um olhar ao seu redor. Sua respiração aumenta ao ponto de tornar-se ofegante, irregular e trêmula. Ela irá vomitar. Merda, ela sente que irá desmaiar em breve, sua cabeça está latejando.
A sala de treinamento antiga com paredes brancas agora revela manchas vermelhas profundas e em padrões esquisitos, mas permanece vazia. A luz continua a oscilar, enquanto ela balança a cabeça, tentando se livrar do torpor que atinge seu corpo, a prendendo no lugar. É como se ela estivesse presa em pequenos cabos, a puxando para baixo, a sufocando e a imobilizando. Impossibilitada de fazer qualquer coisa que não seja apenas observar. Trincando os dentes com força, ela tenta encontrar uma maneira de sair daquele maldito transe. Quaisquer tentativas dela de libertar-se daquele maldito estado de congelamento são completamente esquecidas ao fundo de sua mente quando seus olhos repousam na direção da porta dupla, revestida e pesada de metal, aberta com um clique. engole em seco, dando um passo hesitante para frente, enquanto ergue as duas mãos no ar. Trêmulas, completamente encharcadas de sangue. A faca escorregando de sua mão esquerda e caindo com um clique metálico no chão de concreto queimado. arregala os olhos, seu tremor aumentando. Quando… quando ela segurou aquela faca? De onde veio…?
Os olhos dela voltam imediatamente na direção da porta, em uma mistura de confusão, medo e alívio. É apenas um soldado. Não um batalhão ou uma ameaça direta. Só um soldado. Sua mente está hesitante e assustada, assumindo que, apesar de ser apenas um soldado, há algo de muito errado ali. Seu peito, ao contrário, se enche com uma sensação estranha de familiaridade. Ela tenta se lembrar de onde o conhece, o analisando com cuidado. É alto, o que faz com que seus passos silenciosos se tornem um pouco mais intimidadores — afinal, é necessária real habilidade para conseguir conter os ruídos de sua locomoção daquela forma —, os cabelos longos pedem por seu rosto, na altura de suas maçãs do rosto, sem corte, como se tivessem crescido por desleixo ou esquecimento e nada mais. Tem um braço de metal, uma estrela vermelha de cinco pontas gravadas onde o braço biônico de metal se conecta com o que ela supôs ser o restante do músculo. Uniforme escuro, tático, pesado, e uma mordaça. Embora pareça com uma máscara, não pode deixar de desconsiderar a ideia ao assumir que uma máscara deveria cobrir o rosto inteiro, e a dele apenas cobre a parte inferior de seu rosto, justa, como uma mordaça. tenta se mover, unindo as sobrancelhas. Há algo muito errado com ele. Ela lança um olhar ao redor, sentindo o desespero começar a aumentar, antes de voltar sua atenção para o soldado, seus olhos prendem-se aos dele e tudo desaparece ao seu redor.
Mas não é o tom azul gélido, meio cinzento, meio esverdeado, que a prende em seu olhar, ou tampouco a intensidade por trás de tais olhos — como se estivesse tentando gritar algo tanto quanto ela está. Não, não. É o estoicismo. Não há nada ali. Os olhos dele estão completamente vazios, obscurecidos por suas intenções, como um predador. entende rapidamente que, quem quer que ele seja, não é e jamais será seu aliado.
A realização a teria feito exalar, se ela estivesse respirando. As palavras se formam em sua boca, mas nunca são expelidas. Ela observa congelada no lugar ele se aproximar, os olhos dela repousando, então, na mão direita dele, a mão que parece ser feita de carne e ossos e não metal, como a outra. O tremor por seu corpo aumenta, ao perceber tardiamente o que ele segura ali. Uma Luger P8, pelo estado da arma em boas condições, funcional. Ele não está ali para ajudá-la, está ali para matá-la. Mas por quê? Ainda assim, um resquício de esperança quase se acende em seu peito quando ela o vê hesitar. É rápido, quase imperceptível, mas, por um segundo, o soldado desvia o olhar para Novokov desacordado no chão e parece considerar suas possibilidades. tenta usar isso à sua vantagem — está desesperada, afinal, e qualquer chance ainda é uma chance. Me ajuda! Ela tenta dizer, mas sua voz não sai de seus lábios. Há apenas silêncio, como se alguém tivesse lhe roubado não apenas a fala, mas sua capacidade de se comunicar. Tentar falar é tão doloroso quanto afogar-se. Mas o soldado parece apenas estar no automático, estoico e compenetrado apenas em sua missão.
O soldado dispara a arma, a acertando em cheio.
Sangue explode pela boca de , enquanto a dor faz com que pontos de luz explodam em sua visão. Ela cambaleia para trás, o encarando com puro medo. Os olhos dela fixam-se nos azuis esverdeados dele, e tudo ao redor desaparece. Ela tenta suplicar. Ela não quer morrer. Não agora. Não quando está esperando por ela, no… no… não quando … quem… quem é ? O corpo dela se curva para frente bruscamente quando outro disparo é feito, e suas pernas cedem ao seu próprio peso. desaba no chão, engasgando com seu sangue. Ela tenta se colocar de pé, mas há uma sensação terrivelmente sufocante de amortecimento em seus músculos que a impede. A dor aos poucos se aloja em segundo plano em sua mente, enquanto seus olhos se tornam mais pesados. Os ombros dela se chocam contra o chão, enquanto ela tenta se mover, mas não consegue. O sangue escorre por seu nariz e lábios, enquanto a tosse aos poucos torna-se mais fraca e irregular. Os olhos dela, ainda fixos no rosto dele, ficam mais e mais vagos. Sua visão torna-se embaçada, se escurecendo mais rápido do que ela deseja. Está caindo no sono? O que está acontecendo? Seus ouvidos ficam abafados, como se ela estivesse embaixo d’água, quando ela escuta o soldado dizer:


— Senhorita ? Senhorita, ainda está comigo?
A voz baixa e calma, cuidadosamente controlada de Doutor Fennhoff ecoa pelos ouvidos dela de maneira gentil. pisca rapidamente, inspirando o máximo de ar que consegue, como se tivesse ficado por muito tempo prendendo sua respiração, lançando um olhar assustado ao seu redor, parecendo ter voltado a si mesma. Os olhos dela se movem pelos móveis da sala do Doutor Fennhoff. O cheiro suave de lavanda causa-lhe uma sensação de conforto, enquanto os incensos cuidadosamente dispostos sobre uma das mesas dele com livros e mais livros espalhados, próximos da janela, ficam. É elegante, a sala dele, e acolhedora. Confortável, até. franze ainda mais o cenho, confusa. Não. Não… ela não estava ali, estava? Que lugar era…? Onde…? Como ela…? deixa-se recostar-se contra a cadeira, voltando os olhos na direção do psicólogo. Ele está igualmente com o cenho franzido, uma expressão preocupada que tinge seus traços elegantes e finos, os olhos intensos, castanhos claros, levemente esverdeados, se estreitando, enquanto ele parece tentar ocultar sua tensão. Por que ele está tenso? Ela não escuta de início quando os lábios dele formam as palavras, mas então ela entende o que ele está dizendo:
— Senhorita ? ? querida, está me ouvindo?



POINTE-SHOES | 1951.
Leningrado, União Soviética.

