Revisada por: Saturno 🪐
Última Atualização: 23/05/2025.The rumors, are terrible and cruel
But honey, most of them are true
Todo animal tem impulsos, seja este um animal racional ou irracional. Embora o passatempo predileto dos humanos seja negar sua própria natureza, nós somos animais racionais que, na maioria das vezes, conseguem controlar grande parte dos seus instintos primitivos. Contudo, é cientificamente comprovado que todas as pessoas possuem níveis impulsionais diferentes em todas as idades, principalmente durante a juventude. Para os neurocientistas, isto se deve ao fato de que o cérebro dos adolescentes ainda não está completamente formado — especialmente a parte autorreguladora deste. Cada cérebro de cada adolescente se desenvolve em um ritmo não específico e a última área a amadurecer é o córtex pré-frontal. Isso mesmo, aquela regiãozinha que comporta características usuais dos adultos: capacidade de planejamento, concentração, empatia e inibição de impulsos.
Então, mesmo com meus colegas de classe falando que não havia nenhuma desculpa ou justificativa para o que Van der Woodsen (também conhecida como a narradora não confiável deste conto adolescente) tinha feito na última sexta-feira de outubro às 23 horas, havia sim, pelo ponto de vista de neurocientistas respeitados.
Mas o cenário dessa avalanche não é um hospital ou um centro de pesquisas. É a universidade. Entrar aqui pode até ser mais fácil, sair, no entanto… Bem, imagine uma jaula de leões, a qual a porta de emergência está aberta, porém tem um banquete de carne ali. Você vai ser mordido se tentar ir embora, ou será comido quando os animais terminarem com a carniça que estava entre você e a liberdade.
Ou eu só estou sendo um pouquinho dramática.
— O Anarquismo acredita que o Estado deve ser completamente banido, o povo se autogovernaria. A educação seria libertária. — O professor de sociologia continuou seu monólogo animadamente, como se dar aula fosse a coisa mais empolgante a fazer. — Muitos deles, não todos, são ateus. Ou seja, a igreja, como era uma instituição, também deveria ser banida. Os casamentos, por exemplo, não existiriam mais, pois envolvem o governo e…
— Os casamentos já não existem. A maioria se divorcia por traição. A traição antigamente era punida com morte, não era? Hoje em dia só matam o amor! — , minha ex melhor amiga e colega de quarto, interrompeu a explicação, enquanto se levantava abruptamente da carteira. O azul das suas íris destacadas pelas lágrimas em seus olhos. Ela olhou de relance para mim. O ódio, desprezo e a mágoa quase me deram um soco na cara. Por mais que a frase proferida por ele tivesse sido, no mínimo, ridícula.
Mas ela estava machucada, e pessoas machucadas fazem coisas idiotas.
Pelo menos eu não era a única dando uma de diva dramática ali. Que reconfortante de todas as maneiras erradas, pensei com escárnio.
A loira saiu da sala como um cometa em roupas caras antes que qualquer um dos presentes pudesse proferir alguma palavra. E logo Vanessa estava correndo atrás dela.
Como sempre. Os humanos são mesmo criaturas de hábitos.
— O que está acontecendo? — o professor perguntou em voz alta à turma, completamente absorto às fofocas que percorriam o corredor do prédio universidade desde a primeira aula.
Bufei, fechando os olhos e afundando na cadeira. Nem me preocupei em checar os arredores, sabia que todos estavam descaradamente vidrados na minha pessoa, prontos para me detonar a qualquer momento como mísseis, como já tinham feito por murmurinhos e memes maldosos no Instagram.
Chumbo trocado não deveria doer, mas deixava hematomas sufocantes.
— Piranha. — O sussurro era quase inaudível, mas foi o suficiente para me fazer abrir os olhos e dar um sorriso irônico para garota sentada do meu lado, como se eu fosse abaixar a cabeça.
— Com o maior prazer.
Mesmo sendo a errada da história, mas isso não vem ao ponto.
As aulas tinham sido mais cansativas e pesadas do que o normal. Assim que o sinal tocou, apressei os poucos passos necessários para chegar à residência na qual vivia, onde com certeza mais uma boa dose de gritaria com acompanhamento de gelo estavam me esperando. Pelo menos, teria uma boa desculpa para beber em uma segunda.
Ao chegar à entrada da casa, suspirei aliviada, completamente exausta depois de uma manhã inteira sendo tachada como vadia, piranha, vaca traidora e outras palavrinhas nada bonitas. Além do sentimento de culpa que eu tinha que carregar, como o fardo que ele era. Tudo o que eu desejava era deitar na minha caminha, colocar uma música da Taylor Swift e me permitir entrar em um tipo de estado catatônico até o dia seguinte.
Tal como na noite de sexta, as coisas não aconteceram como eu planejava. Tirei a chave do bolso, mas quando estava prestes a abrir a porta, ela foi escancarada por .
— Oi, . — Ela fungou, e meu estômago embrulhou como se eu fosse vomitar. Nós duas tínhamos sido inseparáveis desde sempre, como eu poderia ter feito aquilo com ela? Eu dava um novo patamar ao conceito de amiga ruim. Mesmo com nosso afastamento recente, nada justificava meus atos. — Suas coisas estão no gramado. Você não vai mais morar aqui.
Opa.
Minha primeira reação foi olhar para trás, onde a grama da casa se encontrava. Três caixas enormes estavam quase transbordando. A palavra preferida de todos para substituir meu nome escrita nelas com marca texto. Lê-se: vadia.
— Tá doida? — Consegui destravar, minha mente tão distraída nem ao menos tinha notado as caixas nem um pouco discretas no quintal. — Para de coisa, . Eu sei que fiz muita merda, mas você sabe que não posso morar sozinha. Se eu não ficar aqui, vou ter que voltar para casa! — Tentei colocar algum senso em sua cabeça, minhas mãos movendo-se tão exasperadas quanto minhas palavras. Ela não podia estar falando sério. Era impossível arranjar um aluguel naquela época do ano, sem contar que o período de matrícula já havia sido concluído. Meu coração esmurrava minha caixa toráxica. Como a garota que costumava ser minha melhor amiga, ela sabia exatamente o que estava se passando pela minha mente.
