Codificada por Lua ☾
Última Atualização: 18/04/25
A princípio, pensei que fosse o céu carregado — aquela névoa teimosa que se pendura nas janelas e sufoca o horizonte. Ou talvez fosse só saudade das montanhas quentes de onde vim, onde o céu sempre parece mais próximo da terra. Mas, no fundo, eu sabia. O mundo bruxo estava mudando. E não era para melhor.
Minha vida mudou completamente quando fui transferida de Uagadou para Hogwarts no terceiro ano. A transferência foi parte de um acordo silencioso entre o Ministério da Magia britânico e o Conselho Mágico Africano — um esforço para fortalecer alianças e trocar conhecimentos diante do crescimento de forças sombrias na Europa.
Meu pai, Jabari , tem pais africanos, mas nasceu na Inglaterra, era ex-aluno de Hogwarts e integrante do Departamento de Execução das Leis da Magia. Durante uma conferência internacional sobre combate às Artes das Trevas, ele conheceu minha mãe, Thandiwe — uma bruxa poderosa e estrategista do Conselho Mágico Africano.
Eles se apaixonaram rápido. Tão rápido que, poucos meses depois, meu pai deixou tudo para trás e se mudou para o Malawi com ela. Lá, reconstruíram a vida, formaram família e se tornaram aurores altamente respeitados por toda a comunidade bruxa do sul da África.
Então, quando o acordo entre os dois ministérios foi firmado, eles aceitaram. E eu… bem, eu não tive muita escolha além de seguir com eles.
Lá em casa, sempre me ensinaram que magia era adaptação — movimento, escuta, resposta. Mesmo assim, nada me preparou para o frio das varinhas britânicas, tão frágeis diante da força ancestral que crescemos respeitando. Os uniformes pesavam nos ombros como se quisessem me dobrar. Os corredores de pedra pareciam desconfiar da minha presença.
E os alunos… Bem, muitos me olhavam como se uma bruxa africana, sangue puro, herdeira de uma das linhagens mágicas mais antigas do sul, não devesse estar ali. Como se minha existência fosse um detalhe fora do roteiro deles.
Mas tudo ficou mais suportável quando conheci Harry Potter.
Ou melhor — quando o reencontrei.
Eu o tinha visto quando tinha onze anos, acompanhado de Hagrid, em uma rápida visita ao Beco Diagonal com meus pais, durante uma temporada em Londres. Lembro da confusão de lojas, das vozes se sobrepondo, e então dele: um menino franzino, olhos arregalados, uma cicatriz inconfundível na testa. Na época, pensei que era só uma história andando entre as pessoas. E talvez fosse mesmo.
Hermione me observou com desconfiança por duas semanas inteiras. Rony me irritava diariamente com sua combinação infalível de piadas ruins e boca cheia de torta. Mas com o tempo... nós quatro nos tornamos um tipo estranho de família. Um quarteto improvável, costurado por feitiços, sarcasmos, segredos — e, agora, medo.
O retorno de Voldemort.
A morte de Sirius.
O mundo tremia, mesmo quando os jornais insistiam em negar. E eu sentia tudo isso no corpo. Nos sonhos. Como se os próprios ossos pressentissem tempestades.
— Vai ser um ano longo — murmurei para mim mesma, enquanto amarrava os últimos rolos de pergaminho com um feitiço simples e automático. A mala já estava quase pronta, os livros alinhados, o grimório bem guardado. — Tomara que pelo menos o Snape não esteja insuportável.
Mas no fundo, eu sabia.
O sexto ano traria mais do que trevas.
Traria também verdades enterradas, beijos inesperados e a dolorosa, inevitável certeza de que amar alguém durante uma guerra mágica pode ser o feitiço mais perigoso de todos.
As nuvens se acumulavam no céu como se estivessem prestes a desabar a qualquer momento. Do segundo andar da casa, encostada no parapeito da janela, eu observava tudo em silêncio — os cotovelos apoiados na moldura fria, os olhos perdidos na paisagem cinzenta de Londres.
Já fazia dois dias desde que eu havia retornado de Malawi. Passei as férias de verão ao lado dos meus primos e amigos de infância, rindo alto sob o céu aberto, comendo frutas direto das árvores, estudando magia ancestral com minha tia mais velha, e fugindo do calor com feitiços de resfriamento ensinados por minha avó. Foram dias cheios — de sol, de barulho, de vida. E agora... tudo parecia suspenso. Como se o mundo estivesse apenas esperando algo ruim acontecer.
No andar de baixo, ouvia os passos dos meus pais, Thandiwe e Jabari , andando de um lado para o outro. Ser aurores nunca pareceu tão perigoso quanto agora. Desde que Voldemort voltara à ativa, nossa casa raramente passava um dia sem que alguém da Ordem da Fênix aparecesse. Mapas, recados cifrados, livros antigos e poções ficavam espalhados pela sala como se fizessem parte da decoração.
Meu pai estudou em Hogwarts na mesma época que Tiago Potter, Sirius Black e Remus Lupin. Eles não eram exatamente melhores amigos — segundo ele, ninguém era, a não ser entre si —, mas compartilhavam algumas aulas, partidas de Quadribol e uma certa rebeldia que vez ou outra o colocava em encrenca com Filch.
