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Codificada por: Cleópatra

Última Atualização: 06/10/2024

Era o abraço dourado. Era o beijo caloroso. Era o toque iluminado que esquentava cada centímetro de sua pele por igual, lembrando-o de que ele era um só.
Em algum momento nos últimos meses, tinha se perdido entre os títulos de filho, irmão, marido, amigo, atleta, celebridade. No fim das contas, por mais difícil que fosse admitir, sabia que a única coisa que tinha perdido era a si mesmo.
E não foram tempos fáceis. O turbilhão frenético em sua mente tinha se tornado pior do que muitas tempestades que ele presenciara. O vazio esporádico no peito era mar calmo, mas nenhum mar calmo no mundo tinha feito bons surfistas. E perdido entre tudo e nada, ele se afogou.
Voltar à superfície pode ter sido qualquer coisa, menos fácil.
Foram necessárias inúmeras sessões de psicoterapia, vários encontros com o fisioterapeuta e muitas horas remoendo e resolvendo as questões com a família. O divórcio era uma história completamente diferente. Tantas coisas estavam dando certo até simplesmente não darem mais.
Mas depois de tudo isso, ele tinha voltado à vida como uma maré que bagunça o mar após dias de calmaria.
Sinceramente, ele estava farto da calmaria. Chega.
Ele precisava de um chacoalhão, de uma tormenta, de um caos controlado que fosse sacudir as estruturas.
E ele não fazia ideia do que estava por vir.



Alguns dias eram simplesmente bonitos. Você já sabia disso assim que pisava para fora da cama e abria as cortinas.
E isso considerando que, quando acordava, o mundo lá fora era apenas breu.
Ele sabia que boa parte das pessoas veria nisso algum sinal de loucura. Afinal, se nem o mundo acordou ainda, isso deveria ser justificativa óbvia de que não era horário para alguém decidir que o dia havia começado. Mas esse era o seu momento favorito do dia.
Com os pés descalços e os cabelos ainda bagunçados, ele se sentou no seu ponto de costume sobre uma fina canga na areia da praia, cruzou as pernas e posicionou as duas mãos sobre o peito, buscando entrar em sincronia com a sua própria respiração.
Embalado pelo movimento de vai e vem do seu tórax, ele deixou sua mente se esvaziar dos pensamentos que o prendiam. Tudo o que importava era o som das ondas, o barulho ocasional de um ou outro pássaro e o balanço de sua respiração.
A meditação tinha se tornado um de seus principais rituais e um importante hábito matinal. Era uma das formas que ele tinha encontrado de se alinhar consigo mesmo e entender que, mesmo nos piores momentos, ele sempre teria a si mesmo para focar, respirar e começar de novo.
E, de quebra, ainda tinha à sua frente um dos maiores esplendores da natureza: o nascer do Sol. Era quase impossível não se sentir pronto para viver mais um dia.
Para ficar ainda melhor, só se tivesse uma prancha para pegar algumas ondas e uma bela e fresca água de coco.
E, por sorte, ele tinha tudo isso. E duas horinhas livres antes de precisar seguir com os seus compromissos do dia.


