Codificada por: Cleópatra
Última Atualização: 24/11/2024As long as we're together, does it matter where we go?
O tímido outono começava a ganhar mais intensidade no fim de outubro, marcando as ruas com temperaturas amenas e chuvas esporádicas. As cores enfeitavam as árvores em um tom terroso, variando do laranja ao terracota nas mais diversas folhas e frutos secos que saíam dos troncos. Ainda que não fosse uma capital romantizada como a cosmopolita Nova Iorque, Seul abrigava uma série de clichês das grandes metrópoles em uma sexta-feira comum: ruas largas, um fluxo de população em busca de seus lares aconchegantes, bares sendo abertos, e carros se misturando entre a iluminação recém acesa sobre aquele início de noite.
Para alguns, a aproximação do final de semana significava grande excitação e ansiedade, iniciada por um breve happy hour em algum bar minimamente limpo dos arredores de Myeongdong. Uma sinfonia de ruídos característicos podia ser ouvida em alto e bom tom por qualquer um que passasse pelas calçadas estreitas, demonstrando que lá dentro, o melhor da bohemia sul coreana poderia ser vivido. Brindes em longnecks, jotgaraks batendo sobre a madeira, cheiro de fritura no ar e uma música de fundo indecifrável podiam fazer o combo perfeito para atrair uma noitada de sucesso. O que mais um jovem poderia pedir de uma noite de sexta-feira?
Em um point bem específico do bairro de Hongdae, a resposta poderia ser descrita claramente: paz, ar fresco, ou silêncio. Por volta das oito e pouco da noite, o esguio prédio da HYBE Entertainment ainda continha luzes acesas sobre sua extensão, deixando bem claro que o happy hour coreano não era uma opção para seus congregados. Nesse contexto extenso, a maioria da prole trabalhadora tinha o luxo de desligar-se da empresa a partir das 18 horas e partir como um furacão pelas portas giratórias, deixando o trabalho pós expediente para as maiores responsabilidades. Produtores, staffs, diretores de arte e managers mantinham-se, em sua maioria, sobre os diversos andares do prédio finalizando pendências
arrastadas da semana. Em específico, enquanto o prédio esvaziava-se cada vez mais, a sala de conferências abrigava os sete rapazes aguardando pelo fim da reunião de alinhamento com o manager da CJ ENM, o que parecia uma grande eternidade aos olhos de qualquer um que estivesse ali desde às cinco da tarde.
— O que eu preciso que entendam, é que a CJ é uma empresa que atua em conjunto com a Hybe, e nós precisamos trabalhar JUNTOS! - ele dizia em um tom muito enfático, quase como se estivesse ensinando o abecedário à pré-escola. Jay estalou o pescoço em uma tentativa de despertar parte da tensão, atraindo um olhar expressivo de Jake sobre seu cansaço evidente - vocês compreendem, senhores? - o manager questionou-se em modo amplo, quebrando o pequeno momento de descontração entre Jake e Heeseung.
— Com certeza, PD. Prossiga, por favor.
Jungwon prontamente respondeu em um tom brando, embora estivesse evidente o quanto queria tirar seus membros daquela pequena tortura. Ni-ki não moveu o olhar, mas achou hilário a maneira como o líder conseguia manter a paz de espírito e paciência em meio ao caos de uma tarde interminável. Embora soubessem dos casos de diligências entre empresa e subordinada, era a primeira vez em quatro anos de grupo que experimentaram uma disputa de poderes entre empresas, sentindo-se como prêmios a serem leiloados. Suas opiniões, vontades, apontamentos? pouco importavam. O nome ENHYPEN era uma mera conversão de dólares nas mãos dos presidentes, enviesados demais para se preocuparem com questões humanas e psicológicas naquele momento no grupo. A disputa entre quem produziria os próximos álbuns era o grande ‘A’ da questão, recebendo indicações de ambos os lados de HYBE e CJ ENM, fazendo com que os artistas propriamente ditos, fossem meras peças de um tabuleiro de joguinhos por poder.
