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Revisada por Aurora Boreal 💫
Finalizada em: Abril/2025

Outono de 2017, Saragoça



Esta sou eu, Salvatore.
Minha vida não era exuberante e nem monótona, mas tinha um equilíbrio que me mantinha confiante em minhas conquistas futuras. Mesmo sendo filha de um chefe da máfia espanhola, meu caráter contraditório a todos da família era totalmente notório por andar sob lei e não concordar com as práticas erradas do meu pai. Porém, ser ré primária não me impediu de ser enviada para a Penitenciária Feminina Madre Celestes, em Saragoça.
Todo o caos se instaurou após o assassinato de meu pai.
Todas as provas e testemunhas compradas apontavam como a executora sendo eu, a filha única e herdeira dos bens adquiridos por meu pai em vida. Claro que todos frutos do crime e muito bem avaliados financeiramente. E comigo incriminada, os beneficiários de toda aquela fortuna seriam meus dois tios gananciosos e os filhos invejosos.
Com o olhar fixo no teto da cela 37, repassava em minha mente todos os meus passos no dia em que meu pai morreu. Graças ao melhor sistema penitenciário do país, fui transferida da delegacia para a penitenciária com a descrição de ter sido presa “em flagrante”. Pelo menos, era essa a verdade relatada em minha ficha criminal recém criada. Era estranho logicamente admitir que uma pessoa com o currículo impecável como o meu pudesse ter feito o que fez. Melhor aluna do curso de jornalismo da Universidade Complutense de Madrid, vencedora de diversos concursos de redação, voluntária no orfanato local e engajada em diversas campanhas sociais.
Salvatore! — A carcereira chegou na porta da cela e me chamou.
A mulher apelidada de Carrancuda por mim estava ainda mais de mau-humor naquele dia. Rolavam boatos que Constance tinha apanhado novamente do marido, então certamente iria descontar nas detentas sua frustração por não ter coragem de deixar o homem que a machucava.
— O que foi agora? — Mantive o deboche na voz.
— Mais respeito, Salvatore, e se levante, o diretor quer falar com você. — Ela bateu seu cacetete na grade da cela e abriu.
Suspirei fraco e me levantei. Permaneci com meu olhar sarcástico para ela e a segui até a sala do diretor. O homem estava de pé perto da janela com o olhar para o pátio central. Em suas mãos, uma pasta amarela.
— Aqui está ela, senhor — disse Constance, ao me pegar pelo braço e me empurrar para dentro da sala.
— Obrigado pela sutileza — disse, com ironia. — Você é tão gentil.
— Acho melhor ficar quieta hoje, pois não estou de bom humor — advertiu ela, engrossando a voz.
— Pode nos deixar à sós, Constance — disse o diretor Hilt.
Ele esperou até que ela se retirasse e fechasse devidamente a porta.
— A que se deve minha visita desta vez? — perguntei, não abaixando minha cabeça para ele.
Naqueles quatro meses encarcerada, esperando meu julgamento sem data definida, eu já tinha passado por poucas e boas. Minha sobrevivência ali só dependia de mim e da minha coragem em não abaixar a cabeça pra ninguém.
Apanhei algumas vezes? Muitas.
Bati outras tantas? Com certeza.
Conhecia a solitária? Eu vivia nela.