🌊🌊🌊


Com os cabelos ainda meio molhados, parou em frente ao prédio, encarando a fachada. Tinha quase se esquecido de como um lugar daqueles poderia ser grande e intimidador.
Quem ele queria enganar? Ele odiava hospitais. Só de pensar em todas as coisas terríveis que aconteciam lá dentro… E, sim, crianças também nasciam, pessoas também recebiam a notícia da remissão de um câncer, mas ele não era capaz de desviar do fantasma de todas aquelas que viviam ali os piores de seus dias.
Mas ele não estava ali por motivos de saúde. Quer dizer, se você considerasse que retomar contato mais próximo com seus amigos havia sido uma recomendação de seu psicólogo e de sua psiquiatra, então esse meio que era um motivo de saúde.
Quando recebeu essa sugestão — que na hora veio com um tom quase mandatório —, soube imediatamente a quem queria ligar. Alberto, ou Beto para a maioria das pessoas, tinha sido um de seus melhores amigos na época do colégio, um dos poucos da época que havia mantido contato e provavelmente o único que poderia bater no peito e dizer que gostava do com ou sem surf. Até porque as únicas coisas que ele sabia do esporte eram: ‘prancha’, ‘onda’ e ‘remada’. E a última ele nem tinha certeza se era desse esporte mesmo.
Alberto nunca tinha sido o maior fã de esportes. Era o tipo de cara que completava o time de qualquer coisa na educação física, mas não sabia metade das regras de cada coisa. Aquáticos, então? Nem pensar. Tinha feito natação por três anos para conseguir tentar se salvar em situações de necessidade, mas tinha passado bem longe de sequer tentar entender como era o conjunto dos movimentos para o nado peito.
Alberto gostava das competições, gostava de ter alguém por quem torcer fervorosamente e sentir a adrenalina dos momentos mais tensos de uma partida ou bateria. Era um consumidor ávido de todo e qualquer esporte olímpico e bateria no peito de uma camisa verde e amarela por qualquer um que aparecesse para defender o Brasil nos jogos.
Mas, no meio tempo chamado vida, seu foco era o cuidar. O homem tinha estudado por vários longos anos para se tornar um dos melhores cardiologistas do país e mais dois para conseguir o conhecimento necessário para a subespecialização em cardiologia infantil.
E era por essa vida de grandes feitos que, agora, precisava ir até o Hospital Infantil apenas para encontrar o amigo para um café no meio da manhã.
Entrou no local, identificando-se na portaria — e recebendo um sorriso largo de quem disse que ele nem precisava se apresentar — e seguiu pelos corredores, perguntando para qualquer um com um crachá institucional para onde deveria ir.
Não parecia estar funcionando. se sentia perdido no meio de um labirinto, recebendo coordenadas confusas e informações pela metade. Combinou consigo mesmo que tentaria mais uma vez. Só mais uma pessoa e, se não tivesse êxito, voltaria para fora e esperaria que Alberto o encontrasse lá.
Avistou, em frente ao computador, uma mulher com cabelos presos em um coque bagunçado e estetoscópio no pescoço, com um enfeite do Mike Wazowski e outro do Sullivan. Aparentemente, era assim que se reconhecia um pediatra a quilômetros de distância.
Ela com certeza conseguiria ajudá-lo; ele soube imediatamente.
— Bom dia, com licença. — A mulher levantou o olhar, encarando-o com os olhos curiosos, brilhantes como faróis. — Você sabe onde eu posso encontrar o doutor Alberto?
Ela jogou as costas para trás na cadeira, cruzando os braços sobre o tronco. Estreitou os olhos na direção dele, como se tivesse acabado de concluir no mínimo três diagnósticos diferentes enquanto fuçava o fundo de sua alma.
— Sabe o que é engraçado? — A voz dela fez seu estômago chacoalhar. — Eu moro nessa cidade há anos e nunca te vi. Absolutamente ninguém acredita quando eu digo isso.
não sabia o que dizer. Aquilo nem era uma pergunta. O que exatamente ela esperava que ele falasse?
Ele só conseguiu pensar em uma coisa para fazer.
— Prazer, — disse, sem saber se deveria estender a mão por cima do balcão.
— Fica em paz. Eu e todas as crianças daqui sabemos bem. Foi só um comentário mesmo. E, de todos os lugares em que eu poderia imaginar te conhecer, o hospital estava bem no fim da lista.