O silêncio ensurdecedor só foi quebrado após longos vinte minutos.
Os olhos dela se ergueram lentamente dos dedos longos e repletos de cicatrizes, as unhas fincando-se instintivamente, e meio à parte de sua mente ansiosa, em algumas cicatrizes mais fundas, delineando a estranha profundidade que desfigurava seus dedos. Ela não se lembrava de onde havia as conquistado, mas sabia que, em alguns raros momentos, quando estava prestes a pegar no sono, ou distraída demais com sua própria mente para perceber de imediato, que poderia sentir o toque fantasma ali. Dedos ásperos que não lhe pertenciam, traçando gentilmente as cicatrizes das mãos dela, até chegar ao interior de seu pulso esquerdo. Ela raramente retirava o pequeno bracelete feito de veludo escuro, vermelho, e com um brasão antigo, provavelmente de sua família, onde uma numeração marcava a parte interna de seu pulso. Uma tatuagem antiga. A essa altura, a tinta desgastada agora tinha uma tonalidade meio azulada nas extremidades, revelando um passado que não conseguia se lembrar de ter existido, mas que, com provas físicas, era inegável.
Disseram que ela havia sido capturada pelos nazistas próximos das fronteiras da Áustria, em um dos fronts russos. Disseram que haviam a encontrado desacordada, mal respirando direito, quando o Exército Vermelho retomou as fronteiras, e que foi uma das poucas sobreviventes dos experimentos em campos de concentração. Disseram a ela que era uma reação natural de seu cérebro, após experienciar um evento traumático como aquele, perder a memória ou esquecer-se do que havia acontecido lá. Disseram que ela estava em casa novamente, segura, e que um renomado e confiável médico iria ajudá-la. Mas não se sentia em casa e muito menos segura: não com os pesadelos constantes. Não com os ecos de imagens que invadiam sua mente com frequência. Ainda assim, ela estava se esforçando para progredir, pelo bem de , mas igualmente porque, se ela não fizesse... o quanto de sua mente ainda poderia ser considerado sã quando ela não tinha ideia se o que estava vendo, sentindo, ouvindo era real, e quando não era?
Se seus sentidos poderiam tão facilmente enganá-la, então, o que era, de fato, a realidade?
Ouça eu sei que pode ser difícil encontrar as palavras certas, ou sequer mesmo palavras para se expressar. Todos nós temos limitações que nos impedem de expor algo, e isso é normal — Fennhoff começou a dizer, finalmente quebrando o silêncio após longos minutos, mas não conseguiu respondê-lo. Não era que ela não quisesse, ela simplesmente não conseguiu dizer. tinha aquela estranha sensação de estar sendo amordaçada vinte e quatro horas por dia, como se algo estivesse a impedindo de falar alguma coisa. Como se algo estivesse preso em sua boca, profundamente enroscado em seu esôfago, a impedindo de falar. Fennhoff havia dito que aquilo era normal: algumas pessoas, após sofrerem algum evento profundamente traumático, poderiam acabar experienciando a perda da fala. Ainda assim, não conseguia deixar de sentir-se desconfortável ao ver que Fennhoff, por uma fração de segundos, em todas as sessões, esperava que ela falasse. Uma progressão, qualquer que fosse, e , todavia, só conseguia sentir-se estagnada. Presa no lugar. Era sufocante. Sentia que estava enlouquecendo. — Essa resistência é natural, especialmente tendo em vista o que você passou. Veja, querida, você não está mais em perigo. Eu não estou aqui para ditar normas, ou te repreender. Não há certo ou errado. Estou aqui apenas para ouvir o que você tem a dizer. — Fennhoff fez uma pausa, e engoliu em seco, se recostando contra o estofado macio do sofá dele. precisou conter o impulso de deixar-se escorregar até que estivesse no chão, sentindo a estranha sensação de que, se apoiasse mais peso do que deveria em seu corpo, ali, ela iria acabar caindo para trás, sendo absorvida pela poltrona, e desapareceria em um mundo permeado apenas pela escuridão e o silêncio. Ela umedeceu o lábio inferior, assentindo lentamente para o que Fennhoff disse, mas ainda em completo silêncio. — Preciso que diga algo, . Do contrário, não vou poder te ajudar.
Quando não respondeu, outra vez, Fennhoff anotou alguma coisa em seu sketchbook vermelho, a caneta deslizando pela superfície porosa do papel grosso, soando como um pequeno farfalhar que fez se tencionar um pouco. Ela não estava com medo, mas por que diabos estaria? Era só uma folha, uma caneta, e o barulho quase silencioso demais para ser percebido com clareza de alguém escrevendo. Mas seu coração ainda estava pulsando rápido demais em seu peito, e suas mãos ainda se fecharam com força enquanto ela tinha aquela maldita sensação de déjà-vu outra vez.
Tudo bem, certo. Por que não começamos por um tópico mais simples? Me fale um pouco de como foi a sua semana? Como está a preparação para sua estreia? Como tem se sentido? — Fennhoff tentou, e inspirou fundo, assentindo lentamente para o doutor.
Os olhos de se desviaram do rosto do médico e repousaram na janela à sua esquerda, observando, sem exatamente querer muito, o mundo do lado de fora daquela sala pequena, porém confortável.
Sentiu-se como se estivesse dentro de um globo de neve. Estava nevando àquela altura, mas não era uma tempestade, ao menos não ainda, manchando os telhados e as estruturas de cimento que envolviam a cidade. Por um breve momento, a neve pareceu simplesmente parada no ar, como se estivesse estática. piscou os olhos, os abaixando rapidamente, unindo as sobrancelhas enquanto apertava os lábios em uma linha.
Estou nervosa. gesticulou por fim. Não era a melhor do que escrever, já que nem todos eram capazes de entendê-la quando ela usava linguagem de sinais para se comunicar, mas Fennhoff havia estabelecido uma maneira de comunicação alternativa desde o começo com para que ela pudesse se expressar, sem precisar escrever ou ao menos ter uma segunda alternativa. Além disso, nem sempre estaria com um bloquinho de notas para escrever o que estava pensando, logo teria que ter uma segunda, e talvez até mesmo uma terceira, maneira de se comunicar claramente.
voltou a linha de seu olhar para o chão, observando os veios de madeira impecavelmente encerados e organizados, sentindo uma pequena ponta de desconforto quando os olhos dela localizaram uma estranha fissura entre duas tábuas. uniu as sobrancelhas, confusa, ao perceber que, por baixo das madeiras do assoalho, havia cimento queimado — o que não fazia sentido algum, uma vez que estavam em um prédio antigo, logo a estrutura deveria ser apenas de alvenaria.
Um pigarro de Fennhoff a despertou de sua distração outra vez. tentou não se encolher quando, por uma fração de segundos, os olhos dela se encontraram com o rosto dele, mas tudo o que ela viu foi apenas um crânio putrefato. Larvas escorreram por entre os orifícios de seus olhos e nariz, a mandíbula pendeu para a esquerda, sem o músculo para sustentá-la. inspirou fundo, uma vez, antes de desviar seu olhar para suas mãos de novo.
não tem parado de falar sobre isso. Disse que quer ser uma bailarina também, por causa dos tutus e das pedrarias. Tem usado todas tiaras, até mesmo para dormir. Acho que está mais ansiosa do que eu. gesticulou para Fennhoff, que assentiu lentamente, em um pequeno incentivo para que ela continuasse falando, uma aprovação discreta de que ela estava indo pelo caminho certo. hesitou por um breve momento, sem saber o que mais dizer. Sabia que existia ali um vínculo de confiança, e Fennhoff nunca havia a feito desconfiar de suas intenções por trás da ajuda que ele oferecia. Ela sabia que estava no caminho certo, por que diabos não estaria? Mas não era confortável. Por algum motivo, ao fundo de sua mente, havia alguma coisa estranha. Algo que estava fora do lugar. E ela não conseguia entender exatamente por que o fazia. O que ela não estava vendo desta vez? Onde ela estava errando agora? Por que ela estava sempre errando? O que ela não estava vendo... Os ensaios têm ajudado bastante a manter minha cabeça no lugar. É mais fácil focar quando tenho algo em mãos, e também tem sido um desafio bem vindo também, depois de tudo... Quer dizer, eu não sei se estou sendo uma boa... figura materna para ela, mas... estou tentando...
Ela parou de gesticular, sem saber aonde queria chegar, sem saber o que dizer. uniu as sobrancelhas, voltando a encarar suas mãos outra vez, esfregando o polegar ao longo de seu indicador, ansiosamente, deixando o canto de sua unha percorrer a profundidade grotesca da cicatriz, a fazendo se arrepender de não ter usado luvas aquele dia. Havia tentado tomar um risco, aceitar uma mudança e fazer um salto de fé. Deus, como ela havia fracassado. Havia achado que conseguia passar o dia sem as luvas, seu único consolo sendo a pequena pulseira de tecido envolvendo seu pulso esquerdo para esconder a numeração de quando estivera no campo de concentração. Mas... mas ela não era assim tão forte. E odiava a sensação. Odiava ter que olhar para suas próprias mãos e...
Não sinto que meu corpo me pertence confessou, por fim, fechando os olhos, sem conseguir encará-lo. Ela não queria ver a pena no olhar de Fennhoff, não queria ver alguém sentir-se mal por ela, porque piorava tudo. Ela não merecia aquilo... se ela tivesse sido melhor, mais rápida, se ela não fosse tão... tão ela, talvez sua família estivesse viva, talvez os amigos que haviam sido capturados e mortos no front Austríaco estivessem em casa, talvez tivesse uma infância tranquila e feliz, com os pais de verdade. Se ela pudesse ter trocado de lugar. Se ela pudesse voltar ao tempo. Céus, ela tinha nojo de si mesma. Por que sempre sentia que havia algo de errado com ela, porque, se todos a olhavam de maneira diferente, então, certamente, havia algo de errado com ela, não é? Quando uma pessoa lhe encarava com nojo, talvez, e apenas talvez, poderia ser um problema relacionado apenas à pessoa que lhe encarava. Mas o que significava quando muitas lhe encaravam da mesma maneira? Certamente, todas elas não estariam erradas também, não é? Não... não poderiam estar... — É como se eu não estivesse dentro do meu corpo, como se fosse uma estranha encarando-me de volta no espelho, como se nada em mim... fosse mesmo meu... não sou eu... sinto que sou uma estranha... não sei quem sou...
ficou em silêncio por alguns minutos, tentando absorver sua própria confissão a Fennhoff, e, ao mesmo tempo, esperando uma resposta vinda do médico, mas a resposta dele nunca chegou. Hesitantemente, ela se obrigou a abrir os olhos, franzindo o cenho em confusão.