Foi essa conexão antiga que reacendeu os laços com Dumbledore anos depois, quando ele e minha mãe foram convidados a integrar a Ordem. De certa forma, era como se tudo estivesse conectado desde antes de eu nascer.
Suspirei, distraída, enquanto os dedos brincavam com o pingente em forma de lua pendurado no meu colar — um amuleto de proteção que herdei da minha avó materna. Era feito com magia antiga e tinha runas gravadas em um idioma que eu só começaria a entender anos depois de chegar a Hogwarts.
— ! — chamou minha mãe, batendo suavemente à porta. — Tonks acabou de aparatar no quintal.
— Já estou descendo.
Me afastei da janela com certa relutância e peguei o casaco jogado sobre a cama. A mala já estava pronta. Não que houvesse muita coisa a levar — sempre fui organizada — mas, naquele ano, até as coisas simples pareciam mais pesadas. E eu não sabia dizer se era o conteúdo da mala… ou o que eu mesma estava carregando por dentro.
Desci as escadas devagar. Encontrei meus pais na sala, os dois em trajes de missão: túnicas reforçadas, botas resistentes e varinhas sempre à vista.
— Se cuidem — pedi, abraçando os dois com força.
— Você também. E não baixe a guarda nem por um segundo — advertiu meu pai, ajeitando meu cachecol com um carinho contido. — As coisas estão piorando. Não sabemos exatamente o quê, mas... está se movendo.
— E confie no que sente — completou minha mãe. — A magia de Uagadou é ligada à intuição, você sabe disso. Seu corpo percebe antes da sua mente.
Assenti em silêncio. Às vezes, sentia que eles sabiam mais sobre mim do que deixavam transparecer.
Foi quando ouvimos o som de passos no quintal.
— Tá aberta! — gritou meu pai em direção à porta dos fundos.
Tonks entrou devagar, os ombros curvados e os cabelos em um tom castanho apagado, quase sem vida — bem diferente do rosa vibrante que eu sempre admirei nela. Ela sorriu, mas era um sorriso que não chegava aos olhos.
— Oi, pequena Corvinal — disse com a voz mais baixa que o normal. — Pronta pra mais um ano de confusão?
Hesitei um segundo antes de sorrir de volta.
— Se for menos confuso que o anterior, já estarei satisfeita.
Nos abraçamos, mas algo estava diferente. O corpo dela parecia mais rígido, menos caloroso. Notei. Era como se ela estivesse se segurando para não desmoronar.
— Você tá bem? — perguntei baixinho, ao me afastar. Ela riu, sem humor.
— Claro que tô. Só… cansada. Vida de auror, você sabe.
Assenti, mas continuei observando-a por um instante. Talvez fosse o modo como os olhos dela evitavam contato direto. Ou o fato de parecer menor dentro da própria capa.
Ainda assim, havia ali uma intimidade que o tempo não quebrava. Tonks sempre foi uma das poucas pessoas da Ordem que eu considerava amiga — e uma figura que, até pouco tempo, parecia inabalável.
Enquanto caminhávamos até a calçada, uma TV ligada na casa vizinha capturou minha atenção por um instante. O som escapava pela janela aberta:
“...estranhos desaparecimentos continuam a intrigar a polícia. Autoridades dizem não haver pistas, mas moradores relatam aparições estranhas, luzes no céu e sumiços repentinos...”
Tonks percebeu que eu tinha parado e olhou na mesma direção.
— Você sente também, né? — perguntou, com a voz baixa e rouca. Como se falar aquilo fosse difícil. Demorei alguns segundos para responder.
— Como se o mundo estivesse… se contorcendo por dentro. Sim. Sinto. — Ela soltou um suspiro pesado, olhando para o chão.
— Você tem o dom, . Nunca ignore isso.
Virei o rosto para ela, mas Tonks já tinha endireitado a postura, como se tentasse se recompor por fora para esconder o que se despedaçava por dentro.
E então, aparatamos.
Naquela fração de segundo entre sumir e reaparecer, senti algo gelado passar por dentro do peito. Não era só a mágica do transporte. Era uma sensação que vinha crescendo desde o fim do último ano. Como um aviso sussurrado em outra língua.
Reapareci na calçada de King's Cross. A chegada à estação foi menos caótica do que imaginei — considerando que Tonks quase tropeçou, mas não esboçou o costumeiro bom humor.
— Nada como começar o dia com elegância — provoquei, pegando minha mala. Ela forçou um sorrisinho.
— Pelo menos não apareci dentro do armário de vassouras como no ano passado… — ela tentou brincar — Agora vai. Seus amigos estão por ali — disse, apontando sem muito entusiasmo. — E… me manda uma coruja, tá?
Assenti, mas demorei um segundo a mais para me afastar. Algo nela estava quebrado. E por algum motivo, senti que aquilo ainda importaria.
Ajustei o colar sob o cachecol e segurei firme a alça da mala. Cruzei o saguão, desviando dos trouxas apressados com malas e cafés nas mãos. Eu sabia o caminho. Sabia o ritmo da respiração para atravessar a parede com naturalidade. Sabia até o ponto exato da plataforma onde o vapor do trem fazia redemoinhos no ar.
Mesmo assim, meu coração deu um salto quando vi uma mancha ruiva e um cabelo castanho familiar do outro lado.
— ! — Hermione acenou com entusiasmo. Rony, ao lado, parecia entediado, com a mala escancarada aos pés.