— Você devia ter pensado nisso antes de dormir com o meu namorado na minha cama! — ela disse, seu tom de voz residia no meio termo entre irritação e decepção. Antes que pudesse ter qualquer movimento em resposta, ela fechou a porta na minha cara.
— , para com isso! Vamos conversar! — Bati na porta, repetindo aquelas duas palavras: vamos conversar. Tinha como? Esse era o tipo de problema resolvido com diálogo? Eu não sabia. Mas meu desespero por estar à beira de virar uma sem-teto, ou de ter que voltar para casa, gritava mais alto que meu senso. Muitas coisas pareciam se sobressair a ele ultimamente. À medida que eu me agonizava, aumentava a força para bater na porta, tentando chutá-la e a esmurrar, mas nada estava funcionando. — ! , por favor! — Tentei abrir a porta com a chave, sem resultado de novo. Ela tinha trocado a fechadura? — PUTA MERDA, GENEVIEVE! VAI TOMAR NO CU, SUA FILHA DA PUTA! EU DEVIA TER TRANSADO COM ELE MESES ATRÁS. APOSTO QUE A EJACULAÇÃO PRECOCE DELE OLHANDO PRA MINHA BUCETA FOI MELHOR DO QUE QUALQUER GOZADA DENTRO DE VOCÊ!
É, eu não quis dizer isso. Mas foi exatamente o que saiu da minha boca.
E ela não abriu a porta.
Que surpresa.
Aceitando uma derrota temporária, me sentei na escadinha em frente à porta, decidida a esperar pela Alice, a prima de que dividia a casa com a gente, até olhar para o lado e notar que o carro de Ali estava devidamente estacionado. O que significava duas coisas:
1. Eu realmente estava distraída pra caralho.
2. Alice estava ciente da situação.
Antes que meus sentimentos calamitosos pudessem tomar o controle, Cortese apareceu do nada na minha frente. Sim, o mesmo cara que era namorado da minha melhor amiga e tinha tirado a minha virgindade na sexta-feira.
Ah, aquele dia não podia ficar melhor.
— O que você quer aqui? — Estava prestes a descontar toda a minha raiva em alguém que só tinha 50% da culpa. Alguém que tinha sido extremamente gentil e compreensivo, antes e depois do... Certo, Van Der Woodsen. Se tem um momento para não pensar no cara que te ajudou a, literalmente, foder a sua vida, é agora.
— Eu soube que você está sem lugar pra morar. — Ele coçou a nuca, como fazia quando estava nervoso. Era no mínimo peculiar assistir um homem de quase dois metros de altura tão hesitante. Arqueei as sobrancelhas, confusa sobre como ele soube de algo que aconteceu três minutos atrás. Minha vida realmente tinha se tornado uma comédia romântica? Onde estava o milionário gostoso que se apaixonava por uma jovem universitária? — Ela postou no Instagram quando estava montando as caixas. — Suspirou, visivelmente arrependido com a proporção que uma transa de traição sem significado tinha tomado.
Ah, . Você não é o único arrependido aqui, confie em mim.
— Me diz que foi no privado de besteira, pelo menos — grunhi, esfregando meu rosto até que minhas mãos parassem abaixo do meu queixo. Ele assentiu. Pelo menos só 100 seguidores e não 900 tinham visto então. — Ótimo.
Ele deslizou as mãos nos bolsos, abrindo a boca algumas vezes antes de cuspir as palavras para fora rapidamente.
— Eu tenho um amigo que precisa de um colega de casa. Acho que seria bom pra vocês dois.
— Veio aqui me oferecer uma casa como um pedido de desculpas por ter transado comigo? — Me levantei, mantendo o olhar firme em seu rosto, enquanto cruzava os braços.
— Não! — Seus olhos cor de avelã esbugalharam-se e suas bochechas coraram, e pela primeira vez no meio de toda aquela confusão eu consegui rir. De repente, eu me lembrei por que tinha me atraído pelo errôneo doce. passou as mãos pelos cabelos castanhos, que estavam longos o bastante para tocarem seus ombros, timidamente. — E você transou comigo também!
Viu? Ele é um boboca fofinho. Quer dizer, bem como um traidor repugnante, mas eu não tinha mais moral para julgar isso.
— Normalmente é necessário dois indivíduos ou mais para a prática de uma relação sexual, mas obrigada por me lembrar, . — Revirei os olhos, embora a sombra de um sorriso fosse clara em meus lábios. — Você não está fazendo isso por pena, não é?
Pena.
Eu odiava essa palavra. Ter um grupo de jumentos vindos do inferno para me xingar era mil vezes melhor do que uma só pessoa sentindo pena de mim. Eu já tinha provado muito desse sentimento alheio na minha cidade natal, com certeza não precisava de mais uma rodada dessa bebida melancólica.
suspirou, abrindo os braços em rendição.
— Eu estou com raiva de mim mesmo, . Meu relacionamento acabou, e você está sem um lugar para morar. Três pessoas saíram machucadas. Por minha culpa. — Seu olhar sincero e sua voz banhada por fragilidade tornaram tão mais fácil eu apenas concordar com aquelas palavras e tirar o peso da culpa das minhas costas. Eu podia facilmente pestanejar, gritar, chorar e ele aceitaria tudo cabisbaixo.
Mas eu só respirei fundo.
Só dá pra apontar dedos até um certo ponto antes deles pararem em você.
— A culpa foi de nós dois, .