Fennhoff tinha momentos de silêncio. Momentos ofertados para que absorvesse o que havia acabado de dizer e refletisse sobre, mas... nunca havia sido um completo silêncio. Nunca havia sido apenas a pulsação alta em seus ouvidos, sua única companhia. O que...
Ela estava sozinha.
franziu o cenho, ainda desorientada com toda a situação, observando agitadamente o consultório. Ela prendeu a respiração instintivamente, ignorando a parte de seu corpo que sempre reclamava pela atitude, hesitando, mas sentando-se na beira do divã, observando o consultório, desorientada. Ela engoliu em seco, franzindo o cenho, enquanto as mãos dela repousavam na lateral do divã, seus dedos fincando-se contra o estofado macio, tentando encontrar uma maneira de manter-se naquele momento, uma maneira de certificar-se de que aquilo era real, que estava realmente acontecendo.
Ela pensou em chamar pelo nome de Fennhoff, mas sua voz não saiu.
colocou-se de pé, devagar, prendendo a respiração, os olhos agora arregalados, enquanto o tremor aumentava não somente por suas mãos, como igualmente por seu corpo inteiro. Sua garganta estava dolorida, e o gosto de sangue era pungente, atingindo sua língua de forma desconfortável antes de voltar a engolir. Os dentes cerrados pareciam travados. As paredes do consultório de Fennhoff eram familiares. Eram compostas por uma faixa bege suave que compunha o teto e madeira revestindo metade da parede com desenhos quase semelhantes aos da porta, retângulos largos, seguidos de quadrados pequenos, com o verniz impecável deixando a madeira ainda mais escura do que de fato era. O piso de alvenaria estava encerado, e quase poderia ver seu reflexo se ela se concentrasse bastante. Um tapete grosso se espalhava abaixo da poltrona de Fennhoff e o divã que ela estava sentada. Abajures estavam dispostos, um sobre uma mesa de mogno antiga, com apenas uma gaveta ao centro, e onde ele havia repousado pequenos livros e decoração, com estátuas de bronze e até mesmo um quadro com paisagem desconhecida de montanhas nevadas, enquanto os outros dois, maiores, se encontravam no canto da sala. Persianas meio abertas evidenciavam a neve que tingia a cidade do lado de fora, mas a iluminação precária não possuía aquela tonalidade amarelada que ela estava acostumada, pelo contrário.
Agora pareciam cintilar em azul.
franziu o cenho ainda mais, fechando suas mãos em punhos firmes enquanto buscava pela porta de saída do consultório de Fennhoff, mas não havia porta alguma. Apenas duas janelas com as trancas de ferro fechadas, e estantes repletas de livros. As estantes eram feitas de madeira e estavam dispostas paralelamente ao lado da parede esquerda, com certificados presos na madeira como um lembrete das especialidades de Fennhoff. Ainda assim, parecia errado. Os olhos de se desviam para o chão, momentaneamente, observando manchas no assoalho, riscos de algo sendo arrastado. Mas era impossível...
Glitch.
A parede de cimento queimado do consultório de Fennhoff levava a apenas uma estante naquele lugar, de metal, revestida por uma camada descascada de tinta especificamente para a superfície, mas que deveria ter sido pintada há bastante tempo, uma vez que estava descascando. Tremendo, se aproximou da estante, lançando um olhar ansioso na direção da porta dupla, trancada, observando brevemente o aviso da tranca por reconhecimento digital suavemente piscar em meio à penumbra do espaço, antes dela voltar-se para a estante. Tremendo, ela usou toda a força de seu corpo para empurrar a estante para o lado.
O rangido alto do metal em contato com o concreto queimado enviou arrepios pelo corpo de , uma sensação estrangeira e, igualmente, familiar a envolvendo, enquanto novas marcas surgiam no chão. O mesmo padrão, o mesmo caminho. Ela não percebeu, mas não havia sido a primeira a fazer aquilo.
Sua respiração tornou-se mais pesada e irregular, o ar invadiu seus pulmões agora de forma brusca e demandou por espaço, o peito expandindo e se contraindo, enquanto sua garganta estava desconfortável, seca, raspando. Ela instintivamente levou sua mão esquerda em direção ao seu pescoço, como se pudesse fincar suas unhas ali e arrancar a sensação de desconforto, mas, no máximo, ela apenas usou para convencer-se de que não estava sonhando outra vez, porque à frente dela, havia um elevador.
Estranho, de metal revestido, lustroso, e com um brilho azulado intenso nas extremidades. Eram portas duplas, logo o elevador deveria ser industrial, ou, ao menos, preparado para carregar mais peso e coisas do que pessoas. Havia algumas manchas de graxa no painel, os botões pareciam em perfeito estado, indo do zero ao nove, e então do S1 ao S9. Ela não percebeu os números acima, no pequeno painel de aviso em que andar o elevador poderia estar parado, começar a diminuir aos poucos, anunciando que o elevador estava se movendo outra vez. Os olhos dela estavam fixos no painel, nos botões, que agora estavam começando a sangrar.
Ping. prendeu a respiração, voltando seu rosto imediatamente para as portas que se abriram à sua frente, sentindo seu corpo gritar para que ela se movesse, para que ela corresse daquele lugar, para que ela fizesse alguma coisa, embora estivesse congelada no lugar. Os olhos se encontram momentaneamente com os azuis esverdeados, os cabelos longos e a máscara que envolvia a parte inferior do rosto do soldado cobrindo-o ao ponto de impedir sua identificação.
?! ! —Ela piscou rapidamente, os olhos obscurecendo sua realidade por uma fração de segundo, e, quando ela abriu novamente, imediatamente se encontraram com o rosto desdenhoso e divertido de Lyubov. engoliu em seco, dando um passo para trás, se chocando contra uma parede de concreto queimado, confusa. Onde ela...? Quando...? Por que ela estava com tanto medo...?! — Lyubov estalou os dedos à frente de seu rosto, agora parecendo um pouco mais impaciente.
A outra bailarina já estava vestida com suas roupas de apresentação. O corpete delicadamente costurado à mão com os padrões florais que poderiam parecer delicados, mas que a intenção era puramente refletir algo assombrado. Um padrão delicado, mas que ainda assim passava a mensagem de forma efetiva.
Onde está Natasha? arriscou-se a perguntar, fazendo uma careta ao sentir o gosto de sangue pungente se espalhar ainda mais por sua boca e garganta. Ela segurou novamente sua garganta, praguejando baixo, arrependida de ter usado sua voz, mas então não tinha certeza de que estava realmente falando. Era como se ela tivesse exposto para Lyubov apenas uma intenção, ou, ao menos, tentado falar tal coisa, mas não estava ouvindo sua própria voz. Por que seus ouvidos estavam tão abafados agora? E por que sua garganta estava doendo tanto aquele dia? Que dia era...?
! — A voz de Lyubov ecoou pelos ouvidos de , de novo, em meio a um risinho baixo de outras duas bailarinas que só poderiam ser Katerina e Darya. tentou buscar em sua mente por que diabos Katerina e Darya não gostavam dela, mas a verdade era que ela só encontrou uma lacuna. — Kudrin resolveu mudar os papeis. Você agora é um dos fantasmas, não Giselle.
franziu o cenho. Como assim? Mas ela estava treinando tão duro, tinha decorado a coreografia e ensaiado por... por... meses? desviou os olhos do rosto divertido e desdenhoso de Lyubov e encarou o véu que tinha em suas mãos, o tocando com uma ponta estranha de letargia. Seus dedos percorreram o tecido, mas sentiu como se estivesse amortecida. Seus dedos percorreram a extensão do pano delicado, observando o véu apenas criar uma nota esbranquiçada em sua pele, enquanto farfalhava suavemente, os cantos das unhas dela enroscando-se perigosamente no material, ameaçando desfiá-lo por acidente. Mas ela apenas conseguia encarar sua mão... não eram suas...
Ela fechou e as abriu, sentindo o tecido se enrugar e contrair contra a palma de suas mãos, mas a sensação ainda era estrangeira. Os ouvidos dela estavam pulsando agora, as vozes desaparecendo ao longe, enquanto soavam abafadas, como se ela estivesse debaixo d’água. Sua respiração era o único som que reverberava alto o suficiente para que ela conseguisse escutar de fato. Seu estômago contraiu de novo, e de novo, e de novo, e ela sentiu a estranha sensação do suor começar a se formar em suas costas e pescoço gélido. abriu e fechou a sua mão, respirando pesado, sua visão de repente parecendo estar saturada, desconexa, estava mais vívida, mas igualmente embaçada. Por mais que tentasse focar seu olhar sobre algo, ela não conseguia de fato, parecia apenas... estrangeiro.
Ela ofegou, desorientada. Lyubov ainda estava falando alguma coisa. Tirando sarro das sapatilhas de ou comentando algo sobre como Natasha iria ser melhor no papel de Giselle com um tom condescendente, e, bem, bom para Natasha, certo? Mas não conseguia livrar-se daquele maldito loop. Sabia que deveria se arrumar o mais rápido possível, mas a sensação desesperadora de estar fora de seu corpo amortecia tudo ao seu redor, diminuía a prioridade e ela não sabia dizer ao certo se sequer conseguiria se concentrar em outra coisa no momento. Mas o show precisava continuar.
Então, a passos rápidos, ela caminhou em direção ao camarim, virando à esquerda e descendo rapidamente a escadaria de madeira, se apoiando contra a parede, enquanto tateava seu caminho cegamente. Ela prendeu a respiração com força, assim que conseguiu alcançar a porta certa, se agarrando à maçaneta de metal da porta, tentando, de forma desesperada, abrir a maldita porta e falhando miseravelmente. lançou-se contra a porta emperrada, sua visão embaçada demais para conseguir enxergar direito o que estava à sua frente, girando com mais força a maçaneta, até conseguir, usando seu próprio peso, empurrar a porta.
se desequilibrou, desabando no chão com um alto thud.
A luz a ofuscou. franziu o cenho, desorientada, sua respiração agora transformava-se em um pesado ofegar, irregular, e escapando mais rápido do que deveria por entre os lábios entreabertos dela. ergueu o braço esquerdo em direção ao seu rosto, a fim de proteger seus olhos da intensidade do holofote focalizado em seu rosto. franziu o cenho, lançando um olhar ao seu redor, os olhos dela cintilando com as lágrimas que começavam a se acumular, escorrendo por suas maçãs do rosto sem que ela sequer as sentisse.
