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Codificada por Lua ☾
Última Atualização: 30/05/25

O verão em Londres nunca pareceu tão cinzento para mim.

A princípio, pensei que fosse o céu carregado — aquela névoa teimosa que se pendura nas janelas e sufoca o horizonte. Ou talvez fosse só saudade das montanhas quentes de onde vim, onde o céu sempre parece mais próximo da terra. Mas, no fundo, eu sabia. O mundo bruxo estava mudando. E não era para melhor.

Minha vida mudou completamente quando fui transferida de Uagadou para Hogwarts no terceiro ano. A transferência foi parte de um acordo silencioso entre o Ministério da Magia britânico e o Conselho Mágico Africano — um esforço para fortalecer alianças e trocar conhecimentos diante do crescimento de forças sombrias na Europa.

Meu pai, Jabari , tem pais africanos, mas nasceu na Inglaterra, era ex-aluno de Hogwarts e integrante do Departamento de Execução das Leis da Magia. Durante uma conferência internacional sobre combate às Artes das Trevas, ele conheceu minha mãe, Thandiwe — uma bruxa poderosa e estrategista do Conselho Mágico Africano.

Eles se apaixonaram rápido. Tão rápido que, poucos meses depois, meu pai deixou tudo para trás e se mudou para o Malawi com ela. Lá, reconstruíram a vida, formaram família e se tornaram aurores altamente respeitados por toda a comunidade bruxa do sul da África.

Então, quando o acordo entre os dois ministérios foi firmado, eles aceitaram. E eu… bem, eu não tive muita escolha além de seguir com eles.

Lá em casa, sempre me ensinaram que magia era adaptação — movimento, escuta, resposta. Mesmo assim, nada me preparou para o frio das varinhas britânicas, tão frágeis diante da força ancestral que crescemos respeitando. Os uniformes pesavam nos ombros como se quisessem me dobrar. Os corredores de pedra pareciam desconfiar da minha presença.

E os alunos… Bem, muitos me olhavam como se uma bruxa africana, sangue puro, herdeira de uma das linhagens mágicas mais antigas do sul, não devesse estar ali. Como se minha existência fosse um detalhe fora do roteiro deles.

Mas tudo ficou mais suportável quando conheci Harry Potter.

Ou melhor — quando o reencontrei.

Eu o tinha visto quando tinha onze anos, acompanhado de Hagrid, em uma rápida visita ao Beco Diagonal com meus pais, durante uma temporada em Londres. Lembro da confusão de lojas, das vozes se sobrepondo, e então dele: um menino franzino, olhos arregalados, uma cicatriz inconfundível na testa. Na época, pensei que era só uma história andando entre as pessoas. E talvez fosse mesmo.

Hermione me observou com desconfiança por duas semanas inteiras. Rony me irritava diariamente com sua combinação infalível de piadas ruins e boca cheia de torta. Mas com o tempo... nós quatro nos tornamos um tipo estranho de família. Um quarteto improvável, costurado por feitiços, sarcasmos, segredos — e, agora, medo.

O retorno de Voldemort.

A morte de Sirius.

O mundo tremia, mesmo quando os jornais insistiam em negar. E eu sentia tudo isso no corpo. Nos sonhos. Como se os próprios ossos pressentissem tempestades.

— Vai ser um ano longo — murmurei para mim mesma, enquanto amarrava os últimos rolos de pergaminho com um feitiço simples e automático. A mala já estava quase pronta, os livros alinhados, o grimório bem guardado. — Tomara que pelo menos o Snape não esteja insuportável.

Mas no fundo, eu sabia.

O sexto ano traria mais do que trevas.

Traria também verdades enterradas, beijos inesperados e a dolorosa, inevitável certeza de que amar alguém durante uma guerra mágica pode ser o feitiço mais perigoso de todos.

O céu de Londres parecia mais baixo naquela tarde.

As nuvens se acumulavam no céu como se estivessem prestes a desabar a qualquer momento. Do segundo andar da casa, encostada no parapeito da janela, eu observava tudo em silêncio — os cotovelos apoiados na moldura fria, os olhos perdidos na paisagem cinzenta de Londres.

Já fazia dois dias desde que eu havia retornado de Malawi. Passei as férias de verão ao lado dos meus primos e amigos de infância, rindo alto sob o céu aberto, comendo frutas direto das árvores, estudando magia ancestral com minha tia mais velha, e fugindo do calor com feitiços de resfriamento ensinados por minha avó. Foram dias cheios — de sol, de barulho, de vida. E agora... tudo parecia suspenso. Como se o mundo estivesse apenas esperando algo ruim acontecer.

No andar de baixo, ouvia os passos dos meus pais, Thandiwe e Jabari , andando de um lado para o outro. Ser aurores nunca pareceu tão perigoso quanto agora. Desde que Voldemort voltara à ativa, nossa casa raramente passava um dia sem que alguém da Ordem da Fênix aparecesse. Mapas, recados cifrados, livros antigos e poções ficavam espalhados pela sala como se fizessem parte da decoração.

Meu pai estudou em Hogwarts na mesma época que Tiago Potter, Sirius Black e Remus Lupin. Eles não eram exatamente melhores amigos — segundo ele, ninguém era, a não ser entre si —, mas compartilhavam algumas aulas, partidas de Quadribol e uma certa rebeldia que vez ou outra o colocava em encrenca com Filch.

Foi essa conexão antiga que reacendeu os laços com Dumbledore anos depois, quando ele e minha mãe foram convidados a integrar a Ordem. De certa forma, era como se tudo estivesse conectado desde antes de eu nascer.

Suspirei, distraída, enquanto os dedos brincavam com o pingente em forma de lua pendurado no meu colar — um amuleto de proteção que herdei da minha avó materna. Era feito com magia antiga e tinha runas gravadas em um idioma que eu só começaria a entender anos depois de chegar a Hogwarts.

! — chamou minha mãe, batendo suavemente à porta. — Tonks acabou de aparatar no quintal.

— Já estou descendo.

Me afastei da janela com certa relutância e peguei o casaco jogado sobre a cama. A mala já estava pronta. Não que houvesse muita coisa a levar — sempre fui organizada — mas, naquele ano, até as coisas simples pareciam mais pesadas. E eu não sabia dizer se era o conteúdo da mala… ou o que eu mesma estava carregando por dentro.

Desci as escadas devagar. Encontrei meus pais na sala, os dois em trajes de missão: túnicas reforçadas, botas resistentes e varinhas sempre à vista.

— Se cuidem — pedi, abraçando os dois com força.

— Você também. E não baixe a guarda nem por um segundo — advertiu meu pai, ajeitando meu cachecol com um carinho contido. — As coisas estão piorando. Não sabemos exatamente o quê, mas... está se movendo.

— E confie no que sente — completou minha mãe. — A magia de Uagadou é ligada à intuição, você sabe disso. Seu corpo percebe antes da sua mente.

Assenti em silêncio. Às vezes, sentia que eles sabiam mais sobre mim do que deixavam transparecer.

Foi quando ouvimos o som de passos no quintal.

— Tá aberta! — gritou meu pai em direção à porta dos fundos.

Tonks entrou devagar, os ombros curvados e os cabelos em um tom castanho apagado, quase sem vida — bem diferente do rosa vibrante que eu sempre admirei nela. Ela sorriu, mas era um sorriso que não chegava aos olhos.

— Oi, pequena Corvinal — disse com a voz mais baixa que o normal. — Pronta pra mais um ano de confusão?

Hesitei um segundo antes de sorrir de volta.

— Se for menos confuso que o anterior, já estarei satisfeita.

Nos abraçamos, mas algo estava diferente. O corpo dela parecia mais rígido, menos caloroso. Notei. Era como se ela estivesse se segurando para não desmoronar.

— Você tá bem? — perguntei baixinho, ao me afastar. Ela riu, sem humor.

— Claro que tô. Só… cansada. Vida de auror, você sabe.

Assenti, mas continuei observando-a por um instante. Talvez fosse o modo como os olhos dela evitavam contato direto. Ou o fato de parecer menor dentro da própria capa.

Ainda assim, havia ali uma intimidade que o tempo não quebrava. Tonks sempre foi uma das poucas pessoas da Ordem que eu considerava amiga — e uma figura que, até pouco tempo, parecia inabalável.

Enquanto caminhávamos até a calçada, uma TV ligada na casa vizinha capturou minha atenção por um instante. O som escapava pela janela aberta:

“...estranhos desaparecimentos continuam a intrigar a polícia. Autoridades dizem não haver pistas, mas moradores relatam aparições estranhas, luzes no céu e sumiços repentinos...”

Tonks percebeu que eu tinha parado e olhou na mesma direção.

— Você sente também, né? — perguntou, com a voz baixa e rouca. Como se falar aquilo fosse difícil. Demorei alguns segundos para responder.

— Como se o mundo estivesse… se contorcendo por dentro. Sim. Sinto. — Ela soltou um suspiro pesado, olhando para o chão.

— Você tem o dom, . Nunca ignore isso.

Virei o rosto para ela, mas Tonks já tinha endireitado a postura, como se tentasse se recompor por fora para esconder o que se despedaçava por dentro.

E então, aparatamos.

Naquela fração de segundo entre sumir e reaparecer, senti algo gelado passar por dentro do peito. Não era só a mágica do transporte. Era uma sensação que vinha crescendo desde o fim do último ano. Como um aviso sussurrado em outra língua.

Reapareci na calçada de King's Cross. A chegada à estação foi menos caótica do que imaginei — considerando que Tonks quase tropeçou, mas não esboçou o costumeiro bom humor.

— Nada como começar o dia com elegância — provoquei, pegando minha mala. Ela forçou um sorrisinho.

— Pelo menos não apareci dentro do armário de vassouras como no ano passado… — ela tentou brincar — Agora vai. Seus amigos estão por ali — disse, apontando sem muito entusiasmo. — E… me manda uma coruja, tá?

Assenti, mas demorei um segundo a mais para me afastar. Algo nela estava quebrado. E por algum motivo, senti que aquilo ainda importaria.

Ajustei o colar sob o cachecol e segurei firme a alça da mala. Cruzei o saguão, desviando dos trouxas apressados com malas e cafés nas mãos. Eu sabia o caminho. Sabia o ritmo da respiração para atravessar a parede com naturalidade. Sabia até o ponto exato da plataforma onde o vapor do trem fazia redemoinhos no ar.

Mesmo assim, meu coração deu um salto quando vi uma mancha ruiva e um cabelo castanho familiar do outro lado.

! — Hermione acenou com entusiasmo. Rony, ao lado, parecia entediado, com a mala escancarada aos pés.

— Estavam planejando embarcar sem mim? — perguntei, sorrindo. — Que feio.

— A gente estava planejando, sim — disse Rony, já vindo para um abraço desajeitado. — Mas a Hermione achou que você ia aparecer e me obrigou a esperar. Como sempre.

— Que bom que ainda obedece, Rony. Um dia você vai ser um ótimo labrador — retruquei, erguendo a sobrancelha.

Hermione riu. Rony bufou.

— E você ainda com essa ironia matinal. Já posso sentir o cheiro de café e sarcasmo no ar.

— São os dois pilares da minha personalidade.

Hermione nos observava com carinho, e por um momento, a leveza parecia quase real.

Quase.

Porque no instante seguinte, senti aquele frio estranho de novo. Uma mudança no ar. Me virei antes mesmo de ouvir a voz.

— Oi. — disse Harry, se aproximando.

Ele estava diferente. Não exatamente no rosto, mas no jeito como caminhava, no peso nos ombros, nos olhos mais fundos do que no verão anterior. E quando nossos olhos se encontraram, senti como se o tempo tivesse desacelerado só o suficiente para que o silêncio dissesse tudo o que não conseguíamos.

— Harry — murmurei, com um aceno quase contido.

— respondeu ele, sem desviar o olhar.

Por um momento, ninguém disse nada. Hermione limpou a garganta, como se quisesse cortar o ar com alguma frase inteligente, mas só ajeitou a alça da bolsa.

— Vocês dois vão se encarar o ano todo? — perguntou Rony, impaciente.

Ri, embora meu coração ainda estivesse acelerado. Harry desviou o olhar com um sorriso contido, colocando a mala no chão.

— Vamos entrar? — sugeriu Hermione, já puxando a gente para o trem.

Enquanto caminhávamos até a porta do Expresso de Hogwarts, mantive os olhos fixos no chão de pedras.

Mas, no fundo, eu sabia.

Aquele olhar — aquele breve segundo a mais — ia ecoar por dias.

Ou meses.



O compartimento era pequeno demais para tanto silêncio.

Hermione fingia ler um livro. Digo fingia porque eu conheço aquele franzir de sobrancelha dela quando está distraída demais para absorver uma linha sequer. Rony mordiscava uma caixa de Sapos de Chocolate com a concentração de quem tenta decifrar um enigma bruxo. E eu… eu encarava a paisagem cinzenta pela janela, mas meus olhos não viam nada de fato. Harry estava sentado bem à minha frente. Quieto. Mais quieto do que o normal — e vindo dele, isso já era dizer muito.

O trem ganhava velocidade, serpenteando pelos campos como um bicho enorme, bufando vapor e estalos a cada curva. Estávamos, mais uma vez, a caminho de Hogwarts. Mas havia algo de diferente naquele retorno. Nem o som do trem parecia igual aos anos anteriores. E muito menos a forma como eu me sentia dentro dele.

Eu já não era a mesma.

— Vocês ouviram sobre o que aconteceu em Cardiff? — a voz de Hermione cortou o silêncio, firme, puxando-nos de volta à realidade.

Desviei o olhar da janela e ergui uma sobrancelha, tentando parecer menos inquieta do que realmente estava.

— Mais um ataque?

— Dois — ela respondeu, baixando o livro com a expressão fechada. — Uma família inteira desapareceu e uma loja de artigos mágicos foi completamente destruída. O Ministério diz que está “investigando”, mas ninguém acredita nisso.

Rony bufou, indignado.

— O Ministério não consegue investigar nem uma abóbora podre.

— Dumbledore está tentando agir por fora, com a Ordem — continuou Hermione, ignorando o comentário. — Mas está cada vez mais difícil. E, francamente, eu não entendo por quê.

Cruzei os braços e me recostei no banco, sentindo o balanço sutil do trem.

— Talvez porque Dumbledore tenha um plano maior. Minha mãe acha que ele está andando por uma linha muito fina.

— Sua mãe sempre acha que alguém está andando por uma linha fina — retrucou Rony, com uma careta.

— E, normalmente, ela está certa — murmurei, sem conter um sorriso.

O silêncio voltou a tomar conta do compartimento. Um daqueles silêncios densos, que ocupam espaço entre os corpos, como se os pensamentos ganhassem peso… Mas não durou.

— Ei, como foram as férias, ? — perguntou Rony, com a boca ainda parcialmente cheia de sapo de chocolate. — Em Malawi de novo, né? Aposto que lá não tinha um verão molhado igual ao nosso.

Sorri de canto, pousando o olhar na paisagem que deslizava pela janela.

— Tinha calor, sim. E muita poeira mágica no ar. Mas foi bom... Passei os dias com meus primos, minhas tias, treinei alguns feitiços ancestrais com a minha avó. Acordava com cheiro de chá de hibisco e adormecia ouvindo histórias de espíritos antigos. Nada de azarações em banheiros ou explosões em aulas de Poções. — Fiquei nostálgica ao recordar. — Foi... intenso. Mas tranquilo.

— Isso parece o oposto completo das nossas férias — murmurou Hermione, com um sorriso fraco. — Espera… você não sabe tudo o que aconteceu, né? Enquanto estava fora?

— Fora uma ou outra carta da minha mãe? Não. Por quê? — respondi, arqueando uma sobrancelha. — Inclusive... vocês não me escreveram.

Rony se ajeitou na poltrona, meio ofendido.

— Ei, você também não escreveu pra gente! Nós achamos que você queria sumir do mapa.

— Eu tava no interior do Malawi, Rony. Onde as corujas levavam três dias pra encontrar uma janela. E ainda assim, uma carta caberia, né?

— Tá bom, então a culpa é coletiva — retrucou ele, cruzando os braços. Hermione suspirou, já acostumada com os dois.

— Ok, ok... já deu. Vamos considerar que foi o caos do verão e seguir em frente, pode ser?

— Por mim, tudo bem — disse, ainda olhando de lado pra Rony.

— Ótimo — respondeu ele, mas o tom dele dizia nem tanto. Hermione rolou os olhos.

— Agora que o clima natalino passou... Rony, conta logo pra ela, porque eu sei que você quer contar as novidades — disse Hermione, cruzando os braços.

Rony se animou imediatamente, como se tivesse esquecido completamente da rusga anterior.

— O Harry agora é oficialmente um herdeiro. Herdou tudo do padrinho. O testamento saiu durante o verão. — Me virei para Harry, surpresa.

— Sério? — Ele assentiu, o olhar um pouco vago, claramente desconfortável com o assunto.

— O Grimmauld Place é meu agora. E o Monstro também… infelizmente.

— Harry… — minha voz saiu mais suave do que eu esperava. — Como você tá com isso? Porque... foi tudo tão recente. A morte do Sirius. A guerra espreitando. E agora isso? — Ele deu de ombros, sem muita vontade de elaborar.

— É estranho. Parece que... quanto mais as coisas mudam, mais tudo fica pesado.

— Rony — murmurou Hermione, com o cenho franzido —, você não podia ter contado isso de um jeito mais... gentil? Ele acabou de perder o padrinho, sabia? — Rony piscou, desconcertado.

— Eu só... achei que ela queria saber.

— Tô bem — disse, depois de um tempo. — Ou tentando estar.

Houve um breve silêncio, daqueles que não são constrangedores, mas que carregam peso. Aquele tipo de pausa que ninguém ousa quebrar com pressa.

Hermione foi quem retomou, com o olhar atento em mim.

— E isso não é tudo.

— Claro que não é — murmurou Rony, mexendo na embalagem de um sapo de chocolate. — Dumbledore levou o Harry pessoalmente para convencer um professor aposentado a voltar a dar aula. Um tal de Horácio Slughorn.

— Slughorn? — franzi o cenho. — Nome de poção ou de porco mimado?

Rony riu alto. Hermione reprimiu um sorriso, mas continuou.

— Ele foi professor em Hogwarts anos atrás. Tem uma certa obsessão por alunos “promissores”...

— “Promissores” como em talentosos ou... com sobrenomes importantes? — perguntei, arqueando uma sobrancelha.

Harry respondeu antes que Hermione pudesse defender.

— Os dois. Ele é... estranho.

— Vive colecionando pessoas — completou Rony. — Como se estivesse montando um álbum de figurinhas influentes.