Enquanto o superior continuava seu monólogo sobre o alinhamento de objetivos entre a HYBE a CJ ENM, um ruído grave soou sobre o cômodo anunciando um trovão e a chuva que deveria começar a cair tempo depois. As gotas tímidas começaram a cair sobre o vidro atrás da cadeira de Jay, sendo interessante o suficiente para fixá-lo sobre aquele novo ponto na sala, travando uma corrida mental
entre as gotas e a batente final da janela. Do lado de fora, o horizonte iluminado pela cidade agitada deixava tudo mais melancólico e lento, quase como se fosse um looping infinito sobre aquela cadeira enquanto ouvia o quarentão falar sobre as vendas digitais no próximo ano. De todas as fases e turbulências que haviam passado desde então dentro do Enhypen, este era, sem dúvidas, um dos dias de maior provação que havia experimentado, indo do céu ao inferno em menos de 24 horas contadas. Naqueles poucos segundos que retomava a consciência, sentia-se impotente, como uma daquelas gotas que eram vencidas por uma enxurrada da calha superior do prédio que observava.
Embora Jay se considerasse com cara deveras compreensivo e tolerante, por alguma razão que não soube explicar, aquela tarde estava se tornando um ponto limite para que se visse entrando sob um surto psicótico. Por tempo suficiente para reproduzir uma música inteira no Spotify, pode imaginar uma típica cena de filme sobre o sermão que via diante de seus olhos: copos quebrando sobre as paredes polidas, cadeiras jogadas ao alto, e o próprio saindo pela porta de entrada como um protagonista injustiçado e traumatizado pelo passado. Bom se fosse, pensou brevemente. O direito de agir impulsivamente era um ato ao qual podia dizer que sentia inveja com todas as letras, ainda que nos aspectos mais ridículos. O simples gritar de uma criança no mais aleatório de seus pensamentos infanto-juvenis, soou como algo invejável aos olhos de Jong Seong; pois ali observava a liberdade lhe escorrer pelas mãos.
Por azar de seu superior, e sorte de sua consciência, Jay estava longe o suficiente para se entreter com a sinfonia criada pelas gotas de chuva caindo sobre a calha de metal do prédio. Pensou que poderia fazer uma música, pensou que poderia desenvolver habilidades extra-pessoais na observação de objetos. Entretanto, diante de todas as banalidades que tentou pensar para tirá-lo daquela espécie de tortura medieval, a única que realmente o trouxe um pouco de propriedade foi o cheiro imaginário de Jajjangmyeon, em um lugar específico ao qual guardava no coração. Antes de surfar em uma onda de pensamentos absurdos e desconexos, questionou a realidade movimentada sob seus olhos curiosos: a vasta Seul emanava a animação que uma sexta-feira chuvosa a possibilita, ainda que o álcool e a bohemia nunca fossem impedidos pela água torrente. Ainda que a agitação
jovial o atraísse em algum espectro, o moreno tinha plena noção de suas possibilidades e da realidade que o esperava nua e crua, afinal, o que mais um jovem como ele poderia querer numa sexta-feira, além de paz e um bom bowl de carne marinada em Gochujang?
Mal sabia Jay, que sua definição de aconchego e conforto estariam para mudar dali em diante. Eles dizem que a casa é onde está o coração, mas o rapaz estaria prestes a descobrir que este teria outro nome.
O letreiro em neon exibia um formato de peixe que falhava conforme a chuva fina caia, demonstrando que o equipamento já devia estar em funcionamento por muito mais tempo do que deveria. Ao lado, pequenas letras no alfabeto tradicional coreano emitiam o nome do local como "cantinho da Sra. Wong - a melhor comida caseira da região. Desde 1982", exibindo uma pequena portinha abaixo do letreiro empoeirado. Quem olhasse mais demoradamente poderia notar a fuligem de poluição e a parte desbotada na pintura, fazendo um juízo simples de que o local não era o melhor para se ter uma refeição minimamente...saudável? Entretanto, nem todos tinham essa visão acurada. Adentrando mais o cômodo, uma mesa pequena aos fundos guardava uma garota de aparência jovem, acompanhada de uma garrafa de soju e um tira gosto servido pela casa. Levava os pequenos amendoins a boca hora ou outra, não tirando os olhos do celular que parecia ter algum tipo de conteúdo muito importante.