Já tinha até mesmo passado pelo desprazer de ser assediada por um dos guardas, chamado Cortez. E eu ainda daria o troco naquele porco nojento que me forçou a comer restos por uma semana, só porque cortei sua cara com o regador de alumínio do jardim da ala leste. Até que a cicatriz que ficou não o deixou tão feio assim, não mais do que ele já era.
— Isso. — Ele ergueu a pasta, me mostrando. — Imagina o que possa ser?
— Não — respondi.
— Sua carta de liberdade — contou ele.
— Não diga. — Cruzei meus braços e mantive o olhar debochado. — Surpreenda-me. Semana passada disse que eu mofaria aqui sem um julgamento.
— O testamento do seu pai foi lido ontem à tarde, deve saber disso — continuou ele. — Todos os bens que era dele, na verdade, não foram deixados para você, e sim, para o orfanato em que trabalhava como voluntária.
— Olha que surpresa, eu honestamente não sabia — confessei, agora com sinceridade. — Não tenho tido tanta informação assim, nem mesmo pude acompanhar o funeral do me pai.
— Não se faça de inocente. — Ele jogou a pasta na mesa e me olhou mais sério. — Há boatos de que sabe onde está o cofre escondido do seu pai com a verdadeira fortuna dele.
— E o que isso lhe interessa? — Agora estava chegando no assunto que todos queriam.
O cofre escondido do meu pai.
Juan Salvatore, meu pai, era o homem mais astuto que conhecia. Ele sabia que em todo momento, sua vida e a minha também, corriam riscos. Lembro-me de quando criança, ele contar sobre esse cofre, até mesmo mostrá-lo a mim e confiar a senha. Sua verdadeira fortuna se mantinha ali. Não nos imóveis de fachada que, por um pedido meu, ele entregou ao orfanato Miral em seu testamento. Um fato curioso era sua filiação à uma sociedade fechada chamada Continuum. Um segredo que nunca ousou me contar detalhadamente, apenas dizia que se algo lhe acontecesse, esta mesma sociedade me protegeria dos meus inimigos.
— Nesta pasta tem um documento que lhe ajuda a sair daqui — continuou ele, não se importando com minha pergunta. — Você tem duas saídas, aceita o acordo e me entrega a localização e a senha, ou continua aqui e transformarei sua vida num inferno.
Agora senti a pressão em sua voz e vi a raiva em seu olhar.
Quando queria, o diretor Hilt conseguia ser muito cruel. Já tinha ouvido boatos de sua obsessão por uma presidiária, após abusar da pobre moça diversas vezes, a infernizou até que ela desistiu de viver. Ele não iria fazer isso comigo, nem que eu cometesse um homicídio de verdade agora. Eu já estava incriminada por aquele que não tinha cometido.
— Então acho melhor você ser criativo, pois não vou dar nem a você e nem aos meus familiares, que devem ter te prometido uma parte daquilo que meu pai deixou para mim. — Sorri de canto para ele.
— Constance! — ele gritou, com mais fúria ainda.
Rapidamente a carcereira adentrou a sala. O diretor a mandou me levar para a solitária. Aquilo era sinal de que eu ia apanhar bonito, e Constance já estava com o humor ideial para me bater. Unindo o útil ao agradável. Assim que chegamos na minha solitária favorita, Constance e mais duas carcereiras iniciaram a trigésima boas-vindas.
E sim, eu estava contando.