Ele não disse mais nada, provavelmente incerto de suas próximas ações. Afinal, eu o conhecia. Sabia que, em qualquer outra situação, ele iria me abraçar e dizer palavras de afirmação para assegurar que tudo daria certo. Mas o limite entre nós dois havia sido estabelecido no momento em que eu saí do quarto naquela noite cheia de prazeres e pesares. estendeu o braço, uma folha de caderno com algumas coisas escritas me esperando em sua mão. Apenas agarrei o papel, sem triscar em qualquer parte da sua pele.
— O endereço — ele clarificou. Assenti sem realmente olhá-lo, focando minha leitura no garrancho que me mostraria o local. Não era muito longe, poderia facilmente ir de pé. — E, ?
— Sim? — Levantei minha cabeça. O silêncio se fez presente naquele limbo, dois olhares cheios de tanta coisa, apenas tentando transmitir um terço de tudo, até que finalmente falou com uma convicção que nem eu mesma tinha ultimamente:
— Você não é o que eles dizem sobre você.
E mesmo que não devessem, aquelas palavras pequenas que não deveriam soar nem um pouco românticas aqueceram meu corpo da cabeça aos pés.
— Obrigada — respondi, uma vez que ele já havia ido embora, mesmo que não pudesse escutar. Recuperei a atitude quando uma brisa gélida acariciou minha bochecha, me lembrando das mãos frias do garoto que tinha acabado de sair. Jesus do céu, eu precisava de mais limites. Andando até a minha trindade de caixas nada pequenas e com o endereço cravado na minha mente, me preparei para empurrar e carregar até a minha, esperançosamente, futura casa. — E lá vamos nós.
Eu juro que teria batido mais simpaticamente na porta se não tivesse andado três quarteirões inteirinhos com três caixas pesadas pra uma porra sendo empurradas, juro mesmo. Mas agora a pessoa que ia decidir se eu ia ou não permanecer nessa droga maravilhosa de cidade muito possivelmente já me odiava por quase quebrar a merda da sua porta de madeira.
Mas o que é uma gota de chuva para quem já está molhada? Bati na porta mais uma vez.
— Você só pode estar de brincadeira comigo. — A voz dele parou minha tentativa interior de explicação, ou sei lá o quê, seus lábios arqueados formando aquele clássico sorriso lateral que ele tanto usava e parecia ter sido moldado por Deus apenas para me tirar do sério.
Só por ele estar ali, vivo e respirando, me custou um percentual alto de autocontrole para não pular no pescoço dele. Tinha que ser legal, pelo menos até aquele ser me deixar morar lá... Com ele.
Credo. A que ponto eu cheguei?
Aí está algo que nunca pensei que iria precisar: a ajuda de . A única pessoa além de que me conhecia desde a velha cidade, onde íamos para a mesma escola durante todo o ensino fundamental e médio.
Também conhecido como meu amigável inimigo. Sabe aquelas duas pessoas que vivem pegando no pé uma da outra desde sempre?
Esses éramos nós aos 15 anos.
O problema é que ele continuava insuportável aos 18.
— Eu concordo. — Revirei os olhos, me forçando a ser cordial com aquele galinha de meia tigela. — Olha, você provavelmente já sabe da minha situação.
— A foda com o , ou você ser expulsa de casa? — me interrompeu, e eu respirei fundo, me controlando para não mandar ele ir à merda. — Você devia aprender comigo, . Nunca pegue e fale se for alguém comprometido.
— Cala a boca. Eu preciso de um lugar pra morar por enquanto, e o me deu esse endereço.
— Tá querendo se pegar com ele aqui em casa? — Sua voz permaneceu com o tom de provocação.
— Meu Deus. Fica quieto e me escuta! Eu obviamente não sabia que era você, mas já estou aqui e tive que carregar essas caixas enormes por três quarteirões inteiros sem ajuda nenhuma, além de ser taxada como vadia que transa com todos quando eu só fiquei com um cara. Aliás, e se tivesse sido mais do que um cara? Só porque eu sou uma garota isso seria errado? Aposto que se fosse um cara fazendo essa merda, não teria tido essa repercussão toda. — Balancei a cabeça, sentindo uma careta se acomodar no meu rosto. — Certo, eu não estou sendo chamada de puta porque transei com vários, o que não teria nada de errado, mas porque fiquei com um cara que tinha namorada e essa namorada era a minha melhor amiga, que agora me odeia e me expulsou de casa. Então, não seja um merda pelo menos uma vez na sua vida e me deixe morar aqui. — Despejei rapidamente, e o plano de ser legal voou pelos ares, mas como eu seria gentil com o ? Simplesmente impossível. Eu nem mesmo sei o que fez a válvula estourar e minha boca grande abrir para ser... um pouco grossa com ele, mas aquilo já era parcialmente comum. Tossi, ajeitando minha postura antes de encará-lo. — Só até as vagas para irmandades abrirem de novo. Por favor.
Pelo menos eu consegui não mandar ele ir à merda.
Porém, tomando como dica a carranca de confusão que acompanhava os braços cruzados dele, duvidei bastante que ele conseguisse entender alguma coisa do que eu havia dito.
Homens, sempre lerdos.
— Só até as inscrições para irmandades abrirem de novo? — Assenti com a cabeça, e colocou a mão no queixo, como se estivesse pensando. Idiota. — E aí você se manda?
— E aí eu me mando — confirmei.
— Eu vou te cobrar aluguel — ele disse, arqueando as sobrancelhas.
— Justo. — Levantei as mãos. O aluguel barato era o maior motivo disso.
— E eu vou deixar minhas cuecas pela sala.
— Nojento. — Fiz uma careta. — A sua cuequinha do Homem-Aranha?
— Dá para esquecer disso? — Pela primeira vez naquele diálogo, parecia envergonhado. Nada como eus mais jovens para ensinar humildade. — A gente era criança.
Eu ri, cruzando os braços.
— Eu era uma criança, você era um bebê que sujou a cuequinha com…
— Ok, boa sorte morando no telhado da — disse, com um sorriso irônico, fechando a porta.