— A senhorita aceita uma sugestão da casa? - o garçom de aparência humilde aproximou-se, parecia ter seus 40 e poucos anos e trabalhar ali durante toda a sua vida. Levando um pequeno susto ao se dar conta da voz do homem, a garota tremeu na cadeira em que sentava e exibiu um sorriso torto quase que automático
— Claro - disse de supetão, voltando a trocar olhares entre o telefone celular e o garçom - se puder, vocês têm mais destes aqui? - apontou o amendoim no pequeno potinho com o indicador - posso até pagar pela porção extra, senhor - levantou os
olhos ao mais velho em um tom de ansiedade, como se aquele tira gosto tivesse um apelo muito mais que a fome
— Não se preocupe - o senhor esboçou um sorriso compreensivo e quase que paternal, enquanto recolhia o potinho já perto do vazio - vou providenciar mais algumas rodadas até o pedido chegar. Aproveite - concluiu em um assentir de cabeça, e saiu em meia volta na direção da pequena porta que parecia dar lugar à cozinha.
A garota voltou sua atenção ao celular, deslizando o bloqueio de tela ao receber uma nova mensagem no aparelho. O cenho franziu-se automaticamente e seus olhos tomaram uma expressão melancólica, parecia que havia presenciado um assassinato ao vivo. Os lábios ficaram secos a ponto de sentir o ar indo e vindo, e os ruídos de pratos e talheres do ambiente não podiam mais ser ouvidos. Para a pequena estudante de artes visuais, a realidade pareceu abrir uma pequena fenda diante daquela singela frase enviada no aplicativo de mensagens.
"Sinto muito, não podemos prosseguir com isso, ." - Ben
O até então ficante fixo (agora, ex) havia acabado de romper o espécime de relacionamento que tinham por pouco mais de 6 meses. A americana tinha todas as evidências de que estavam se encaminhando, cada vez mais, para um relacionamento sério e oficial, tendo em vista o tempo em que estavam cultivando aquela espécie de convivência amorosa. Mas ao que pode ler e reler a mensagem no visor do próprio celular, Ben parecia ter planos um pouco diferentes para ambos, levando-a numa uma viagem no tempo sobre tudo que havia vivido até aquele instante.
Há pouco mais de um ano, Karev havia transferido o curso de Bacharelado em Música & Luteria da Universidade de Yale para o outro lado do país, após receber uma proposta de bolsa de pesquisa da Universidade Nacional de Artes da Coreia do Sul. Como uma ávida fã da área de ciências e linhas de pesquisa, havia investido todo seu tempo livre em seus projetos acadêmicos nesse espectro, embarcando em inúmeros projetos de extensão e produção de
artigos científicos nos primeiros dois anos do curso. Ao início do terceiro ano, o que parecia ser mais um período comum em Yale, abriu as portas para uma carta convidativa da Universidade Integrada de Artes e Música de Seul, estimando-a como uma candidata promissora às linhas de pesquisa em artes visuais da entidade estudantil coreana. A reação de não poderia ser mais estrondosa do que sua própria personalidade, levando quase dois dias para que caísse a ficha de que havia sido convidada como bolsista a cruzar o globo terrestre e viver em outro país.
Ainda que o sobrenome não carregasse uma gota de ascendência asiática, por influência da tia avó Lucy, uma coroa enxuta que casou-se com um coreano nato, criou um apego e respeito pela cultura asiática desde que se conhecia por gente. No subúrbio de Nova Iorque, a casa da família sempre abria uma brecha para conversas e rituais que tia Lucy achasse divertida e interessante, geralmente tentando integrar o pobre marido estrangeiro na família de americanos malucos. Por um bom tempo, a garotinha caçula dos não pareceu se atentar ou dar qualquer atenção à cultura sul-coreana, mas o tempo pareceu pregar pequenas peças sobre seus planos de adolescente do contra.
Para sua alegria e enriquecimento cultural, o tio postiço ensinou-a aqui e ali sobre a língua asiática, fazendo com que desenvolvesse uma capacidade acurada em entender o vocabulário com muito mais facilidade do que se quer imaginava. Mal sabia a garotinha, que deveria agradecer diariamente ao tio por todas as dicas que havia recebido, ou jamais teria passado no teste de proficiência aplicado sobre seu currículo.