Hermione suspirou.

— A verdade é que Dumbledore queria que o Harry se aproximasse dele por um motivo. E até agora, ninguém sabe exatamente qual.

Me recostei no assento, cruzando os braços.

— Então, o velho está jogando xadrez com peças vivas de novo.

— E, adivinha — disse Harry, com ironia seca. — Eu sou o peão de ouro da vez.

Meu olhar encontrou o dele por um instante, e não foi preciso dizer nada. A gente sabia como era. Ser puxado pra um jogo que ninguém explicou as regras.

Rony continuou:

— Ah, e também teve o lance do Draco — Rony continuou. — A gente o seguiu no Beco Diagonal. Ele entrou numa loja de magia das trevas, a Borgin & Burkes.

Minha expressão se fechou de imediato.

— Isso foi quando?

— Pouco depois do aniversário do Harry — disse Hermione. — Ele estava estranho. Parecia estar negociando alguma coisa.

Olhei para Harry, sentindo um aperto leve no peito. Tinha muita coisa acontecendo — mais do que eu podia imaginar quando ainda estava do outro lado do mundo. E a sensação de que algo importante estava escapando pelos dedos só aumentava.

De repente, a porta do compartimento se abriu com um baque leve.

— Harry? — era Gina.

Os cabelos presos em um coque bagunçado, os olhos brilhando com uma urgência que eu não sabia explicar. Só… senti.

— Me dá um minuto? — ela perguntou, encarando Harry.

Ele hesitou, mas assentiu. E se levantou.

Instintivamente, desviei o olhar. Rápido demais para parecer casual. Lento demais para passar despercebido por Hermione. A porta se fechou atrás dele, e eu fingi examinar a costura do meu casaco como se aquilo fosse a coisa mais fascinante do universo.

— Você está diferente com ele — disse Hermione, direta como sempre.

— Com quem?

— Harry. — Revirei os olhos.

— Ah, claro. Tô sim. Tô super diferente com o Harry. Comecei a usar o nome do meio dele em pensamentos dramáticos, inclusive. Tiago. Harry Tiago Potter. Soa muito mais intenso assim.

Rony riu alto, quase engasgando com o chocolate.

— Essa tensão dá pra cortar com uma varinha cega. Juro por Merlim.

— Vocês dois são insuportáveis — murmurei, já impaciente.

— E você é péssima mentirosa — devolveu Hermione, com aquele tom de quem já sabe a verdade.

Suspirei, ainda com os olhos na porta fechada.

A verdade? É que tudo começou no ano passado. Quando Harry se aproximou da Cho. E eu… eu não sabia o que doía mais: vê-lo tentando colar os cacos de uma garota em pedaços, ou perceber que eu também estava quebrando em silêncio.

E então veio Gina. Vibrante, valente, bonita de um jeito que não pedia licença para existir. Era impossível não gostar dela. E justamente por isso, tudo ficou ainda mais complicado.

Quanto mais eu gostava da Gina, mais doía ver os dois juntos. Porque cada toque de mãos, cada sorriso, cada olhar… era como um lembrete de que havia um feitiço agindo ali. Um feitiço que ninguém lançou — mas que, de algum jeito, agia toda vez que Harry e eu ficávamos sozinhos por mais de três segundos.

— Eu não estou preocupada com o Potter. Ele tá bem entregue — falei, tentando parecer firme.

Mas não consegui esconder o que veio depois: o olhar. Aquele maldito olhar cheio de perguntas não feitas.

A volta de Harry ao compartimento deveria ter me aliviado. Mas não foi. Foi como respirar dentro de um armário fechado.

Ele se sentou de volta, abaixou a cabeça e disse algo em voz baixa para Hermione. Rony estava entretido com um jogo de Snap Explosivo e nem percebeu. Mas eu ouvi. Não pelas palavras. Pelo tom.

— Ela só queria... entender — murmurou Harry, os olhos baixos.

— E você? Já entendeu? — respondeu Hermione, num sussurro cuidadoso.

— Não sei. Às vezes parece certo. Outras vezes... parece só errado no tempo errado.

— Você precisa ser honesto — disse ela. — Principalmente com você mesmo.

Harry soltou um suspiro contido, recostou a cabeça no vidro da janela, os olhos fixos do lado de fora. Mas eu sabia que ele não estava vendo nada além da própria confusão.

Fingi que estava muito ocupada ajeitando a manga do casaco. Não precisavam dizer o nome dela. Eu já sabia.

Sabia pelos olhos de Gina brilhando no corredor. Sabia pelo jeito que Harry hesitou antes de sair da cabine. Sabia pelo silêncio carregado que agora existia entre ele e Hermione.

— Estão falando em código de novo? — reclamou Rony. — É como conviver com dois trasgos acadêmicos.

Forcei um sorriso. Mas por dentro, algo em mim se contorcia devagar. Como se eu já soubesse que a batalha que estava por vir não seria só contra as sombras do mundo mágico. Mas também contra as que moravam dentro de mim.

— Vou… pegar um pouco de ar — anunciei, levantando de repente. — Tá meio abafado aqui.

Hermione me observou com atenção, mas não disse nada.

Saí para o corredor e respirei fundo, como quem tenta se manter inteira, mas já não tinha certeza se conseguiria.

Idiota.

Era a única palavra que ecoava na minha cabeça enquanto caminhava pelos corredores do Expresso de Hogwarts. Idiota. Repeti de novo, quase como um feitiço contra mim mesma. Você é uma bruxa treinada em Uagadou, conhece feitiços que esses britânicos nem sonham. E vai mesmo perder a cabeça por causa de Harry Potter… e um maldito minuto entre ele e Gina Weasley?

Ridículo.

Balancei a cabeça, tentando afastar os pensamentos como se fossem fumaça incômoda. Eu precisava me recompor. Ignorar. Respirar. Passaria. Sempre passava. Mas o coração ainda martelava no peito com mais força do que eu gostaria de admitir, e era exatamente por isso que continuei andando, querendo deixar aquilo para trás — ou pelo menos, fingir que deixava.

Foi então que ouvi.

Vozes abafadas, urgentes, vindo de uma das cabines.

Eu ia passar direto — juro que ia. Mas algo naquela voz me fez parar no mesmo instante. Draco Malfoy.

Me aproximei sem pensar, os passos suaves sobre o carpete, o corpo se inclinando ligeiramente até o vão da porta entreaberta. Os sussurros escapavam aos pedaços, cortados pelo som constante do trem sobre os trilhos.

— …o plano está em andamento. — Era Draco. A voz baixa, tensa. Quase… assustada?

— E se falhar? — respondeu outra voz que reconheci de imediato: Blaise Zabini. — Você sabe o que ele faz com quem decepciona.

— Snape fez o voto. Ele vai manter a promessa. Só preciso que você…

A frase morreu no ar.

A porta se abriu de repente e Draco saiu. Me encarou.

Por um instante, ficamos parados. Eu, no corredor, com o sangue gelado; ele, com a surpresa mal disfarçada antes de vestir o velho manto do desdém. Aquela expressão vazia que usava como armadura sempre que se sentia ameaçado.

— Curiosa, ? — perguntou, cruzando os braços com teatralidade.

— Só estava andando — respondi, firme, mantendo o olhar nos olhos dele. — Não sabia que espiões usavam compartimentos comuns.

— E eu não sabia que corvinais gostavam de brincar com fogo.

— E eu achei que você estivesse ocupado demais tentando parecer perigoso pra ter tempo de sussurrar conspirações com o Zabini.

Ele deu um passo à frente. Eu não recuei.

— Não se meta com o que não entende — rosnou, a voz mais baixa agora. Gélida.

— Já entendi o suficiente pra saber que você está enfiado em alguma coisa. E se acha que eu vou ficar quieta...

— Você não vai fazer nada — cortou, seco. — Porque ninguém acredita em gente que vive no meio do caminho. Nem da Grifinória. Nem da Sonserina. Nem da África. Você não pertence a lugar nenhum.

Doeu. Não posso mentir. Aquelas palavras atingiram um lugar fundo, escuro. Mas eu me recusei a dar a ele o prazer de ver.

Atrás de Draco, Blaise me observava com um sorriso preguiçoso e condescendente, como se estivesse assistindo a uma peça muito boa. Eu o ignorei completamente.

— Pelo menos eu não preciso fingir coragem pra esconder medo.

Os olhos de Draco brilharam por um instante. Mas ele não respondeu. Apenas se virou e voltou para a cabine, batendo a porta com força suficiente para fazer o corredor tremer.

Fiquei ali. Parada. O corpo inteiro tenso.

Um arrepio percorreu minha espinha, mas não era só raiva. Era aquela sensação de novo. Aquilo que sussurrava pelas frestas do mundo, avisando que algo estava se movendo errado. Como se, naquele ano, ninguém estivesse realmente seguro. Nem mesmo dentro do trem.

Fechei os olhos por um segundo. Depois continuei andando. Mas cada palavra daquela conversa ficou gravada na minha mente. Cada expressão. Cada silêncio. E ali mesmo, naquele corredor, jurei a mim mesma: eu vou descobrir o que Draco Malfoy está escondendo.

⚡🧙


— Potter! Srta. !

A voz animada e arrastada de Horácio Slughorn atravessou o corredor feito um raio, me arrancando dos pensamentos enquanto Harry e eu deixávamos a cabine para esticar as pernas.

Nos viramos ao mesmo tempo, meio pegos de surpresa.

— Venham, venham! — insistiu ele, agitando os braços roliços cobertos de anéis. — Tenho um compartimento reservado só para alguns alunos… especiais. Uma pequena seleção informal, nada demais.

Olhei para Harry. Ele parecia já saber do convite.

— Vai ver você tá na lista agora também…

— Que honra — murmurei, sem conseguir esconder a ironia.

O compartimento do Clube do Slug era maior, mais ornamentado — se é que toalhas floridas improvisadas e uma bandeja com doces mágicos contavam como "decoração". Lá dentro, Neville tentava parecer confortável numa cadeira apertada; Ginny mordiscava uma bala saltitante; Blaise Zabini, claro, encostado no canto com cara de tédio superior; Marcus Belby suava como se estivesse numa sauna; e Cormac McLaggen… bom, ele falava alto demais sobre uma partida de quadribol que ninguém perguntou.

Slughorn nos apresentou com entusiasmo.

— Todos aqui têm algo em comum: conexões. Potencial. História! E nada melhor do que conhecer essas histórias logo no início do ano.

E ele começou com quem, é claro? Harry.

— O famoso Sr. Potter. Herdeiro de uma linhagem poderosa… James, Lily, e agora, veja só, o garoto que sobreviveu, estrela do time de quadribol, membro da Ordem da Fênix. Já pensou em diplomacia, Harry?

— Prefiro sobreviver à aula de poções — retrucou ele, seco. Algumas risadas ecoaram. Blaise, como sempre, revirou os olhos.

Slughorn continuou, perguntando coisas aos outros, até que seus olhos caíram sobre mim. E ali estava. O brilho de interesse que eu conhecia bem. O que vinha antes da pergunta que sempre vinha.

— E você, Srta. . De onde vem esse sobrenome maravilhoso?

Respirei fundo antes de responder.

— Minha família é do Malawi, professor. Mas moro em Londres. Estudei em Uagadou antes de vir para cá.

— Uagadou! — exclamou ele, como se tivesse encontrado uma relíquia. — Escola de magia africana, no alto das Montanhas da Lua. Fascinante! Poucos têm contato com sua magia ancestral. E sua família? Bruxos há muitas gerações?

O tom era de admiração. Mas por trás dele, eu sentia o peso. Como se ele estivesse medindo o meu valor antes de decidir o quanto de atenção mereço.

— Somos sangue puro, sim — respondi, firme, sem sorrir. — Mas minha família prefere ser lembrada pelas escolhas que faz, não pelas heranças que carrega.

Por um segundo, o silêncio reinou. McLaggen pareceu não entender nada. Blaise me olhava com aquele mesmo sorrisinho enviesado de antes. Como se estivesse me estudando.

— Admirável! — disse Slughorn, sorrindo largo. Talvez nem tivesse notado a crítica. — Precisamos conversar mais, Srta. . A senhorita parece ter muito a oferecer.

Oferecer. Que palavra.

Forcei um sorriso educado. Mas por dentro, queria sair dali o quanto antes.



Quando deixei o compartimento, meus passos estavam mais lentos do que eu queria admitir. Slughorn ainda ria alto de alguma piada imbecil do McLaggen, e Harry, logo depois, sumiu com a capa da invisibilidade escondida debaixo do braço. Nem me explicou. Só foi.

Neville caminhava ao meu lado, em silêncio, as bochechas ainda vermelhas — não sei se pelo calor da cabine ou pela pressão da conversa. Talvez pelos dois.

— Eu odeio essas coisas — murmurou, sem me olhar. Ergui uma sobrancelha, surpresa.

— Achei que você tivesse se saído bem.

— Só fiquei calado. Foi a melhor estratégia — respondeu, com um sorriso torto. — Melhor do que abrir a boca e deixar escapar que a única coisa que minha avó acha que herdei dela foi o talento para derrubar vasos.

Soltei uma risada curta e verdadeira. Depois suspirei.

— Achei que já estivesse acostumada com perguntas invasivas, mas... ele tem um jeito de transformar curiosidade em escaneamento. Me senti sendo classificada.

— Você foi incrível — disse Neville, sincero.

— Mas ele não se impressionou comigo. Só com o meu “potencial”. Com o nome da minha família. Com o fato de eu ter vindo de Uagadou. Ele queria me encaixar numa daquelas caixas brilhantes que pode exibir na estante e dizer: “vejam, essa aqui é promissora”.

Neville ficou em silêncio por alguns segundos.

— Ele faz o mesmo com o Harry — disse, baixo.

— Eu sei. Mas com o Harry… ele já espera algo. Comigo, parecia que ainda estava decidindo. Como se eu fosse um investimento.

Passei a mão no meu colar, inconscientemente. O gesto sempre vinha quando eu precisava me lembrar de quem eu era.

— Em Uagadou, ninguém precisava saber de onde sua família vinha pra te respeitar. Era o que você fazia com sua magia que contava. Aqui... às vezes parece que o valor das pessoas vem dos nomes que as precedem.

Não é que eu ainda não esteja acostumada. Já estou em Hogwarts há três anos, mas tem coisas que continuam cutucando do mesmo jeito.

Neville soltou um som de concordância, quase um suspiro.

— Acho que por isso a gente precisa estar aqui. Pra mudar esse tipo de pensamento.

Parei. Olhei pra ele, a calma na voz dele. A certeza. A gentileza.

— Obrigada, Neville.

— Por quê?

— Por não tentar diminuir o que eu senti. Por só… ouvir. — Ele sorriu de lado, modesto.

— Eu sou bom nisso. Crescer sendo “o neto da Augusta” me deu prática.

Seguimos em silêncio pelo corredor. E, pela primeira vez desde que o dia começou, senti o incômodo dar um passo para trás. Ele ainda estava lá. Mas agora… havia também algo mais.

O reconhecimento silencioso de que, mesmo num lugar onde o meu nome era uma lupa sobre quem eu sou, ainda existiam pessoas que me viam. De verdade.

⚡🧙


A movimentação nos corredores ia diminuindo à medida que os alunos se preparavam para descer do trem. A agitação se transformava em silêncio aos poucos, como se o Expresso de Hogwarts estivesse se esvaziando por dentro. Eu voltava para o compartimento depois de deixar um recado para a Luna com a monitora da Corvinal — nada demais, só combinando de encontrá-la depois da cerimônia. Mas, ao virar a última curva do corredor, um arrepio subiu pela minha espinha.

Parei no mesmo instante.

Algo estava errado.

Não era o silêncio, nem a ausência de passos, nem o som do trem rangendo. Era outra coisa. Um sussurro de magia no ar. Familiar. Abafada, mas viva. Meu corpo reconheceu antes mesmo que minha mente entendesse.

Me aproximei devagar de uma cabine com a porta entreaberta, os sentidos em alerta. Foi então que ouvi. Um som quase imperceptível — como se alguém ali dentro estivesse prendendo a respiração por tempo demais.

Empurrei a porta com cautela. E congelei.

— Merlim... — sussurrei. — Harry!

Ele estava caído no chão, completamente rígido. A mão ainda segurava a Capa da Invisibilidade, que escorregava pelo ombro. O rosto virado para o lado, o nariz sangrando, os olhos abertos e imóveis.

O mundo pareceu parar por um instante. Meu coração começou a martelar no peito.Me ajoelhei ao lado dele imediatamente, sentindo a adrenalina correr por cada músculo do meu corpo. Reconheci na hora o que era Petrificus Totalus. Mas quem...?

Não perdi tempo, eu sabia que não podia fazer feitiço sem varinha, mas foi mais forte do que eu.

Finite Incantatem.

O feitiço se desfez com um estalo leve, e o corpo de Harry relaxou de imediato. Ele arfou, puxando o ar com dificuldade, os olhos piscando em confusão.

...? — murmurou, a voz fraca e rouca.

— Shhh... não tenta falar ainda — respondi, puxando um lenço do bolso e pressionando com cuidado o sangue que escorria do nariz dele. — Quem fez isso? Foi o Malfoy, não foi?

Ele assentiu, tentando se sentar. Estava fraco. Atordoado.

— Aquele escroto… — sussurrei, sentindo a fúria subir como fogo sob a pele. Olhei ao redor rapidamente e fechei a porta da cabine com um gesto seco.

— Obrigado... — ele disse, ainda tonto. — Por me achar.

Respirei fundo. Tentei domar a tempestade dentro de mim. Mas então vi quando ele levou a mão ao rosto com uma careta. Notei o inchaço ao redor do nariz torto.

— Espera… não se mexe.

Com minha mão direita apontei em direção ao seu nariz. Ele me olhou de relance, como se estivesse se preparando para levar outro feitiço.

— Vai me enfeitiçar?

— Não — respondi, com uma pitada de ironia. — Só consertei seu rosto. Que, aliás, estava bem menos torto ontem.

— Muito gentil da sua parte — retrucou Harry, arqueando uma sobrancelha, enquanto eu sorria de canto, focando no feitiço.

Episkey.

Um estalo seco. Ele recuou levemente com um gemido abafado.

— Tá melhor?

— Ai… sim. Mas ainda lateja.

— Reclama mais um pouco e eu aplico de novo, com mais entusiasmo — provoquei, cruzando os braços.

Ele riu, sem muito convencimento, e me lançou aquele olhar que sempre vinha antes de dizer algo sincero demais.

— Depois de tanto tempo, ainda é estranho te ver lançar feitiços sem varinha.