— Estavam planejando embarcar sem mim? — perguntei, sorrindo. — Que feio.
— A gente estava planejando, sim — disse Rony, já vindo para um abraço desajeitado. — Mas a Hermione achou que você ia aparecer e me obrigou a esperar. Como sempre.
— Que bom que ainda obedece, Rony. Um dia você vai ser um ótimo labrador — retruquei, erguendo a sobrancelha.
Hermione riu. Rony bufou.
— E você ainda com essa ironia matinal. Já posso sentir o cheiro de café e sarcasmo no ar.
— São os dois pilares da minha personalidade.
Hermione nos observava com carinho, e por um momento, a leveza parecia quase real.
Quase.
Porque no instante seguinte, senti aquele frio estranho de novo. Uma mudança no ar. Me virei antes mesmo de ouvir a voz.
— Oi. — disse Harry, se aproximando.
Ele estava diferente. Não exatamente no rosto, mas no jeito como caminhava, no peso nos ombros, nos olhos mais fundos do que no verão anterior. E quando nossos olhos se encontraram, senti como se o tempo tivesse desacelerado só o suficiente para que o silêncio dissesse tudo o que não conseguíamos.
— Harry — murmurei, com um aceno quase contido.
— — respondeu ele, sem desviar o olhar.
Por um momento, ninguém disse nada. Hermione limpou a garganta, como se quisesse cortar o ar com alguma frase inteligente, mas só ajeitou a alça da bolsa.
— Vocês dois vão se encarar o ano todo? — perguntou Rony, impaciente.
Ri, embora meu coração ainda estivesse acelerado. Harry desviou o olhar com um sorriso contido, colocando a mala no chão.
— Vamos entrar? — sugeriu Hermione, já puxando a gente para o trem.
Enquanto caminhávamos até a porta do Expresso de Hogwarts, mantive os olhos fixos no chão de pedras.
Mas, no fundo, eu sabia.
Aquele olhar — aquele breve segundo a mais — ia ecoar por dias.
Ou meses.
O compartimento era pequeno demais para tanto silêncio.
Hermione fingia ler um livro. Digo fingia porque eu conheço aquele franzir de sobrancelha dela quando está distraída demais para absorver uma linha sequer. Rony mordiscava uma caixa de Sapos de Chocolate com a concentração de quem tenta decifrar um enigma bruxo. E eu… eu encarava a paisagem cinzenta pela janela, mas meus olhos não viam nada de fato. Harry estava sentado bem à minha frente. Quieto. Mais quieto do que o normal — e vindo dele, isso já era dizer muito.
O trem ganhava velocidade, serpenteando pelos campos como um bicho enorme, bufando vapor e estalos a cada curva. Estávamos, mais uma vez, a caminho de Hogwarts. Mas havia algo de diferente naquele retorno. Nem o som do trem parecia igual aos anos anteriores. E muito menos a forma como eu me sentia dentro dele.
Eu já não era a mesma.
— Vocês ouviram sobre o que aconteceu em Cardiff? — a voz de Hermione cortou o silêncio, firme, puxando-nos de volta à realidade.
Desviei o olhar da janela e ergui uma sobrancelha, tentando parecer menos inquieta do que realmente estava.
— Mais um ataque?
— Dois — ela respondeu, baixando o livro com a expressão fechada. — Uma família inteira desapareceu e uma loja de artigos mágicos foi completamente destruída. O Ministério diz que está “investigando”, mas ninguém acredita nisso.
Rony bufou, indignado.
— O Ministério não consegue investigar nem uma abóbora podre.
— Dumbledore está tentando agir por fora, com a Ordem — continuou Hermione, ignorando o comentário. — Mas está cada vez mais difícil. E, francamente, eu não entendo por quê.
Cruzei os braços e me recostei no banco, sentindo o balanço sutil do trem.
— Talvez porque Dumbledore tenha um plano maior. Minha mãe acha que ele está andando por uma linha muito fina.
— Sua mãe sempre acha que alguém está andando por uma linha fina — retrucou Rony, com uma careta.
— E, normalmente, ela está certa — murmurei, sem conter um sorriso.
O silêncio voltou a tomar conta do compartimento. Um daqueles silêncios densos, que ocupam espaço entre os corpos, como se os pensamentos ganhassem peso… Mas não durou.
— Ei, como foram as férias, ? — perguntou Rony, com a boca ainda parcialmente cheia de sapo de chocolate. — Em Malawi de novo, né? Aposto que lá não tinha um verão molhado igual ao nosso.
Sorri de canto, pousando o olhar na paisagem que deslizava pela janela.
— Tinha calor, sim. E muita poeira mágica no ar. Mas foi bom... Passei os dias com meus primos, minhas tias, treinei alguns feitiços ancestrais com a minha avó. Acordava com cheiro de chá de hibisco e adormecia ouvindo histórias de espíritos antigos. Nada de azarações em banheiros ou explosões em aulas de Poções. — Fiquei nostálgica ao recordar. — Foi... intenso. Mas tranquilo.
— Isso parece o oposto completo das nossas férias — murmurou Hermione, com um sorriso fraco. — Espera… você não sabe tudo o que aconteceu, né? Enquanto estava fora?
— Fora uma ou outra carta da minha mãe? Não. Por quê? — respondi, arqueando uma sobrancelha. — Inclusive... vocês não me escreveram.