Tecido agitava-se ao seu redor. O ruído das sapatilhas era alto o suficiente para que ela pudesse ouvir apesar dos ouvidos abafados por sua pulsação, enquanto as outras bailarinas disparavam ao seu redor, seguindo a coreografia. O véu cobrindo seu rosto apenas piorava a situação. Seu coração martelava dolorosamente contra sua caixa torácica, a adrenalina amortecendo a dor de seu calcanhar direito, que ela provavelmente deveria ter torcido com a queda.
Levou alguns breves minutos até que ela percebesse o que estava acontecendo ao seu redor. tentou se levantar o mais rápido que conseguia, tremendo, mas seus músculos estavam travados. Em cima do palco, ela podia sentir os olhares surpresos e até mesmo condescendentes da plateia voltados para ela. Soldados, sua maioria eram soldados de alta patente do exército vermelho, acompanhados de suas famílias, é claro, ou apenas sentados junto aos seus amigos. Soldados... por que diabos soldados estariam ali? tentou pedir por ajuda, voltando seu rosto na direção de Lyubov ou até mesmo Natasha, mas foi somente quando seu rosto capturou todos os espaços do palco que ela percebeu, em pânico, que estava sozinha.
A saia de sua roupa de apresentação farfalhou. O tecido, mesmo que fino e delicado, afim de oferecer um ar etéreo para a apresentação, arranhou sua pele de maneira desconfortável. Sua garganta estava doendo ainda mais, desta vez sufocando-a, enquanto ela tentava se lembrar de como se respirava. Ela poderia se arrastar para fora do palco, mas a imagem seria humilhante. Ela poderia tentar se levantar, mas não sabia por quanto tempo conseguiria se manter em pé: seu tornozelo estava latejando pela queda, provavelmente torcido, e ela tinha a sensação sufocante de que algo grosso, encorpado e líquido escorria por seus ombros e sua nuca. O que estava acontecendo? O que ela não estava vendo? O que estava falhando em perceber?
piscou uma, duas, três, quatro vezes, balançando sua cabeça e tentando desesperadamente arrancar de seu rosto o véu que cobria suas feições. As unhas se fincaram em sua pele, deixando para trás marcas avermelhadas, o tremor de seu corpo agora era mais violento, e ela tinha a sensação terrível de estar caindo sem ter lugar algum para se apoiar. Ela arrancou o véu de seu rosto, ofegante, e então os olhos dela se encontraram com uma plateia vazia, apenas um soldado presente.
Não... não, por favor... por favor... sussurrou em pânico, o observando não caminhar em sua direção, mas a arma que ele empunhava. A máscara preta cobria como uma mordaça a parte inferior do rosto dele, ocultando suas feições, enquanto o braço biônico esquerdo reluzia de forma esporádica conforme a luz dos refletores se encontrava com ele, projetando mais sombras em seu corpo e rosto, obscurecendo os olhos azuis esverdeados do homem. Os cabelos castanhos escuros, consideravelmente longos, pendiam por seu rosto, mas era a tinta preta espalhada ao redor de seus olhos que havia incomodado . Camuflagem. — Por favor, você não precisa... começou a implorar, se deixando cair para trás, e então usando toda a sua força para tentar se arrastar para longe dele.
Sabia que não poderia fugir do disparo se ele apertasse o gatilho, mas, ainda assim, vã e tola era sua esperança de ao menos manter uma distância possível entre si mesma e seu provável assassino. Ela soluçou baixo, as lágrimas agora pingavam a frente do corpete com pedras delicadas compondo sua fantasia branca, acompanhado pelo sangue que escapava de sua boca. O vermelho pungente do sangue dela escorreu por seu pescoço, rapidamente tingindo a frente de seu corpete branco em uma imagem nojenta, como se tinta tivesse sido acidentalmente derramada no tecido, o fazendo pesar contra a pele dela, cálido, encorpado, horrível.
Algo pulsou dentro dela, acompanhando seu coração.
O Soldado destravou a arma com um clic clac, subindo no palco. Suas botas pesadas deixando um rastro de neve e sangue enquanto caminhava na direção de . Ela pensou em implorar novamente, mas, desta vez, sua voz não saía de sua garganta. As costas dela se chocaram com a parede de concreto queimado, e ela não percebeu que bateu a cabeça contra a superfície. Ela ofegou, piscando algumas vezes quando seus olhos novamente ficaram embaçados demais para que ela percebesse qualquer coisa à sua frente, tremendo com força. Outra pulsação, reverberando por seus ossos, e por seu corpo, intensa.
apoiou a duas mãos contra a parede de concreto queimado, agora seu chão, enquanto as botas do soldado paravam a poucos centímetros de distância de seu rosto. congelou no lugar, suas unhas fincando com mais força contra o concreto, quebrando suas unhas, unindo suas sobrancelhas, tossindo com força. A dor insuportável em sua coluna revelava o buraco em seu estômago aberto, onde o primeiro disparo havia a acertado. Sangue tingiu o chão à sua frente, enquanto ela tentava se afastar dele. Não que ela fosse conseguir, de qualquer forma.
Por favor... implorou, soluçando baixo.
E o Soldado Invernal hesitou.
Por uma fração de segundos, encontrou com os olhos azuis esverdeados do homem, e, em meio ao silêncio, por breves impossíveis segundos, quase havia tido compreensão ali. viu surpresa, confusão e algo estranhamente vago como assombro, e ela tinha certeza de que ele não iria apertar o gatilho, embora o tenha feito antes. Por uma fração de segundos, ela quase teve certeza de que ele teria a ouvido, mas então algo mudou em sua expressão e os olhos azuis esverdeados tornaram-se mais obscurecidos, ameaçadores.
O Soldado Invernal usou a ponta de sua bota para empurrar o corpo de para trás, a fazendo virar a barriga para cima antes de apontar a arma na direção da cabeça dela. tentou negar com a cabeça, implorando para que ele não o fizesse, implorando por sua vida, implorando para que ele não fizesse...
Ele apertou o gatilho.
acordou com um grito preso em sua garganta.
Estava suando o suficiente para ter feito com que a fronha de seu travesseiro tivesse ficado umedecida, enquanto o vento gélido invernal russo adentrava pela janela parcialmente aberta. piscou algumas vezes, tentando entender onde estava e como havia parado ali. Os olhos dela se arregalaram enquanto ela observava as mãos dela, os braços, buscando por pistas, buscando pelo sangue que havia manchado o concreto. tocou seu tronco, verificando seu abdômen e sua cabeça, buscando pelos buracos dos disparos, mas a pele estava lisa. Ela passou os dedos por seus cabelos suados, tentando afastá-los de seu rosto, quando a porta de seu quarto foi aberta com força.
havia se preparado para defender-se, mas os olhos grandes, animados da garotinha, cintilando com animação e uma mistura de inocência infantil que chegava a ser dolorosa. Ela tentou forçar um sorriso para , enquanto a garotinha corria em direção à sua cama, com um sorriso largo, deixando à mostra as covinhas adoráveis que ela tinha em suas bochechas gorduchas e rosadas, rindo baixo, enquanto carregava Alpine em seus bracinhos.
Sestra! Sestra! Olha! Olha! Olhaaaa! riu baixinho, no ápice de sua animação infantil, esticando Alpine na direção de , a fim de mostrar o gato velho, branco e ranzinza vestido como um maldito elfo natalino, parecendo estar no limite de sua tolerância com a garotinha rindo de sua arte. — Posso levar comigo hoje?
Papa deixou você fazer isso? , tá machucando ele, por que fez isso? resmungou, com uma ponta de impaciência, mas, ao mesmo tempo, entendendo que a garotinha era apenas uma garotinha, e a responsabilidade de cuidar dela era de .
apertou os lábios com força, lançando um olhar breve na direção de , que ainda estava rindo, como a garotinha travessa que era, se jogando em sua came e se enrolando com o lençol de , se aninhando como um pacotinho antes de sentar novamente, balançando as perninhas para frente e para trás, animadamente. Alpine rosnou baixo, deixando os dentinhos à mostra, enquanto tentava retirar a fantasia que havia colocado no pobre gato.
Você vai ir hoje mesmo? questionou baixinho, encarando com um olhar sentido, e sentiu algo dentro de seu peito partir-se ao olhar o rostinho de sua irmã mais nova, e, por um momento, as palavras fugiram de sua boca. engoliu em seco, franzindo o cenho consigo mesma, terminando de retirar as roupinhas de crochê que ela havia feito para as bonecas de , e não o maldito gato, e o repousar no chão, antes de voltar-se para a menininha, a alçando com cuidado e a colocando sentada em seu colo, tentando abrir um pouco o lençol que ela havia se enroscado. — Não quero que você vá embora...
Eu sei, eu sei, mas eu não estou indo embora. Eu só estou indo ajudar Papa, hm? tentou dizer da forma mais suave que ela conseguia, afastando uma mecha do cabelo desgrenhado de com cuidado, observando o rostinho da irmã mais nova com uma ponta de pesar. tinha quase certeza de que não iria vê-lo mais, ainda assim, forçou um sorriso gentil, assentindo para a menina, tentando tranquilizá-la da forma que podia. — O papai vai voltar logo para casa, e a senhora Olga já disse que vai gostar ter você com os pequenos dela. Você mesma disse que gostava de brincar com Dima e Aliocha. E assim que me liberarem do treinamento, eu ainda vou poder voltar para visitar você antes de ir para o front.
fungou baixinho, se encolhendo contra , enquanto mantinha a cabeça baixa, encarando os pezinhos com um beicinho triste. suspirou suavemente, apoiando o queixo sobre a cabeça da garotinha, enquanto acariciava a costinha da menina, tentando reconfortar a irmã mais nova.
Você não vai voltar sussurrou, acusatória, e pressionou os lábios um pouco mais, inspirando fundo e tentando controlar suas próprias emoções. poderia ser uma criança pequena e ter preocupações simples, como atormentar Alpine e esconder doces debaixo de sua cama, ainda assim, não estava protegida das manchetes de jornal e das estações de rádio. havia tentado o máximo que conseguia deixá-la a salvo das notícias que chegavam dos fronts, afirmando que seu pai teria mandado uma carta informando se algo ruim tivesse acontecido. sabia, todavia, que isso era uma mentira, e que muitos dos soldados que estavam lutando nos fronts naquele momento, afim de tentar parar a ameaça alemã, não voltariam para casa. Muitos destes já deveriam estar mortos, e seria, por consequência, mais um nome. — Por que você vai me deixar sozinha? Você não vai voltar, e eu não quero ficar sozinha...
inspirou fundo, beijando a têmpora da garotinha, incapaz de dizer mais alguma coisa, especialmente, porque ela sabia que seria uma mentira.
Você não está nem mesmo aqui agora acusou, e franziu o cenho, confusa, o que diabos...? — Você não está aqui, . Você precisa acordar. Acorda, .
Acorda.