— É o meu jeitinho — murmurei, sem tirar os olhos dele.

Ficamos nos encarando por um instante. A tensão entre nós era a mesma — ou talvez mais intensa. Como um feitiço silencioso, lançado há muito tempo e nunca desfeito.

E então, quase sem pensar, me inclinei e o abracei.

O gesto me pegou de surpresa tanto quanto o pegou. Seu corpo estava quente, ainda trêmulo. Por um segundo, ele hesitou. Mas depois, me envolveu com os braços, e ali eu senti.

O peso daquele momento.

Não era só um abraço. Era tudo que eu ainda não sabia dizer em voz alta. Tudo que estava se acumulando nos olhares longos demais, nos silêncios carregados. Quando me afastei, nossos olhos se encontraram. Por tempo demais.

— Isso foi...

— Só um abraço — falei, rápido demais.

Mas eu sabia. Não era só isso.

O ajudei a se levantar. Ignorei meu próprio cansaço. A adrenalina ainda me guiava. Mantive a mão firme nas costas dele enquanto caminhávamos pelos corredores quase vazios. O trem rangia nos trilhos, naquele passo preguiçoso de quem está prestes a parar por completo.

— Consegue andar sozinho? — perguntei, em um sussurro tenso.

— Consigo. Tá doendo, mas eu consigo.

O rosto dele ainda tinha uma leve mancha seca de sangue, mas o pior eu já havia limpado. Ele ajeitou a capa do uniforme com pressa, tentando parecer mais apresentável.

— Ninguém pode saber disso — murmurou.

Assenti com seriedade. Ele não precisava explicar.

A porta do trem se abriu com um rangido metálico, e uma rajada de ar frio cortou o corredor. O ar de Hogsmeade sempre parecia mais gélido no primeiro dia do ano. Como se a noite quisesse lembrar a todos que as férias tinham acabado.

A plataforma estava envolta por vapor espesso. Os sons se misturavam: passos apressados, alunos chamando uns aos outros, o bater de asas inquieto dos testrálios. Mesmo com o movimento, tudo me pareceu mais escuro do que deveria.

Harry caminhava ao meu lado. Um pouco mais firme agora, mas ainda visivelmente exausto. O guiei até uma carruagem vazia, afastada das demais. Nenhuma palavra entre nós. Mas havia um acordo silencioso no ar.

Quando a porta da carruagem se fechou, o mundo pareceu ficar mais distante. O som abafado das rodas na estrada, o sussurro das árvores ao redor. E nós dois ali. Só nós dois.

— Você não vai perguntar por que eu estava escondido? — ele quebrou o silêncio, a voz rouca.

— Eu já sei — respondi, sem desviar os olhos da janela. — Você seguiu o Malfoy.

Ele se ajeitou no assento, surpreso.

— Como? — Virei o rosto para ele, devagar.

— Porque eu também ouvi o Malfoy. No trem. Ele e o Zabini. — Harry ficou quieto por um instante, atento.

— O que você ouviu?

— Não muito. Mas o suficiente pra saber que ele está envolvido em algo grande. Ele disse que “o plano está em andamento”… e que “Snape fez o voto”.

Vi os punhos de Harry se fecharem sobre os joelhos.

— Então não é só paranoia minha.

— Nunca foi — falei, firme. — O problema é que ninguém quer ver. Ninguém quer acreditar que o Malfoy já foi tão longe.

Ele me olhou com mais atenção, como se estivesse tentando entender alguma coisa além das palavras.

— E você? Por que você acredita? — Hesitei por um segundo. Depois soltei devagar:

— Porque eu sei como é sentir quando a magia muda. Quando as intenções de alguém escurecem. Em Uagadou, a gente aprende a sentir antes de entender. E desde o início do verão… tudo tem me dito que algo está vindo. Algo que começa por ele.

Ele ficou em silêncio, absorvendo cada palavra. E quando falou, sua voz era mais suave.

— Obrigado… por isso. E por antes. — Dei um meio sorriso, puxando o humor de volta.

— Você vai me dever muitos favores depois disso, Potter.

— Que ótimo — ele resmungou, tentando sorrir também. — Porque não bastava ter que derrotar um Lorde das Trevas.

Rimos baixo. E o silêncio que se seguiu não era mais pesado. Nos olhamos por um instante. E ali, naquela penumbra, onde ninguém podia ver, algo mudou.

Não foi dito.

Mas estava lá.

Alguns feitiços não são lançados. Eles apenas… acontecem. E não podem ser desfeitos.

As velas flutuavam suavemente sobre as mesas do Salão Principal, lançando uma luz quente que parecia brigar com a frieza do céu noturno refletido no teto encantado. As nuvens pairavam pesadas lá em cima, cobrindo as estrelas com um manto espesso, como se até elas estivessem com medo de espiar o que estava por vir.

Parei na entrada do salão, ao lado de Harry. Tínhamos descido juntos da carruagem, mas o silêncio entre nós desde então parecia mais espesso que a neblina de Hogsmeade. Era um silêncio cheio. Carregado. Como se, se um de nós dissesse qualquer coisa, o que aconteceu no trem voltaria a nos engolir.

— Vai pra mesa da Corvinal agora? — ele perguntou, sem me encarar diretamente.

— Aham. E você, pra Grifinória. Como sempre. — Respondi com um sorriso pequeno, discreto demais pro que eu realmente queria mostrar.

Ele assentiu, os olhos me buscando por um segundo breve demais.

— Obrigado de novo… por hoje — disse ele, baixo, como se aquilo fosse segredo demais para ser dito em voz alta.

— Já perdi as contas do quanto me deve, Potter.

Dessa vez, ele riu. Riu de verdade. Não muito alto, mas o suficiente pra quebrar um pouco o peso entre nós. E então se afastou em direção à mesa da Grifinória.

Fiquei olhando até ele desaparecer no meio dos outros alunos. Só depois me juntei aos colegas da Corvinal, sentindo o ar do salão mais denso do que eu lembrava. As conversas entre os calouros soavam abafadas, misturadas ao som de capas roçando no chão e passos cuidadosos. O clima estava estranho, mas o ritual continuava — como se fingir normalidade fosse suficiente para segurar o mundo de pé.

Observei quando Hermione o viu. O jeito como os olhos dela se arregalaram sutilmente e ela se inclinou imediatamente na direção do Rony, sussurrando algo que fez ele erguer as sobrancelhas, confuso. Eu conhecia bem Hermione Granger. Ela notava tudo — especialmente quando se tratava de Harry.

E eu ali, na mesa da Corvinal, sem conseguir decidir o que me deixava mais inquieta: o fato de ele estar machucado… ou o fato de continuar fingindo que não estava.

Foi só quando a primeira nota mágica ecoou pelo salão que me obriguei a olhar pra frente. O Chapéu Seletor estava sobre o banquinho, imóvel, mas no segundo seguinte abriu sua fenda como boca e começou a cantar com aquela voz rouca que soava mais séria a cada ano.

“Nos tempos de união, a magia floresceu, Mas tempos sombrios chegam, e o medo renasceu. Não importa sua casa, nem linhagem ou sangue, O perigo não escolhe, apenas avança e expande. Corvinal, Sonserina, Lufa-Lufa e Grifinória, Sejam laços, não muros — ou perderemos a história. Escutem bem este velho chapéu, Pois até os mais valentes precisarão ser fiéis.”


O silêncio que veio depois foi diferente. Não reverente — pesado. Ninguém se atreveu a rir ou comentar. Até McGonagall parecia mais rígida que o normal ao começar a chamar os novos alunos para a seleção.

Observei com a mente longe. Ainda em Draco. Ainda em Harry. Ainda no que a noite tinha deixado no ar.

Só me reconectei quando senti um cutucão leve no ombro.

— Finalmente de volta — disse Miguel Corner, com aquele sorriso torto que era quase sempre bem-vindo. Do lado dele, Cho Chang acenou, os olhos brilhando com sinceridade.

— Achamos que você ia ficar em Malawi dessa vez — provocou Cho.

— Pensei nisso — respondi, me acomodando entre os dois. — Mas minha mãe disse que Hogwarts precisava de mim. Ainda não decidi se foi elogio ou ameaça.

Rimos. De verdade. Pela primeira vez no dia.

— E como foi lá? — Miguel perguntou, inclinando-se um pouco. Apoiei os cotovelos na mesa, encarando por um instante o brilho das velas acima.

— Quente. Intenso. A magia lá… pulsa diferente. As montanhas sentem quando a guerra se aproxima.

Eles trocaram olhares, fascinados. Era sempre assim quando eu falava da minha antiga escola — como se estivesse descrevendo um lugar mítico, distante, quase lenda.

— Isso é incrível — sussurrou Cho. — Aqui só temos o Snape andando pelos corredores com cara de quem quer lançar Avada em todo mundo.

Soltei uma risada, mas ela morreu rápido. Porque foi aí que meus olhos encontraram Harry.

Ele estava sentado na Grifinória, Gina agora ao seu lado. Os dois riam de algo que o Rony dizia, como se o mundo não estivesse desmoronando. Como se ninguém tivesse quase desmaiado num trem. Como se nada tivesse acontecido. E o olhar dele… aquele brilho leve nos olhos… aquilo me desmontava de um jeito que eu não sabia explicar.

Desviei rápido. Cho percebeu.

— Eles estão...? — perguntou, em voz baixa. Dei de ombros.

— Não sei. — Ela arqueou uma sobrancelha, mas não me olhou de imediato.

— Harry sempre foi intenso… mas parece que esquece fácil. — A voz dela não era amarga. Só carregava uma dor resignada, meio amarga nas bordas. — Um mês atrás, ele mal conseguia me encarar. Agora... olha só.

Mordi o lábio, hesitando.

— Talvez ele só esteja tentando seguir em frente — disse, tentando ser justa. Cho soltou um suspiro, como quem carregava algo entalado há tempo demais.

— É. Fácil pra ele. Difícil pra quem fica pra trás, né? — Fiquei em silêncio por um segundo, pesando minhas palavras.

— Você ficou ao lado da Miranda, Cho. — falei baixinho. — Mesmo depois de saber o que ela fez com a Armada. Você escolheu. — Ela virou o rosto para mim, os olhos faiscando.

— Eu só tentei proteger quem era minha amiga!

— E ele só tentou proteger todo mundo. — rebati, sem alterar a voz. — Ele se sentiu traído. E não foi culpa dele.

O silêncio entre nós ficou cortante. Cho mexeu na manga da túnica, apertando o tecido entre os dedos.

— Você sempre defende ele. Sempre foi assim. — disse, quase como uma constatação amarga. Cruzei os braços, sentindo o peso daquelas palavras.

— Não é defesa cega, Cho. — sussurrei. — É que, às vezes, você precisa escolher onde colocar a sua confiança. E eu escolhi ele.

Ela me encarou por um longo momento, depois desviou o olhar.

— Tomara que você nunca descubra o que é confiar em alguém… e mesmo assim acabar sozinha.

Antes que eu pudesse responder, Cho desviou o olhar, virando-se lentamente de volta para a mesa da Corvinal. Sentou-se mais distante, como se o próprio espaço fosse uma trincheira invisível entre nós.

Fiquei ali, imóvel, com a garganta apertada e uma vontade absurda de gritar para o teto de Hogwarts que nem sempre escolher certo fazia as coisas doerem menos.

Mas, como sempre, me calei. E carreguei o peso da escolha — em silêncio.

Dumbledore apareceu, atravessando o salão com a capa ondulando e aquele jeito de quem carregava o peso do mundo nas costas, interrompendo meus pensamentos. Estava mais curvado do que o normal. Mais velho. Mais cansado.

Ele ergueu as mãos, e o salão silenciou imediatamente.

— Bem-vindos a mais um ano em Hogwarts — começou, a voz firme, ainda que mais contida. — Quero dizer, antes de tudo, que este será um ano diferente. Não farei promessas doces, nem previsões otimistas. Estamos vivendo tempos sombrios, mas é justamente nesses tempos que descobrimos quem somos. União, coragem e verdade serão mais importantes do que nunca. Que este seja um ano de vigilância, mas também de esperança.

As palavras ficaram suspensas no ar por um momento, até que ele continuou:

— E agora, alguns anúncios importantes. Como sabem, tivemos uma mudança no corpo docente — anunciou Dumbledore, a voz ecoando por entre os candelabros flutuantes. — Este ano, a disciplina de Defesa Contra as Artes das Trevas será ministrada pelo professor Severo Snape.

Um burburinho percorreu o salão como uma onda mágica mal contida. Alguns alunos se entreolharam, confusos. Outros, como Harry, pareciam ter levado um tapa invisível no meio do peito.

— E Poções, por sua vez — continuou Dumbledore, sem dar tempo para reações —, será conduzida pelo professor Horácio Slughorn, que retorna ao castelo após uma ilustre aposentadoria. Tenho certeza de que ele trará uma perspectiva riquíssima à disciplina.

Slughorn ergueu uma taça em cumprimento, o sorriso satisfeito de quem já se sente em casa. Do meu lado, Miguel me lançou um olhar de descrença.

— Isso vai dar problema — murmurou.

Eu sabia que esse ano seria diferente, mas agora… agora eu sabia que seria também muito mais perigoso.

⚡🧙


O banquete tinha acabado, mas parecia que o peso da noite ainda pairava sobre meus ombros. As velas do Salão Principal foram se apagando uma a uma enquanto os alunos se dispersavam, e o burburinho das vozes cansadas ecoava pelos corredores de Hogwarts como se a escola inteira suspirasse de exaustão.

O caminho até a Torre da Corvinal parecia mais longo do que eu lembrava. Talvez fosse o peso do que eu estava sentindo desde o trem. O anúncio de Snape como professor de Defesa. O silêncio estranho de Harry. O olhar de Draco. Tudo isso girava dentro de mim como um redemoinho silencioso, impossível de nomear. Mas presente. Vivo.

A porta da torre só se abriu depois que respondi, no modo automático, à charada do dia — nem me lembro o que foi. Subi os degraus devagar, observando os vitrais tingirem o chão de pedra com tons frios e azulados. Tudo parecia mais quieto ali em cima. Quase onírico.

O dormitório já estava mergulhado em penumbra. Algumas colegas dormiam. Luna, como sempre, destoava — deitada de lado, folheava uma edição d’O Pasquim com os olhos semicerrados e uma serenidade que só ela conseguia manter.

Me sentei na beirada da cama, suspirando baixo, e comecei a desfazer a mala. Primeiro os livros. Depois os frascos de poções, um ou dois cadernos que eu mesma costurei nas férias. E então... um grimório, mas não era o meu grimório, era diferente.

Franzi o cenho.

Era de couro escurecido, com marcas de uso, mas sem título. O toque era quente, como se o livro tivesse absorvido o sol de algum lugar muito distante.

Minha mãe?, pensei. Mas quando abri e vi a contracapa, soube que havia algo além.

Um símbolo. Circular, com traços delicados e runas dispostas em padrões concêntricos. Só de encostar os dedos, senti um calor súbito subir pela pele. O símbolo brilhou sutilmente, respondendo ao meu toque como se… me reconhecesse.

Recuei a mão, o coração acelerado. Aquilo não era um simples adorno. Era mágico. Vivo. E — de algum jeito estranho — familiar. Como se o símbolo tivesse me chamado de volta. Fechei o livro com cuidado. Como quem sela algo que não está pronta para abrir.

Deitei, mas o sono não veio fácil. Fiquei ali por longos minutos, encarando o dossel da cama, tentando entender por que aquele símbolo me fazia sentir... observada. Escolhida. Havia algo pulsando nas entrelinhas daquela magia antiga. Algo que sussurrava, mesmo quando o mundo lá fora dormia.

E em algum momento, sem perceber, adormeci.

A Torre da Corvinal ainda dormia sob o manto azul da alvorada. O vento entrava pelas janelas arqueadas e balançava suavemente as cortinas finas, como se sussurrasse um segredo do lado de fora. E o som da floresta, distante, parecia vir de dentro de um sonho.

Acordei com um sobressalto.

Meu coração disparava. Minha respiração estava presa no peito. As imagens ainda queimavam por trás das pálpebras: serpentes entrelaçadas a símbolos flamejantes. O mesmo símbolo do grimório. Pedra negra. Fogo dançando. E alguém murmurando palavras em uma língua que eu não conhecia… mas que ecoava dentro de mim.

Me sentei na cama, levei as mãos ao rosto. Tentei me acalmar. Depois me estiquei até o criado-mudo e puxei meu diário — capa escura, sem título, trancado com um fecho de prata simples.

Abri o diário com agilidade, e sussurrei o feitiço:

Revelare — sussurrei.

As páginas se iluminaram suavemente. A superfície branca deu lugar a um véu de névoa líquida. Comecei a escrever com dedos trêmulos:

Serpentes. Fogo. Símbolo de novo. Sons antigos. Voz sem rosto. Medo que não é meu. Mas é como se fosse.


Assim que terminei a última palavra, as frases começaram a se apagar, sendo engolidas por uma fumaça invisível. Fechei o diário com um estalo suave e me encostei na cabeceira, tentando recuperar o fôlego.

— Você sonha acordada às vezes?

A voz veio à minha direita. Me virei. Era Luna. Ela estava ali, em pé, com os cabelos despenteados e os olhos mais arregalados do que o normal — como se já soubesse a resposta. Ou como se tivesse visto o sonho.

— Não... só pesadelos — respondi, ainda tentando processar. Luna assentiu, pensativa.

— O mundo anda mais barulhento nos sonhos ultimamente. Como se eles estivessem tentando se libertar da gente. — A encarei.

— Isso é coisa do Pasquim ou você realmente acredita nisso?

— Um pouco dos dois — disse ela, se sentando ao meu lado na cama. — Mas acho que alguns sonhos não pertencem a quem os tem.

— Como assim?

— Como se fossem... mensagens emprestadas. Ou memórias tentando encontrar uma nova casa.

Fiquei em silêncio. As palavras dela vibraram em mim de um jeito incômodo e íntimo. Pensei no símbolo. No fogo. Na serpente. No arrepio que ainda não tinha passado. A conversa ficou ali, suspensa no ar, como uma névoa que não sabia se deveria se dissipar ou se aprofundar. Me levantei devagar, o sonho ainda grudava na pele.

⚡🧙


O café da manhã passou como um borrão. Eu tinha me sentado na mesa da Grifinória, bem entre Hermione e Rony, com Harry do outro lado. Rony reclamava do pão, esfarelando a crosta como se fosse o culpado pelas férias terem acabado. Hermione falava sobre reorganizações na biblioteca com a animação de quem acabara de ganhar uma coleção nova de livros. E Harry... Harry parecia ausente. Como se o que aconteceu no trem tivesse deixado mais do que um nariz quebrado. Como se tivesse deixado um peso invisível sobre os ombros.