A vinda para a Coreia foi como um tiro no escuro, uma aposta de loteria: não fazia ideia de como havia parado ali, mas de algum modo, apostou tudo que tinha. Embora tivesse desenvolvido uma carreira acadêmica voltada para a pesquisa e extensão, a síndrome de impostor nunca realmente deixou acreditar que poderia conseguir uma oportunidade internacional, se quer como bolsista de algum projeto. Em um país de primeiro mundo? Jamais, era como um grande plano muito abstrato de sua realidade. Entretanto, depois de sua ficha cair bem em seu colo com o letreiro da universidade em negrito, soube que era palpável. Por alguma razão maluca, havia sido convidada e aceita como bolsista do projeto de pesquisa local, e
sua passagem e estadia seria financiada por todo o governo coreano. Como uma boa artista em ascensão, fez desse limão uma limonada, e arregaçou suas mangas em partida ao outro lado do mundo.
Os primeiros dias não foram nada fáceis, como típico para qualquer estrangeiro em um país culturalmente distinto. Não entendia boa parte das palavras, perdeu-se em muitos locais, e sentiu fome por não ter habilidade suficiente em comunicação presencial nos restaurantes. O apartamento tinha um tamanho muito menor do que a casa em NY, mas parecia ser o suficiente para viver ali sozinha, recebendo uma visita hora ou outra. A fase de adaptação foi crucial para que se apagasse a pontos focais da cultura local, e amasse-os verdadeiramente, como a fatídica obsessão pelo Jajangmyeon (um dos únicos pratos ao qual se deu o luxo de decorar a pronúncia), e a histeria pelo novo gênero conhecido, o estimado K-POP.
Passou grande parte da adolescência e infância ouvindo gêneros estereótipados como rock, indie e alguns clichês do pop americano. Nunca imaginou, em toda sua existência, que fosse se interessar por um gênero estrangeiro tão singular quanto o pop coreano. E sinceramente? Sentia que aquilo havia salvado-a tantas vezes, que era quase como uma dívida pessoal. poderia dividir sua vida entre antes e depois de conhecer o gênero, quase como uma montagem entre o "período escuro" e o "período arco-íris feliz luminoso tudo de bom" de sua vida. Era definitivamente, um antidepressivo gratuito que levava entre seus dias árduos sobre a vida adulta em um país desconhecido. Mais uma vez, agradeceu ao tio postiço por premeditar o quanto dependeria daquela língua nos dias de hoje.
O pop coreano lhe caiu como uma luva bem desenhada, como se fossem bons companheiros há muitas vidas passadas. Graças a quantidade de músicas que se viu obcecada, a língua coreana se tornou cada vez mais fácil e palpável sobre seus lábios, elevando sua vida a um nível de facilidade jamais pensada para um país estrangeiro. Junto a isso, a dinâmica e cultura de acompanhamento de grupos e integrantes fez com que demorasse a conhecer novamente a solidão, sentindo-se constantemente guarnecida por qualquer um daqueles elementos que criou afeição. Não se importava com a idade ou o peso de se apegar à novas
tradições de fandoms como na adolescência, somente deixava-se levar pelo sentimento de pertencimento e aconchego que sentia ao ligar-se a aquele mundo.
De alguma forma, agradecia todos os dias pelos momentos em que aqueles rostinhos a tiraram de uma noite sombria e solitária.
De volta a realidade e interrompida pelo som de copos movidos sobre o balcão, enquanto lia e relia a mensagem sobre o visor, sentiu que um filme poderia passar sobre a sua cabeça. O mesmo filme de minutos atrás, sobre como havia parado ali, naquelas circunstância, e em uma velocidade muito mais desconexa e enjoativa do que a primeira vez. E agora, refazendo toda sua trajetória desde então, sentiu que parte daquilo não fazia sentido. O que havia dado errado? Ela havia conquistado tanto, se esforçando absurdamente em cada etapa, e no fim acabava sob um bar de baixa renda completamente solitária em uma sexta-feira? O destino parecia querer transformar toda sua sorte acumulada desde então, em um grande murro de azar sobre seu rosto. E Ben? Bom…esse era um tópico à parte, e talvez o principal motivo que a fazia querer jogar a mesa para cima e quebrar as cadeiras sobre a própria cabeça.