— Espera! — Coloquei a mão, impedindo que ele sumisse de vista. Guardaria as provocações para mais tarde, mas agora precisava de uma cama. — Eu não vou falar mais da sua cuequinha do Homem-Aranha.
Pelo olhar semicerrado, parecia saber das minhas intenções, mas apenas resmungou em concordância.
— E você vai embora assim que as inscrições para irmandades começarem.
— E você nunca mais vai me ver. — Sorri ironicamente. Eu sabia tanto quanto ele que não queríamos ter que suportar um ao outro mais do que o necessário. — Só em festas, mas vai estar ocupado demais com a conquista da semana para notar.
parou, ainda segurando a porta. Ele me encarou por alguns segundos de relógio e eternidades na minha cabeça. Eu tinha uma casa ou não?!
— Sabe, você não precisava dar esse discurso todo. Eu sempre ajudo as donzelas em perigo — o idiota disse maliciosamente, e eu tive que usar todo o meu autocontrole para não chamar o rabo dele de donzela. Quando eu estava prestes a mandar ele ir para puta que pariu, deu uma risada anasalada ao ver minha expressão e empurrou a porta para abri-la por completo. — Fechou. — A palavra mais milagrosa do mundo para mim deixou sua boca, seguida pelo irritante sorriso de sempre. Ele esfregou as mãos. — Vamos. Vou te ajudar com as tralhas.
Eu bem que teria dito alguma coisa para provocar ele, ou até bater o pé e dizer que conseguia carregar minhas caixas sozinha. Mas o cansaço era tão grande que eu só me permiti sorrir.
Não por causa do , é claro. Apenas para o fato de eu ter onde dormir a noite.
Aquele barulho estava tirando qualquer chance remota de descanso a troco de nada. A irritação era mais alta do que aquele chiado e, ainda assim, eu não conseguia me concentrar o suficiente para fechar os olhos.
Clap.
O que era aquele zunido? Um mosquito reclamão? Ratos? Fantasmas? Alguém tentando entrar na casa? planejando a minha morte durante o sono?
Clap.
Não, era tão sútil andando quanto um cavalo manco. Talvez uma das suas companhias noturnas saindo de casa? Ou o teto cedendo à garoa por falta de manutenção daquele jumento. Tá, meio impossível. nem estava chovendo.
Clap.
Minhas teorias foram interrompidas por um choque de realidade e da minha cama caindo no chão com um baque estrondoso, misturado ao meu grito de surpresa.
Clap!
Então esse era o barulho. A minha cama.
Eu ainda estava no colchão, meu coração acelerado pelo susto, quando um descabelado entrou no quarto, estudando cada canto do quarto com seus olhos verdes arregalados em alerta, enquanto agarrava uma espátula como se sua vida dependesse daquilo.
— O que aconteceu? — perguntou, pousando seu olhar em mim. Arqueei a sobrancelha. Como aquele animal não tinha notado a cama esparramada no chão?
— Você é burro?
— Você gritou, achei que era algo sério! — Ele bufou, colocando as mãos na cintura como uma mãe sem paciência.
— E qual era o plano? Me defender com uma espátula, Bob Esponja? — Revirei os olhos, erguendo o braço para que ele me ajudasse a levantar. No frio da cidade, a palma quente de deixou uma sensação quentinha em minha mão, mas a soltei assim que me pus de pé.
— Primeiro, não ofenda o Bob Esponja nessa casa. Eu conseguiria derrotar qualquer um com uma espátula, eu sou um ninja. — Não consegui evitar a risada que logo se desenrolou em uma gargalhada ao ouvir aquilo. Em meio a toda aquela confusão, a coisa mais inacreditável certamente era achar que tinha qualquer tipo de habilidade. — Pelo menos eu não estou gritando igual um chihuahua.
Além de ser irritante.
— É mais capaz de eu bater em um bandido do que você. — Ele abriu a boca para responder, mas, antes que pudesse, eu continuei: — A sua cama se desmantelou no chão.
A expressão de criança-mimada-sem-doce de logo se contorceu em um sorriso malicioso, como um dos sete cavaleiros do apocalipse antes de iniciar o fim do mundo.
— Sua cama.
— O quê?
— A minha cama está ótima. A sua cama que está no chão. — O loiro deu de ombros, se divertindo a cada palavra. — Mas, sabe, eu nunca negaria o pedido de uma mulher para deitar na minha ca…
— Nojento, não me faça vomitar. — Franzi o nariz para aquele sem vergonha. Estava prestes a prosseguir com algo que gosto de chamar de “abaixando a bola de porque ele já tem duas”, mas o odor de algo queimando me interrompeu. — Eu prefiro dormir no chão e… Que cheiro é esse?
Mais uma vez, seus olhos se arregalaram e ele sumiu tão rápido quanto havia aparecido. Do outro cômodo, só consegui ouvir uma frase desajeitada e rápida antes dos bater das panelas:
— É o nosso jantar… Droga!
Balancei a cabeça, aquele menino era inacreditável, me virando para encarar o estrago do meu “quarto’’. Aspas são um eufemismo para aquele cubículo. Certo, através do meu humor pouco maleável, tenho que admitir dizer: o lugar era bem arrumado. Tomada estratégica, cama forrada, dois travesseiros confortáveis, ar-condicionado, relógio feio na parede, janela e um guarda-roupas se encontrava todo quebrado, de modo que só uma porta estava utilizável. Não consegui arrumar nem uma mala — lê-se: caixote que empurrei até aqui — inteira dentro daquele troço, o qual provavelmente era o lanche diário de uma corja de cupins.
E agora essa cama fazia um ruído anunciando a sua quebra. Tentei empurrar o resto dela com o pé, apenas para ouvir o clap de novo, uma onomatopeia digna de quadrinhos estragando minha chance de ter uma boa noite de sono mais tarde.