Rony se ajeitou na poltrona, meio ofendido.
— Ei, você também não escreveu pra gente! Nós achamos que você queria sumir do mapa.
— Eu tava no interior do Malawi, Rony. Onde as corujas levavam três dias pra encontrar uma janela. E ainda assim, uma carta caberia, né?
— Tá bom, então a culpa é coletiva — retrucou ele, cruzando os braços. Hermione suspirou, já acostumada com os dois.
— Ok, ok... já deu. Vamos considerar que foi o caos do verão e seguir em frente, pode ser?
— Por mim, tudo bem — disse, ainda olhando de lado pra Rony.
— Ótimo — respondeu ele, mas o tom dele dizia nem tanto. Hermione rolou os olhos.
— Agora que o clima natalino passou... Rony, conta logo pra ela, porque eu sei que você quer contar as novidades — disse Hermione, cruzando os braços.
Rony se animou imediatamente, como se tivesse esquecido completamente da rusga anterior.
— O Harry agora é oficialmente um herdeiro. Herdou tudo do padrinho. O testamento saiu durante o verão. — Me virei para Harry, surpresa.
— Sério? — Ele assentiu, o olhar um pouco vago, claramente desconfortável com o assunto.
— O Grimmauld Place é meu agora. E o Monstro também… infelizmente.
— Harry… — minha voz saiu mais suave do que eu esperava. — Como você tá com isso? Porque... foi tudo tão recente. A morte do Sirius. A guerra espreitando. E agora isso? — Ele deu de ombros, sem muita vontade de elaborar.
— É estranho. Parece que... quanto mais as coisas mudam, mais tudo fica pesado.
— Rony — murmurou Hermione, com o cenho franzido —, você não podia ter contado isso de um jeito mais... gentil? Ele acabou de perder o padrinho, sabia? — Rony piscou, desconcertado.
— Eu só... achei que ela queria saber.
— Tô bem — disse, depois de um tempo. — Ou tentando estar.
Houve um breve silêncio, daqueles que não são constrangedores, mas que carregam peso. Aquele tipo de pausa que ninguém ousa quebrar com pressa.
Hermione foi quem retomou, com o olhar atento em mim.
— E isso não é tudo.
— Claro que não é — murmurou Rony, mexendo na embalagem de um sapo de chocolate. — Dumbledore levou o Harry pessoalmente para convencer um professor aposentado a voltar a dar aula. Um tal de Horácio Slughorn.
— Slughorn? — franzi o cenho. — Nome de poção ou de porco mimado?
Rony riu alto. Hermione reprimiu um sorriso, mas continuou.
— Ele foi professor em Hogwarts anos atrás. Tem uma certa obsessão por alunos “promissores”...
— “Promissores” como em talentosos ou... com sobrenomes importantes? — perguntei, arqueando uma sobrancelha.
Harry respondeu antes que Hermione pudesse defender.
— Os dois. Ele é... estranho.
— Vive colecionando pessoas — completou Rony. — Como se estivesse montando um álbum de figurinhas influentes.
Hermione suspirou.
— A verdade é que Dumbledore queria que o Harry se aproximasse dele por um motivo. E até agora, ninguém sabe exatamente qual.
Me recostei no assento, cruzando os braços.
— Então, o velho está jogando xadrez com peças vivas de novo.
— E, adivinha — disse Harry, com ironia seca. — Eu sou o peão de ouro da vez.
Meu olhar encontrou o dele por um instante, e não foi preciso dizer nada. A gente sabia como era. Ser puxado pra um jogo que ninguém explicou as regras.
Rony continuou:
— Ah, e também teve o lance do Draco — Rony continuou. — A gente o seguiu no Beco Diagonal. Ele entrou numa loja de magia das trevas, a Borgin & Burkes.
Minha expressão se fechou de imediato.
— Isso foi quando?
— Pouco depois do aniversário do Harry — disse Hermione. — Ele estava estranho. Parecia estar negociando alguma coisa.
Olhei para Harry, sentindo um aperto leve no peito. Tinha muita coisa acontecendo — mais do que eu podia imaginar quando ainda estava do outro lado do mundo. E a sensação de que algo importante estava escapando pelos dedos só aumentava.
De repente, a porta do compartimento se abriu com um baque leve.
— Harry? — era Gina.
Os cabelos presos em um coque bagunçado, os olhos brilhando com uma urgência que eu não sabia explicar. Só… senti.
— Me dá um minuto? — ela perguntou, encarando Harry.
Ele hesitou, mas assentiu. E se levantou.
Instintivamente, desviei o olhar. Rápido demais para parecer casual. Lento demais para passar despercebido por Hermione. A porta se fechou atrás dele, e eu fingi examinar a costura do meu casaco como se aquilo fosse a coisa mais fascinante do universo.
— Você está diferente com ele — disse Hermione, direta como sempre.
— Com quem?
— Harry. — Revirei os olhos.
— Ah, claro. Tô sim. Tô super diferente com o Harry. Comecei a usar o nome do meio dele em pensamentos dramáticos, inclusive. Tiago. Harry Tiago Potter. Soa muito mais intenso assim.
Rony riu alto, quase engasgando com o chocolate.
— Essa tensão dá pra cortar com uma varinha cega. Juro por Merlim.
— Vocês dois são insuportáveis — murmurei, já impaciente.