E Draco? Nem sinal dele naquela manhã. Nem uma sombra prateada cruzando o salão. Mas eu notei e não fui a única.

Depois do café, fomos liberados para as aulas. Mochilas pesadas, cadernos ainda limpos, caldeirões debaixo do braço — a coreografia habitual do primeiro dia de Hogwarts.

A primeira aula do ano era Poções. Claro.

O porão cheirava a raiz de valeriana antes mesmo de eu entrar. Os caldeirões já estavam sendo arrastados, frascos tilintando em mesas antigas. Me acomodei num dos bancos de madeira escura, com o jaleco por cima do uniforme e o cabelo preso num coque alto.

Slughorn estava lá, animado como quem preparava uma festa. Bigode espesso, rosto vermelho, e um entusiasmo quase constrangedor.

— Ué, vocês por aqui? — falei quando vi Harry e Rony entrarem.

— Pois é — disse Rony. — A gente achava que não continuaria em Poções. O Snape era exigente demais e nossos N.O.M.s foram… digamos, só “aceitáveis”.

— Mas o Slughorn resolveu mudar as regras — completou Harry. — E agora estamos aqui. Sem livros.

— O professor resolveu isso — disse Hermione, apontando para pilha de livros gastos.

Harry e Rony correram para pegar os seus. Eu já estava sentada ao lado da Hermione, observando os dois com um meio sorriso. Harry voltou com um exemplar gasto, todo rabiscado. O nome do antigo dono havia sido riscado com força. No lugar, em letras firmes e escuras:

Este livro pertence ao Príncipe Mestiço.


— “Príncipe Mestiço”? — repetiu Hermione, franzindo o cenho.

— Nome criativo, no mínimo — murmurei, me inclinando para olhar as margens cheias de anotações. — Olha isso... tem fórmulas alternativas. Runas, também.

— Runas? — Harry se aproximou.

— Do sul da África. Uagadou ensina a reconhecer algumas. Encantamentos ancestrais, ou só símbolos de proteção, mas são poderosas.

— Então o tal Príncipe era inteligente — disse Rony.

— Ou inconsequente — rebateu Hermione, desconfiada.

Slughorn bateu palmas, cortando a conversa.

— Hoje, turma, começaremos com estilo: Poção do Morto-Vivo!

A sala explodiu em murmúrios. Claro. A mais complexa de todas logo de cara. Slughorn explicou que a melhor poção da aula ganharia um frasco de Felix Felicis. Sorte líquida. Poderosa, instável e valiosa.

Hermione e eu nos entreolhamos, como quem aceita um desafio sem dizer uma palavra. Ela seguiu o livro com precisão. Eu fiz o mesmo, mas guiada mais pela intuição do que por medidas exatas — jeito de Uagadou. Sentir, antes de executar.

Mas Harry… Harry seguia outra receita. A do Príncipe.

— Você está cortando o beozar? — Hermione sussurrou, horrorizada.

— O Príncipe diz que triturar atrapalha.

— E você acredita nisso?

— Só tem um jeito de descobrir.

Hermione bufou. Eu só observava, alternando entre meu próprio caldeirão e a curiosidade crescente sobre aquele livro rabiscado. No fim da aula, a poção de Harry era perfeita. Vapor prateado. Espirais suaves. Tudo exatamente como Slughorn descreveu — ou como o Príncipe previu.

— Extraordinário, Sr. Potter! — exclamou o professor. — Sua recompensa: Felix Felicis.

Harry pegou o frasco dourado com um sorrisinho de vitória. Hermione estava com a expressão tensa.

— Isso foi sorte — disse ela, mas o tom era ácido.

— Ou foi o Príncipe — murmurei, ainda observando as runas desbotadas.

— Eu não confio nesse livro — declarou Hermione. — Feitiços desconhecidos. Poções alteradas…

— Pode ser perigoso — admiti. — Mas às vezes é justamente aí que os maiores segredos estão. Nas margens.

Hermione não respondeu. Apenas franziu ainda mais a testa, como se tentasse decidir se estava irritada comigo, com o livro ou com o mundo inteiro. A expressão dela permaneceu assim até o fim da aula, firme como uma advertência silenciosa.

O barulho de caldeirões sendo fechados, frascos recolhidos e bancos arrastando sobre o chão encerado começou a tomar conta do porão. O cheiro forte de raiz de valeriana ainda pairava no ar, impregnado como fumaça de uma magia que não queria ir embora.

Harry, de pé ao lado da mesa, guardava o livro com um cuidado quase ritualístico. Como se o objeto, agora, fosse mais do que um caderno de anotações antigas. Como se fosse... um talismã. Um presságio. Ou um aliado inesperado.

Esperei até ele terminar.

— Potter. — Ele se virou, a sobrancelha erguida. — Preciso olhar seu livro.

— Agora?

— Sim. Tem anotações nas margens que reconheci, quero comparar com meu grimório. Prometo devolver amanhã. — Ele hesitou.

— Esse livro deu sorte hoje… — Cruzei os braços e sorri de lado.

— Você me deve.

— Devo?

— Consertei seu nariz. Disfarcei seu ataque desastrado. E salvei sua reputação mais vezes do que você tem cicatrizes de batalha para contar. — Ele bufou uma risada, vencido.

— Você é bem convencida.

— Não. Eu só tenho memória boa. E um jeitinho excelente pra conseguir o que quero. — Ele me entregou o livro, com um último olhar quase cúmplice.

— Cuida bem. O Príncipe Mestiço pode ser maluco… mas parece saber das coisas.

Peguei o livro com cuidado. E pensei, enquanto sentia as runas sob meus dedos: talvez esteja mesmo na hora de começar a ler o que ninguém nunca teve coragem de entender.

⚡🧙


O Salão Principal estava mais barulhento do que nunca no almoço. Os corredores ecoavam comentários apressados sobre as primeiras aulas e os boatos mais frescos — como se o castelo inteiro precisasse se atualizar antes que a próxima ameaça batesse à porta. Sentei-me entre Miguel e Luna, que equilibrava com impressionante destreza um prato de purê e ervilhas de um lado e uma revista do O Pasquim do outro.

— Primeira aula do ano e o Slughorn já quer pôr a gente pra dormir de vez — Miguel resmungou, empurrando uma batata assada pelo prato. — Poção do Morto-Vivo no primeiro dia. Isso devia ser proibido.

— Ele só quer separar os brilhantes dos que vão explodir o caldeirão antes da terceira mexida — murmurei, mordendo uma fatia de pão.

— Pode ser uma metáfora — Luna disse, ainda folheando a revista. — Alguns professores gostam de ver o que emerge da fumaça.

Miguel parou de mastigar.

— Ahn… tá.

Sorri de canto. A presença dos dois era reconfortante à sua maneira — Miguel com seu sarcasmo constante, Luna com sua lucidez camuflada de loucura. Mas, mesmo ali no meio da conversa, meus olhos varriam o salão.

Procurando. Esperando.

Draco Malfoy não estava à mesa da Sonserina. E aquilo me incomodava mais do que eu gostaria de admitir. Tentei fingir distração, empurrando a comida sem muita vontade. Mas a inquietação se arrastava dentro de mim como uma sombra que sabia demais.

Assim que os pratos começaram a desaparecer magicamente, me despedi com uma desculpa qualquer. Nem deixei tempo pra Luna comentar sobre algum Narguilufo perdido nos telhados.

Os corredores estavam relativamente vazios, mas vivos — as armaduras sendo polidas sozinhas, os reflexos das janelas criando movimentos nas paredes que pareciam fantasmas distraídos. Foi perto da escadaria leste que eu o vi.

Draco.

Andava sozinho, os passos firmes, o rosto mais pálido do que o normal. Parecia evitar os salões principais como se estivesse em missão — ou fugindo de ser visto. Encostei-me na parede de pedra, o coração disparando como se antecipasse algo.

"Plano em andamento. Snape fez o voto."

As palavras que ouvi no trem voltaram com força, como se tivessem sido gravadas na minha pele.

Antes que pudesse pensar duas vezes, comecei a segui-lo.

Silenciosa. Cuidadosa. Como aprendi em Uagadou, e em Hogwarts também — onde andar sem ser vista era parte da minha sobrevivência. Aproveitei as sombras, os cantos, e até os feitiços disfarçadores que costumava usar para escapar de encontros indesejados com professores.

Draco seguiu até o sétimo andar. Um corredor que, àquela hora, estava estranhamente deserto. Parei ao vê-lo diante de uma parede vazia, me escondi atrás de uma armadura, observando.

Ele andou de um lado para o outro, três vezes, o olhar fixo na parede como se esperasse que ela falasse com ele.

Eu conhecia aquele lugar. Conhecia bem.

A Sala Precisa.

— Não pode ser... — murmurei para mim mesma.

E então, como se meus pensamentos tivessem sido ouvidos, uma porta surgiu. Sólida. Silenciosa. Onde antes só havia pedra.

Draco entrou.

A porta desapareceu.

Fiquei ali, o fôlego preso, sentindo a magia no ar — como se o castelo tivesse acabado de engolir um segredo. Dei um passo à frente, sem saber se deveria me aproximar, quando uma voz cortou o ar atrás de mim, fria e carregada de ironia:

— Curioso, não é, ?

Me virei rápido. Mas não surpresa.

Blaise Zabini estava encostado casualmente na parede oposta, os braços cruzados, expressão quase entediada. Mas os olhos... os olhos me analisavam com aquela calma de predador satisfeito — como se eu fosse uma relíquia valiosa que ele ainda não decidira se queria possuir ou destruir.

— Quanta gentileza em anunciar sua presença — retruquei, com um sorriso ladeado de veneno. — Achei que os espiões da Sonserina preferissem o silêncio.

— Não somos espiões. Só… observadores atentos. — Ele descruzou os braços e deu um passo em minha direção. — E alguns de nós têm o péssimo hábito de notar quando alguém resolve brincar com corredores proibidos.

Ergui o queixo, firme.

— Hogwarts tem mais corredores vazios do que alunos dispostos a se meter neles.

— Verdade. Mas nem todos deixam rastros interessantes.

Ele parou diante de mim. Perto demais. Suficientemente perto para que eu sentisse o perfume sutil dele — algo amadeirado, denso, com um fundo escuro e perigoso. A voz dele baixou, quase conspiratória.

— Sua apresentação no clube do Slughorn foi... instigante — disse. — Mas não foi isso que mais me chamou atenção.

— Minha habilidade em calar perguntas inconvenientes? — O sorriso dele surgiu de canto, preguiçoso e cheio de segundas intenções.

— Sua beleza e sarcasmo são bônus, claro. Mas não. O que mais me intriga… — ele inclinou o rosto só o bastante para a voz quase roçar minha pele — ...é o que você está tentando esconder de todo mundo. Igual no quarto ano.

Meus olhos estreitaram no ato.

— Você tem boa memória — rebati, seca. Ele riu, um som baixo e perigoso.

— Como poderia esquecer? — murmurou. — Você, os corredores da biblioteca… e aquele beijo que você finge até hoje que não aconteceu.

Cruzei os braços.

— Foi só um erro de cálculo. — retruquei, com desdém.

— Então me deixe repetir o erro. — Blaise sussurrou, a centímetros de distância.

Antes que eu pudesse pensar — e talvez porque parte de mim não quisesse pensar — Blaise se inclinou e me beijou.

Foi breve. Mas não inofensivo.

O calor dos lábios dele era urgente, quase insolente, e o toque inicial foi firme, como quem queria provar um ponto. A mão dele roçou de leve minha cintura, puxando-me num movimento instintivo, como se a familiaridade entre nós nunca tivesse se perdido.

Por um segundo, um único segundo, minha mão agarrou o tecido do uniforme dele, puxando-o mais para perto. Como se a memória daquele beijo antigo tivesse ficado guardada em alguma dobra esquecida do meu corpo. A sensação era quente, quase perigosa — e completamente errada.

Empurrei-o de leve, sentindo o coração disparado pelas razões erradas. Nossos rostos ficaram a poucos centímetros um do outro, o hálito dele ainda misturado ao meu.

— Isso fica entre nós — sussurrei, a voz rouca, tentando recuperar o controle.

Blaise sorriu devagar, aquele sorriso preguiçoso que dizia que ele sabia exatamente o que tinha feito comigo — e que, mesmo assim, não significava mais do que um segredo entre quatro paredes de pedra.

— Sempre — respondeu, antes de se afastar com a calma provocadora que era só dele.

Fiquei ali, sozinha no corredor vazio, tentando convencer a mim mesma que aquilo não significava nada. E, em algum nível, sabendo que o que realmente importava... era da Grifinória, e seus pensamentos estavam em outra pessoa.

⚡🧙


Menos de uma hora depois, me enfiei nos fundos da biblioteca. Determinada a ir mais fundo. A entender o símbolo do grimório, o dos sonhos, o que eu encontrara no livro do Príncipe Mestiço.

A biblioteca era um templo. Teto alto. Janelas arqueadas. O cheiro de pergaminho envelhecido me acalmava. Me instalei na mesa mais afastada, com livros espalhados em volta: Runas Antigas, Símbolos Mágicos e Suas Origens, Encantamentos Primordiais da África Ocidental. Nada trazia o que eu precisava.

Abri o grimório.

O símbolo na contracapa parecia brilhar por dentro. As linhas circulares, entrelaçadas como fogo em espiral. Aquilo não era só um desenho. Era um chamado, um convite.

Continuei pesquisando, anotando mentalmente qualquer semelhança. Mas tudo parecia... raso. Como se os livros comuns não tivessem permissão para tocar a magia real.

— Você parece obcecada com esse símbolo.

Ergui os olhos.

Hermione.

Ela estava ali com dois livros nos braços, cenho franzido, o olhar de quem já chegou pronta para um debate.

— Estou tentando entender — respondi, fechando um dos volumes com mais força do que queria.

— É só um símbolo, . Um enfeite de contracapa. Talvez nem tenha significado mágico real.

— Eu sonhei com ele hoje de manhã. — Ela se sentou, seu olhar mudou.

— Sonhou como?

Contei. Do fogo, das serpentes, da voz em uma língua antiga, do diário e de Luna dizendo que às vezes os sonhos não pertencem a quem os tem.

— Luna também acredita em cebolas cósmicas — murmurou Hermione. Sorri.

— Eu sei. Mas às vezes acho que ela vê coisas que a gente escolhe não ver.

Hermione me olhou de forma estranha. Como quem está prestes a dizer “cuidado” sem usar a palavra.

— Você acha mesmo que tudo isso está conectado?

— Acho que… algo está tentando me mostrar alguma coisa. E eu não sei se tô pronta pra ver.

Foi então que ela viu o livro em minha frente.

— Esse é o exemplar do Harry? — Assenti.

— Pedi emprestado. Disse que queria comparar umas runas com meu grimório.

— E ele te deu?

— Pedi com jeitinho. — Ela quase riu, mas disfarçou com um suspiro. Seguimos examinando o livro. Até que parei. — Aqui. Essa runa.

Pequena. Discreta. No canto de uma receita. Espiralada com um ponto no centro. Hermione achou que fosse um rabisco, mas eu não.

Abri o grimório.

Mostrei. A runa estava lá.

Runa de Escuta Ancestral: para ouvir o que ainda não foi dito. Para sentir o que está sendo escondido.

— Quem escreveu isso no livro do Harry sabia mais do que poções, Mione. Sabia de magia antiga, isso não é só uma correção de receita. É uma assinatura.

Hermione respirou fundo, como quem pondera um limite que não quer cruzar.

… magia poderosa demais sempre cobra um preço.

Não respondi de imediato. Mas meus dedos ainda estavam sobre a runa. E eu podia jurar… ela estava falando comigo.

Continuei investigando cada detalhe do livro. Passei um tempo cruzando símbolos com meu grimório, tentando decifrar os padrões escondidos nas margens. Algumas das anotações usavam variações de runas do sul da África — não apenas como adorno, mas como forma de canalizar intenção. Era como se cada página carregasse mais do que tinta. Carregasse história. Segredo.

⚡🧙


O Salão Principal estava... estranho.

As velas flutuavam sobre as mesas como sempre, mas suas chamas pareciam mais tímidas, como se até o fogo estivesse cauteloso. O teto encantado mostrava um céu encoberto, carregado, e havia algo no ar — uma quietude desconfortável. Hogwarts parecia respirar devagar, como se esperasse por um susto.

Entrei junto com os alunos da Corvinal, e mesmo sem querer, meus olhos varreram o salão. Um hábito, talvez. Ou instinto. Harry estava conversando com Rony e Hermione, e embora tentasse parecer relaxado, dava pra ver o maxilar tenso, os ombros um pouco mais rígidos do que deveriam. Gina estava ali também, próxima... mas não com ele. Havia um espaço entre os dois que parecia cheio de palavras não ditas.

Me forcei a continuar andando.

Na nossa mesa, Miguel Corner contava alguma história sobre um feitiço que deu errado em Herbologia — aparentemente, alguém acabou com raízes nas orelhas. Luna o ouvia com atenção genuína, enquanto enfileirava ervilhas no prato como se estivesse mapeando o céu.

Me sentei ao lado deles, tentando entrar no ritmo da conversa, mas minha cabeça estava... em outro lugar. Ou em vários ao mesmo tempo.

— Você está esquisita — Miguel disse, sem filtro, me cutucando com o cotovelo e aquele sorriso de quem acha que tá sendo sutil.

— Sou naturalmente esquisita — respondi, no automático.

— Não do seu jeito usual. Esquisita tipo... “vendo sombras em corredores proibidos” esquisita.

Fingi uma risada que provavelmente enganaria até um trasgo. Mas Miguel continuou comendo como se não tivesse acabado de encostar numa ferida. Luna, por outro lado, me observava com aquele olhar translúcido e misterioso, como se enxergasse por dentro da pele.

— Alguns dias são mais densos que os outros — ela murmurou, mais para o prato do que pra mim. — Como se o ar carregasse peso de profecia.

Fiquei parada por um segundo, o garfo suspenso no ar.

— E esse é um desses dias?

— Com certeza — ela respondeu, como se falasse da previsão do tempo.

Voltei a comer em silêncio, cada garfada mais por obrigação do que por vontade. A comida parecia insossa, distante. Os risos, os talheres, os murmúrios — tudo contrastava com o que eu sentia por dentro: uma tensão silenciosa. Como se algo estivesse ali, esperando o momento certo para se mostrar.