Além disso, como mencionado anteriormente, o quarto era pequeno. Claro que dava para circular sem bater na parede, mas minha pessoinha simplesmente adorava dançar pelo quarto e treinar minhas vertentes de atriz, encenando sozinha perante o espelho. Admito que esse último era mais uma luxúria, um problema de champagne, todavia, meus outros pontos eram válidos.
Eu até teria gritado se o dia não tivesse sido exaustivo o bastante, só para extravasar. Porém, tenho certeza de que acabaria desmaiando se gastasse o ar restante nos meus pulmões para me esganiçar. Assim, me levantei e fui até a cozinha, onde provavelmente estaria tentando salvar o nosso jantar.
Tão-Dã, meu querido colega de casa estava lá. Tirando a frigideira do fogão, segurando o rabo dela com um pano azul-marinho, parecendo tão concentrado quanto quando olhava o treino das líderes de torcida com os amiguinhos dele.
Só uma coisinha estava errada: durante todo esse processo, estava sem camisa.
Sério, me responda com toda a honestidade do mundo: QUE TIPO DE ANIMAL FRITA HAMBÚRGUERES SEM CAMISA? E ele estava basicamente encharcando o nosso jantar em óleo, dava para criar mini jacarés na piscina amarelada em que os hambúrgueres estavam.
— Você vai ficar parada aí me secando? — Aquela voz englobada com sarcasmo me assustou um pouco, e eu dei um pulinho. Mas o que ele não viu, não aconteceu. — Já vou acabar aqui, mas a gente pode adiar o jantar e ir lá pro meu quarto. Posso comer uma coisa mais gostosa.
Um idiota completo.
— Primeiramente, eca. Não sei como tem garota que cai nessas suas cantadas idiotas. Em segundo lugar, te secando? Por favor, . — Revirei os olhos, me dirigindo até o balcão e me sentando sobre ele. — Estava pensando no quão panaca você é por mexer com óleo sem camisa. Sabe que esses litros de óleo que colocou aí podem respingar em você, né?
— Tá preocupada comigo, ? — Aquele apelido bobo fez todos os sistemas existentes dentro do meu corpo paralisarem no tempo por um segundo. Não porque era ele falando ou coisa do tipo, mas pelo que aquilo remetia: dias mais simples.
Quando mais nova, me apresentava como para os meus amigos, porque havia lido em uma revista da Seventeen que todos os artistas legais usavam seus apelidos, não seus nomes. Já na faculdade, nenhum dos meus colegas me chamava assim. Apenas e Bem, desde o nono ano do ensino fundamental, a série em que e eu compramos nosso primeiro colar da amizade: um pássaro e uma espingarda. Anos mais tarde, nós duas acharíamos aquilo uma apologia à crueldade, mas, na época, nos sentimos duronas.
Levei a mão à sagrada gargantilha dourada imediatamente, a qual nunca cogitava tirar, nem mesmo para um banho. Eu realmente tinha bagunçado tudo por um homem, a porra do , de quem eu nem gostava romanticamente! Bom, não desde a infância. Esqueçam o que dizem sobre atos românticos impensados: a maioria deles é só sobre tesão misturado com alguns outros sentimentos confusos e nem valem tanto a pena assim.
A corrente gelada parecia um albatross* em meu pescoço. O metal entre os meus dedos me fazia questionar: quantos passos para trás meu feminismo companheiro tinha dado? Eu nunca teria feito algo assim meses — dias atrás. Quantos lapsos, olhares roubados e pistas ignoradas tinham me levado àquela cama?
— ? — chamou, provavelmente tentando ver se eu ainda estava viva. Afinal, não era comum ele não receber uma resposta arisca imediata na ponta da língua.
— Por mim, você morria e eu dançava ragatanga no seu túmulo, . — Atenuei afiada, soltando o meu cordão, que agora se assemelhava a uma corrente de ferro, me puxando para baixo a fim de manter meus pecados vívidos na minha mente como aquele A vermelho em A Letra Escarlate. Pelo menos brigar com aquele jumento iria me fazer esquecer a mágoa crescente que eu estava sentindo.
revirou os olhos, virando-se para pegar dois prantos e, logo em seguida, voltando à mesa. Pela primeira vez, parei para observá-lo.
Naquela luz preguiçosa, aconchegante de cozinha, ele quase parecia aceitável. Olhos de jardim irritantemente magnéticos, cabelo curto em um loiro queimado, a boca proeminente, o nariz com a ponta e apenas um pouco, sutilmente, torcido na linha que o compunha; não era um nariz delicado, servia para torná-lo mais másculo, robusto. E as sardas, tão pequenas e meras, diferentes de qualquer outro aspecto dele, só poderiam ser achadas se eu ficasse perigosamente perto dele — o que já tinha acontecido durante nossas intermináveis discussões fúteis (que eram sempre culpa dele), que seriam esquecidas em minutos e brincadeiras infantis durante os anos.
Muita coisa tinha mudado, mas não . Ele sempre foi como era agora: irritante.
— Devíamos ter regras — falei de repente, descendo do balcão. Chame isso de autopreservação feminina em tempos modernos com visão antiquadas, porque eu aposto um rim que, se eu fosse um cara, seria chamada de cretino por uma semana e logo tudo seria esquecido. A prova disso era , que era visto conversando pelos corredores horas atrás. De qualquer maneira, eu tinha que permanecer nesta universidade até as inscrições para irmandades abrirem, mesmo que fosse necessário engolir alguns sapos, coisa com a qual eu não estava acostumada.
E, para isso, também teria que resistir à vontade de estrangular durante o sono.
Ele arqueou a sobrancelha, cruzando os braços com um sorriso divertido. Imitei o gesto braçal.
— Que tipo de regras? Sua palavra de emergência? — Cafajeste, como sempre.
Eu sabia que não tinha intenção de me pegar. Ele só sabia que eu achava seu jeito de galinha (muito) asqueroso e que julgava qualquer uma que caísse nos papinhos dele. E eu, é claro, amava diminuir o ego estratosférico dele.