— E você é péssima mentirosa — devolveu Hermione, com aquele tom de quem já sabe a verdade.
Suspirei, ainda com os olhos na porta fechada.
A verdade? É que tudo começou no ano passado. Quando Harry se aproximou da Cho. E eu… eu não sabia o que doía mais: vê-lo tentando colar os cacos de uma garota em pedaços, ou perceber que eu também estava quebrando em silêncio.
E então veio Gina. Vibrante, valente, bonita de um jeito que não pedia licença para existir. Era impossível não gostar dela. E justamente por isso, tudo ficou ainda mais complicado.
Quanto mais eu gostava da Gina, mais doía ver os dois juntos. Porque cada toque de mãos, cada sorriso, cada olhar… era como um lembrete de que havia um feitiço agindo ali. Um feitiço que ninguém lançou — mas que, de algum jeito, agia toda vez que Harry e eu ficávamos sozinhos por mais de três segundos.
— Eu não estou preocupada com o Potter. Ele tá bem entregue — falei, tentando parecer firme.
Mas não consegui esconder o que veio depois: o olhar. Aquele maldito olhar cheio de perguntas não feitas.
A volta de Harry ao compartimento deveria ter me aliviado. Mas não foi. Foi como respirar dentro de um armário fechado.
Ele se sentou de volta, abaixou a cabeça e disse algo em voz baixa para Hermione. Rony estava entretido com um jogo de Snap Explosivo e nem percebeu. Mas eu ouvi. Não pelas palavras. Pelo tom.
— Ela só queria... entender — murmurou Harry, os olhos baixos.
— E você? Já entendeu? — respondeu Hermione, num sussurro cuidadoso.
— Não sei. Às vezes parece certo. Outras vezes... parece só errado no tempo errado.
— Você precisa ser honesto — disse ela. — Principalmente com você mesmo.
Harry soltou um suspiro contido, recostou a cabeça no vidro da janela, os olhos fixos do lado de fora. Mas eu sabia que ele não estava vendo nada além da própria confusão.
Fingi que estava muito ocupada ajeitando a manga do casaco. Não precisavam dizer o nome dela. Eu já sabia.
Sabia pelos olhos de Gina brilhando no corredor. Sabia pelo jeito que Harry hesitou antes de sair da cabine. Sabia pelo silêncio carregado que agora existia entre ele e Hermione.
— Estão falando em código de novo? — reclamou Rony. — É como conviver com dois trasgos acadêmicos.
Forcei um sorriso. Mas por dentro, algo em mim se contorcia devagar. Como se eu já soubesse que a batalha que estava por vir não seria só contra as sombras do mundo mágico. Mas também contra as que moravam dentro de mim.
— Vou… pegar um pouco de ar — anunciei, levantando de repente. — Tá meio abafado aqui.
Hermione me observou com atenção, mas não disse nada.
Saí para o corredor e respirei fundo, como quem tenta se manter inteira, mas já não tinha certeza se conseguiria.
Idiota.
Era a única palavra que ecoava na minha cabeça enquanto caminhava pelos corredores do Expresso de Hogwarts. Idiota. Repeti de novo, quase como um feitiço contra mim mesma. Você é uma bruxa treinada em Uagadou, conhece feitiços que esses britânicos nem sonham. E vai mesmo perder a cabeça por causa de Harry Potter… e um maldito minuto entre ele e Gina Weasley?
Ridículo.
Balancei a cabeça, tentando afastar os pensamentos como se fossem fumaça incômoda. Eu precisava me recompor. Ignorar. Respirar. Passaria. Sempre passava. Mas o coração ainda martelava no peito com mais força do que eu gostaria de admitir, e era exatamente por isso que continuei andando, querendo deixar aquilo para trás — ou pelo menos, fingir que deixava.
Foi então que ouvi.
Vozes abafadas, urgentes, vindo de uma das cabines.
Eu ia passar direto — juro que ia. Mas algo naquela voz me fez parar no mesmo instante. Draco Malfoy.
Me aproximei sem pensar, os passos suaves sobre o carpete, o corpo se inclinando ligeiramente até o vão da porta entreaberta. Os sussurros escapavam aos pedaços, cortados pelo som constante do trem sobre os trilhos.
— …o plano está em andamento. — Era Draco. A voz baixa, tensa. Quase… assustada?
— E se falhar? — respondeu outra voz que reconheci de imediato: Blaise Zabini. — Você sabe o que ele faz com quem decepciona.
— Snape fez o voto. Ele vai manter a promessa. Só preciso que você…
A frase morreu no ar.
A porta se abriu de repente e Draco saiu. Me encarou.
Por um instante, ficamos parados. Eu, no corredor, com o sangue gelado; ele, com a surpresa mal disfarçada antes de vestir o velho manto do desdém. Aquela expressão vazia que usava como armadura sempre que se sentia ameaçado.
— Curiosa, ? — perguntou, cruzando os braços com teatralidade.
— Só estava andando — respondi, firme, mantendo o olhar nos olhos dele. — Não sabia que espiões usavam compartimentos comuns.
— E eu não sabia que corvinais gostavam de brincar com fogo.
— E eu achei que você estivesse ocupado demais tentando parecer perigoso pra ter tempo de sussurrar conspirações com o Zabini.
Ele deu um passo à frente. Eu não recuei.
— Não se meta com o que não entende — rosnou, a voz mais baixa agora. Gélida.