Ben havia sido seu triunfo, e sua ruína ao mesmo tempo. Foi um dos primeiros amigos (verdadeiros) que havia feito em solo coreano, ainda que o homem fosse tão americano quanto ela. Dividiram angústias, medos, e até mesmo perrengues do dia-a-dia de um estrangeiro, passando a partilhar cada vez mais intensamente suas vidas. Como uma romântica incurável, sabia que aquilo era atrativo: um bom amigo, uma boa companhia, e a solução para todos os seus problemas adultos (e agora, amorosos). Ben e passaram a se envolver de uma maneira quase que natural, orgânica, mas por pura pressão da solidão. Com quem mais poderiam contar, senão consigo mesmos? agarrou-se ao que achou ser um relacionamento promissor, e deixou-se levar pelo espírito de aventura e momento de Ben, que parecia nunca estar preparado o suficiente para atingir patamares mais sérios naquela espécie de ficantes eternos. Entretanto, a persistência e esperança sempre foi um traço nobre da personalidade de , talvez até inocente demais para encarar determinadas realidades sobre seu colo. Algo dentro de si a fez acreditar que, por muito tempo poderíam se tornar algo como namorados, que ele poderia assumi-la publicamente, e finalmente acabar com toda ansiedade e
agitação dentro do peito da garota, ainda que não tivesse uma fagulha de concreto sobre sua suposição. Imaginou que, mesmo que o rapaz tivesse certos receios e dúvidas, ele jamais a descartaria como uma folha de papel amassada na pilha de rascunhos do escritório onde trabalhava meio período.
Porém, ele havia acabado de fazer. E muito pior: por uma simples mensagem de telefone. Uma das veias das têmporas de pulsou sobre seu rosto, suficiente para sentir uma pontada de estresse físico sobre toda aquela derrota que a realidade parecia jogar na sua cara. Massageando as laterais da testa e sem muita paciência na reserva, levantou o indicador ao velho (e não tão conhecido) garçom ancião, e o pediu uma dose adicional de qualquer Whisky que tivessem no cardápio. A procedência pouco de importava, e o líquido em temperatura morna fez com que tivesse um misto de arrependimento e estímulo para enfiar o pé na faca de uma vez por todas, o estrago já havia sido feito e aquele Whisky mofado deveria ser a menor de suas preocupações aquela noite. Antes que percebesse e ao som baixo de Chris Isaac - Wicked Game ressoando no ambiente, embalou em um cochilo preguiçoso sobre a mesa de madeira, realizando o último prestígio de se despedir daquela realidade de drama que a esperava fora dos sonhos.
O pesadelo em forma de tarde havia acabado a pouco mais de dez minutos, e a noite já escorria nos céus de Seul há pelo menos uma hora e meia. Jay mal podia ouvir seus próprios pensamentos, escorado sobre o banco de couro da BMW empresarial enquanto Heeseung ocupava o outro banco entretido com o próprio celular, o silêncio era o único ato cabível naquele momento depois de tantas horas de monólogos e sermões escarrados pelo próprio gerente. Os outros rapazes deviam-se em mais dois carros em destinos diferentes, de modo que Jay e Heeseung acabaram por optar pelos arredores próximos ao dormitório.
— Pode parar por aqui, vamos andando - Heeseung anunciou ao velho motorista conhecido, apoiando-se sobre o banco do próprio. Indicou dois tapinhas sobre o ombro do mesmo e Jay limitou-se a um sorriso cúmplice, indicando um joinha ao ancião que tanto os acompanhava. A dupla pulou para fora do automóvel em uma
travessa não tão movimentada, esgueirando-se entre as paredes de tijolo escuro do que parecia ser um pequeno estabelecimento
— Vou ao restaurante da Sra. Wong, preciso de um Jajangmyeon reforçado para encarar a carga desse dia - Jay avisou a Heeseung enquanto punha as mãos sobre o jeans de modo tenso, os olhares para os lados eram algo que sempre mantinha durante suas ações mais banais - vai embarcar nessa?
— Jamais - o riso cansado de Heeseung anunciou o quanto ele queria correr dali e enfiar-se sobre o sofá mais próximo - vou tomar as cervejas da geladeiras e assistir um episódio de The Office - estalou os ombros - bom apetite, bonitão - despediu-se em uma continência, e virou as costas na direção oposta ao que tinham chego. Jay despediu-se em um negar de cabeça e um risinho contido, suspirando em convencimento e retornando ao plano principal de encher seu estômago.