•••


SNOW | AGORA
Graz, Áustria.

O corpo dela desabou no chão com força, se esparramando pelo concreto queimado com espasmos.
Ela rolou no chão, suas costas nuas pressionadas contra a superfície sólida e gélida quando seu corpo novamente recebeu um espasmo. Suas costas se curvaram, a garganta dela trancando por um momento, enquanto ela buscava por mais ar. Os olhos rodaram por suas órbitas em convulsão. O cheiro pungente de carne queimada invadia suas narinas, o ruído elétrico ecoando por seus ouvidos, os amortecendo por um breve momento, antes de conseguir registrar o que diabos estava acontecendo ao seu redor. Ela se engasgou, arfando por ar, a tosse rompeu por sua garganta e boca, como garras dilacerando-a de dentro para fora. O sangue estava acumulando-se ao seu redor, a sensação elétrica que percorria sua pele não apenas reverberava por seus dentes. O ruído em seus ouvidos, alto e desorientador, aos poucos começou a diminuir, enquanto os olhos dela, finalmente, conseguiram se focar em algo.
Ela congelou no lugar.
virou o rosto para o lado, suas pupilas contraindo-se e se descontraindo, focalizando na presença de diversos sapatos agora parados à sua frente. Ofegante, tentou se levantar, mas a dor em sua cabeça foi lacerante, pulsando, se arrastando lentamente ao fundo de sua mente, destruindo e corroendo tudo o que encontrava pelo caminho. Ela tentou se levantar, mas seu corpo não estava respondendo, não estava obedecendo. As lágrimas, outrora presas, agora fluíam por seu rosto livremente, pingando contra o chão de concreto queimado, o manchando, se misturando com seu próprio sangue. Tudo doía, tudo pulsava e ela não tinha ideia do porquê!
Os músculos do corpo dela, doloridos, se permeavam por câimbras. Seu coração estava martelando de maneira errônea, acelerando subitamente e então pulsando devagar, fazendo com que a respiração dela se perdesse por sua garganta, soluços desesperados escapando por entre seus lábios entreabertos e o sangue que escorria por seu queixo. Era como se o próprio cérebro rejeitasse seu corpo, e uma parte de desejou desesperadamente arrastar-se para fora de sua própria pele. Desejou desfazer-se de cada músculo, de cada tez, até que lhe restassem apenas seus ossos, se isso fosse ao menos lhe dar o conforto breve de um segundo de paz.
A luzes pálidas da sala era ofuscantes e momentaneamente a cegaram.
Então mãos a agarraram com força, dedos fincando-se com brutalidade em seus braços e ombros doloridos, unhas lhe cortando a pele, a puxando para trás com força, a colocando de joelhos. Estava completamente nua, coberta por alguma coisa viscosa que não parecia apenas água e que escorria por seu corpo de forma nauseante. Mechas de seus cabelos pendiam por seu rosto, grudando contra sua pele, alguns fios adentrando em seus olhos, os fazendo arder, enquanto ela piscava inúmeras vezes para afastá-los de seu rosto. Os olhos ainda embaçados, identificando quase silhuetas, mas não feições, não características relevantes. Ela tentou se soltar das mãos que a seguravam, mas sentiu as unhas rasgarem sua pele com uma dor afiada, aguda o suficiente para mantê-la no lugar.
Ela prendeu a respiração com força quando a silhueta que se aproximava dela finalmente tomou forma. Os olhos de então encontraram-se com o rosto austero e estarrecido do homem. Os lábios finos apertados em uma linha fina. Os olhos penetrantes e intensos, com aquele tom amendoado nem verde, nem cinzento, fazendo com que ficassem mais escuros do que realmente eram apesar das luzes de led ofuscantes que envolviam o espaço. Os cabelos dele estavam perfeitamente alinhados, penteados, com mechas grisalhas pontuando os cabelos vermelhos. Os olhos dela repousaram em um pequeno crachá pendendo à frente do corpo do homem estranho, ainda familiar de certa forma.
J. Fennhoff.
franziu o cenho, confusa, com a sensação aterrorizante de que já havia o visto em algum lugar, ou em algum momento, mas sem saber ao certo de onde ela o conhecia, porque ela o reconhecia afinal.
Por uma fração de segundos, ele não havia feito nada, apenas a encarado em completo silêncio. De pé, parecia surpreendentemente mais alto do que ela gostaria que ele fosse, mais imponente do que deveria, o alarme de perigo retumbando pelos ouvidos de , os instintos dela suplicando por uma reação, para que ela fugisse dali, mas foi somente quando ele se colocou de cócoras à frente dela, afim de fazer com que seu olhar estivesse na mesma altura que o dela, analisando com cuidado a expressão de . inspirou bruscamente, trincando os dentes com força, o encarando, embora seu corpo inteiro gritasse para que ela simplesmente saísse correndo o mais rápido que ela conseguisse. Ela tinha a estranha sensação de que já havia o visto em algum momento, em algum lugar, mas sem saber ao certo de onde ela o conhecia, porque o reconhecia...
Por favor… me deixa ir... — ela implorou.
Sua voz não havia passado sequer de um sussurro. Rouca, áspera, baixa demais para ela sequer ouvir o que estava dizendo. A súplica havia escapado incoerente, um arfar doentio de alguém que não sabia identificar mais o que era realidade e o que não era. Uma prisioneira em seu próprio corpo, ou talvez em sua própria mente.
Senhorita ? ? querida, está me ouvindo? — Ela engasgou, prendendo sua respiração, enquanto fechava seus olhos com força. Seu instinto foi se afastar de Fennhoff, se debatendo contra os braços que a prendiam no lugar, tentando criar o máximo de distância entre ela e o toque dele, mas os dedos dele ainda repousaram em seu queixo, eles ainda se fincaram em sua pele. Ela soluçou, o ato escapando alto e inconscientemente por seu corpo, enquanto ele a forçava a encará-lo novamente. Os olhos amendoados de Fennhoff eram implacáveis, e, por um breve momento, ela apenas só o encarou, incapaz de reagir.
Houve então uma estranha calmaria, como se sua pulsação estivesse diminuindo, mas aquela onda que reverberava por seu corpo inteiro, pulsante e gélida, continuou.
Por favor... eu só quero voltar para casa... me deixa voltar para casa... — ela implorou novamente, mas, como em todas as outras vezes, sua voz foi completamente emudecida.
Um dos soldados puxou a parte de trás da cabeça de , a fazendo por uma fração de segundos encontrar com os olhos castanhos escuros do homem, e então ele prendeu no rosto dela uma máscara.
A máscara em questão era feita de um material resistente, maleável como tecido, mas firme como metal. Se fincava na pele da parte inferior do rosto de com força o suficiente para marcar e deixar vergões vermelhos, até mesmo cortar, mas, acima de tudo, funcionava como uma bem posta mordaça, a silenciando completamente. Sua respiração agora escapava com arfares baixos, pesados, por entre os pequenos buracos de sua máscara, um pouco mais alto do que deveria. Outra pulsação percorreu pelo corpo dela, e, desta vez, pareceu reverberar em Fennhoff e os outros soldados ao seu lado. Por uma fração de segundos, ela os sentiu.
Corações. Pulsando. Ritmados com os dela.
Você está ficando nervosa novamente, querida, preciso que inspire fundo e se acalme — Fennhoff comandou, com um tom de voz suave, aveludado, até mesmo convidativo, mas por que aquele homem havia deixado o corpo dela em completo estado de alerta e feito seu sangue percorrer suas veias como lascas de gelo? Ela estava tremendo, e não era porque estava nua, ou molhada, era ele. — Você está em casa, querida — Fennhoff sussurrou, desta vez limpando as lágrimas do rosto dela, a digital áspera enviando uma onda de náuseas involuntária para o corpo dela, o tremor aumentando, uma parte de sua mente, uma parte branca e repletas de lacunas, instintivamente implorando para se mover, para reagir. Gritava, esperneava com o perigo à sua frente. Mas... ela estava em casa. Por que ela teria medo de casa? — Abra os olhos, , olhe para mim — Fennhoff comandou, e acatou.
Ela abriu os olhos, mesmo contra sua própria vontade, mesmo com seu corpo implorando para que ela fizesse de tudo para escapar, para correr para longe de Fennhoff e das mãos do soldado que a mantinha no chão. Mesmo quando seus instintos segundos atrás eram resistir, revidar, obedeceu. Ela olhou para ele, uma parte de sua mente aos poucos relaxando, involuntariamente aceitando as palavras dele. Mas, por que...?
Você está a salvo. Somos uma família, eu e você. Somos um time, uma parceria. Você não tem que ter medo de mim, eu estou aqui para te ajudar. Eu sou seu amigo. Ela estava a salvo. Eles eram uma família, ela e ele, tudo o que ela queria naquele momento, alguém que pudesse ajudá-la a se lembrar, um apoio. Ele era sua família, ele estava ali para ajudá-la, era seu amigo! Ela não tinha que ter medo, por que diabos estava com medo?
Não, não somos...
O eco desapareceu ao fundo de sua mente, enquanto os olhos de se encontraram com os de Fennhoff. Bem devagar, quase congelada no lugar, ela assentia a ele. Por um breve momento, teve a percepção horrenda de não estar conseguindo controlar seus movimentos, como se seu corpo não lhe pertencesse, como se ele tivesse um comando próprio, um dono próprio. Como se ele pertencesse a... Fennhoff.
Essa é minha garota — Fennhoff disse categoricamente, e percebeu que ela era a garota dele. Ela fazia o que ele mandava. Ela não pertencia a si, mas a ele. Ela obedecia.Você vai me ajudar também, não vai? balançou a cabeça, concordando. — Bom, muito bom. Você quer saber por que eu despertei você? assentiu novamente. Eu quero que você encontre o Soldado Invernal, e eu quero que você o traga para mim. Você consegue fazer isso para mim, querida?
Sim, mestre.



RUSTED | AGORA
Las Vegas, EUA.