— Já entendi o suficiente pra saber que você está enfiado em alguma coisa. E se acha que eu vou ficar quieta...
— Você não vai fazer nada — cortou, seco. — Porque ninguém acredita em gente que vive no meio do caminho. Nem da Grifinória. Nem da Sonserina. Nem da África. Você não pertence a lugar nenhum.
Doeu. Não posso mentir. Aquelas palavras atingiram um lugar fundo, escuro. Mas eu me recusei a dar a ele o prazer de ver.
Atrás de Draco, Blaise me observava com um sorriso preguiçoso e condescendente, como se estivesse assistindo a uma peça muito boa. Eu o ignorei completamente.
— Pelo menos eu não preciso fingir coragem pra esconder medo.
Os olhos de Draco brilharam por um instante. Mas ele não respondeu. Apenas se virou e voltou para a cabine, batendo a porta com força suficiente para fazer o corredor tremer.
Fiquei ali. Parada. O corpo inteiro tenso.
Um arrepio percorreu minha espinha, mas não era só raiva. Era aquela sensação de novo. Aquilo que sussurrava pelas frestas do mundo, avisando que algo estava se movendo errado. Como se, naquele ano, ninguém estivesse realmente seguro. Nem mesmo dentro do trem.
Fechei os olhos por um segundo. Depois continuei andando. Mas cada palavra daquela conversa ficou gravada na minha mente. Cada expressão. Cada silêncio. E ali mesmo, naquele corredor, jurei a mim mesma: eu vou descobrir o que Draco Malfoy está escondendo.
— Potter! Srta. !
A voz animada e arrastada de Horácio Slughorn atravessou o corredor feito um raio, me arrancando dos pensamentos enquanto Harry e eu deixávamos a cabine para esticar as pernas.
Nos viramos ao mesmo tempo, meio pegos de surpresa.
— Venham, venham! — insistiu ele, agitando os braços roliços cobertos de anéis. — Tenho um compartimento reservado só para alguns alunos… especiais. Uma pequena seleção informal, nada demais.
Olhei para Harry. Ele parecia já saber do convite.
— Vai ver você tá na lista agora também…
— Que honra — murmurei, sem conseguir esconder a ironia.
O compartimento do Clube do Slug era maior, mais ornamentado — se é que toalhas floridas improvisadas e uma bandeja com doces mágicos contavam como "decoração". Lá dentro, Neville tentava parecer confortável numa cadeira apertada; Ginny mordiscava uma bala saltitante; Blaise Zabini, claro, encostado no canto com cara de tédio superior; Marcus Belby suava como se estivesse numa sauna; e Cormac McLaggen… bom, ele falava alto demais sobre uma partida de quadribol que ninguém perguntou.
Slughorn nos apresentou com entusiasmo.
— Todos aqui têm algo em comum: conexões. Potencial. História! E nada melhor do que conhecer essas histórias logo no início do ano.
E ele começou com quem, é claro? Harry.
— O famoso Sr. Potter. Herdeiro de uma linhagem poderosa… James, Lily, e agora, veja só, o garoto que sobreviveu, estrela do time de quadribol, membro da Ordem da Fênix. Já pensou em diplomacia, Harry?
— Prefiro sobreviver à aula de poções — retrucou ele, seco. Algumas risadas ecoaram. Blaise, como sempre, revirou os olhos.
Slughorn continuou, perguntando coisas aos outros, até que seus olhos caíram sobre mim. E ali estava. O brilho de interesse que eu conhecia bem. O que vinha antes da pergunta que sempre vinha.
— E você, Srta. . De onde vem esse sobrenome maravilhoso?
Respirei fundo antes de responder.
— Minha família é do Malawi, professor. Mas moro em Londres. Estudei em Uagadou antes de vir para cá.
— Uagadou! — exclamou ele, como se tivesse encontrado uma relíquia. — Escola de magia africana, no alto das Montanhas da Lua. Fascinante! Poucos têm contato com sua magia ancestral. E sua família? Bruxos há muitas gerações?
O tom era de admiração. Mas por trás dele, eu sentia o peso. Como se ele estivesse medindo o meu valor antes de decidir o quanto de atenção mereço.
— Somos sangue puro, sim — respondi, firme, sem sorrir. — Mas minha família prefere ser lembrada pelas escolhas que faz, não pelas heranças que carrega.
Por um segundo, o silêncio reinou. McLaggen pareceu não entender nada. Blaise me olhava com aquele mesmo sorrisinho enviesado de antes. Como se estivesse me estudando.
— Admirável! — disse Slughorn, sorrindo largo. Talvez nem tivesse notado a crítica. — Precisamos conversar mais, Srta. . A senhorita parece ter muito a oferecer.
Oferecer. Que palavra.
Forcei um sorriso educado. Mas por dentro, queria sair dali o quanto antes.
Quando deixei o compartimento, meus passos estavam mais lentos do que eu queria admitir. Slughorn ainda ria alto de alguma piada imbecil do McLaggen, e Harry, logo depois, sumiu com a capa da invisibilidade escondida debaixo do braço. Nem me explicou. Só foi.
Neville caminhava ao meu lado, em silêncio, as bochechas ainda vermelhas — não sei se pelo calor da cabine ou pela pressão da conversa. Talvez pelos dois.
— Eu odeio essas coisas — murmurou, sem me olhar. Ergui uma sobrancelha, surpresa.