O ruído da eletricidade mal estabelecida nas placas de neon faziam com que o garoto sentisse que estava em casa, era quase sobrenatural o efeito que aquele lugar tinha sobre seu humor. O cheiro forte de peixe e mar o traziam, sem querer querendo, para um fim de semana de férias em Jeju com sua avó e mãe, quase que como uma viagem no tempo sem passagem comprada. E o melhor: sentia que só ele, entre os 9,4 milhões de habitantes de Seul, conheciam aquela portinha escondida. Os primeiros passos sobre o assoalho de madeira fez com que algumas tábuas rangessem em sinfonias diferentes, anunciando (muito melhor do que qualquer sino, ou sensor de presença) que mais um cliente havia chego ao local.
— Oh, senhor Park! - o ancião, e muito bem conhecido garçom, anunciou ao observar Jay adentrar próximo ao balcão, em uma postura que parecia de um filhote perdido sobre a vasta savana africana - não esperava o encontrar aqui nas sextas-feiras.
— Boa noite, senhor - cumprimentou formalmente em um aceno simples, levantando brevemente as sobrancelhas em certa surpresa - surgiu uma janela nessa noite e acho que a única coisa que poderia preenchê-la seria uma boa refeição daqui - sorriu torto - podem me dar as honras?
— É sempre bom te ver por aqui, garoto! - o senhor explodiu em alegria e deferiu um tapa amigável sobre as costas de Jay, mas que foi suficiente para o corpo cansado ir um pouco mais para frente do que o normal - como estão as coisas? Vou arrumar uma mesa enquanto procura o que comer.
— Muito obrigado - murmurou baixinho, guiado pelo senhor dentre o pouco espaço que havia no cômodo (e as muitas mesas vazias, por sua sorte) - as coisas estão ótimas, hm? - respondeu, mentindo num nível que todas as suas gerações poderiam sentir - e o senhor? - perguntou em contrapartida, desviando-se do foco.
Jay havia estado vezes suficientes naquela espelunca para saber boa parte dos acontecimentos da vida daquele senhor que vos falava, Kim Taejoo. O garçom tinha seus pouco mais de cinquenta anos e fazia questão de contar sobre toda sua linhagem genealógica e a família atual para Jay, tirando boas risadas e comentários banais do jovem rapaz que pouco sabia da vida adulta de um homem tradicional coreano. Havia lutado na guerra, perdido um filho, e ficado viúvo. Poderia ser um filme, pensou Jay a primeira vez que ouviu a história do garçom. Mesmo assim, ainda que com todas as banalidades e alegorias que Taejoo o contava quando visitava o local, Jay nunca incomodou-se ou se quer cogitou abandonar a tradição de boas refeições por ali. De um modo estranho e talvez até incomum, sentiu que parte de seu físico e mental sentiam naquele lugar, uma pitada de casa.
— …e então, eu convenci a Sra. Wong que não precisaria contratar mais nenhum outro atendente! Oras, eu sou um velhote, por acaso? - o garçom continuava seu monólogo enquanto as entradas de Jay eram preparadas na cozinha não muito longe dali, fazendo com que boa parte do cheiro se tornasse uma distração para o pobre garoto ouvinte - oh, preciso voltar a cozinha, as empanadas estão prontas!
Enquanto o cinquentão sumia pelo corredor estreito em direção à cozinha apertada, Jay permitiu-se relaxar sobre a única dose de Soju que havia ganhado como cortesia do próprio, como era de costume. Em uma breve distração e tentativa de vivenciar mais a fundo aquele ambiente tão reconfortante, seus olhos correram pelas paredes desbotadas, até vagarem pelas mesas vazias e empoeiradas pelo tempo. Por que diabos ninguém se permite visitar um lugar como este? pensou em
tom de injustiça, sentindo que o local merecia muito mais do que a placa com defeito em neon. Em partes, sentia-se aliviado por não ter um ambiente tão cheio e barulhento; mas em contramão, sentia-se triste pela solidão e esquecimento que transparecia nos olhos de Taejoo e da cozinheira. Ainda durante seu pequeno tour visual pelo ambiente, uma pequena alteração no típico vazio lhe fez estreitar os olhos em estranhamento. Em uma mesa muito mais longe do que poderia estimar, perto do temeroso banheiro masculino e da porta dos fundos, encontrava-se alguém.