concordou sem saber se deveria. Será que ela tinha ouvido a pergunta?
— Pois é. E você sabe onde está o doutor Alberto?
A mulher levou a mão à boca, parecendo aflita.
— Meu Deus, ninguém te contou?
Ele sentiu o coração dar um pulinho errático antes de reencontrar o ritmo adequado.
— O que não me contaram?
Ela engoliu em seco, pensando na melhor forma de dar aquela notícia.
— Eu nem sei como te dizer isso — ela começou —, mas o Alberto foi demitido hoje no começo do plantão. Ele não trabalha mais aqui.
sentiu um buraco embaixo de seus pés, puxando-o. Não era possível. Não, ele se recusava a acreditar.
— Como assim? — Ele se sentia como uma criança desolada.
— É, a gente também não entendeu muito bem. Ele é um querido, todo mundo aqui adora ele. Foi muito repentino, a gente mal conseguiu se despedir.
— Para de assustar o cara — disse uma voz grave, em meio a um leve riso. — Você não presta mesmo.
se virou, encontrando Alberto de jaleco, perfeitamente empregado como deveria.
— Mas que m…
— Não fala isso — ela interveio. — É um hospital pediátrico, a gente precisa fingir que não fala palavrão. Até porque eles só precisam de dois segundos para aprender e começar a repetir uma coisa dessas até a hora de dormir. Se a primeira palavra com ‘m’ de um desses pingos de gente for essa aí em vez de mamãe, você vai ser amaldiçoado por famílias raivosas.
— Bom, vejo que você já conheceu a doutora .
— É — a mulher interveio. E com um sorriso e um aceno salpicado de deboche: — Oi!
— Oi — ele respondeu quase entre os dentes. Ainda não estava acreditando que tinha recebido um trote cruel e gratuito daqueles. E, ao mesmo tempo, não sentia uma vírgula sequer de irritação. Não conseguia sentir. Sabia perfeitamente que, se ficasse ali por mais dois minutos, logo estaria simplesmente rindo junto a ela. De toda forma, já parecia que ele tinha ficado preso bem ali, naquele instante. Naquele sorriso de inocência fingida.
, você precisa de mais alguma coisa ou eu posso sair rapidinho para tomar um café com o ?
— Você alterou a prescrição do Davizinho?
Alberto concordou.
— Vamos tentar diminuir a furosemida dele e reavaliar se ele faz algum sinal de congestão.
— Fechado. Obrigada, meu amor. Aproveita seu café.
Quando Alberto já estava guiando o amigo para fora, ouviu a voz da mulher mais uma vez.
— E me traz um cappuccino!
— Como se eu pudesse esquecer! Você pede todo dia!
— E você continua trazendo porque eu sou a melhor colega de trabalho que você poderia pedir na vida.
O médico saiu rindo, meneando a cabeça. ainda parecia atordoado.
Seguiram até uma cafeteria ao lado do hospital, escolhendo uma mesa livre de dois lugares no ambiente externo.
— Alô? Você ainda está aí?
chacoalhou a cabeça, como se isso fosse conseguir alinhar o seu cérebro e trazê-lo de volta à realidade.
— Dois minutos com a e você já ficou abobalhado assim?
— Aquela mulher é completamente louca.
Alberto gargalhou enquanto brincava com um dos guardanapos da mesa.
— Ela é assim mesmo. Tem o senso de humor mais caótico da história. As crianças adoram. E ainda tem a coleção de pins e roupas de personagem para ajudar. Todo dia ela aparece com alguma coisa nova, eu fico abismado. Não dá para acompanhar.
Era mesmo impressionante. Sempre que alguém demonstrava tanto interesse e dedicação para fazer o seu trabalho da melhor forma possível, era algo de tirar o chapéu. Era sinal de amor. Ele sabia. Você só dá absolutamente tudo de si para algo que te constrói, te molda e te completa.
— Ela parece ótima — ele finalmente respondeu, depois de ter ficado bons segundos imerso nos próprios pensamentos.
Alberto continuava encarando o amigo com alguma soberba de quem já tinha percebido mais do que deveria.
— Você é a pessoa mais transparente do mundo. Na moral, você é incapaz de esconder qualquer coisa de qualquer pessoa.
balançou a cabeça com avidez.
— Não, não. Dessa vez você está viajando mesmo.
Alberto deu uma risada, enquanto brincava com a borda do jogo americano de couro.
— Aham. Vamos concordar em discordar.
O amigo revirou os olhos, louco para que aquela conversa acabasse o mais rápido possível. O problema era que o médico não parecia disposto a compartilhar dessa ideia com tanta facilidade.