— Achei que você tivesse se saído bem.
— Só fiquei calado. Foi a melhor estratégia — respondeu, com um sorriso torto. — Melhor do que abrir a boca e deixar escapar que a única coisa que minha avó acha que herdei dela foi o talento para derrubar vasos.
Soltei uma risada curta e verdadeira. Depois suspirei.
— Achei que já estivesse acostumada com perguntas invasivas, mas... ele tem um jeito de transformar curiosidade em escaneamento. Me senti sendo classificada.
— Você foi incrível — disse Neville, sincero.
— Mas ele não se impressionou comigo. Só com o meu “potencial”. Com o nome da minha família. Com o fato de eu ter vindo de Uagadou. Ele queria me encaixar numa daquelas caixas brilhantes que pode exibir na estante e dizer: “vejam, essa aqui é promissora”.
Neville ficou em silêncio por alguns segundos.
— Ele faz o mesmo com o Harry — disse, baixo.
— Eu sei. Mas com o Harry… ele já espera algo. Comigo, parecia que ainda estava decidindo. Como se eu fosse um investimento.
Passei a mão no meu colar, inconscientemente. O gesto sempre vinha quando eu precisava me lembrar de quem eu era.
— Em Uagadou, ninguém precisava saber de onde sua família vinha pra te respeitar. Era o que você fazia com sua magia que contava. Aqui... às vezes parece que o valor das pessoas vem dos nomes que as precedem.
Não é que eu ainda não esteja acostumada. Já estou em Hogwarts há três anos, mas tem coisas que continuam cutucando do mesmo jeito.
Neville soltou um som de concordância, quase um suspiro.
— Acho que por isso a gente precisa estar aqui. Pra mudar esse tipo de pensamento.
Parei. Olhei pra ele, a calma na voz dele. A certeza. A gentileza.
— Obrigada, Neville.
— Por quê?
— Por não tentar diminuir o que eu senti. Por só… ouvir. — Ele sorriu de lado, modesto.
— Eu sou bom nisso. Crescer sendo “o neto da Augusta” me deu prática.
Seguimos em silêncio pelo corredor. E, pela primeira vez desde que o dia começou, senti o incômodo dar um passo para trás. Ele ainda estava lá. Mas agora… havia também algo mais.
O reconhecimento silencioso de que, mesmo num lugar onde o meu nome era uma lupa sobre quem eu sou, ainda existiam pessoas que me viam. De verdade.
A movimentação nos corredores ia diminuindo à medida que os alunos se preparavam para descer do trem. A agitação se transformava em silêncio aos poucos, como se o Expresso de Hogwarts estivesse se esvaziando por dentro. Eu voltava para o compartimento depois de deixar um recado para a Luna com a monitora da Corvinal — nada demais, só combinando de encontrá-la depois da cerimônia. Mas, ao virar a última curva do corredor, um arrepio subiu pela minha espinha.
Parei no mesmo instante.
Algo estava errado.
Não era o silêncio, nem a ausência de passos, nem o som do trem rangendo. Era outra coisa. Um sussurro de magia no ar. Familiar. Abafada, mas viva. Meu corpo reconheceu antes mesmo que minha mente entendesse.
Me aproximei devagar de uma cabine com a porta entreaberta, os sentidos em alerta. Foi então que ouvi. Um som quase imperceptível — como se alguém ali dentro estivesse prendendo a respiração por tempo demais.
Empurrei a porta com cautela. E congelei.
— Merlim... — sussurrei. — Harry!
Ele estava caído no chão, completamente rígido. A mão ainda segurava a Capa da Invisibilidade, que escorregava pelo ombro. O rosto virado para o lado, o nariz sangrando, os olhos abertos e imóveis.
O mundo pareceu parar por um instante. Meu coração começou a martelar no peito.Me ajoelhei ao lado dele imediatamente, sentindo a adrenalina correr por cada músculo do meu corpo. Reconheci na hora o que era Petrificus Totalus. Mas quem...?
Não perdi tempo, eu sabia que não podia fazer feitiço sem varinha, mas foi mais forte do que eu.
— Finite Incantatem.
O feitiço se desfez com um estalo leve, e o corpo de Harry relaxou de imediato. Ele arfou, puxando o ar com dificuldade, os olhos piscando em confusão.
— ...? — murmurou, a voz fraca e rouca.
— Shhh... não tenta falar ainda — respondi, puxando um lenço do bolso e pressionando com cuidado o sangue que escorria do nariz dele. — Quem fez isso? Foi o Malfoy, não foi?
Ele assentiu, tentando se sentar. Estava fraco. Atordoado.
— Aquele escroto… — sussurrei, sentindo a fúria subir como fogo sob a pele. Olhei ao redor rapidamente e fechei a porta da cabine com um gesto seco.
— Obrigado... — ele disse, ainda tonto. — Por me achar.
Respirei fundo. Tentei domar a tempestade dentro de mim. Mas então vi quando ele levou a mão ao rosto com uma careta. Notei o inchaço ao redor do nariz torto.
— Espera… não se mexe.
Com minha mão direita apontei em direção ao seu nariz. Ele me olhou de relance, como se estivesse se preparando para levar outro feitiço.
— Vai me enfeitiçar?
— Não — respondi, com uma pitada de ironia. — Só consertei seu rosto. Que, aliás, estava bem menos torto ontem.