De volta ao dormitório, não disse nada. Só fechei a porta devagar, como se o silêncio pudesse me esconder do que estava sentindo. As outras meninas já estavam em seus cantos, algumas lendo, outras se preparando para dormir. Passei por elas como se fosse feita de neblina.

Guardei o grimório com cuidado, o livro do Harry, o diário. Tentei não fazer barulho. Tentei não pensar em nada. Mas antes que eu pudesse apagar a vela com um sopro, duas batidas suaves — e impacientes — na janela da Torre me fizeram virar.

Corujas.

— Já era hora — murmurei, abrindo o vidro.

A primeira pousou com um leve sacudir de penas, trazendo um envelope amassado, com a caligrafia torta e desleixada que eu reconheceria de longe: Tonks.

Pequena Corvinal,

Ainda inteira? Espero que sim. Aqui as coisas estão um caos — o que, francamente, é um bom sinal. Pelo menos não está tudo silencioso demais.

Me disseram que você andou sentindo... coisas. Confia nos instintos e confia em você. Qualquer coisa, manda uma coruja (ou um sinal místico ancestral, sei lá).

Ah, e por Merlin, tenta não se meter em encrenca. Mentira, se for inevitável, pelo menos ganha a briga.

Beijo,

Tonks (atualmente com cabelo azul. Longa história.)


Não consegui evitar. Sorri sozinha. Sacudi a cabeça, abraçada por aquele tipo de afeto que só a Tonks sabia escrever — meio sarcasmo, meio proteção, totalmente dela.

Mas então, a dúvida veio.

“Me disseram que você andou sentindo... coisas.”

Franzi o cenho.. Como Tonks sabia?

A sensação de calor da carta deu lugar a um arrepio sutil. Um fio de pensamento desconfortável. Porque, se Tonks sabia… talvez mais gente soubesse também. E, de repente, não parecia tão seguro carregar aquele segredo só comigo.

A segunda coruja chegou com mais estilo — explodiu uma pequena chuva de purpurina azul assim que o envelope se abriu. Pólvora mágica. Confetes no travesseiro. Só podia ser dos Weasley.

Prezada , a mais brilhante das corujinhas da Corvinal!

Está oficialmente convidada para conhecer a nova filial da loja de logros mais sensacional do século — Gemialidades Weasley, agora com 25% mais caos e o dobro de fogos!

Sabemos que seu gosto por confusão bem feita e feitiços não convencionais nos torna aliados naturais.

Traga bom humor, reflexos rápidos e disposição para rir até perder pontos da casa.

Com saudades,

Fred & George (os gênios — aceitamos elogios e visitas espontâneas)

Rangi os dentes para segurar uma risada mais alta. Era esse tipo de coisa que me lembrava que, mesmo no meio do caos, o mundo ainda tinha luz. Mesmo que em forma de glitter explosivo e cartas cheirando a travessuras.

Guardei as duas com cuidado, como quem guarda um lembrete de que existe vida fora das sombras. Depois apaguei a vela com um sopro.

Mas o sono... demorou a vir.

E quando veio, trouxe o que eu já esperava.

Sonhei de novo.

O símbolo estava lá — brilhando como fogo líquido, pulsando em espirais. Mas dessa vez, não estava sozinho.

Uma figura encapuzada surgiu no centro da luz. O rosto oculto por sombras, mas os olhos… dourados. Intensos. Quase humanos, mas não totalmente. Havia algo errado naqueles olhos. Como se me enxergassem por dentro, através do tempo e da carne.

A figura ergueu a mão, e no centro da palma… uma serpente. Gravada com perfeição. Igual à do símbolo do livro.

Tentei falar. Nada saiu.

Tentei correr. As pernas não se moveram.

Ela veio em minha direção. Devagar. Como quem sabe que não precisa correr pra alcançar. E quando estava perto o suficiente pra me tocar…

Acordei.

O corpo suado. O coração disparado. O peito arfando.

Fiquei ali, deitada, encarando o teto azul-acinzentado da torre, ouvindo o som da minha respiração tentando reencontrar o ritmo. A runa ainda queimava atrás dos olhos. O rosto, também.

Não sabia o que aquilo significava. Ainda.

Mas uma coisa era certa: algumas verdades não se escondem. Elas apenas esperam que você esteja pronta para vê-las.


A biblioteca estava quase vazia quando resolvi que já era o bastante. Os poucos alunos que ainda restavam pareciam ter se fundido às páginas dos livros, como se os próprios livros os tivessem engolido e digerido com silêncio e poeira antiga.

Eu folheava distraidamente um capítulo sobre ingredientes voláteis e suas propriedades instáveis, mas minha cabeça estava longe. Miguel, do meu lado, rabiscava num pergaminho que mais parecia um campo de batalha. A pena dele travava guerras contra o papel e vencia só pelo cansaço.

— Miguel — murmurei, sem tirar os olhos da ilustração da poção borbulhante —, você vai explodir esse dever se continuar escrevendo assim.

— Se explodir, viro exemplo para posteridade — respondeu, bocejando. — Slughorn vai me usar como aviso nas próximas décadas. “Vejam, jovens, a tragédia da mandrágora mal anotada.”

Ri baixo e fechei o livro com cuidado, como quem guarda um feitiço perigoso.

— Eu vou voltar pra torre. Já entendi mais do que precisava por hoje.

— Eu fico. Tô quase sacando a lógica das pétalas de mandrágora. “Quase”, tá? Não me julga.

— Boa sorte com isso.

Recolhi minha mochila e saí da biblioteca em silêncio. O castelo estava mergulhado naquela penumbra azulada que só Hogwarts tem à noite. As pedras começavam a gelar, e meus passos pareciam alto demais nos corredores vazios.

Peguei um atalho pelo terceiro andar, desviando da ala das armaduras — elas sempre reclamavam quando passava tarde por ali. Mas, na curva do corredor, algo mudou.

O ar... vibrou.

Não como um vento. Como uma presença.

Parei.

O corredor estava vazio. Mas eu não estava sozinha. Tinha certeza disso.

Mais três passos. E então vi.

A porta.

Madeira escura, entalhada com a fênix dourada — a entrada do escritório do diretor. Sempre selada e imponente. Mas agora... agora havia algo ao redor dela, no ar. Um calor silencioso, uma vibração sutil, mágica, quase viva.

Me aproximei devagar, como se o chão estivesse chamando meu nome.

Foi então que ouvi.

Sussurros.

Não era som, era uma sensação. Uma língua que eu não conhecia, mas que parecia me reconhecer. As palavras flutuavam como fumaça, e por um instante, juro, tive a impressão de que a própria pedra murmurava.

Estendi a mão e toquei a parede ao lado da porta. A imagem veio na hora, não sonho ou imaginação, era memória.

Uma casa. Ruínas. Paredes quebradas. Um campo seco. Árvores que pareciam mãos torcidas apontando para o céu. E no centro disso tudo, uma mulher. Em pé à porta.

Ela me olhou.

Cabelos soltos, olhos tristes, corpo curvado como se carregasse séculos de dor. E na maçaneta da porta, enrolada como um segredo: uma serpente. Viva? Símbolo? Maldição?

Não sei.

Afastei a mão num sobressalto. Meu peito doía. Olhei ao redor, esperando... alguma coisa. Um som, ou um aviso, mas nada.

Tudo imóvel de novo. Como se o corredor tivesse me devolvido ao tempo presente e fechado a cortina na minha cara. Respirei fundo e pressionei os dedos contra a palma da mão.

Aquilo não era imaginação. Mas também não tinha explicação. Ainda não.

Voltei a andar e guardei o que vi naquele canto da mente onde se escondem as perguntas que ninguém ainda teve coragem de fazer.

A Torre da Corvinal estava quieta quando entrei. Não troquei de roupa. Não falei com ninguém. Só deitei, olhando o teto encantado girar com as constelações azuis, e deixei os pensamentos se emaranharem com as estrelas.

Sussurros.

A mulher.

A serpente.

O castelo havia deixado um segredo cair no meu colo. E eu... ainda não sabia se queria carregá-lo.

Tentei dormir. Chá de menta. Feitiço de relaxamento… mas nada funcionou.

Quando o céu começou a clarear, eu ainda estava sentada na cama, abraçada ao grimório como se ele fosse um escudo contra o que não dava para nomear. Cho se mexeu na cama. Miranda também.

— Tá tudo bem? — perguntou Cho, ainda sonolenta.

— Você parece... estranha — disse Miranda, sentando-se. Me virei, prendendo o cabelo com calma.

— Tá tudo certo. Só não dormi o suficiente.

Elas trocaram olhares, mas não insistiram.

Peguei minha mochila e desci as escadas com passos leves.O Salão Principal estava barulhento, como sempre. Talheres, vozes, corujas, risadas, mas para mim, tudo parecia abafado, como se estivesse ouvindo o mundo debaixo d’água.

Parei em frente à mesa da Corvinal.

Luna lia O Pasquim de cabeça pra baixo. Miguel discutia com Cho sobre alguma teoria de poção que envolvia lesmas. Tudo ali parecia alto demais, colorido demais, distante demais.

Me virei para a mesa da Grifinória. Harry, Rony e Hermione estavam ali, os lugares ao redor ainda meio vazios. Um silêncio diferente pairava entre eles. Às vezes, quando precisava de silêncio... era ali que eu me sentava. E hoje, precisava mais do que nunca.

— Você tá com uma cara péssima — foi o que Rony disse quando me sentei. Delicado como uma vassoura no meio da cara. — Tipo “acabei de escapar de um dementador” péssima.

Hermione o fulminou com os olhos. Harry não disse nada, mas me olhou. Aquele tipo de olhar que escutava sem precisar de palavras. Passei a mão no rosto, peguei uma torrada, mas nem tentei comer.

— Eu não dormi. — Minha voz saiu crua. — Tive uma... experiência estranha ontem.

Eles se calaram.

Contei.

O corredor. A vibração. A parede. O toque. A visão da casa. A mulher. A serpente. Omiti o medo. A sensação de ser observada. O arrepio na espinha. Algumas coisas eram só minhas, ainda.

— Isso foi ontem à noite? — Harry perguntou, mais baixo. Assenti. — Depois a gente conversa. Com calma — foi tudo que respondeu.

Hermione tocou levemente no meu braço. A sineta tocou. Hora da primeira aula.

Transfiguração.

Fomos juntos, mas Harry ficou um pouco atrás. Andava em silêncio. Pensando. E mesmo com a cabeça pesada, percebi: tinha algo nele diferente. Algo que estava se movendo também.

Na sala de aula, McGonagall já nos esperava. Rígida. Impecável. As palavras no quadro negro já eram suficientes pra dar arrepios:

“Transfiguração Humana: modificação localizada e reversível de atributos corporais.”

Me sentei ao lado de Hermione. Rony bocejava. Harry tentava parecer normal, mas não conseguia.

— Hoje começamos o conteúdo mais delicado do ano — McGonagall anunciou. — Erros aqui são dolorosos. Ou embaraçosos. Ou ambos.

A turma riu, nervosa. Ela demonstrou. A mão virou uma pata felina em segundos. Elegante. Precisa.

— Agora é com vocês.

Varinhas em mãos, fechei os olhos, respirei e deixei fluir. Não forcei, ou controlei, só senti, como me ensinaram em Uagadou. Minhas pontas dos dedos se alongaram. Os ossos mudaram. E, quando abri os olhos, lá estava: pata felina perfeita, pelos macios, garras retraídas.

Silêncio absoluto na mesa.

— Impressionante, Srta. — disse McGonagall. — Elegância e controle. Uma combinação rara.

Assenti com um sorriso discreto. Nada de arrogância. Só... tranquilidade. Hermione sussurrou ao meu lado:

— Eu sabia que você era boa. Mas isso foi... uau.

— Lá em Uagadou a gente aprende Transfiguração antes de escrever o próprio nome — murmurei, dando de ombros.

Harry ainda me olhava. Não com surpresa, mas com... reconhecimento. Como se tivesse se lembrado, por um instante, de quem eu era. Do que eu carregava.

Desfiz o feitiço com facilidade. Voltei à normalidade, ou algo próximo disso. Quando a aula terminou, McGonagall passou pela minha mesa de novo. Abaixou o tom:

— Srta. , o professor Dumbledore gostaria de vê-la depois do almoço.

Parei. Assenti.

O mundo girava.

E alguma coisa, dentro de mim, estava começando a despertar.

— Ele disse o motivo? — perguntei, baixando a varinha e tentando manter o tom leve, mesmo com o coração já acelerado.

— Não. Mas o tom... não era de repreensão. — McGonagall arqueou uma sobrancelha, naquele jeito enigmático e só um pouco orgulhoso que ela dominava com perfeição. — E, se me permite dizer... há poucos alunos em Hogwarts que conseguem executar uma transfiguração como a sua. Especialmente num dia que, claramente, não começou fácil.

Senti o peito apertar, uma pontada silenciosa que não era exatamente medo — mas também não era só ansiedade. Era como se algo estivesse se preparando dentro de mim, tomando forma no escuro.

Assenti, engolindo em seco.

— Obrigada, professora.

Ela me lançou um pequeno sorriso e voltou ao centro da sala, encerrando a aula como se não tivesse acabado de soltar uma bomba em minhas costas.

Enquanto guardava o material, meus pensamentos já estavam longe dali. Muito antes de subir até o escritório do diretor, algo em mim já sabia: alguma coisa estava prestes a ser revelada. E eu não estava certa se estava pronta para ouvir.



O céu parecia mais pesado quando caminhei pelos corredores vazios que levavam à torre de Dumbledore. Nuvens densas se acumulavam do lado de fora, e uma brisa fria serpenteava pelas pedras do castelo. Tudo tinha um ar suspenso, como se até Hogwarts estivesse prendendo a respiração.

A gárgula girou devagar assim que murmurei a senha que McGonagall havia me dado: Sorvete de gengibre.

Clássico.

Subi os degraus em espiral sentindo o coração bater alto — não de medo, mas de... antecipação. Como quem entra em um lugar onde o tempo se dobra.

A porta se abriu com um rangido suave. Dumbledore estava de costas, em pé, observando a luz que filtrava pelas janelas arqueadas. Seu manto roxo roçava o chão com suavidade, e Fawkes soltava um canto baixo e melancólico, como se já soubesse o que estava por vir.

— Srta. — disse ele, sem se virar —, fico feliz por ter vindo.

— A professora McGonagall disse que o senhor queria falar comigo — respondi, mantendo a postura firme, mesmo com as mãos suando levemente.

— De fato. E a senhorita sabia, não sabia?

Ele se virou então, os olhos brilhando por trás dos óculos de meia-lua. Um brilho que eu não sabia dizer se era sabedoria, provocação ou apenas o reflexo de algo que eu ainda não conseguia enxergar.

— Sabia? — repeti, hesitante.

— Não exatamente. Mas... sentiu. — Ele sorriu, e aquele sorriso parecia conter mil respostas e nenhuma. — A magia antiga costuma sussurrar antes de falar alto. Nem todos conseguem ouvi-la. E menos ainda sabem escutá-la.

Dei um passo à frente, sentindo o corpo todo em alerta.

— O que o senhor quer dizer com... escutar?

Dumbledore apontou para uma poltrona diante de sua mesa. Sentei-me, tensa, ainda sem saber se estava ali para receber um segredo ou uma responsabilidade.

— Seu pai era muito parecido com você — comentou de repente, com a voz suave, como se puxasse um fio da memória. — Observador. Curioso. E dono de uma magia inquieta. Ele estudou em Hogwarts nos mesmos anos que Tiago Potter e Sirius Black, sabia?

Assenti, surpresa com a menção.

— Sabia que eles se conheciam, mas... meu pai nunca falou muito sobre isso.

— Ele foi um aluno brilhante. Teimoso, às vezes. — Um brilho leve atravessou os olhos de Dumbledore. — Conheceu sua mãe em uma conferência internacional sobre combate às Artes das Trevas. E simplesmente... decidiu que o lugar dele era ao lado dela. Foi um daqueles momentos raros em que até a magia pareceu dizer "é por aqui".

Sorri com a imagem que aquilo formava na minha cabeça. Foi então que ele colocou um pequeno frasco de vidro sobre a mesa. Dentro, rodopiava uma substância prateada. Uma memória.

— O que você viu na noite passada... não foi imaginação, . Foi um eco. — Minhas mãos se fecharam contra os braços da cadeira.

— Eu vi uma casa. Uma mulher. Uma serpente. — As palavras saíram num sussurro.

— Fragmentos de uma memória guardada com magia antiga. Tão poderosa que não conseguiu permanecer contida. E você a captou... porque há algo em você igualmente antigo. — Engoli em seco.

— Então... o senhor sabia?

— Suspeitava. Agora, tenho certeza.

Ele se aproximou com calma, os olhos suaves, mas firmes. Como se me enxergassem inteira.

— Meus pais sabem? — perguntei então, baixando a voz. Dumbledore assentiu, com uma expressão gentil.

— Sabem. Sempre souberam que havia algo especial, mas decidiram esperar que você mesma percebesse. Que sua relação com a magia crescesse de forma natural, não forçada. Eles confiaram que você saberia quando fosse a hora. E, … você soube.

— Eu… — as palavras fugiam da minha mente, era muito a assimilar.

— Em Uagadou, há registros de bruxos como você. Não são videntes. Nem legilimentes. Caminham na borda entre o mundo mágico e o invisível.

Eu me mantive em silêncio, mas por dentro... era como se todas as peças que eu fingia não ver estivessem começando a se encaixar.

— Seu dom é raro. E perigoso, se não compreendido. Mas também... precioso. Porque você pode ouvir o que mais ninguém ouve. E talvez, no tempo certo... ver o que mais ninguém vê.

O silêncio que se seguiu era denso. Quase ritualístico. Meus olhos foram até o frasco sobre a mesa.

— Aquela memória... é dela? A mulher que eu vi? — Dumbledore não respondeu direto.

— Digamos apenas que algumas histórias se repetem. E algumas marcas, como a serpente, voltam a aparecer onde há segredos antigos demais para ficarem enterrados.

Assenti devagar. A mente girava, como se procurasse onde encaixar tudo aquilo. Ele se afastou, como quem fecha um livro ainda pela metade.

— Obrigado por escutar, . E por não ignorar o que viu.

Me levantei, os joelhos ligeiramente trêmulos. E então ele acrescentou, com um meio sorriso:

— Ah, e diga ao Sr. Potter que estarei esperando por ele amanhã à noite.

Pisquei, surpresa. Mas não perguntei por quê. Apenas assenti. Enquanto saía, uma certeza crescia dentro de mim, quente e incômoda como uma tocha acesa no escuro:

A partir de agora, nada seria como antes.