— É sério, . Já sou a piranha da escola, não quero que minha reputação piore por sua culpa. — Por mais que aquela fosse uma visão extremamente machista, a qual eu sempre fui contra, eu não podia me dar o luxo de me ferrar ainda mais naquela história. Ele abriu a boca para retrucar, mas apenas continuei. — E é normal que as pessoas tenham regras quando moram juntas. Você não tinha regras quando morava com o Trevor?
O amigo com quem morava antes. Ele havia se mudado de última hora, os boatos diziam que os pais dele conseguiram revogar na justiça o pedido de emancipação dele.
— Se estiver pegando alguma menina, tranque a porta. Se vomitar, vai ter que limpar, bêbado ou sóbrio. Furar a camisinha do outro é sacanagem. Esse tipo de coisa. — Deu de ombros e eu bufei. Um perdido na vida, meu Deus do céu.
— Pronto, agora fazemos as nossas próprias regras.
— Tudo isso porque você não consegue resistir a esse corpinho? — Ele deu um passo para perto de mim, e eu cruzei os braços, lançando o melhor olhar de ódio que eu consegui, o que não pareceu surtir o efeito desejado, levando em conta a risada que ele deu.
— Eu vou furar as suas camisinhas. — Eu não tinha coragem de fazer isso, mas ele não precisava saber.
engoliu em seco, assentindo rapidamente com a cabeça ao aceitar criar nossas regras de convivência e cessando o riso imediatamente.
Naquele momento, eu não consegui segurar a risada frouxa.
Enquanto ele arrumava os hambúrgueres, eu fui até meu quarto arranjar papel e caneta. Ao voltar, já estava de camisa, o tecido era da mesma cor que o pano que ela havia usado para segurar o braço da frigideira. Então era por isso que ele tinha tirado a roupa. Ao colocar os objetos na mesa, me virei para pegar maionese na geladeira, mas não encontrei.
— Não tem maionese? — perguntei, fechando a porta.
— Tinha, mas não tem mais. Coloquei o resto no seu hambúrguer.
— Obrigada. — Encarei-o confusa. Como ele se lembrava disso? Uma sensação estranha me deu cócegas por dentro. Ser vista e alguém lembrar de detalhes sobre você era um tipo de timidez singular. Ao me sentar na cadeira, peguei a caneta e bati no caderno. — Vamos começar?
Não demorou muito para começarmos a colocar as regras, juntando as ideias dos dois. A maior parte das regras vinha de mim, enquanto as de tinham mais a ver com festas e não entrar em quartos com meias. Ele podia ser um babaca, mas era razoável.
Talvez ele tivesse ao menos uma qualidade.
— Ainda não entendo por que você tem uma caneta cheia de frescura. Como você consegue ler alguma coisa com esse glitter rosa?
— Eu disse que podia escrever e você não quis.
— E quem entende a sua letra de médica? — Ele bufou, me causando a revirar os olhos.
— Certo, eu acho que acabamos. — Nós dois estávamos sentados, comendo os lanches ensopados em óleo, que surpreendentemente estavam muito bons, quando anunciei no segundo em que largou a caneta na mesa e dei mais uma mordida no meu jantar caseiro antes de colocar ele no prato. O protocolo anti desastre para vivermos sob o mesmo teto estava concluído! — Mais uma coisa, meu guarda-roupas tá todo quebrado.
— Foi o Trevor — explicou, enquanto se debruçava sobre a mesa e sequestrava o meu hambúrguer. — Rolou uma briga quando ele tava bêbado em uma das festas que demos. Acho que tem uns cupins também. — Deu de ombros, como se não fosse nada. Arranquei meu sanduíche das suas mãos com um olhar repreendedor, o qual ele respondeu com um muxoxo. — Tem espaço de sobra no meu, pode usar.
— Regra oito: não andar de roupas íntimas pela casa — relembrei.
— Eu voto por revogar essa regra.
— Eu voto por você calar a boca.
— Você sabe como me fazer calar a boca, estressadinha. — Ele piscou.
— Com um tapa. — Revirei os olhos. Teria que juntar dinheiro para comprar um guarda-roupad, porém, por hora, o dele seria a minha saída. Abocanhei a comida mais uma vez e coloquei no prato dele. sorriu como uma criança que havia conseguido roubar um brinquedo de uma loja. — Outra coisa. Minha cama quebrou.
— Você pulou nela? — questionou.
— Puft, não. — Evitei seus olhos, mas seu silêncio denunciava que o loiro não acreditava em mim. Ao voltar o olhar para ele, um semblante cínico me esperava. — Talvez. Um pequeno pulo para deitar!
— O sofá é bem confortável — comentou, sabendo que eu queria que ele cedesse a cama. Poxa, não era pedir demais. Tá bom, era. Mas mesmo assim.
— Por que você não dorme lá, então? — Cruzei os braços, fazendo biquinho como uma criança birrenta.
Qual é, eu tinha direito de querer uma boa noite de sono depois do dia de hoje, numa caminha confortável e nada quebrada.
— Porque eu não cabo lá. Você é pequena. — Mostrei a língua pra ele, que riu do meu ato infantil. — Ou você pode dormir comigo.
Só aquela ideia me dava calafrios. Do tipo de filmes aterrorizantes, óbvio.
— O sofá nunca me pareceu tão confortável.
Não consegui evitar um gemido embaraçoso, mas ele pareceu gostar daquilo: suas mãos, tão inseguras quando começamos, agarraram minha cintura em um movimento possessivo que nunca imaginei que poderia vir de um menino tão doce. E aquilo me deixou ainda mais derretida em seus braços, ansiosa por todas as maneiras que ele poderia me surpreender naquela noite.
Eu estava completamente à mercê dele, de um jeito que eu nunca pensei ser possível para nós dois.