— Muito gentil da sua parte — retrucou Harry, arqueando uma sobrancelha, enquanto eu sorria de canto, focando no feitiço.
— Episkey.
Um estalo seco. Ele recuou levemente com um gemido abafado.
— Tá melhor?
— Ai… sim. Mas ainda lateja.
— Reclama mais um pouco e eu aplico de novo, com mais entusiasmo — provoquei, cruzando os braços.
Ele riu, sem muito convencimento, e me lançou aquele olhar que sempre vinha antes de dizer algo sincero demais.
— Depois de tanto tempo, ainda é estranho te ver lançar feitiços sem varinha.
— É o meu jeitinho — murmurei, sem tirar os olhos dele.
Ficamos nos encarando por um instante. A tensão entre nós era a mesma — ou talvez mais intensa. Como um feitiço silencioso, lançado há muito tempo e nunca desfeito.
E então, quase sem pensar, me inclinei e o abracei.
O gesto me pegou de surpresa tanto quanto o pegou. Seu corpo estava quente, ainda trêmulo. Por um segundo, ele hesitou. Mas depois, me envolveu com os braços, e ali eu senti.
O peso daquele momento.
Não era só um abraço. Era tudo que eu ainda não sabia dizer em voz alta. Tudo que estava se acumulando nos olhares longos demais, nos silêncios carregados. Quando me afastei, nossos olhos se encontraram. Por tempo demais.
— Isso foi...
— Só um abraço — falei, rápido demais.
Mas eu sabia. Não era só isso.
O ajudei a se levantar. Ignorei meu próprio cansaço. A adrenalina ainda me guiava. Mantive a mão firme nas costas dele enquanto caminhávamos pelos corredores quase vazios. O trem rangia nos trilhos, naquele passo preguiçoso de quem está prestes a parar por completo.
— Consegue andar sozinho? — perguntei, em um sussurro tenso.
— Consigo. Tá doendo, mas eu consigo.
O rosto dele ainda tinha uma leve mancha seca de sangue, mas o pior eu já havia limpado. Ele ajeitou a capa do uniforme com pressa, tentando parecer mais apresentável.
— Ninguém pode saber disso — murmurou.
Assenti com seriedade. Ele não precisava explicar.
A porta do trem se abriu com um rangido metálico, e uma rajada de ar frio cortou o corredor. O ar de Hogsmeade sempre parecia mais gélido no primeiro dia do ano. Como se a noite quisesse lembrar a todos que as férias tinham acabado.
A plataforma estava envolta por vapor espesso. Os sons se misturavam: passos apressados, alunos chamando uns aos outros, o bater de asas inquieto dos testrálios. Mesmo com o movimento, tudo me pareceu mais escuro do que deveria.
Harry caminhava ao meu lado. Um pouco mais firme agora, mas ainda visivelmente exausto. O guiei até uma carruagem vazia, afastada das demais. Nenhuma palavra entre nós. Mas havia um acordo silencioso no ar.
Quando a porta da carruagem se fechou, o mundo pareceu ficar mais distante. O som abafado das rodas na estrada, o sussurro das árvores ao redor. E nós dois ali. Só nós dois.
— Você não vai perguntar por que eu estava escondido? — ele quebrou o silêncio, a voz rouca.
— Eu já sei — respondi, sem desviar os olhos da janela. — Você seguiu o Malfoy.
Ele se ajeitou no assento, surpreso.
— Como? — Virei o rosto para ele, devagar.
— Porque eu também ouvi o Malfoy. No trem. Ele e o Zabini. — Harry ficou quieto por um instante, atento.
— O que você ouviu?
— Não muito. Mas o suficiente pra saber que ele está envolvido em algo grande. Ele disse que “o plano está em andamento”… e que “Snape fez o voto”.
Vi os punhos de Harry se fecharem sobre os joelhos.
— Então não é só paranoia minha.
— Nunca foi — falei, firme. — O problema é que ninguém quer ver. Ninguém quer acreditar que o Malfoy já foi tão longe.
Ele me olhou com mais atenção, como se estivesse tentando entender alguma coisa além das palavras.
— E você? Por que você acredita? — Hesitei por um segundo. Depois soltei devagar:
— Porque eu sei como é sentir quando a magia muda. Quando as intenções de alguém escurecem. Em Uagadou, a gente aprende a sentir antes de entender. E desde o início do verão… tudo tem me dito que algo está vindo. Algo que começa por ele.
Ele ficou em silêncio, absorvendo cada palavra. E quando falou, sua voz era mais suave.
— Obrigado… por isso. E por antes. — Dei um meio sorriso, puxando o humor de volta.
— Você vai me dever muitos favores depois disso, Potter.
— Que ótimo — ele resmungou, tentando sorrir também. — Porque não bastava ter que derrotar um Lorde das Trevas.
Rimos baixo. E o silêncio que se seguiu não era mais pesado. Nos olhamos por um instante. E ali, naquela penumbra, onde ninguém podia ver, algo mudou.
Não foi dito.
Mas estava lá.
Alguns feitiços não são lançados. Eles apenas… acontecem. E não podem ser desfeitos.
Continua...
Nota da autora: Minha primeira fanfic de HP. Confesso que essa história já passou por inúmeras roupagens, mas agora eu finalmente encontrei uma que me agrade. Espero que gostem. <3
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