⚡🧙


O castelo já dormia. Ou fingia. A maioria dos alunos havia se recolhido, e o som de passos apressados, risadas perdidas e feitiços sussurrados se dissolvera no silêncio espesso que só Hogwarts conhecia quando respirava sozinha.

Estávamos os quatro sentados nos degraus gastos do saguão de entrada, perto da escadaria de mármore. Rony arrumava o material de Herbologia com má vontade, Hermione revisava anotações com uma pena encantada que parecia mais viva do que ele, e eu... só observava.

Observava o modo como Harry mantinha o olhar abaixado desde que sentamos ali, como se cada pensamento pesasse nos ombros mais do que qualquer mochila de livros. Aquilo não era cansaço comum. Era o tipo de exaustão que só conhece quem já viu demais. Quem carrega segredos demais.

Esperei.

Ele soltou um suspiro curto, quase engolido pela noite.

— O Dumbledore me chamou ontem à noite... para uma lição — disse, com a voz contida, como se cada palavra precisasse ser escolhida com precisão cirúrgica. — Me mostrou uma memória. De um homem chamado Bob Ogden. Ele trabalhava no Ministério... e foi visitar uma família chamada Gaunt.

Vi os olhos de Hermione se erguerem na mesma hora.

— Gaunt? Nunca ouvi falar.

— Eles eram sangue-puros. Orgulhosos disso. Mas viviam isolados, no meio da sujeira e da loucura. O pai, Marvolo, era violento. O filho, Morfin, completamente perturbado. E a filha...

Ele fez uma pausa longa. O tipo de pausa que não é para lembrar, é para processar o que se lembra.

— Merope. Era tratada como nada. Invisível.

Meu estômago se revirou, a mulher da visão.

— Eles são parentes do Voldemort? — perguntou Rony, a testa franzida.

— Merope... era a mãe dele — Harry disse, quase sem voz. — Ela se apaixonou por um trouxa. Um homem bonito, rico, chamado Tom Riddle.

Um silêncio denso caiu sobre nós. Hermione parecia tomada por compaixão. Rony olhava para o chão, inquieto. E eu… eu fechei os olhos.

— Eu vi essa casa. — Minha própria voz me surpreendeu. Os três se viraram para mim. — Naquela noite, no corredor. Não sabia o que era. Mas vi uma mulher com olhos tristes... e uma serpente enrolada na maçaneta. Eu não entendi. Só... senti.

Harry prendeu a respiração. Como se uma peça tivesse acabado de se encaixar num quebra-cabeça antigo demais.

— Era a mesma casa. A mesma mulher. — Assenti devagar.

— E hoje à tarde... Dumbledore também me chamou. Ele queria falar sobre isso. Sobre mim. Sobre o que eu sou. — Rony arregalou os olhos.

— O que você é? — Respirei fundo antes de responder.

— Ele disse que eu tenho um dom. Um tipo de sensibilidade mágica. Eu escuto o que não foi dito. Vejo o que não é meu. Fragmentos. Ecos de coisas que aconteceram... ou que ainda estão acontecendo em outro plano. — Hermione estava completamente atenta, absorvendo cada palavra.

— Como uma... premonição?

— Não exatamente. É mais como... se a magia falasse. E eu escutasse, mesmo quando ninguém mais está ouvindo. Como se fosse uma antena para coisas que não querem ser encontradas.

— Isso é brilhante — sussurrou Hermione, encantada.

— Isso é assustador — disse Rony. Soltei uma risada baixa, sem humor.

— É as duas coisas.

Harry me encarou. E naquele olhar... havia algo novo. Como se estivéssemos finalmente no mesmo mapa, mesmo sem saber onde era o norte.

— Então estamos os dois vendo pedaços de algo que aconteceu antes... tentando entender o que isso significa agora.

— E ainda vamos precisar ver muito mais pra entender qualquer coisa.

O silêncio que veio depois não era desconfortável.

Era cheio.

Cheio de respeito, de compreensão... de uma confiança que vinha daquilo que ninguém mais via. As tochas do saguão oscilavam, projetando sombras vivas nas paredes de pedra. Quase como se o próprio castelo estivesse ouvindo, quieto, o que a gente dizia.

Rony, com os olhos ainda fixos nas mãos, murmurou:

— Então... se a mãe do Voldemort era uma bruxa sangue-puro, e o pai era trouxa... ele é mestiço? — Hermione assentiu, sem hesitar.

— Sim. E passou a vida inteira tentando apagar isso. É a grande ironia. — Rony franziu o cenho.

— Mas então... será que o sangue tem mesmo tanto peso? Será que alguém... já nasce ruim? — Fui eu quem respondeu. Sem hesitar.

— Não é o sangue. São as escolhas. — Olhei para eles, um a um. — A Merope podia ter sido outra pessoa se tivesse sido amada. O Tom Riddle podia ter feito outras escolhas. Mas ele escolheu o caminho mais escuro. E continuou escolhendo. Mesmo quando poderia ter voltado.

Hermione assentiu devagar, tocada. Rony ficou em silêncio. Processando.

Mas Harry… estava em outro lugar. Os olhos fixos em algo que só ele via.

— Ele nunca teve amor — disse, por fim. — Nem chance.

E naquele momento, eu vi. Não o “Eleito”. Não o “Menino que Sobreviveu”. Eu vi um garoto que, como o próprio Voldemort, cresceu órfão, mas que teve uma diferença crucial: ele teve pessoas. Teve apoio. Teve opção. Teve coragem de escolher diferente.

— E você escolheu diferente — murmurei. — Sempre escolheu.

Ele não respondeu, mas vi o músculo de sua mandíbula se contrair, como se estivesse engolindo algo maior do que palavras. Então, sem pensar muito, só deixei meu corpo agir. Me aproximei e o abracei. Foi um gesto simples. Sem cerimônia. Sem expectativa de retribuição.

Só... um abrigo. Silencioso.

Como quem diz, sem dizer: eu sei. E eu tô aqui.

Harry demorou um segundo. Mas então... afundou levemente o queixo no meu ombro. Como se, por um segundo, pudesse soltar o ar que estava preso há dias. Ninguém disse nada. E, naquele silêncio... tudo foi dito.

A conversa morreu ali. Não por falta de assunto, mas porque sabíamos que havíamos tocado em algo profundo demais para continuar naquela noite.

Nos levantamos juntos.

E enquanto subíamos de volta para nossas torres, senti a certeza de que, a partir dali, não estávamos mais sozinhos dentro desse mistério. Tínhamos uns aos outros e isso já era o começo de tudo.

A escadaria em espiral da Torre da Corvinal rangeu sob meus passos silenciosos.

Cheguei ao dormitório com os ombros pesados. Mas não era o tipo de peso que um banho quente ou uma noite de sono resolveriam. Era um cansaço que nascia por dentro — de sentir demais, saber demais... e ainda assim não saber o suficiente.

O céu além das janelas estava coberto por nuvens carregadas, mas uma luz azulada atravessava as pedras encantadas, filtrando-se até meu canto do quarto como se dissesse: você ainda está aqui. Acendi a vela com um estalar de dedos e sentei à escrivaninha. Os olhos ardiam, mas não chorei. Não tinha espaço nem pra isso.

Puxei dois pedaços de pergaminho.

O primeiro foi para Tonks.

Tonks,

Como você sabia?

Como conseguiu entender que eu estava sentindo essas coisas antes mesmo de eu perceber o que elas eram?

Dumbledore me contou. Sobre o dom. Sobre o que eu sou. Mas... saber não ajuda tanto quanto eu imaginava. Ainda me sinto perdida.

Você sempre teve esse jeito de rir do caos — então, por favor, se puder rir agora, talvez ele pareça menos aterrorizante. Talvez pareça só... um vento forte, e não um furacão.

Escreve de volta, tá? Acho que preciso mais de você do que imaginava.



Dobrei o pergaminho com cuidado, quase como se fosse frágil demais para o mundo. Deixei-o ao lado da coruja da casa, que dormia empoleirada, indiferente à tormenta mágica que crescia dentro de mim.

Respirei fundo. Puxei o segundo.

Era a vez dos Weasley.

Fred, George (ou os dois, porque é impossível separar vocês),

Acabei de presenciar mais um capítulo do drama mágico não autorizado de Hogwarts, e sinceramente? Acho que o castelo tá tentando superar vocês em espetáculo. Tá difícil competir.

Prometo passar na loja assim que conseguir uma brecha. Mas se eu sair de lá com uma sobrancelha roxa ou um feitiço de soluço eterno, a vingança vai ser criativa. Isso não é uma ameaça, é uma promessa.

As coisas por aqui... estão esquisitas. Comigo, principalmente. Mas juro que explico tudo pessoalmente.

Ah, e se tiverem lançado alguma coisa com glitter explosivo, mandem amostras. A torre da Corvinal anda precisando de uma revolução cintilante.

Com confusão no coração,



Ri baixinho ao terminar de escrever. Pela primeira vez naquele dia, senti o mundo recuar um pouquinho. Como se existisse um intervalo entre uma batida e outra do coração — só o suficiente pra respirar.

Fechei o pergaminho e o deixei sobre a mesa.

E então puxei o grimório.

A capa escura parecia mais viva do que deveria. As páginas, marcadas pelo tempo, ainda vibravam com aquela energia antiga que nunca se apagava. Folheei até a seção das runas. Parei quando encontrei a que estava desenhada no livro do Príncipe Mestiço: a da escuta ancestral.

“A escuta ancestral não é o ouvir comum. É o silêncio que se abre para além do som. Os antigos a usavam para capturar o eco da magia do mundo — viva, pulsante, e às vezes, profética.”

Passei os dedos sobre os traços finos e entrelaçados da runa. Um arrepio subiu pelo meu braço como se a marca reconhecesse meu toque — ou talvez estivesse me reconhecendo.

Fechei os olhos.

Pensei em Merope. Nos olhos vazios, na casa rachada.Na serpente enroscada na maçaneta. No que aquilo significava. No que estava por vir.

Fechei o grimório devagar, como quem sela um segredo. Soprei a vela e me deitei, puxando as cobertas até o queixo, mesmo sem frio. O sono veio devagar. Como maré estranha — calma por fora, inquieta por dentro.

E eu sabia: alguma coisa estava se movendo no mundo. E agora… ela também se movia em mim, o símbolo brilhou de novo.

No sonho, a casa apareceu de novo.

As ruínas estavam lá — fantasmagóricas, cobertas por poeira e silêncio. O céu, opaco como um espelho embaçado. O campo, estéril e deserto. Mas dessa vez… o rosto da mulher estava mais nítido.

E eu reconheci algo nela.

Não era exatamente como olhar para mim mesma. Mas havia traços meus. No contorno do queixo. Na sombra que caía nos olhos. Como se um eco tivesse atravessado o tempo, cruzando sangue, dor e silêncio até encontrar abrigo em mim.

Foi então que ouvi.

Um sussurro cortando o ar — vindo de todos os lados e, ao mesmo tempo, de lugar nenhum:

"O sangue carrega lembranças que não são suas."

Me virei no sonho, o coração disparado, como se eu estivesse acordada dentro dele. E então, do nada, como um corte na realidade, vi.

Um fragmento do futuro.

Duas varinhas erguidas.

Harry.

Voldemort.

Frente a frente. O ar estava suspenso, denso como veneno. A tensão entre eles era tão viva que parecia que o tempo segurava o próprio fôlego. A luz congelada. O mundo parado.

Meu coração quase saiu pela garganta, e antes que o feitiço fosse lançado... tudo desapareceu.

Acordei num salto. A respiração presa. Os olhos escancarados na escuridão do quarto. A runa da escuta ancestral queimava na minha memória como um ferro em brasa.

Não era só sobre o passado. Era sobre o que ainda estava por vir.

E, no fundo, eu sabia — algumas memórias não pertencem a quem viveu. Elas pertencem a quem escuta.

E eu... estava começando a escutar mais do que jamais deveria.

O céu ainda estava acinzentado quando desci para o café, mas a comida no salão parecia mais enfeite do que sustento. Mal toquei na torrada. Harry me olhou uma vez, de longe. Não trocamos palavras.

Meu corpo estava em Hogwarts, mas a minha mente… ainda estava naquela casa em ruínas. No campo vazio. Nos olhos dela. E depois — nas varinhas erguidas. Harry. Voldemort. O silêncio antes da destruição.

Eu não conseguia fingir que era só mais uma manhã qualquer.

Antes mesmo da aula começar, procurei a professora McGonagall. Pedi para ver o diretor. Ela não fez perguntas — só me olhou por um segundo mais longo do que o necessário, assentiu e deu passagem.

A senha era a mesma de ontem.

“Sorvete de gengibre.”

O gosto doce da ironia pairava na língua.

Subi pelas escadas espirais devagar, cada degrau reverberando com uma urgência que eu não sabia nomear. Quando cheguei ao topo, ele já estava lá. Dumbledore, de pé, diante da janela arqueada, como se já soubesse.

— Srta. — disse sem se virar, com a voz calma como água parada —, imaginava que voltaria.

— Eu sonhei de novo. — Minhas palavras saíram sem preâmbulo.

Ele se virou lentamente. Os olhos por trás dos óculos de meia-lua pareciam mais sérios dessa vez. Mais atentos. Não havia sorrisos enigmáticos, nem enigmas disfarçados de metáforas. Só escuta.

Sentei-me na poltrona à frente da mesa antes mesmo que ele oferecesse.

— A casa estava lá outra vez. Aquela... que eu vi no corredor. Mas agora... a mulher estava mais nítida. Eu vi o rosto dela. E era como se... — engoli em seco — como se ela fosse parte de mim. Ou eu, dela.

Ele se aproximou, os olhos fixos nos meus, sem pressa.

— Um reflexo na memória do sangue — murmurou.

— Então é isso? Eu estou conectada a ela? À Merope? — Minha voz saiu mais alta do que eu queria.

Ele não respondeu de imediato. Caminhou até a estante, pegou um pequeno frasco prateado — outro fragmento de memória —, e o colocou sobre a mesa sem dizer nada. Mas não era o momento de ver. Era o momento de contar.

— E depois — continuei — vi Harry. Vi Voldemort. Frente a frente. As varinhas erguidas. Tudo parado, como se o tempo tivesse medo de continuar. Mas antes do feitiço... acordei.

O silêncio entre nós foi quase físico.

— Às vezes — começou ele, por fim —, os dons mais antigos se manifestam com símbolos. Outras vezes... com visões. Mas, para alguns, eles tomam forma em ecos. Fragmentos do que o mundo ainda não viveu, mas já sussurrou para aqueles dispostos a ouvir.

— Por que eu? — perguntei. Não como quem reclama, mas como quem realmente precisa entender. — Por que eu vejo isso?

— Porque o mundo precisa de testemunhas. De quem olhe o que está escondido, não para ter poder sobre isso… mas para não deixar que se perca.

Ele se aproximou da minha cadeira, com a fênix cantando suavemente ao fundo.

, sua magia não é feita apenas de feitiços. Ela é feita de escuta. De vínculo. De pressentimento. E, por isso mesmo, ela exige coragem. Porque ver o futuro não é um dom fácil, é responsabilidade.

Minhas mãos estavam fechadas em punhos sobre o colo. Soltei-as devagar.

— E o que eu faço com isso?

— Por enquanto? Escute. Anote. E não fuja. — Ele me olhou com gentileza. — A hora de agir chega para todos. E quando chegar, você vai saber.

Fiquei em silêncio por um tempo. O peso do sonho ainda vibrava dentro de mim como um segundo coração. Mas ali, naquele escritório de luz filtrada e paredes vivas de história, não parecia que eu estava carregando isso sozinha.

Dumbledore caminhou de volta até a janela.

— Quando sonhos carregam o passado e o futuro ao mesmo tempo, é sinal de que o presente está prestes a mudar. — Assenti devagar.

— Obrigada… por ouvir.

— Obrigado por não ignorar — ele respondeu.

Saí do escritório sem pressa, mas com um novo tipo de silêncio me acompanhando. Não o silêncio que esconde, mas o que prepara.

E agora, eu estava ouvindo.

De verdade.

Setembro mergulhou Hogwarts numa espécie de silêncio espesso. Não o silêncio da calma — o outro. O que precede alguma coisa. O que paira no ar quando até o castelo parece respirar mais devagar, como se soubesse que aquele ano seria diferente.

As aulas estavam exigentes, sim. Mas o que me drenava não era o conteúdo — era a sensação de que qualquer vacilo agora custaria mais caro do que nunca.

Nem o quadribol escapava disso.

Ainda fazia parte do time da Corvinal como artilheira, e os treinos noturnos se tornaram meu único respiro. Voar alto, sentir o vento cortando meu rosto, mirar nos arcos adversários com precisão quase instintiva… era o mais próximo que eu chegava de meditação. Do tipo que exigia o corpo por inteiro — e, por isso, calava a cabeça por uns minutos.

Naquela noite, encontrei o time no vestiário, já meio disperso, cada um calçando as botas ou ajeitando as luvas.

— Tá todo mundo aqui? — perguntei, prendendo os cabelos num coque rápido enquanto me encostava na parede.

— Pirlo ainda tá discutindo com o Flitwick sobre a disponibilidade do campo — respondeu Helena, nossa goleira, revirando os olhos. — Ele disse que “precisa do campo limpo de interferências mágicas até quarta”. Como se o testrálio fosse conjuração.

— Isso porque o campo já é enfeitiçado até o pomo dar cambalhota — resmungou Leo, o batedor, girando o bastão como se estivesse entediado demais para segurar a crítica.

— Então a gente faz o quê? Treina no ar ou espera uma permissão por escrito do Ministro da Magia? — perguntei, arqueando uma sobrancelha.

— Eu topo treinar no ar — disse Helena, esticando os braços com um sorriso travesso. — Pelo menos o vento não atrasa.

— Tudo bem. — Suspirei. — A gente se encontra às oito no campo, com ou sem aprovação. Se alguém perguntar, foi “um treino improvisado de movimentação teórica”. — Fiz aspas com os dedos. — E se a gente levar bronca, eu assumo. Ou melhor, eu digo que foi ideia do Leo.

— Ei! — ele protestou, rindo.

— Sem reclamações. Quem errar mais gols hoje lavará os uniformes até a próxima lua cheia — avisei, já pegando a vassoura.

— A gente vai fazer tiro ao alvo ou você vai fazer mágica com a goles de novo e acabar com a moral de todo mundo? — Helena brincou.

— Depende. Vocês vão me acompanhar ou vão só me aplaudir?

— Metida — disse Leo.

— Artilheira, amor — retruquei, piscando.