--

— Está liberada — disse Constance, sete dias após me deixar em confinamento.
— Como é bom ver seus olhos — brinquei, prepotente, não iria me abaixar nunca.
— Parece que não aprendeu com a reclusão. — Ela entrou, me pegando pelo braço. — O diretor me mandou te levar à enfermaria.
— Ele precisa de mim viva. — Eu ri da cara dela, mas sentindo meu queixo doer. — Se eu morrer, a grana morre comigo.
— Você tem sorte que hoje chegou o novo médico do presídio. — Ela soltou uma gargalhada maldosa. — Pelo que vi, ele parece ter caído nas graças do diretor, você está perdida.
Meu rosto ainda estava inchado, meu corpo dolorido.
Se nenhuma costela foi lesionada, foi sorte pura. Ela me arrastou até a enfermaria. Ao chegar, o novo médico estava de costas, olhando o prontuário de uma detenta acamada. O jaleco parecia dois tamanhos maiores que ele, apesar de ser alto e consideravelmente forte.
— Dr. Sollary, trouxe a detenta que o diretor lhe falou. — Constance jogou meu corpo pra frente.
Como estava fraca, meu corpo foi ao chão com facilidade. Respirei fundo e olhei para o homem, que deixava sobre a mesa o prontuário e se virava para mim. Meu coração parou de bater e voltou ao mesmo tempo. Um frio na espinha passou por mim, quando me deparei com diante de mim.
O que ele fazia ali?
— Pode se retirar, Constance, eu vou cuidar dela na minha sala — disse ele, fingindo não me conhecer. — Diga ao diretor que vou cuidar muito bem desta detenta.
Constance assentiu com um sorriso de satisfação e se retirou.
se aproximou de mim e, me pegando no colo, me levou para sua sala privada. Sentir o calor do seu corpo, o aconchego dos seus braços, era como uma descarga de energia e força que eu precisava. Assim que entramos, ele fechou a porta, trancando-a e me colocou na maca. Então fechou as persianas também e voltou para me examinar.
— O que faz aqui? — sussurrei, sentindo tontura agora.
— Vim cuidar de você — disse ele.
… — tentei argumentar, sem forças.
— Fique quieta e me deixe cuidar de você — disse ele, ao sorrir de leve para mim.
Sentir seu toque, seu cuidado, era a segurança que eu precisava para suportar aquele lugar. Eu não sabia como tinha se infiltrado ali, menos ainda como havia descoberto sobre minha estadia ali. Quando fui presa, cortei todas as ligações com ele. O telefonema que eu tinha direito, não quis fazer, pois o único número gravado em minha mente era o dele, não queria envolvê-lo nas sujeiras da minha família.
— Obrigado — disse, assim que ele terminou o último curativo.
— Vou dizer ao diretor que ficará aqui até segunda ordem — disse ele. — Comentei com ele que sabia de algumas técnicas de tortura silenciosa.
— Então vai me torturar? — perguntei, com um olhar presunçoso.
— Sim… — Ele se aproximou mais de mim. — Vou te encher de beijos.
Ele me beijou de leve, com cuidado por meus hematomas. E depois acariciou minha face.
— Não vou deixar que te machuquem mais — assegurou ele.
— Eu não tenho escapatória — disse, desanimada.
— É por isso que estou aqui, você vai fugir desse lugar — garantiu.
— Como? — perguntei.
— Com a ajuda da Continuum — respondeu, com precisão.
— Continuum? Pensei que eles tivessem esquecido de mim depois que meu pai morreu. — Meu tom de sarcasmo não me deixava levar isso a sério.
— A Continuum possui uma dívida com seu pai, te asseguro que você vai sair daqui. — Ele segurou em minha mão e entrelaçou nossos dedos.
— Como sabe sobre eles?! — indaguei, curiosa.
— Minha família é uma das fundadoras — respondeu, com tranquilidade. — Então acredite quando eu digo que você vai sair daqui.
Agora eu que tomei o impulso e o beijei com intensidade, misturado a doçura.
Não me importava com as dores, ele seria meu remédio. Era surreal saber que ele era da Continuum, que essa sociedade não era invenção do meu pai e realmente existia. Me lembrava do dia em que conheci em uma das festas que a namorada falsa do meu pai recepcionava. Seu olhar fixo em mim me chamou a atenção. Foi o encontro mais intrigante que já tive, e ao final da noite, trocamos alguns beijos e planos de mais encontros casuais.
Logo descobri suas habilidades médicas, assim como a residência como médico cirurgião, o foco em trauma. Sollary era uma caixinha de surpresas que me atraiu com facilidade. Olhando agora, fazia sentido meu pai assentir tão facilmente nosso namoro.
— Como vou sair daqui? — perguntei, ao observá-lo trocar a bolsa de soro.
— Estou trabalhando nisso... Vou precisar que faça algumas coisas — disse ele.
— É só dizer. — Voltei meu olhar para a agulha injetada em minha veia.
— Primeiro, você precisa se restabelecer. — Ele me olhou com carinho. — Depois, vamos ao nosso plano.
— Sim, doutor — brinquei, arrancando um sorriso dele.
passou a noite ao meu lado, me observando e monitorando meu progresso.
No dia seguinte, relatou algumas mentiras para o diretor, dizendo que já tinha iniciado sua tortura silenciosa em mim. Nos dias que seguiram, me contou mais sobre a tal sociedade. Pelo que entendi, ela era regada por muita ambição entre as famílias e a luta de alguns para derrubar os herdeiros legítimos de cada uma. Na dele, sua prima Mia é a herdeira dos Sollary. Ele permanecia satisfeito, havia conquistado alguns prestígios no início de sua residência e agora se preparava para substituir seu superior como o chefe do trauma. Um brilhante futuro pela frente o aguardava no Madrid Sollary Hospital, a filial dos hospitais da família na Espanha.
Sua única ambição era o cargo que se preparava para exercer.