— Pode ficar tranquilo. Você vai ter tempo suficiente para conhecer a melhor no aniversário da Fefe.
E de todas as coisas que precisava tanto se esforçar para não esquecer, essa era a mais simples de manter na memória. A pequena Fernanda completaria cinco anos no sábado e seus pais tinham finalmente aceitado fazer sua festa temática dos Minions. Talvez ela ainda não tivesse aceitado como definitiva a resposta de que não poderia se pintar de amarelo da cabeça aos pés, era bem verdade; mas esse era um problema para outra hora.
E para outras pessoas também. A única função de nessa relação era ser o tio favorito da menina — o que sempre causava algum leve desconforto familiar nesse tipo de evento. O que é que ele poderia fazer se, aparentemente, ter uma prancha e aparecer na televisão eram critérios suficientes para se tornar a pessoa preferida de uma criança?
— Falando nisso, o que é que ela quer de presente?
Alberto ergueu os ombros.
— Olha, eu sinceramente não faço ideia. Essa fase é muito complicada. Fora que cada dia ela gosta de uma coisa. Não sei. Não consigo mais acompanhar. — Ele teve que dar o braço a torcer. — Mas tenho certeza de que ela vai adorar qualquer coisa que vier de você.
— Vou dar uma prancha de surf para ela.
poderia jurar que viu uma veia calibrosa saltar no pescoço de Alberto enquanto ele apertava os dentes.
— Qualquer coisa, menos isso. Pelo menos ainda não. Deixa ela crescer um pouco mais.
— Você sabe que eu vou continuar sugerindo isso todo ano.
— E você sabe que eu vou continuar te proibindo até ela ficar um pouco mais velha. De preferência com uns cinquenta anos. Ou quando eu já não estiver aqui para morrer de medo vendo minha filha no mar.
— Caramba, Beto. Achei que você confiasse um pouco mais em mim. É óbvio que eu não ia simplesmente deixar ela se virar sozinha. A prancha meio que obrigatoriamente tem que vir com umas aulas de brinde.
— Eu sei. E eu confio plenamente em você. É na pequena sociopata mirim que eu não confio nem um peixe beta.
deu uma gargalhada alta, sabendo plenamente que aquilo era da boca para fora. Era apenas a voz em pânico de um pai superprotetor.
Continuaram conversando sobre as expectativas da festa, as peripécias de Fernanda, a preparação para as Olimpíadas e, entre um tópico e outro, sempre acabava acontecendo aquele momento ‘você lembra quando tal coisa aconteceu?’, que só velhos amigos compartilham.
Era desse tipo de coisa que ele tanto sentira falta. Não queria ter se afastado das pessoas, mas agradecia profundamente àquelas que tinham compreendido os seus motivos e lhe dado uma chance sincera de voltar. Sem mágoas, de peito e mente aberta. Que bom que o — seu — mundo não acabou quando ele pensou que iria.
Após alguns bons minutos, Alberto precisou tristemente admitir que deveria voltar ao trabalho. Pagaram a conta e estavam prestes a sair quando se lembrou:
— O cappuccino dela!
O amigo arregalou os olhos, soltando o típico som de exaspero de quem tem uma lembrança súbita ou toma um susto. Ou ambos.
— Meu Deus, eu não acredito que eu estava esquecendo.
— Isso porque você disse que era impossível esquecer — disse, imitando a voz do amigo.
— Eu não falo assim. — Mas é claro que ele não sofreria bullying calado. — E não é interessante como logo você foi se lembrar?
— Não tem nada de mais nisso.
— Bom, realmente não é tão difícil se lembrar de alguma coisa que nem saiu da sua cabeça, né?
— Eu te odeio.
Alberto sorriu, meneando a cabeça.
— Acho que não. E pode deixar que eu vou fazer questão de deixar bem claro para ela quem foi que se lembrou do cappuccino.
— Você não presta.
— E deve ser por isso que você gosta tanto de mim. Te vejo na festa.
E, enquanto observava o amigo se afastando, percebeu que talvez nem todas as técnicas de mindfulness que ele conhecia seriam suficientes para conseguir fazê-lo dormir até o fatídico dia.





Continua...


Nota da autora: Oie! Como estão?
Se você chegou até aqui, obrigada por ler esse pequeno surto! Espero que esteja gostando! Fique à vontade para deixar um comentário aí, vamos conversar!
Beijinhos da Amy

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