Acordei assustada pela memória tão realista, me sentando no sofá por puro reflexo. Infelizmente, uma dor nas costas repentina, proveniente do sofá nada confortável no qual eu tinha adormecido, me fez soltar um grunhido de dor e me curvar, acabando por cair no chão.
Ótimo. Duas partes do meu corpo machucadas logo pela manhã. E nem era a parte difícil do dia ainda.
Me pus de pé com um suspiro esganiçado. Minha mão direita pressionou o lugar onde minhas costas ardiam. Além de ter demorado pra pegar no sono — por ficar olhando o escuro e me lembrar do palhaço de It, admito —, provavelmente estaria dolorida por algumas boas horas. Bem no dia dos testes para a equipe de natação. Pelo menos, como capitã, eu não precisaria competir hoje, mas sempre ocorria algum problema e eu acabava tendo que entrar na piscina.
Encarei o relógio eletrônico, 5:30 da manhã. O sol já tinha saído da toca, mas não estava acordado ainda e, levando em conta a maneira com a qual despertei, eu com certeza não iria pegar no sono novamente.
Bufei, pensando que poderia ter sido acordada de vários modos horrendos, mas a lembrança do que fodeu a minha vida foi sorteada pelo meu subconsciente? Sério? Eu só podia ser uma masoquista mesmo, até dormindo.
Andei até ao quarto do à base de passos leves, tomando cuidado para não o acordar quando adentrei o recinto e abri o guarda-roupa. Ele estava esparramado na cama, respirando lentamente. Ali, dormindo tranquilo, nem parecia que ele era um tapado.
Gastei alguns segundos longos para escolher uma blusa preta que eu tinha, ela ficaria maravilhosa com o casaco roxo que tinha escolhido e podia combinar com meu salto verniz preto. Até que encarei a blusa um pouco mais. Ela era um pouco apertada, ou seja, deixaria meus seios em maior evidência, e eles certamente aproveitariam isso para mais fofoca. Olha lá, quem será que a quer seduzir agora?
Porque, é claro, a culpa sempre cairia toda para mim.
Peguei meu maiô de natação, deixando o quarto logo em seguida. Havia dois banheiros na casa: um na suíte de e outro ao lado do meu quarto. Optei pela segunda opção, queria evitar ao máximo acordar o . Odiar ele? Tudo bem, mas acordar alguém antes das seis da manhã ultrapassava qualquer limite.
Tomei um banho quente rápido, sem conseguir qualquer relaxamento ou sensação de limpeza ao acabar, como esperado. Enfiei-me nas roupas compostas demais para o que eu normalmente usava: uma das minhas poucas calças jeans, blusa cinza de manga curta e gola alta, com uma rosa contornada pelos dizeres Not your doll e um casaco roxo escuro por cima. Nada na ‘’moda’’, nada curto e livre como eu gostava. Apenas peças que eu sabia que não iriam render mais uma brecha para os apelidos maldosos e sexistas. Em uma perspectiva, parecia que eu estava me rendendo ao machismo, me perguntando se estava tendo o mesmo problema, mas parecia uma realidade longe demais. Por outro lado, eu estava exausta de escutar meu nome acompanhado de xingamentos vadia, puta e similares. Poxa, eu realmente queria usar aquela blusa preta, mas os sacrifícios eram necessários. E, bom, era só uma blusa. Ou assim eu acreditei.
Cercada pelas paredes repletas de azulejos azuis daquele banheiro, encarei o meu próprio reflexo no espelho, tentando decidir se deveria ou não colocar maquiagem. Talvez algo leve como eu sempre usava de manhã. Mas e se as pessoas pensassem que eu estava daquele jeito por conta de um cara? Ou para chamar atenção? Olhares julgadores na universidade mostravam os pensamentos repugnantes em quietude, e os comentários entupidos de maldade atacariam com o dobro de força pelos últimos acontecimentos.
Prossegui minha rotina, tentando não pensar muito nisso. Penteei o cabelo e escovei os dentes antes de sair do banheiro. Minhas roupas estavam todas no guarda-roupa de , contudo, meus outros pertences se encontravam no quarto que logo seria meu — após os devidos consertos serem providenciados. Será que eu conseguia comprar aquele panaca com um saco de Doritos para ele arrumar a cama e o guarda-roupa? Se é que sabia consertar alguma coisa.
Apanhei o que ia precisar e voltei para o banheiro, escolhendo colocar maquiagem ainda mais leve do que o habitual: corretivo, base, pó e rímel. Decidi permanecer com meus saltos verniz, de algum jeito, me senti mais confiante com eles, e terminei de me produzir com um par de brincos pequenos e algumas pulseiras tilintando ao redor do meu pulso direito.
6:45AM, decidindo pular o café da manhã, alcancei minha bolsa e me preparei para andar até a universidade. Seria até melhor não ser vista saindo de casa com no meu encalço. Apesar de toda a comoção pelo meu erro de uma noite, ainda não tinha sido taxada como ‘uma das garotas de ’, e isso sim seria a pior coisa do mundo. Só o pensamento me fez entortar a cara em uma carranca.
Aquilo causou um suspiro de alívio, pelo menos um lado positivo.
— Bom dia! — Sorri para o porteiro ao adentrar na faculdade, e o senhor me correspondeu com um aceno amigável. O fluxo de alunos não estava alto nos corredores, na verdade, parecia um cenário de The Walking Dead. Poucas pessoas vivas e o resto zumbis controlados pelo sono. O que significava nenhuma atenção indesejada. Era o meu dia de sorte.
Estava sorrindo que nem uma idiota por ter essa pequena tranquilidade, até ver a mim mesma no espelho do corredor principal. Deus, aquela mulher não podia ser eu, o reflexo simplesmente não se parecia comigo.
Qualquer coisa pela minha reputação, eu acho.