O banheiro não era pequeno, mas era sufocante.
A água da torneira esvaía-se em sua potência máxima, fazendo barulho o suficiente para abafar o ruído em seus ouvidos, para abafar a discussão de Steve e Sam sobre o que fariam com agora, para fazer com que a voz da mulher se tornasse apenas um ruído branco, mas não silenciava sua mente.
James piscou. Uma, duas, três vezes, tentando clarear sua visão, mas falhou outra vez.
Havia algo de errado, ele podia sentir.
Percorrendo por baixo de sua pele, rastejando e o arranhando, o dilacerando lentamente com uma sensação sufocante de amortecimento. Como se, mesmo que ele tentasse esfregar as pontas de seus dedos, mesmo que fincasse suas unhas, não sentiria nada. Aquela sensação familiar e distante de que seu corpo não lhe pertencia. Bucky abriu os olhos novamente, encarando seu reflexo, e, por um segundo, o que ele enxergou ali não era James Buchanan Barnes, ou o que havia restado dele; era o Soldado Invernal que o encarava de volta. Os cabelos cortados mais curtos havia sido uma vã tentativa da parte dele de tentar desvincular-se da imagem pessoal que possuía de si mesmo com o Soldado Invernal, mas seus cabelos já haviam crescido novamente e pendiam por seu rosto desalinhados. Algumas mechas um pouco maiores enrolando-se em sua orelha, enquanto os olhos dele pareciam ter dificuldade para focar em algo. A barba por fazer parecia ter ficado mais grossa apenas aquela semana, e Barnes se questionou se deveria a fazer, mais pelo desespero de livrar-se da sensação de estar vendo aquela parte de si estar falando mais alto.
Ele não conseguia dizer ao certo o que estava errado, mas podia sentir que estava deixando passar alguma coisa. Não era como se uma peça estivesse lhe faltando, mas, sim, como se uma peça estivesse oculta de sua visão, escondida tão cuidadosamente que sequer poderia dizer que tinha ideia de que existia, ou guardada segura o suficiente para que sequer sua sombra Bucky pudesse identificar. Era como amarrar um velho trapo ao redor de seus olhos e caminhar cegamente em um campo de batalha. Ele podia ouvir de onde os disparos estavam vindo, ele podia reconhecer de onde os gritos partiam, ele podia sentir o frio percorrendo por suas veias, transformando seu sangue em lascas de gelo, arranhando sua existência, enquanto seu coração martelava erroneamente em seu peito. Ele podia sentir a tensão de seu corpo, o obrigando a dar mais um passo, e então mais um, e mais um, em direção a um vazio de escuridão silencioso e enlouquecedor. Mas ele não sabia como retirar o trapo de seu rosto.
O que ele não estava enxergando dessa vez?
Bucky engoliu em seco, desligando a torneira quando a pia havia finalmente se enchido de água, e então estendeu sua mão esquerda, biônica, para pegar o balde de gelo que ele havia retirado do frigobar — havia sido a escolher aquele lugar, ela muito bem poderia pagar pelo gelo; seria o mínimo que a mulher poderia fazer por eles depois de ter tentado escapar duas vezes e quase custado a cabeça de Sam —, unindo suas sobrancelhas quando sua mão biônica se afundou em neve.
Bucky prendeu a respiração, se afastando de forma brusca do balde de gelo, o derrubando com um estrondo no chão do banheiro, ofegante. Os olhos azuis esverdeados se voltaram para a mão metálica como se esta estivesse em chamas, a abrindo e a fechando, com assombro, ouvindo os pequenos estalidos dos mecanismos da estrutura interna de seu braço biônico, e então, os olhos dele voltaram-se para o ponto em que o balde se encontrava, agora, no chão, espalhando o gelo pelo espaço inteiro. Bucky piscou algumas vezes, balançando sua cabeça, tentando despertar-se daquela sensação de amortecimento, quando seus olhos se encontraram com seu reflexo.
Seu coração martelava contra sua caixa torácica, acelerado, descompassado, estranhamente doloroso. Por uma fração de segundos, sua visão não conseguia focar-se em nada, apenas havia se tornado embaçada e um zumbido alto ecoou por seus ouvidos, os abafando como se estivesse abaixo d’água, ou, pior, de volta àquela maldita cadeira. O gosto amargo, denso por sua boca, agora era pungente e sufocante, o fez querer gritar. Ele inspirou fundo, tentando acalmar seu próprio coração, mas de pouco adiantava, a tensão ainda estava presente em seus músculos; ele tinha a sensação de que iria explodir, que a barragem invisível em sua mente que o mantinha a salvo iria escapar por entre suas mãos como água. Seus olhos se encontraram com seu reflexo, e Bucky franziu o cenho, surpreso.
Sua narina direita, levemente inflada pela força com que ele puxava o ar, estava sangrando. Bucky uniu as sobrancelhas, engolindo em seco, enquanto se aproximava devagar do espelho à sua frente. De forma instintiva, levou sua mão direita em direção à sua narina, observando com uma ponta de assombro o sangue deixando para trás uma pequena linha, enquanto deslizava por entre seu lábio superior, adentrando em sua boca. O gosto salgado e enferrujado de seu próprio sangue espelhando a textura cálida do líquido quando as pontas de seus dedos o tocaram.
Bucky Barnes raramente sangrava.
Se o fazia, não demorava muito para se recuperar. Era sempre mais provável que ele fosse acabar com manchas roxas do que com cortes ensanguentados por muito tempo. Mas a gota de seu sangue ainda caiu dentro da água límpida que ele havia juntado na pia, se espalhando e desaparecendo aos poucos. O zumbido em seu ouvido aumentou até ele ouvir um clique alto.
— James? — ela chamou. Bucky engoliu em seco, congelado no lugar.
Não teve coragem de virar-se. Sabia o que iria encontrar ali. Sabia que nada daquilo era real. Mas ainda assim, uma coisa era ele se convencer de que estava bem, saber que não havia mais mecanismo algum da Hydra para acionar o Soldado Invernal, outra coisa bem diferente era ter que lidar com os mecanismos de defesa que seu próprio cérebro havia desenvolvido ao longo do tempo para sobreviver.
— James, olhe para mim... — A voz aveludada dela ecoou como um convite tentador pelos ouvidos dele, um pedido silencioso, tão simples. Barnes trincou os dentes com força, irritado, fechando os olhos, mas, mesmo assim, ele podia sentir a presença dela ali. Podia sentir a ponta dos dedos dela gélidos, calejados, deslizando contra sua pele, como um toque fantasma, mal tocando-o de fato, mas deixando um rastro elétrico por sua pele. Ele sentiu aquela mão fantasmagórica percorrendo sua coluna, deslizando por suas omoplatas até chegar à sua nuca, os dedos enroscando-se em seus cabelos. Então ela puxou a cabeça dele para trás com força. — Quanto tempo vai levar até que você finalmente admita... — ela sussurrou ao pé de seu ouvido. Bucky trincou os dentes com força, tentando manter sua respiração normalizada, mas falhando miseravelmente. A sobrecarga de estímulos que pulsavam por seu corpo, a maneira com que o corpo dele sequer parecia compreender que aquilo não passava de apenas uma alucinação desperta por causa de ... uma fantasia de sua própria mente sobrecarregada atraindo-o para um buraco obscuro e sem escapatória, distorcendo sua própria percepção de liberdade, do sentimento de estar livre desde Wakanda... — Você... me... criou... James... Buchanan... Barnes...
Bucky engoliu em seco, trincando os dentes com força, sentindo um peso em seu peito ser depositado. De repente era como se houvessem toneladas dispostas sobre si mesmo, o empurrando com força para baixo, para um buraco escuro que consumia tudo e não retornava nada, o sufocando vivo.
Eu não fiz nada... ele queria suplicar à alucinação, mas ela não estava ali.
Aquela não era ela! Nunca seria! nunca seria nada mais do que um mero fantasma assombrando-o, mesmo quando ele acreditava que estava em paz. Mesmo quando ele sabia que estava bem e que deveria seguir em frente. Ela não estaria ali, como igualmente nunca receberia sua medalha por bravura. Ela nunca retornaria para sua casa, para mostrar ao pai quantos filhos da puta nazistas ela havia conseguido matar no front. Ela nunca contaria as histórias de guerra, ou cantaria aquela maldita melodia melancólica sobre noites frias em São Petersburgo. Ela nunca passaria de nada se não um maldito fantasma.
estava morta.
Ele havia a matado.
Bucky lembrava-se vividamente de como arrebentou a caixa torácica dela, de como ela havia o encarado, as lágrimas manchando seu rosto delicado, os olhos arregalados, os lábios entreabertos enquanto engasgava-se com o fluxo de sangue que pingava de sua boca, escorrendo por seu queixo, em uma busca desesperada por oxigênio que jamais conseguiria ser suprida. Ele lembrava-se de como seu braço biônico havia se fechado ao redor do órgão que pulsava. Em como ele havia a deixado cair no chão de cimento queimado como se não fosse nada melhor do que uma boneca de pano, quebrada, inútil. Lembrava-se de ter jogado o corpo dela no porão que eles haviam transformado em uma espécie de vala improvisada, onde os corpos dos subjetos falhos eram sempre descartados para a incineração.
O Soldado Invernal nunca falhava.
E ele havia tido certeza de que ela nunca escapasse daquele destino.
, por favor... — Bucky sussurrou em um quase tom de súplica. Tentando silenciar a voz dela, repetindo seu nome em um loop agonizante. Ele podia sentir sua respiração tão perto de seu rosto, gélida como neve, se debatendo com a mão fantasmagórica, tentando se livrar, tentando despertar daquele maldito estupor.
Bucky? — ela chamou contra seu ouvido, mesmo quando ele se lançou para frente, tentando enterrar seu rosto dentro da pia cheia de água, a fim de usar a água gélida, profusamente preenchida pelo gelo que havia pegado do frigobar da suíte de , para despertar-se daquele pesadelo. Uma tentativa desesperada de dar um choque a si mesmo, de livrar-se daquela maldita sensação de falta de controle, de acionar sua adrenalina. Mas a voz dela o acompanhou. — Bucky?!
Bucky ofegou, abrindo os olhos, se virando na direção da voz, apenas para encontrar Steve parado ali, na entrada do banheiro.
— Bucky? — A pergunta não feita, ensurdecedora entre os dois homens, enquanto o loiro adentrava no banheiro. James prendeu a respiração, quase de forma instintiva, não por medo de Steve Rogers, mas por causa de uma pequena repulsa gravada ao fundo de sua mente que o fez, ainda assim, dar um passo em direção à janela, contendo aquela eterna voz ao fundo de sua cabeça que o alertava para estar pronto para fugir. Não importava o quanto ele tentasse desligar aquela parte de sua mente, seu corpo estava condicionado a ela. — Você estava demorando — pontuou Steve, lançando um olhar cauteloso na direção da pia e então analisando as mãos fechadas de Barnes, em punhos, franzindo o cenho por consequência.
Bucky moveu sua mandíbula, franzindo o cenho, enquanto voltava-se para a pia, ligando a torneira outra vez. O movimento rápido o fez perceber como suas mãos estavam tremendo. É claro, isso não havia passado despercebido de Rogers; nada nunca escapava de Rogers.
— Estou bem, você não precisava ter verificado — Bucky mentiu. Steve estreitou os olhos, percebendo de imediato, mas sendo Steve Rogers, o loiro não respondeu de imediato. Ciente de que não seria uma boa ideia dar espaço para Steve questionar o que diabos estava acontecendo com ele, Bucky logo tratou de emendar: — Cadê o Sam? Deixou ele sozinho com ?
Apesar de tentar manter uma expressão de neutralidade enquanto esfregava suas mãos, as unhas fincando-se em sua própria pele e deixando vergões avermelhados com a força e o descaso que Bucky as lavava, seu tom de voz ainda havia soado preocupado com o outro amigo. Bucky gostava de fingir que odiava Sam e que sua implicância era provinda simplesmente pelo bem da implicância, mas estava se tornando um ato expirado a essa altura, e sua preocupação era genuína. Steve pareceu tentar conter um sorriso cúmplice com Bucky, que lançou um olhar de aviso para o melhor amigo para que ele escolhesse muito bem as palavras, porque Bucky não teria medo de usar seu braço biônico para acertá-lo.
— Eu fico fora por seis meses e você já me substituiu? — Steve resmungou, cruzando o braço sobre o peito largo, erguendo uma sobrancelha. Bucky encarou Steve com uma ameaça velada, erguendo seu braço biônico como se estivesse questionando silenciosamente “está duvidando?” e Rogers bufou, negando com a cabeça. Sua expressão divertida aos poucos derreteu em uma mais séria, contida, até mesmo cautelosa. Barnes não gostou do que viu ali. — Ele se ofereceu para ficar de olho na sua amiga enquanto eu vinha até aqui checar como você está.
Bucky encarou Rogers surpreso.
— Ela continua amarrada?
— Se soltou faz dez minutos, mas não vai atacar — Rogers disse antes de imediatamente tentar acalmar Bucky, cujo impulso de ir até lá e prender outra vez estava falando mais alto. Bucky trincou a mandíbula com força, um músculo movendo por baixo de sua pele, enquanto o homem continha um chiado entre dentes.
— Você não faz ideia de com quem você está lidando, Steve — Bucky rosnou baixo, inspirando fundo e deixando sair por sua boca, antes de apoiar-se na pia vazia. Barnes estreitou os olhos, observando o tremor de sua mão direita aumentar. Mas que por...?
Steve bufou, concordando com a cabeça.
— Seria mais fácil se você simplesmente me dissesse a verdade, James. — Bucky encarou o reflexo de Steve com frustração. Não era que ele não quisesse contar a verdade para o melhor amigo, era que ele não conseguia. Uma coisa era ele ter sido uma das vítimas da Hydra, posto sobre um local onde a Hydra havia o transformado e nada mais do que apenas uma arma, outra completamente diferente era admitir para seu melhor amigo que para poder salvar , ele tivera que ter certeza de que jamais viesse atrás da menina. — Como vou poder ajudá-lo se não me fala nada? Bucky, qual é, Bucky? — Steve deu um passo na direção de Barnes, e desta vez o moreno não se moveu, aceitando a aproximação. Ainda assim, não encarou Steve. A mão calejada de Rogers repousou no ombro humano de Barnes, a luva desgastada pelo uso contínuo, áspera sob a pele exposta de seu ombro, familiares. — Eu nunca vou abandonar você, James. Até o fim, lembra? Não são só palavras — Steve confessou, sua voz mais suave, agora. — Não para mim. Confie em mim.
Bucky não respondeu, mas seus olhos se fixaram na pia, culpado.
— Perguntei a Natasha sobre . — Steve quebrou o silêncio que havia se instalado ali por fim, e Bucky se voltou na direção do melhor amigo, irritado. Desta vez, Steve não se afastou, apenas sustentou o olhar que Bucky lhe lançava, o analisando com cuidado.
— O que Romanoff te falou?
Steve pareceu calcular por uma fração de segundos o que iria dizer para o melhor amigo, então seus olhos azuis claros se abaixaram brevemente.
— Que ela não faz ideia de quem seja — Steve respondeu devagar, os olhos voltando a repousarem nos de Barnes. — Mas ela conhece o sobrenome .
Bucky trincou os dentes com força, contendo o impulso de praguejar, desviando os olhos instintivamente quando Steve pronunciou , tentando conter as emoções que pareciam querer transbordar por seu rosto neutro, mas então obrigou-se a voltar a encarar o melhor amigo, sustentando o olhar dele. Seus olhos azuis esverdeados se moveram a fim de acompanhar os olhos do melhor amigo. E, por um longo momento, os dois ficaram apenas se encarando em completo silêncio; as palavras não ditas pesando entre eles como correntes, os amarrando pelos punhos e calcanhares, os puxando para afundá-los em um mar obscuro de mentiras, omissões e culpa, mas igualmente entrelaçando-se entre si, os prendendo juntos naquilo.
— Bucky. — Bucky viu nos olhos do melhor amigo que Steve não desejava pressioná-lo, mas igualmente não iria arrastar-se de forma tímida para longe das perguntas necessárias pelo bem de Bucky. Barnes engoliu em seco, sabendo qual seria a pergunta que seria feita a seguir, mas deixou que Steve a fizesse mesmo assim. — Quem é ?
Após um longo momento em silêncio, os olhos de Barnes se abaixaram para o peito do melhor amigo, onde antigamente costumava ficar uma estrela, agora revelava apenas um tecido revestido preto. O uniforme pesado militar, mas que não possuía mais nenhuma identificação, o lenço que envolvia seu pescoço, semelhante ao que se era usado no Iraque para proteger-se das tempestades de areia e, ao mesmo tempo, ocultar seu rosto, se protegendo de ser identificado.
Steve Rogers não era mais o Capitão América, era apenas um nômade.
E Bucky Barnes não era mais Bucky Barnes.
— Um fantasma.
Steve o observou em silêncio.
Se havia percebido a mentira, ou não, Bucky sabia que ele não demonstraria. Algo no estômago de Bucky se contorceu, como se estivesse vivo. Uma descarga de adrenalina percorreu por seu corpo inteiro, enviando uma onda gelada de choques por sua espinha. Steve apertou os lábios, parecendo considerar por um segundo o que diria a seguir, então indicou com o queixo na direção de Bucky, voltando a sustentar o olhar de Barnes, sem desviar.
— Mas quem é ela para você?
Bucky Barnes não soube responder.