No fundo, era isso que me mantinha ancorada. Aquele tipo de troca leve. As piadas. O ritmo do time. Ninguém ali queria respostas sobre o símbolo no meu grimório, sobre sonhos com serpentes ou premonições estranhas. Ali, bastava saber voar. E jogar.

E, por uma noite, isso era tudo o que eu precisava.

O campo de quadribol estava quase vazio quando chegamos, só o som do vento e a grama farfalhando sob nossas botas.

As arquibancadas se perdiam na escuridão, e o céu — um manto profundo salpicado de estrelas tímidas — parecia observar em silêncio. As tochas flutuantes ao redor do gramado piscavam em tons azulados, lançando sombras suaves nas arquibancadas e sobre nossos ombros.

— Cinco voltas de aquecimento e depois chute a gol, intercalando batidas e esquivas — gritei, montando na vassoura. — E por Merlin, não me deixem sozinha na defesa outra vez, senão eu feitiço vocês com soluços por uma semana.

Helena riu alto, já decolando, seguida por Leo e os outros. Em segundos, o campo ficou para trás, e a noite nos engoliu em sua vastidão.

Eu impulsionei minha vassoura e subi, deixando que o vento fizesse o resto.

No alto, Hogwarts parecia pequena. As torres com suas luzes acesas aqui e ali, os contornos do castelo banhados por sombras profundas. Lá de cima, o mundo fazia silêncio por dentro. E por um instante, tudo o que existia era o céu.

A goles foi lançada, e a primeira sequência começou.

— Vem comigo, ! — Leo gritou, mandando a goles em um passe alto demais.

Mas eu já estava lá antes de ele terminar a frase.

Estiquei o braço, peguei a goles com uma curva rápida e mergulhei, rasgando o céu em um arco elegante. Meus cabelos escapavam do coque, o ar gelado beliscando o rosto, mas eu não diminuí.

Abaixei o corpo na vassoura e fui serpenteando entre os companheiros, esquivando das simulações de batidas, até ver o arco.

Respirei fundo, mirei — e lancei.

A goles passou rente à trave esquerda, fazendo Helena xingar baixinho e rir ao mesmo tempo. Um feitiço disparou do bastão dela para rebater a bola, mas ela errou por centímetros.

— Essa passou tão perto que senti o vento do feitiço na orelha — gritou ela.

— Isso é porque eu sou gentil — respondi, girando a vassoura no ar com um movimento brusco e fluido.

Leo voou ao meu lado, ofegante.

— ‘Cê não joga... você dança nesse campo.

— É que vocês são lentos demais para acompanhar a coreografia — provoquei, ofegante, mas sorrindo.

A segunda rodada começou, dessa vez com mais marcação. Dois batedores vieram pra cima, fingindo um bloqueio. Eu girei, passei por baixo, dei meia-volta no ar e recebi a goles de Miguel como se fosse coreografado.

No meio do campo, parei por um instante. Flutuando.

O silêncio me alcançou ali. Só o som da minha respiração, o sangue batendo rápido nas têmporas e o campo sob meus pés, minúsculo e vivo.

Uma estrela cadente cruzou o céu lá em cima, rápida como um pensamento bom.

E eu pensei: “É isso.”

Era isso. Por mais segundos assim.

Então mergulhei de novo, rindo sozinha, porque ali em cima... eu não era o eco de nenhuma profecia, nem o reflexo de um dom que me confundia. Ali, eu era só . Rápida. Focada. Livre.

O treino durou mais do que o planejado.

Quando Helena finalmente apitou para encerrar, os corpos estavam suados, as bochechas vermelhas, e até as vassouras pareciam um pouco cansadas. Mas ninguém reclamou. A sensação que pairava no ar era boa — aquela exaustão que vinha do esforço certo.

Pousamos juntos, um por um, até todos estarmos novamente no centro do campo, com as vassouras apoiadas no ombro e o fôlego se ajeitando no peito.

— Ok… — começou Miguel, jogando o cabelo pra trás com um gesto dramático. — Se alguém ainda tiver dúvidas de que a está secretamente treinando com o time da Bulgária nas férias… favor levantar a mão.

— Cala a boca — respondi, rindo. — Você quase me acertou com aquela batida. Parecia um cometa desgovernado.

— A intenção era desviar sua atenção — disse ele, como se tivesse orquestrado aquilo. — Pena que você não tem uma distração funcional.

— Não quando tem um gol na minha frente — comentei, erguendo a sobrancelha. — E sinceramente, Leo, aquela defesa? Precisa treinar o tempo de resposta. Por pouco eu não te derrubei com a goles.

— Não derrubou porque eu fui generoso. Quis deixar você brilhar. — Ele sorriu, esfregando o ombro como quem tinha sentido o golpe mesmo assim.

Helena se jogou no chão de grama, de braços abertos.

— Eu só quero que alguém avise o Flitwick que esse time da Corvinal tá pronto pra ser idolatrado. Tô exausta, mas tô em paz. Isso aqui sim é terapia.

Todos riram, e por um tempo, só ficamos ali, jogados no meio do campo, olhando o céu já escuro como tinta, as estrelas pequenas piscando lá no alto.

— Esse treino foi diferente — murmurou Helena, depois de alguns minutos. — Sei lá... a energia tava outra.

— Talvez seja o clima estranho no castelo — comentou Leo, deitado ao lado dela. — Ou talvez a gente só precisava disso. Voar, rir, quase morrer…

— Me lembrar de que eu sou boa em alguma coisa que não envolva runas ancestrais — completei, em voz baixa.

— Você é boa em tudo, — disse Miguel, com um tom que não era piada. — Só esquece disso de vez em quando.

Fiquei quieta. Mas sorri.

Quando finalmente voltamos para a torre da Corvinal, os corredores estavam vazios. As escadas giratórias pareciam mais lentas, como se também estivessem cansadas. Subimos em silêncio, os passos ecoando suaves contra a pedra.

Na entrada do dormitório, Helena bocejou alto.

— Boa noite, campeões. Que a sorte esteja do lado de quem tiver dever pra entregar amanhã cedo.

— Ou de quem deixou a poção fermentar por engano e vai tentar dizer que era intencional — acrescentou Leo, fazendo Miguel rir.

Nos despedimos com acenos preguiçosos, e entre risos abafados e sussurros de “até amanhã”, cada um se enfiou no seu canto do castelo.

Eu entrei no dormitório com passos leves. As cortinas estavam fechadas, as camas já ocupadas por respirações lentas e tranquilas. Troquei de roupa no escuro, sem usar magia. Me deitei com o corpo ainda vibrando do treino, mas leve. Pela primeira vez em dias, minha mente não estava caçando símbolos, nem significados ocultos. Não havia serpentes, nem vozes, nem visões.

Só cansaço bom.

Puxei os lençóis até o queixo e fechei os olhos.

E, naquele instante raro, adormeci rápido. Sem sonhos, sem presságios.

Apenas silêncio.

E um céu estrelado guardando minha noite.

⚡🧙


Os dias começavam cedo. O castelo fervilhava com alunos exaustos e livros do tamanho de um elfo doméstico. E entre uma escada traiçoeira e outra, eu fui percebendo as rachaduras surgirem no quarteto de ouro.

Daquelas que só quem observa de verdade — ou se importa demais — consegue enxergar.

Hermione andava cada vez mais tensa, como se os pergaminhos tivessem ofendido a honra dela e agora precisassem ser derrotados com agressividade. Rony oscilava entre uma animação boba sobre qualquer assunto aleatório e um silêncio desconfortável toda vez que o nome "Lilá" surgia por perto. E Harry…

Harry fingia que não olhava para Gina.

Ou talvez fingisse muito bem que fingia.

E eu fingia que não percebia.

Mas percebia. Tudo. Principalmente a forma esquisita como meu coração reagia cada vez que o nome dela saía da boca de alguém. Especialmente da dele.

Na aula de Aritmancia, tentei focar nos padrões de conversão mágica. Números ancestrais, sequências encantadas, possibilidades infinitas... Mas bastou a voz da Parvati dois assentos atrás para desmontar tudo:

— Gina e Dino estão inseparáveis. Até ficaram depois do treino ontem!

Fechei os olhos por um segundo. Só um.

Respirei fundo, como quem tenta apagar um incêndio interno com ar frio, e voltei a encarar os cálculos.

Mas aquele monte de número mágico não levava a lugar nenhum.

Nem as contas.

Nem meu coração.

⚡🧙


A sala de Poções estava mergulhada em vapor e murmúrios abafados. Os caldeirões borbulhavam em tons de esmeralda, âmbar e lilás, e o Slughorn circulava entre os alunos como um colecionador orgulhoso, admirando suas preciosidades.

Do meu lado, Harry — mais uma vez — tinha a melhor poção da sala.

Hermione olhava para ele com a mandíbula travada, como se lutasse contra a vontade de arrancar o livro da mão dele e lançar dentro do caldeirão.

Mais tarde, enquanto Slughorn elogiava o “dom natural” do Potter como se ele fosse o próprio inventor das poções, eu me aproximei da bancada com os braços cruzados e um sorriso enviesado no canto da boca.

— Sabia que você ia usar aquela substituição com raiz de valeriana — comentei. — Tá anotado na página 197. Marca do Príncipe.

Harry olhou de lado, meio culpado, meio satisfeito.

— Funciona, né?

— Funciona bem demais — murmurei, lançando um olhar para o brilho da poção no caldeirão.

Hermione se aproximou, claramente incomodada.

— Ainda não acredito que você tá defendendo esse livro — disse, com a voz mais baixa, mas cheia de firmeza. — Você viu as alterações que ele fez? São perigosas.

— Eu vi o livro inteiro, na verdade — respondi, encarando-a com calma. — Estudei cada página no dia que o Harry me emprestou. A maioria das fórmulas não é só criativa... é fundamentada. E algumas vão além da alquimia moderna.

Ela franziu o cenho.

— Como assim?

Magia antiga. — Me inclinei um pouco, apontando para a margem de uma das páginas. — Essas runas aqui, por exemplo, são praticamente idênticas às usadas em Uagadou para escuta astral. Técnicas de extração energética, manipulação sensorial... Isso não é invenção de aluno gênio. É conhecimento ancestral.

Hermione me olhou com mais incômodo do que surpresa.

— Então você acha que isso tudo é... válido?

— Eu acho que alguém, em algum momento, misturou poções com práticas muito mais profundas do que parecem. E eu acho — falei baixinho — que o tal Príncipe sabia exatamente o que estava fazendo.

Ela cruzou os braços, desconfortável.

— Ou ele só copiou o que achou bonito e achou que podia brincar com isso.

— Ou ele estudou mais do que qualquer professor deu conta de reconhecer — rebati. — É fácil chamar de "brincadeira perigosa" quando a origem da magia não está nos livros tradicionais.

Hermione não respondeu. Mas o franzido entre as sobrancelhas dela não suavizou até o fim da aula.

Harry me olhou com uma mistura de fascínio e culpa. Antes que dissesse qualquer coisa, Slughorn apareceu atrás de nós, soltando seu riso grave e satisfeito.

— Srta. ! Estava comentando com o professor Flitwick ontem mesmo: você tem um estilo preciso com as poções, quase intuitivo. Muito raro. Você cresceu rodeada de alquimistas?

Nem levantei os olhos do caldeirão.

— Cresci rodeada de tias que sabiam queimar cabelo com pensamento. E avós que não desperdiçavam ingrediente. Talvez isso tenha ajudado.

Ele piscou, um tanto desconcertado.

— Ah… sim, sim! Fascinante, fascinante...

Repetiu a palavra umas três vezes enquanto se afastava, como se não tivesse entendido nada do que ouviu.

— Se ele me perguntar mais uma vez sobre minhas raízes como se eu fosse um baú de relíquias mágicas, juro que jogo um Fedorento no Clube do Slug — murmurei.

Harry riu atrás da mão.

— Seria... um grande espetáculo.

— Seria justiça — retruquei, erguendo o queixo com orgulho.

A aula terminou com Slughorn radiante como um porquinho satisfeito. Nós quatro saímos juntos, cruzando os corredores úmidos do subsolo.

— Lilá me chamou pra ir ao Salão Principal mais cedo amanhã — comentou Rony do nada, com aquele sorrisinho de quem acha que sabe o que está fazendo. — Disse que queria me mostrar umas novas técnicas de clarear pergaminhos com chá de bardana. Sei lá o que é isso, mas tô curioso.

Hermione parou de andar. Só olhou pra ele com a expressão de quem teve uma epifania... ou um colapso interno.

— Que bom pra você — disse ela, fria, antes de acelerar os passos. Mordi o lábio pra não rir. Rony me lançou um olhar confuso.

— O que foi?

— Nada. Só… cuidado com o chá de bardana. Às vezes causa alucinação de ego inflado.

Harry riu, mas o riso morreu quando subimos para a parte superior do castelo. O som de vozes conhecidas nos alcançou.

Gina e Dino Thomas estavam próximos a uma tapeçaria animada, rindo de algo que só eles sabiam. Ela jogou os cabelos para trás quando Dino passou a mão pela cintura dela com uma naturalidade que me revirou por dentro.

Harry parou. Só por um segundo.

Mas eu vi.

Vi o olhar preso. A tensão no maxilar. O jeito como ele desviou rápido demais, como se não fosse nada.

Mas era.

Senti algo estranho subindo pelo meu peito. Amargo. Silencioso.

Não era ciúmes de Harry.

Era ciúmes do ciúmes dele.

A sensação de perceber que a pessoa que você gosta... gosta de alguém que não é você. E que nem percebe o quanto isso te atravessa. Engoli seco e apertei o passo. Hermione notou. Não disse nada. Mas seus olhos diziam que entendeu.

— Que foi agora? — perguntou Rony, confuso como sempre.

— Nada — respondi, junto com Hermione.

E seguimos. Cada um, carregando seu próprio tipo de silêncio.

⚡🧙


O calor da tarde parecia se prender nas pedras antigas da sala de Feitiços quando nós, da Corvinal, e os alunos da Sonserina começaram a se acomodar. Me sentei ao lado de Miguel Corner, mas meus olhos escaneavam a sala com um cansaço atento.

Zabini já estava lá, recostado com descaso no banco ao fundo, mas atento a tudo ao redor. Mais à frente, Draco Malfoy parecia estranho — menos altivo do que o normal. Estava quieto, o cenho franzido e os dedos tamborilando na mesa com impaciência contida.

O professor Flitwick surgiu animado, flutuando com leveza em seu banquinho encantado.

— Boa tarde, turma! Hoje vamos trabalhar feitiços não verbais — anunciou, os olhos brilhando com entusiasmo. — Controle, foco e intenção pura! Sem palavras, sem truques. Apenas magia e mente.

Ajustei a varinha entre os dedos, firme, o olhar fixo à frente. Eu gostava desse tipo de desafio. Silêncio e poder. Muito do que aprendi em Uagadou girava em torno disso — da disciplina que vem de dentro, da magia que obedece à mente antes mesmo de obedecer à boca. E aquilo me fazia sentir em casa.

A aula começou em meio a tentativas frustradas. Faíscas irregulares, feitiços mal direcionados, intenções dispersas. Zabini foi um dos poucos que conseguiu algum resultado decente — conjurou um Expelliarmus não verbal com elegância suficiente para arrancar a varinha do colega da frente. Mas nem sorriu. Estava me observando.

Respirei fundo. Deixei o barulho ao redor sumir.

Harry até tinha falado sobre isso na época da Armada, mas aquilo era só o rascunho. Agora, era o teste real.

Fechei os olhos. Controle. Clareza. Intenção.

Protego.

O feitiço saiu sem som, apenas energia. Tão preciso que rebateu o feitiço do aluno ao lado, desviando-o para cima — onde acertou uma pena encantada flutuando no teto, que caiu rodopiando como se tivesse sido atingida por um raio de leveza.

A sala silenciou por um segundo.

— Magnífico, Srta. ! — exclamou Flitwick, batendo palmas curtas e encantadas. — Controle perfeito. A intenção estava clara, mesmo sem som. Brilhante!

Sorri de canto, sem esforço. Aplausos tímidos ecoaram em seguida — junto com alguns olhares que, se fossem feitiços, também teriam me acertado.

Zabini me lançou um sorriso enviesado, daquele tipo que nunca entrega tudo. Enigmático. Ambíguo.

Mas foi outro olhar que me prendeu.

Draco Malfoy.

Tentava conjurar o mesmo feitiço — Expelliarmus — sem dizer uma palavra. Falhou. Duas vezes. Na terceira, murmurou o feitiço de forma contida, só para manter as aparências. Ninguém pareceu notar. Mas eu notei.

Os ombros dele estavam tensos, quase duros demais. O olhar fixo, mas perdido. Como se a mente dele estivesse em outro lugar — longe dali. Não era só arrogância, era inquietação disfarçada. Ansiedade. Preocupação.

Anotei mentalmente. Como quem marca uma peça deslocada num tabuleiro.

— Você fez aquilo parecer fácil — comentou Miguel, baixinho, ao meu lado.

— Porque era — respondi, sem desviar os olhos de Draco.

E, pela primeira vez naquele dia, eu não estava pensando no Harry. Pensava em segredos.

⚡🧙


A biblioteca estava quase vazia no fim da tarde. Só o som suave das páginas sendo viradas preenchia o espaço, junto ao ranger ocasional das cadeiras antigas. Fechei o livro à minha frente com um suspiro — daquele tipo que carrega não só cansaço, mas excesso de pensamento.

— Isso aqui não tá entrando na minha cabeça hoje — murmurei, esfregando as têmporas.

Hermione continuava concentrada, copiando algo de um tomo enorme de Transfiguração Avançada.

— É só cansaço — respondeu, sem levantar os olhos. — E provavelmente frustração acumulada. — Soltei uma risada curta, seca.

— Você não faz ideia. — Ela levantou os olhos, tranquila.

— Faço, sim. Eu convivo com você há anos, .

Houve um silêncio breve. E então, sem muito planejar, abri a boca:

— Eu gosto do Harry.

Hermione parou. Só por um segundo.

— Quer dizer… gosto mesmo. Não sei quando começou. Talvez no ano passado... — vomitei as palavras — O gatilho foi quando eu o vi com a Cho aos beijos depois da aula da Armada, perto da estufa, estava voltando de um treino, sozinha. E doeu. Doeu mais do que achei que poderia.

Ela me olhou em silêncio, com aquele jeito cuidadoso dela.

— Eu não sabia que você tinha visto. Nem que fosse assim… tão forte.

Assenti, apoiando o queixo na mão.

— Pois é. Nem eu sabia. Achei que ia passar. Mas não passou. E agora tem a Gina.