--

— Fisicamente, me sinto preparada para a fuga de amanhã, mas mentalmente estou acabada — disse, com sinceridade. — Tem certeza que estou pronta?
— Claro que tenho — assegurou ele, enquanto segurava minha mão e mantinha nossos dedos entrelaçados. — Vai dar certo e teremos a cobertura de um amigo da minha família.
— Como ele vai ajudar? — perguntei.
— Ele tem alguns contatos e vai infiltrar seus homens na troca de turno de amanhã à noite — contou. — Assim que eu der o sinal, você deve instaurar o caos em meios às presidiárias, no meio de tudo isso, vamos sair daqui.
Ele não precisava repassar nenhuma parte do plano, eu já o tinha decoração com precisão. Me remexi na maca e o olhei com gratidão e carinho. O que estava fazendo por mim era mais do que uma simples prova do seu amor. Me impulsionei e o beijei com doçura. Eu sentia ao longo daqueles dias que ele se esforçava para manter a suavidade ao me tocar, com medo que eu me machucasse mais, por causa das muitas lesões que sofri nos quatro meses que fiquei sem ele naquele lugar. Mas ter o calor do seu corpo junto ao meu e sentir seus beijos, me faziam esquecer os tempos difíceis e ansiar pela minha liberdade.
Na manhã seguinte, confirmei com meu grupo de detentas aliadas a parte delas em meu plano. Como eu havia conseguido isso? Com a ajuda de , que garantiu a elas ajuda financeira para suas famílias. E eu achando que ele era somente um médico que não vai receber a herança da família. Sua herança era o próprio hospital que trabalhava em Madrid, o mais conceituado do país e mais rentável também.
Inacreditável, porém, real.
Na hora marcada e ao sinal de , as presas aliadas começaram uma briga que se estendeu em todas as repartições da penitenciária. Propositalmente, eu estava sendo levada para a solitária, quando o alarme soou em todo lugar. Constance mandou as outras duas irem ajudar, se encarregando de cuidar de mim, a mina de ouro do diretor. Assim que ela abriu a porta da solitária, eu, que até o momento fingia demência pelas falsas torturas, tomei impulso e soquei seu rosto.
Estava guardando toda a minha raiva para aquele momento. Não dando tempo para que reagisse, soquei mais uma vez sua cara, a derrubando, e continuei, montando em cima ao pegar seu cacetete e bater ainda mais nela. A deixei desmaiada na solitária e tranquei com a chave que arranquei dela.
— O troco — sussurrei, ao rir de leve.
Assim que virei para sair de lá, senti alguém me puxar pelo cabelo e me jogar contra parede.
— Sua vadia, achou mesmo que eu não iria notar. — Era Cortez, que já avançava em cima de mim, apertando meus pulsos, me pressionando contra o chão. — Hoje você não me escapa, nem o doutor vai te salvar.
— Você acha?! — Eu cuspi em sua cara e ri ao ver uma movimentação vindo de trás dele.
Antes mesmo que Cortez pudesse fazer algo contra mim, o arrancou dali e socou sua cara diversas vezes. Eu sabia que meu médico favorito tinha uma fascinação por artes marciais e praticava como hobbie. Ele imobilizou Cortez e piscou de leve para mim, era a minha deixa. Me levantei e fechei meus punhos com prazer. Lavei minha dignidade socando a cara dele e chutando diversas vezes seu estômago, assim que o deixou cair no chão.
— Ei, calma — disse o nobre doutor ao me segurar, me voltando a razão. — Foco, , temos menos de dez minutos para sair daqui.
Assenti com a face e seguimos para a fase 2.
No meio do tumulto instalado, duas carcereiras aliadas me ajudaram no disfarce que me levaria ao carro de no estacionamento dos funcionários. Enquanto isso, meu doutor teria uma conversa em particular com o diretor Hilt, acompanhado do seu amigo, que pertencia à outra família importante na Continuum, a Bellorum. Eu sabia pelo meu pai que eles tinham muita influência no meio militar, assim como os Sollary na medicina. Seu amigo passou pelo carro com sua moto e seguiu seu caminho. entrou no carro, ligou o motor e seguiu em direção à estrada. Ele não quis me dizer o que havia acontecido com o diretor Hilt e eu nem desejava saber. O que importa é que agora eu teria uma nova vida. Nova identidade e uma nova possibilidade para meu futuro.
A única coisa que restaria do meu passado, era o dinheiro do meu pai.
— Curta a sua liberdade — disse ele, ao me olhar com um sorriso no rosto.
— Com você, a nossa liberdade. — Sorri de volta.

Eu tenho uma faísca em mim
Levante as mãos se você consegue ver
E você é uma parte de mim
Levante as mãos se você está comigo
Agora até a eternidade
Levante as mãos se você acredita
Faz tanto tempo e agora estamos finalmente livres.
- Finally Free / Julie and The Phantoms




“Liberdade: Mesmo que seu corpo estiver preso, se sua mente for livre, você conquistará a liberdade.” - by: Pâms





Fim


Nota da autora: Welcome to Pâms' Fictionverse!!!

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