•••


Surpreendentemente, as ameixas estavam mais doces do que ele esperava, mas não poderia dizer que estava saboreando-as com o olhar silencioso de preso em seu rosto. Bucky havia tentado ignorá-la a viagem inteira até ali. Havia tentado oferecer o espaço que sabia que ela deveria desejar e havia ignorado seus comentários. Mas não deixava de ter um gosto amargo observar a menina que ele havia salvado — talvez sua única redenção enquanto como Soldado Invernal — o encarar com aquele desprezo tão profundo. Bucky sabia que havia lhe roubado mais do que deveria, que havia a condenado de certa forma, mas, igualmente, não era justo que o tratasse daquela forma, não quando ele havia feito de tudo por ela, e faria novamente.
Bucky Barnes mataria de novo, e de novo, e de novo, se lhe desse a certeza de que estaria segura. Que estaria a salvo.
Mas ter salvo havia sido, igualmente, como a sentença de sua perda.
Bucky engoliu a ameixa que estava mastigando preguiçosamente, voltando seu olhar para a janela panorâmica do apartamento. Cortesia de , é claro, a quem havia desenvolvido um gosto muito apurado para as coisas finas da vida — um grande contraste com a postura e pensamento que a irmã mais velha dela tivera.
Las Vegas lembrava de certa forma um pouco New York. Uma cidade que nunca dormia, exceto que o local se encontrava no meio de um deserto árido, mesmo no inverno, possuía luzes e sons muito altos, e dormia, sim, de manhã. A vida noturna de Las Vegas pulsava, ofertando inúmeras possibilidades, diversos entretenimentos e convites. Seja lá qual fosse o entretenimento que lhe divertisse, certamente haveria ali. Era o local perfeito para se esconder não apenas os códigos, mas, igualmente, pessoas. Dentro de uma cidade turística, ninguém iria procurar por alguém deslocado e perdido.
Os olhos azuis esverdeados de Bucky percorreram momentaneamente a rua agitada de Las Vegas, antes de repousarem por instinto nos telhados dos outros prédios que se estendiam do outro lado da rua. Sentiu novamente aquele instinto de buscar alguma coisa ali, algo que estivesse errado, uma armadilha disfarçada de casualidade que não deveria ser percebida se você não fosse treinado para percebê-la. Por um breve segundo, algo havia chamado a atenção de Barnes, um lampejo rápido de cabelos chicoteando vento do outro lado de um prédio. Uma sombra projetando-se para a esquerda e então desaparecendo tão rápido que Barnes poderia facilmente alegar ter sido um vulto. Mas ele sabia perfeitamente bem que, naquele mundo, não haviam vultos, tampouco coincidências. O gosto amargo em sua boca retornou, corroendo a doçura da ameixa quando ele a engoliu, sentindo aos poucos seus sentidos voltarem a ficar em alerta.
— Fala sério, você tá mesmo acreditando em tudo isso, Steve? — Sam interrompeu com impaciência. A conversa da qual Barnes não participava finalmente atraiu sua atenção, o fazendo agarrar as cortinas e fechar a visão que se possuía da cidade inteira com a janela panorâmica, arrastando uma cadeira e retirando o boné de sua cabeça, se apoiando sobre o encosto.
Steve lançou um olhar silencioso para Bucky, como se estivesse questionando o que Barnes estava fazendo, embora uma parte do antigo Capitão soubesse o que James estava criando. Uma armadilha.
— Tá achando que eu estou mentindo? Tudo bem, não precisa acreditar em mim — retorquiu a acusação de Sam com um sorriso torto, se deixando recostar contra a cadeira, apoiando seu braço esquerdo no encosto, enquanto mascava de forma audível o chiclete. Os olhos de voltaram-se para os de Bucky, sustentando seu olhar de maneira desafiadora. Bucky engoliu em seco, trincando os dentes. Aquela não era mais sua garotinha... aquela não era mais a menina que ele havia salvado... — Até onde eu sei, é vocês que precisam da minha ajuda para chegarem até os códigos de Zephyr. Não o contrário. — Ela deu de ombros, desdenhosa, jogando seus cabelos para trás e então grunhido baixo, exasperada. — Ugh, como eu detesto esses merdas americanos! Tudo tem que ser sobre eles!
Você está mentindo, . — Bucky finalmente quebrou seu silêncio, cruzando os braços por sobre seu peito largo, enquanto os olhos azuis esverdeados voltavam-se para a loira. bufou, inclinando sua cabeça um pouco para o lado, cinicamente sustentando o olhar de Bucky, enquanto movia sua mandíbula de um lado para o outro com um estalo.
Magoei você? provocou, o comentário enviesado, embora dito em russo, possuía um tom reconhecível o suficiente para que Steve e Sam olhassem imediatamente para Bucky, cientes de que deveria ter sido uma retórica ofensiva.
Bucky trincou a mandíbula, encarando em um pedido silencioso: “não me obrigue a fazer isso”, ele queria dizer, mas , sendo quem era, é claro que não o ouviu.
Eu matei sua irmã, — cuspiu Barnes, com uma voz mais fria do que costumava usar. Uma voz familiar, todavia, uma voz que pertencia a ele. Ao Soldado Invernal. O sorriso de desapareceu lentamente. — Será mais fácil com você.
pareceu prender a respiração, se tensionando.
Doeu enxergar nos olhos dela a mágoa e até mesmo o medo pela situação em que se encontrava. Doeu perceber o quão vulnerável ela estava, mesmo com seus poderes e treinamento. Doeu ainda mais reconhecer no rosto de a garotinha que havia agarrado seu braço enquanto ele a empurrava para dentro do vagão de trem. Mas aquela garotinha já não era mais a mesma pessoa, e nem James.
Repete suas palavras, mas em inglês, desgraçado de merda retorquiu, com raiva, antes de voltar seus olhos para Steve. — Fala na frente dele, eu quero muito ver se ele continua acreditando que você tem salvação.
— Já chega! — Sam grunhiu, irritado. — Você tá puta porque perdeu alguém importante para você? Bem vinda à porra do clube, loirinha! Todo mundo aqui perdeu alguém importante. Isso não dá o direito a você de agir como se somente você importasse. Quer ser egoísta, então seja, ninguém aqui está te impedindo, mas tenha pelo menos a decência de parar de fingir que é a porra de uma vítima. A forma que a gente reage a essa merda é o que importa. Se você escolheu ser miserável, não culpe ninguém mais se não você mesma. — A impaciência na voz de Sam pegou Barnes desprevenido, que encarou em silêncio o amigo.
— São palavras corajosas — respondeu lentamente, voltando seu olhar para Barnes, desafiadoramente — para um bando de anestesiados emocionais. Vocês sabem o que criam? Brincando de heróis por aí, como se isso fosse redimir os monstros que são? Por favor, o que vocês possuem de heróis, qualquer outro idiota militar o tem...
— Se nos detesta tanto assim, poderia simplesmente ter desaparecido, — Steve retorquiu, com um olhar severo, mas não menos compreensivo. Bucky tensionou sua mandíbula com um pouco mais de força, sentindo o peso de suas palavras alguns momentos atrás e se questionando se não teria razão, afinal. Se Steve Rogers o ouvisse realmente, ainda seria seu amigo? — E, no entanto, aqui está você, presa conosco neste quarto, nos guiando em direção ao inimigo. Pode tentar nos antagonizar, mas não pode fingir que não precisa de nós também.
— Devo lembrar você de que me arrastaram para cá? — respondeu, com um tom incrédulo.
Steve estreitou os olhos, assentindo.
— Mas sempre foi livre para deixar este quarto a hora que quisesse. Você não o fez até agora — Steve apontou, e trincou a mandíbula, fazendo uma careta, percebendo tardiamente que havia sido pega com as mãos sujas. Bucky observou os olhos dela se moverem rapidamente de um lado para o outro, como se estivesse calculando o que diria, e se tensionou. — Por quê?
não respondeu.
O silêncio se arrastou pelo espaço como uma ameaça de implosão. A irritação era como estática pairando pelo ar, percorrendo pela pele de Barnes, fazendo os pelos de seu braço e nuca se arrepiarem.
— Porque ela quer se vingar — James disse, por fim, quebrando o silêncio e então lançando um breve olhar de volta para a janela, mais por precaução do que qualquer outra coisa, antes de voltar a aproximar-se de onde estava. Parou a frente dela, e, mesmo que agora fosse uma adulta completa, talvez bem mais velha do que sua aparência física lhe apresentava, uma parte traidora da mente de James ainda conseguia enxergar a garotinha que ela havia sido. Aterrorizada com a visão da irmã mais velha transformada em monstro. O olhar de Bucky se endureceu, enquanto os punhos se fechavam em punhos firmes. Todo mundo aqui havia perdido alguém de fato... — É por isso que você está fazendo isso tudo, não é? Está ganhando tempo dificultando e nos distraindo.
revirou os olhos, se colocando de pé, mas, mesmo assim, não era tão alta quanto Bucky, e certamente não era mais rápida ou forte que o Soldado Invernal.
— Você fez muitos inimigos, Sargento Barnes rosnou entredentes, mas com uma ponta sarcástica escorrendo por seu tom de voz contido. Então ela bufou, inclinando sua cabeça para trás. — Tá, tá, tudo bem, eu levo vocês até um cara que sabe sobre essa merda de código, mas, depois disso, vocês estão por sua conta. E, sinceramente, se vierem atrás de mim outra vez, eu não vou me importar em executá-los, sabe? Exatamente como me treinaram para fazer.
— Quem é ele? — Steve questionou com uma ponta de desconfiança.
— Pode parecer uma surpresa para você, Rogers — começou a dizer, se espreguiçando com uma careta, antes de suspirar pesado, girando em seus calcanhares e andando de costas até a janela panorâmica. Bucky se tensionou no mesmo segundo, encarando a mulher com atenção, quase vidrado, tentando encontrar a armadilha na postura dela. — Mas você nunca foi e nunca será outra coisa se não uma arma biológica. Quando vocês, americanos, tiveram o sucesso com o Miss América aqui, começou uma corrida armamentista mundial biológica. Cada país desejou ter um para si, e nós não estávamos atrás somente da fórmula para enfrentar um inimigo, o melhor que você pode fazer é se tornar um deles. Como Barnes bem sabe, nós nos infiltramos em todos os países chaves que nos eram oponentes na época. Estes agentes são chamados de Agentes Dormentes, vocês sabem o que eles fazem. Fingem que são residentes, pessoas normais, até o chamado para ação. Os códigos foram divididos entre eles, Zephyr não é a continuação do Projeto Soldado Invernal, é a melhora dele.