A silhueta estava espatifada sobre a mesa de madeira, tal qual manteiga em um dia quente do verão, derretendo sobre uma forma desconexa e inerte naquela mesa de madeira escurecida. Tinha cabelos escuros e longos, e uma mão (a única parte viva que pode identificar) que emanava um leve bronze saudável que invejou internamente. Caramba, é uma mulher; avaliou rapidamente. O que levaria uma dama, de respeito, a estar enfiada sobre um pulgueiro inóspito como aquele que estava? Isto é, uma coisa era ele estar ali, mas qualquer outra pessoa com o mínimo de senso poderia correr. A cena lhe encheu a cabeça até que o garçom voltasse com suas entradas, lhe distraindo o suficiente para concentrar-se sobre a comida que tanto desejou durante aquela espécie de inferno na terra. E assim, os próximos vinte minutos tos foram envoltos em sua própria comida e na concentração para finalizar suas entradas de sopa de peixe.
— Ben, Williams, Smith…- um murmúrio quebrou o transe de Jay em finalizar sua própria tigela, tornando a fazê-lo levantar a cabeça em confusão - você…você é um filho da puta.
Em alto e bom inglês, lá estava a dona daquela silhueta até então inerte. A voz feminina e rouca condenavam que os xingamentos vinham da mulher a qual Jay havia notado pouco tempo atrás, completamente desmaiada sobre a própria mesa reclusa. Dessa vez, a silhueta exibia uma jovem de rosto avermelhado e narinas inchadas, exalando uma áurea álcool e choro que poderia ser vista do outro lado do rio Hang, tão visível era a situação em si. O nariz pequeno e vermelho insistia em puxar os restos de choro acumulado, fazendo com que fungadas fossem ouvidas por um Jay observador e estático. O cabelo antes escorrido sobre a superfície da
mesa, agora dava lugar a um volume e forma despenteados, provavelmente efeito de todo o caos que aquela situação emanava. Dentre as poucas suposições que teve tempo de realizar durante aquela observação estranha e curta, Jay apegou-se a uma questão: ela sabia xingar em inglês?
E antes que continuasse sua observação detalhada, a moça disparou em uma crise de choros novamente, seguida de soluços e palavras desconexas que o rapaz não pode traduzir em sua cabeça. Os antebraços cobriam parte de seu rosto, ao mesmo tempo que abriam espaço para levar a garrafa quase vazia até a boca, despejando o líquido alcoólico sobre os lábios avermelhados que exibia. O garçom Taejoo aproximou-se como um coiote e lhe entregou mais uma garrafa sobre a mesa, seguida de uma caixa de lenços que pareceu disponibilizar para a moça em tormento. Internamente acompanhando tudo aquilo, ao mesmo tempo que sentia certo humor pelo comportamento hiperativo do garçom, Jay internalizava uma angústia e inquietude que pareciam soar por seus poros da pele. As lágrimas, a expressão quebrada, as muitas garrafas enfileiradas sobre o espaço de mesa que acabava, e os traços finos e gentis que pareciam desenhar aquele rosto em sofrimento. Aquilo não parecia em harmonia, de modo algum.
— Você me abandonou, me abandonou.. - a lamentação baixinha na voz fez com que seu peito acertasse mesmo que contra sua vontade, somente sobre a mera visão daquele sofrimento que assistia detalhadamente.
As lágrimas que escorreram em seguida o fizeram engolir em seco e trocar um olhar rápido com Taejoo, que lhe respondeu com um sorriso amarelo e um dar de ombros despreocupado. Ainda assim, Jay sentiu-se inquieto. De alguma forma, em algum canto de sua consciência, não sentia que tudo aquilo ali era certo ou justo, era quase que como uma intuição lhe berrando aos ouvidos. Ainda que achasse mesquinho pensar naquele aspecto em específico diante do caos, sentia que aquela mulher não deveria estar em harmonia com o caos e sofrimento. E foi assim, ao observar o próximo movimento da mulher levantou a nova garrafa à seus lábios, que Jay levantou em um solavanco e correu em direção à sua mesa.
— Posso ajudar?
—