Hermione franziu os lábios.

— E você acha que ele gosta dela?

— Acho que já gostou, ou gosta, eu já nem sei mais. E bom, se não gosta mais… ainda não me viu. Tipo, de verdade. — Ri, sem humor. — E quer saber? Cansei de gostar de alguém que nem sabe que eu existo desse jeito.

Ela fechou o livro devagar.

— O que vai fazer?

— Me forçar a olhar para outra direção — disse, com mais convicção do que realmente sentia. — Tem outros meninos por aí. Simas, talvez. Ou o Ian Caulfield da Lufa-Lufa. Ou até o Hugo Avery da minha casa. Ele tem um sorriso decente.

Hermione arqueou uma sobrancelha, meio rindo, meio preocupada.

— Isso parece um pouco precipitado.

— Talvez. Mas pelo menos me afasta do impossível. — Olhei para ela com mais firmeza. — A única de nós que tem uma chance real… é você. E você vive fingindo que não vê.

Ela corou, como eu sabia que coraria.

— Eu e o Rony? Não tem nada a ver… — Ergui uma sobrancelha com força dramática.

— Claro. Nada a ver. Por isso vocês brigam como casal e ele fica te observando sempre que acha que ninguém tá vendo.

Ela tentou rebater, mas eu continuei, com um sorriso triste:

— Se vocês se assumissem logo, metade das tensões de Hogwarts evaporariam. Pelo menos você tem chance. Eu… nem isso, só uma nota de rodapé.

Hermione ficou quieta. Tocou minha mão com delicadeza, cruzando o silêncio com carinho.

— Você nunca foi nota de rodapé, . — Sorri. Mas foi só por fora.

— Então por que eu me sinto como uma?

Ela não respondeu de imediato. Apenas se levantou da cadeira e veio até mim, me puxando para um abraço apertado — o tipo que não tenta consertar nada, só diz: “tô aqui”. E por um segundo, só por um, o peso no peito pareceu um pouco menor.



Quando nos separamos, trocamos aquele sorriso breve, cheio de tudo que não precisava ser dito. Eu agradeci, prometi que ia descansar… mas, na verdade, o que menos consegui fazer foi isso.

Era tarde. Tão tarde que o castelo parecia segurar o fôlego. A maioria dos alunos já havia subido para os dormitórios, mas eu ainda caminhava pelos corredores frios do segundo andar, tentando clarear a mente depois da conversa com Hermione. O eco dos meus próprios passos parecia mais alto do que deveria. E, de algum jeito estranho, fazia companhia para o turbilhão que insistia em não se calar dentro de mim.

Eu não gostava de dormir com o peito cheio.

O som dos meus próprios passos ecoava entre as colunas de pedra quando senti algo atrás de mim. Não era uma ameaça. Era… uma presença.

— Sabe que andar sozinha pelos corredores dá margem a boatos — disse uma voz suave, irônica, com aquele arrastar de sílaba que eu já reconhecia de longe.

Zabini.

Ele apareceu na curva da parede, encostado como se fizesse parte dela. Não me assustei. Só ergui uma sobrancelha, já exausta.

— Melhor sozinha do que mal acompanhada.

— Tão afiada assim a essa hora? — O sorriso dele era fácil, mas os olhos... os olhos carregavam algo mais. — Deve ser o treinamento africano. Ou só cansaço mesmo. — Cruzei os braços, fingindo indiferença.

— É o talento de quem tem que lidar com babacas em horário extra.

Ele se empurrou da parede e veio devagar, passos calculados, parando perto. Perto demais.

— Você se saiu bem hoje em Feitiços. Protego limpo, direto. Impressionante.

— Obrigada. Mas não preciso dos seus elogios pra saber do meu valor.

— Não elogiei por você. — Ele inclinou a cabeça, aquele sorriso torto crescendo. — Elogiei por mim. Gosto de reconhecer talentos... raros. — Revirei os olhos.

— E você é o tipo que coleciona coisas raras? — Ele deu um passo. E depois mais um.

— Sou o tipo que observa... E que sabe exatamente quando vale a pena... se aproximar.

O olhar dele desceu até minha boca. E, naquele segundo, a tensão virou uma linha fina, prestes a se partir.

— Tá tentando me intimidar, Zabini?

— Intimidar? — A risada foi baixa, grave, e vibrou direto no meu estômago. — Nem um pouco.

Dei um passo pra trás, mas ele já tinha avançado dois. E antes que eu soltasse qualquer resposta, a mão dele segurou minha cintura, firme, me puxando.

— Blaise— comecei, mas não deu tempo.

Os lábios dele tocaram os meus, primeiro num roçar lento, como se testasse. E, quando eu não recuei — talvez até tenha me inclinado sem perceber —, ele aprofundou o beijo. Era quente. Insolente. Exatamente do jeito que eu deveria odiar.

Mas não odiei.

Minhas mãos foram parar no peito dele, numa mistura de querer empurrar e querer puxar mais. E, Merlim, o cheiro dele... amadeirado, picante, com aquele fundo de menta fresca… Ele mordeu meu lábio inferior no fim, puxando de leve, como quem sabia exatamente o que estava fazendo.

— Você tá viciando demais nos meus beijos — murmurei, ainda sem conseguir regular a respiração. O sorriso dele foi criminoso.

— Você é viciante, . — Os olhos desceram, de novo, pros meus lábios. — E o problema é que você sabe disso.

Afastei, passando as mãos no cabelo pra tentar parecer mais no controle do que eu realmente estava.

— Boa noite, Zabini.

Ele deu um passo pra trás, com aquele jeito dele, preguiçoso e perigoso ao mesmo tempo.

— Boa noite... Por enquanto.

Me virei antes que meu corpo me traísse mais uma vez. Mas Merlim... se eu dissesse que não queria olhar pra trás, estaria mentindo.

⚡🧙


O dormitório da Corvinal estava mergulhado em silêncio. As velas já se apagaram há horas, e a brisa gelada vinda das janelas altas fazia as cortinas dançarem como espectros cansados.

Não sei quando adormeci. Só sei que estava sonhando, mas não era um sonho qualquer.

Eu estava de pé no meio de um campo seco e rachado, sob um céu negro como tinta, salpicado de símbolos dourados flutuando, girando, sussurrando em línguas que eu quase entendia.

E no horizonte... ele.

A figura encapuzada. Caminhando em minha direção. Tentei me mover, mas meus pés estavam presos à terra.

Ele parou diante de mim.

Dessa vez, eu vi um rosto. Parcialmente oculto, mas visível o suficiente. O mesmo homem da visão anterior. Pele pálida, olhos dourados demais, quase humanos. Uma serpente viva enroscada em seu braço.

Quando ele falou, sua voz ecoou por dentro de mim.

“Nem todo poder precisa ser invocado. Alguns nascem com você. E esperam.”

Tentei falar. Nada saiu. Tentei olhar para as mãos — e lá estava o símbolo. Brilhando na palma, dividido em dois: metade runa, metade serpente.

Ele ergueu a mão até o meu rosto.

“Há olhos que enxergam o passado. E olhos que escutam o que ainda não aconteceu.”

A paisagem mudou.

Harry.

Voldemort.

Duas varinhas erguidas. Um duelo. Luz, sombra e tensão congelada no ar.

Antes do feitiço ser lançado… acordei.

Ofegante. Suada. O coração batendo como se eu tivesse corrido os corredores inteiros de Hogwarts. Me sentei na cama, abraçando os joelhos. De novo eu via Voldemort e Harry prestes a duelar.

O céu lá fora começava a clarear, tingindo a torre de tons prateados. O mundo estava quieto. Mas dentro de mim, nada estava.

Eu não sabia o que aquilo significava, mas sabia que não era só um sonho.

Era um aviso.

“Algumas visões não são para ver. São para preparar.”

O sol já atravessava os vitrais da torre quando eu finalmente apaguei. O corpo cedeu, mas a mente… a mente continuava marcada. O símbolo da serpente. Os olhos dourados daquela figura. Ainda dançavam atrás das minhas pálpebras, como tinta fresca que não seca.

Sentei na cama, tentando lembrar onde acabava o sonho e começava o dia.

— Você dormiu tão quietinha que parecia uma pedra de quartzo — ouvi a voz da Luna do outro lado do dormitório. Ela penteava os cabelos longos, com uma calma que parecia não pertencer a esse plano.

— Me senti mais como um meteoro desgovernado, para ser sincera.

— Ah, esses têm bons sonhos — ela respondeu, como se tivesse acabado de citar um tratado de magia lunar. — E acordam com energia rara.

— Tomara… — murmurei, calçando os sapatos com a cabeça ainda meio nublada.

O Salão Principal já estava movimentado quando cheguei. Alunos riam, bocejavam, passavam livros de mão em mão enquanto tentavam morder torradas ao mesmo tempo. A mesa da Corvinal parecia mais viva do que eu conseguia acompanhar.

Me sentei, servi um pouco de suco de abóbora e fiquei observando as bandeiras penduradas. O céu encantado estava claro, limpo e calmo. Mas dentro do meu peito, nada disso se refletia.

Eu tentava me ancorar nos detalhes: a cesta de pães quentinhos, os potes de geleia abertos, o tilintar constante de talheres. Mas era como estar alguns segundos atrasada do resto do mundo — como se minha linha do tempo estivesse desalinhada com a de Hogwarts.

— Você parece ter dormido em cima de uma adivinhação ruim — disse Cho, surgindo ao meu lado com uma maçã na mão e um sorriso suave.

Forcei um sorriso de volta.

— Acho que sonhei em três idiomas diferentes. Nenhum deles fazia sentido.

— Isso explica o olhar perdido — comentou Miguel, se sentando do outro lado. — Se quiser companhia pra ignorar responsabilidades, tô disponível até a segunda aula.

Dessa vez, sorri de verdade.

— Tô tentando me concentrar em respirar primeiro. Depois eu penso nas responsabilidades.

Tomei um gole do suco, tentando acalmar o redemoinho. Lá fora, o mundo girava. As pessoas falavam de lições, de apostas de quadribol, de quem ia ficar com quem até o Natal. Tudo seguia como se nada estivesse prestes a desmoronar.

Mas dentro de mim?

Dentro de mim, já tinha começado e não tinha mais como fingir que não era real.

⚡🧙


O sol se filtrava por entre os galhos trançados das árvores ao redor das estufas de Herbologia, tingindo o chão de sombras douradas que se moviam com o vento. O cheiro de terra molhada e musgo misturava-se ao perfume adocicado de alguma planta exótica que liberava esporos cintilantes a cada intervalo irregular.

Avistei meus amigos num dos bancos de pedra, à sombra de uma árvore retorcida cuja casca parecia... respirar. Harry estava quase afundando o rosto em um pergaminho amarrotado, Rony rabiscava com a pena em um ângulo duvidoso, e Hermione parecia à beira de um colapso nervoso. Ou de fazer o trabalho inteiro sozinha.

Foi Hermione quem me viu primeiro. O aceno dela dizia tudo: vem logo, por Merlin.

— Eles estão prestes a se autodestruir tentando terminar esse resumo — sussurrou assim que me aproximei. — E já desisti de explicar que deixar tudo pra última hora nunca funciona.

— Isso é mentira. Eu só trabalho melhor sob pressão — protestou Rony, bufando.

— Preciso entender o tal do fungo luminescente até o almoço, ou vou ser expulso da vida acadêmica — resmungou Harry, os olhos vermelhos de sono.

Me sentei sobre uma raiz larga da árvore viva e cruzei os braços.

— O segredo dos fungos é que eles são temperamentais. Tipo o Rony. Mas com menos tendência a falar besteira.

Rony fingiu ofensa. Hermione suspirou alto e puxou outro livro da pilha que parecia ter surgido magicamente ao lado dela.

— Vamos revisar. Mas só porque eu não aguento ver uma caligrafia tão ruim sendo punida com uma nota péssima.

— E porque você não resiste a organizar o caos — acrescentei, abrindo meu exemplar de Tratado de Poções Ancestrais. — A propósito, Harry… na receita do feitiço adormecente, substituir erva de sombra por angélica é bem comum no sul da África. Estabiliza a essência, mas muda o tempo de preparo. Aposto que foi isso que o Príncipe fez.

— Claro que ele usou uma substituição arriscada. Mas genial. — Hermione me lançou um olhar que misturava julgamento e resignação.

— Você tá ajudando ou reclamando? — perguntou Rony.

— Os dois — Hermione e eu dissemos ao mesmo tempo. Rimos.

O grupo ainda estava ali, intacto em meio à confusão: Hermione reorganizava as anotações como se estivesse montando uma fortaleza, Rony fingia que seu pergaminho fazia sentido, e Harry folheava um livro com o olhar distante, como quem procura respostas onde nem perguntas existem.

Até que ele parou. O olhar fixo em algum ponto além das árvores.

— O Malfoy tá tramando alguma coisa — disse de repente. — Eu sei que tá.

Hermione soltou o ar bem devagar, já prevendo o rumo da conversa.

— Harry, você não tem nenhuma prova. Só… impressões.

— E às vezes, impressões são tudo o que a gente tem — ele rebateu, a voz firme.

Eu observava tudo em silêncio até ali. Mas naquele momento, apoiei os braços nos joelhos e falei:

— Eu vi. — Os três me encararam ao mesmo tempo.

— No começo da semana. No sétimo andar. O Malfoy entrou na Sala Precisa. Sumiu. Como se o castelo tivesse engolido ele. — Hermione arregalou os olhos, mas tentou manter a racionalidade.

— Talvez ele só quisesse ficar sozinho…

— Draco Malfoy nunca quis ficar sozinho, Mione — retruquei. — Ele sempre quis plateia.

Harry me encarou. E pela primeira vez, vi nos olhos dele algo diferente. Um reconhecimento silencioso. Ele não estava mais sozinho naquela paranoia.

— A gente precisa descobrir o que ele tá fazendo lá dentro. Antes que seja tarde — disse ele.

— Precisamos de provas — insistiu Hermione. Mas a voz dela não tinha tanta certeza agora.

— Então a gente encontra — falei.

Rony não respondeu, só coçou a cabeça com aquele jeito dele de “meu Deus, por que eu?”. Mas ele não discordou.

O silêncio que veio depois era tenso, como se tivesse peso próprio. E mesmo com o sol se pondo atrás das estufas, senti um arrepio estranho.

Hermione e Rony se levantaram e começaram a se afastar, ainda discutindo ingredientes de poções — o que, honestamente, soava como o início de mais uma briga afetuosa. Eu fiquei. E Harry também.

Fingi que organizava meus papéis, mas a verdade é que minha cabeça ainda girava com o que eu tinha dito — e com o que não disse.

— Tá tudo bem? — perguntei, sem encará-lo.

— Tá. Quer dizer… tão bem quanto pode estar, né?

Assenti. O silêncio entre a gente era estranho demais para ser casual.

— Harry… eu preciso te contar uma coisa. — Ele se virou um pouco mais, os olhos atentos.

— Eu tenho sonhado com você e com o Voldemort. Em duelo. Em ruínas, em lugares que eu nunca vi, mas sempre com o símbolo do meu grimório... brilhando no ar. Como se fosse parte do duelo.

Ele ficou quieto.

— Já aconteceu outras vezes? — perguntou, por fim.

— Sim. Mas agora é diferente. Não parecem fragmentos do passado. É como se eu estivesse espiando o que ainda vai acontecer.

Ele desviou o olhar, absorvendo. Quando voltou pra mim, era como se finalmente estivesse me enxergando de verdade.

— Por que você não me contou antes?

— Porque, assim que tive o primeiro sonho com você, eu contei ao Dumbledore. — A voz saiu mais baixa do que eu esperava. — Ele me ouviu com calma, explicou algumas coisas… mas eu ainda estava tentando entender. Precisava absorver tudo antes de contar pra mais alguém. Não é fácil carregar algo assim sem saber o que significa.

Harry virou ligeiramente o rosto, surpreso.

— E o que ele disse?

— Que isso que eu vi… não é só uma premonição. — engoli em seco. — É um ponto de convergência. O Dumbledore disse que algumas visões carregam sinais do que está por vir. E que quando eu vejo você e o Voldemort juntos assim… é porque esse confronto está se aproximando. É inevitável. E a magia está tentando me preparar pra isso.

Harry balançou a cabeça devagar, absorvendo aquilo como quem junta peças de um quebra-cabeça que sempre soube que existia, mas nunca tinha conseguido montar.

— Não é errado. — A voz dele estava mais firme agora. — É importante. Talvez… mais do que a gente imagina.

Respirei fundo, olhando pro céu que já escurecia atrás das estufas.

— Às vezes, sinto que tem algo dentro de mim que não é só meu. Como se eu estivesse escutando um feitiço que começou muito antes de mim. E agora, é como se esse feitiço tivesse virado de direção.

Ele se aproximou. Só o bastante para que os ombros quase se encostassem.

— A gente vai descobrir o que é isso. Juntos.

Virei o rosto devagar. E então encontrei os olhos verdes dele — tão cheios de tudo o que não sabíamos como dizer, tão intensos que por um instante esqueci como se respirava direito.

Era nesses momentos que eu me odiava um pouco. Porque era impossível negar. Porque bastava ele me olhar assim pra que meu coração disparasse feito louco, como se fosse explodir de tudo o que eu ainda sentia. E quanto mais eu lutava contra isso, mais claro ficava: eu gostava dele. Mais do que queria. Mais do que podia.

— Obrigada… por acreditar.

Harry não respondeu de imediato. Apenas estendeu a mão, como se soubesse que palavras não bastavam. E eu, sem pensar muito, entrelacei meus dedos nos dele.

— Sempre acreditei — ele disse, enfim.

Simples. Verdadeiro.

E ali, com as mãos unidas no meio do silêncio que só nós dois entendíamos, eu soube: ele estava comigo. E pela primeira vez… eu acreditei também.



Continua...


Nota da autora: Esse capítulo? Um mix de treino voando alto, beijo clandestino nos corredores e surtos emocionais em três idiomas diferentes. tá vivendo a própria novela bruxa: gosta de quem não repara, beija quem devia evitar, sonha com duelo mortal e ainda tira 10 em feitiço não verbal. Uma rainha confusa? Com certeza.
Tem Hermione sendo terapeuta, Zabini sendo encrenca de terno, Harry sendo... Harry (aka: distraído e emocionalmente indisponível), e tentando não surtar com o símbolo brilhando no grimório E na alma.
Se você terminou esse capítulo suspirando, rindo nervoso ou gritando mentalmente “EU TE AVISEI”, tamo junto, porque foi assim que eu fiz quando terminei de escrever hahah!
Até a próxima, amorinhas! 🖤

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