— Nós?
deu de ombros, desdenhosamente.
— É difícil não pensar dessa forma quando vocês fazem com que estrangeiros se sintam tão bem-vindos aqui — ela retorquiu, revirando os olhos, e Sam bufou, erguendo uma sobrancelha ao encarar .
— Você quer dizer isso bem para mim, loirinha? — Sam apontou, e, pela primeira vez em todo o tempo desde que haviam a encontrado no Circo em Coney Island, deixou um sorriso torto surgir por seus lábios, balançando a cabeça de forma suave, em concordância com o herói. Bucky engoliu em seco, estreitando os olhos, reconhecendo a camaradagem silenciosa. Uma pílula amarga para engolir, mas, ainda assim, necessária de ser engolida.
— O nome dele é Mikhail. É um dormente, um bêbado idiota que não serve para nada, mas ainda assim é um KGB, e um dos perigosos, devo ressaltar — pontuou, tensionando a mandíbula, enquanto cruzava os braços sobre o peito, dando de ombros. Os cantos de seus lábios se repuxaram para baixo, nem desdenhosos, mas certamente, não era amigáveis. — Não tem como chegar ao Mick sem passar pelo Patch, então, vão ter que confiar na minha palavra e fazer exatamente o que eu disser para fazer. — deu de ombros, voltando seu olhar para Bucky, com uma ponta sombria pairando por seus olhos prateados. Uma nota velada de perigo que se misturava com um divertimento sombrio. — O Patch pode ser meio temperamental, ele se ofende muito rápido.
— Por que você não está planejando nenhuma merda além disso, não é? — Bucky retorquiu, com uma expressão cínica, observando o sorriso de se tornar um pouco mais afiado.
— Olha a língua — Steve cortou Bucky, instintivamente. Bucky lançou um olhar de soslaio para Steve, e Steve uniu as sobrancelhas, pigarreando, tentando manter o pouco da dignidade que ele havia acabado de perder na frente de seus amigos e , piscando algumas vezes antes de cinicamente apontar para . — Não se fala isso na frente da dama.
Sam lançou um olhar cético para Steve.
— Educação não parece funcionar para essa aqui, Cap.
revirou os olhos, mas seu rosto estava voltado para Barnes, sustentando o olhar dele com aquela expressão irritante de desdém, raiva e desprezo. O exato olhar que o fazia lembrar do porquê ele não desejava associar a si mesmo com a imagem do Soldado Invernal, e porque não conseguia escapar disso. O olhar que despertava sua culpa; o olhar que ele oferecia a si mesmo.
— Ato e consequência, Barnes — disse, por fim, devagar. — Você deveria saber disso, foi você quem me ensinou.
— Te ensinei mais do que isso — Barnes retorquiu, com um tom de voz amargo, e bufou, forçando um sorriso afiado, mas seus olhos, silenciosos, pela primeira vez pareceram hesitar, ainda que por uma mísera fração de segundos. — Vá em frente, estamos bem atrás de você.
desta vez não chegou a responder, apenas negou com a cabeça e passou por Barnes, acertando com força seu ombro com o dela. Bucky a acompanhou com o olhar, observando como ela se movia. Era um evidente contraste com a menina que ele se lembrava vagamente. andava com força, firmeza, como se desejasse se fazer percebida, mas, ao mesmo tempo, Barnes podia perceber como aquilo era mais do que aparentava. pisava com todo seu peso no chão, como se esperasse um ataque vindo de qualquer lado, por qualquer um. Mesmo que ele tivesse a salvado da Sala Vermelha, e de sua própria irmã, ela ainda havia seguido pelo mesmo caminho que havia sido direcionada: uma arma.
Um tapa em seu ombro despertou Bucky de seus próprios pensamentos, o fazendo silenciosamente assentir para Sam, caminhando em direção aonde ele havia deixado sua própria bolsa militar com seu uniforme, se vestindo o mais rápido que conseguia, enquanto verificava a quantidade de munição e se assegurava de ocultar quantas facas precisava por precaução. Havia ficado decidido que Sam e Steve ficariam para trás, Steve os esperaria na entrada, enquanto Sam estaria nos telhados, lhes dando cobertura. Apenas e Bucky adentrariam no bar, em busca desse tal Patch, para evitarem chamar mais atenção do que já deveriam estar o fazendo.
O lugar se chamava Bar da Princesa, e Patch era seu dono.
O cheiro do charuto misturava-se com o aroma pungente do whisky e do suor corporal que se espalhava pelo espaço. O bar possuía uma estrutura mais rústica, feita de madeira, embora misturasse mármore e porcelanato com paredes espelhadas para parecer bem maior. A maioria ali estava interessada nos jogos de cassino que se encontravam logo na entrada, mulheres em vestidos de sedas, homens com paletó, ou simplesmente turistas rindo alto, bebendo bebidas alcoólicas e tentando sua sorte da forma que conseguiam — fossem nas roletas, ou nas máquinas caça-níqueis. Mais ao fundo, após passar por uma porta dupla de madeira esculpida a mão, eles se deparavam com a entrada para o Bar, mesas de madeira com alguns motoqueiros e pessoas de reputação questionável. Um homem, talvez mais novo que , cajun, girando um baralho de cartas em suas mãos, as jogando de um lado para o outro, distraído, se encontrava sentado em uma das mesas próximas à entrada. Tinha cabelos longos, castanhos, mas mais vívidos do que os de Barnes. A barba feita por fazer, pele bronzeada, e bonito — o tipo de cara que sabia que era atraente e usava isso para sua vantagem; cafajeste e trapaceiro até o último fio de cabelo. Mas o que mais impressionava Barnes eram seus olhos.
Suas órbitas eram completamente pretas, mas a íris de seus olhos eram vermelhas, pulsando com energia.
, , , mon cher. — O homem abriu um sorriso preguiçoso, os olhos de íris vermelhas pareceram cintilar com energia contida ali, e Bucky sentiu suas mãos se fecharem em punho, lançando um olhar na direção da nuca de , mas não o encarou. O sotaque cajun do mutante ecoando de forma pesada por seu inglês. — A boa filha à casa sempre torna. — Ele estalou a língua com um risinho baixo, prendendo o palito no canto de sua boca, a fim de voltar a mascá-lo. permaneceu cinicamente calma.
— Cadê o Patch, Remy?
— Esperando por você ali dentro, mas, se eu fosse você, teria cuidado, ele não tá muito sociável hoje. — O tal Remy deu de ombros, voltando a recostar-se contra a cadeira em que estava sentado, indicando com um aceno de cabeça em forma de cumprimento para Barnes, e um flash de sorriso crepitou nos cantos dos lábios de Remy, discreto demais para ser percebido de imediato, mas Bucky percebeu, e percebeu igualmente como o homem havia girado por entre seus dedos a carta em suas mãos, as pontas dos dedos iluminando-se com o mesmo brilho que faziam seus olhos estranhos cintilarem.
Havia algo de errado ali. Algo que ele não estava percebendo ainda.
Eles atravessaram o portal abobadado da entrada para o que parecia ser a entrada da adega do bar, com a iluminação de fundo amarelada levemente precária oscilando de um lado para o outro. Prateleiras e mais prateleiras de variadas bebidas alcoólicas se espalhavam pelo que parecia ter sido outrora um salão, mas agora havia sido adaptado para servir como adega e estoque. A temperatura estava mais baixa. Barnes uniu as sobrancelhas, observando o termostato marcar o número 16º antes de voltar sua atenção para a parede ao fundo, onde um homem se encontrava praticamente deitado sobre a cadeira de madeira velha, as pernas cruzadas estendidas tinham os calcanhares apoiados sobre um dos barris de madeira de chopp, o chapéu de cowboy preso em sua cabeça, ocultando quaisquer visões que Barnes poderia ter de seu rosto, embora fossem visíveis as costeletas bem pronunciadas. Um charuto pendia do canto de sua boca preguiçosamente tragado, enquanto usava um tapa-olho sobre o olho esquerdo, e uma blusa de flanela xadrez, laranja, marrom e branca, estava com as mangas arregaçadas, revelando antebraços estranhamente peludos, embora fossem as mãos que tivessem chamado a atenção de Barnes.
Entre os nós dos dedos, haviam fissuras.
Um sinal de alerta se acendeu ao fundo da mente de Bucky, que voltou seu olhar imediatamente para as costas de . O que diabos...
— Cê não devia tá aqui, bob — o homem rosnou entre dentes, tragando o charuto bem devagar, sem erguer sua cabeça na direção de , mas, ainda assim, a inclinando para a direita e fungando algumas vezes. Bucky sentiu sua pulsação começar a aumentar ao perceber, tardiamente, que o homem estava farejando o ar.
— Olá para você também, Logan.
O sangue de Bucky Barnes congelou quando o cumprimentou. Barnes prendeu sua respiração, se tensionando no mesmo segundo. Imprimiu ainda mais força em seus punhos cerrados, agora trêmulos, os olhos azuis esverdeados voltando-se para com uma injúria crescente e uma expressão de pura traição. Então esse era o jogo de ?
Mais uma farejada no ar, franzindo o nariz, e então, Logan, o Wolverine, deixou suas garras deslizarem por entre os nós de seus dedos, erguendo sua cabeça, os olhos azuis cinzentos finalmente encontrando-se com o rosto de Barnes, cuspindo seu charuto ao levantar-se. Havia uma mistura de fúria animalesca má contida no olhar do mutante com desejo por retribuição e uma amargura profunda. Wolverine estalou seu pescoço, deixando seus dentes à mostra, mais de uma forma animalesca do que um sorriso amargo de fato, enquanto seus olhos permaneciam fixos, vidrados, no rosto empalidecido de Bucky.
Finalmente — Wolverine rosnou. — Cê é meu.
Então ele avançou na direção de Bucky.

1 O Bar da Princesa se localiza, originalmente, em Madripoor. Foi adaptado aqui para melhor encaixe na história.


Continua...


Nota da autora: Sem nota.

🪐



Se você encontrou algum erro de revisão ou codificação, entre em contato por aqui.
Para saber quando essa fanfic vai atualizar, acompanhe aqui.


Barra de Progresso de Leitura
0%