Sentei-me no banquinho ao lado do espelho, sacando meu celular. Chequei os stories, pulando cada vídeo de música estourando e rotinas de comida, até que uma postagem da minha mãe me fez parar por um momento. A legenda podre Com elas!!! Amo muito!!, seguida por uma foto dela com minha irmã, Iris, e a filha do novo namorado dela, Kristen. Eu poderia dizer o que era pior: a situação, ou eu ainda me surpreender.
— Sua mãe? — Simples assim, meu celular havia caído no chão. Me abaixei para pegá-lo antes de responder a Wood, porém ele acabou se inclinando com a mesma finalidade, fazendo com que nossas mãos se encostassem levemente. Na versão clichê perfeita da coisa, eu e ele ficaríamos vidrados nos olhos um do outro, daríamos sorrisos envergonhados e coraríamos como adolescentes experimentando sentimentos exóticos pela primeira vez. Só que eu não era a ela dele, e não era o meu ele. Não existiam contos de fadas sobre esse tipo de história. Ali, na vida real, Wood apenas recolheu sua mão rapidamente, como se minha pele queimasse igual fogo.
— Desculpa! — Não consegui distinguir se ele estava se desculpando por me tocar ou pelo telefone, mas assenti.
— Tudo bem — respondi, incomodada pela súbita negação ao meu toque. Embora soubesse que estava fazendo o que eu pedi: afastar-se. E não era isso que eu tinha dito, gritado que queria? — Por que está aqui? Nunca vi você acordar antes das nove.
— Não consigo dormir muito ultimamente. Sem contar que vi você fazendo a “cara de mãe”. — Fez aspas imaginárias e eu franzi o cenho.
— Cara de quê?
— É a sua cara quando sua mãe faz algo que te deixa irritada ou magoada. Você morde o lábio sem notar e sua testa fica com ruguinhas de expressão. — Ah, é. costumava ser minha melhor amiga, mas se tornou ainda mais próximo de mim quanto ela ao engatarem o namoro. — Tudo bem?
— Só mais uma foto dela com a filha de outro em vez de procurar saber sobre a própria filha. — Dei de ombros, como se aquele comportamento não me afetasse. Quem me dera ser tão fria quanto parecia. — Como sempre.
— ... — Sabia o que vinha a seguir. O carinho dele, o apoio, tudo que me fez ter coragem o bastante para me entregar a ele naquela noite. E por mais que eu desejasse aquilo, ter alguém sobre o precipício do qual eu havia sido empurrada para me dar a mão, não podia prosseguir como se aquela noite nunca tivesse acontecido, especialmente pelos cantos da universidade. A lembrança de hoje mais cedo parecia um sinal escancarado disso.
— Olha, , eu não quero ser grossa, mas acho que você tem que ir embora. Eu tô me esforçando pra caralho para recuperar a minha reputação. E falar com você não vai me ajudar nem um pouco nisso. — Ele olhou para o chão, um suspiro escapando do seu corpo. — Não quero que a veja a gente. Isso só iria magoar e irritar mais ela.
— , eu sei que é difícil. Mas nós somos amigos desde sempre. Antes disso tudo, não tinha um dia que eu não conversasse com você. A minha rotina toda tem você, e eu não quero que deixe de ser assim, nunca. — levantou a cabeça à medida que dizia todas aquelas palavras, que conseguiam parecer belas e um sacrilégio ao mesmo tempo. — Aquela noite significou algo pra mim. Você significa alguma coisa pra mim, . — Ele riu consigo mesmo, balançando a cabeça. — Não somente alguma coisa. — segurou minhas mãos delicadamente. Por reflexo, olhei para ele. Aqueles olhos, sempre indecisos de cor, agora azuis-esverdeados sob a luz matinal, repletos de admiração pela garota que ele me idealizava e a qual eu já tinha provado diversas vezes não ser. — Você é tudo pra mim. Sempre te disse isso. E não mudou. Aquela noite só me fez perceber que eu te…
Sua fala foi interrompida por mim, levantando bruscamente e levando minhas mãos para longe dele. Querer minha amizade era algo com o qual eu simpatizava e entendia: a saudade de era tão frequente quanto a de . Mas confundir algo assim com amor? O tipo de sentimento que ele deveria ter pela minha melhor amiga?
Eu não podia deixar essa porta aberta. Tanto para não acabar me embaralhando mais, quanto para resguardar a chance mínima de voltar a ser amiga da . Eu cruzei linhas imperdoáveis, ainda assim existiam limites.
— Aquela noite foi um erro. Erros não devem se repetir. A gente não se ama desse jeito. — Fiz questão de frisar, apesar da dor ao dizer aquelas palavras. Como ele poderia estar prestes a dizer que me amava depois de transar comigo na cama da ex-namorada dele? Amor não era a definição daquilo. Estava mais para os hormônios. Logo, meu doer deu lugar para irritação e incredulidade. — Você sabe o que esse erro me custou? Minha casa, minha melhor amiga, minha reputação. Tudo. — Ele abriu a boca para falar, entretanto, eu não permiti. É claro que ele não entendia a extensão do que estava me pedindo. — Não me venha com essa história fajuta sobre amor, . A gente transou, fodeu. Simples. Não tem amor envolvido nisso. Nunca teve.
Eu estava com tanta raiva de tudo que nem conseguia falar um motivo principal para aquele sentimento avassalador. Podia até só ter despejado tudo em , ainda assim, minhas mãos tremiam e eu sentia o sangue borbulhar embaixo da minha pele e criar ondas de agonia pesarosa.
A tristeza pode ser violenta também.
— Não significou nada pra você? — ele perguntou baixinho, como uma criança com medo de perguntar aos pais se monstros eram reais. Seus olhos gentis, que já haviam me consolado tantas vezes, me olhavam com receio esperançoso. Quase conseguia ouvir ele implorando silenciosamente para que eu não quebrasse o seu coração, se é que ele realmente tinha sentimentos não platônicos por mim.
Não funcionou.
— Significou um erro que nunca vamos repetir.
Coloquei meu celular no bolso e me carreguei para longe dali, dando a mim mesma o privilégio de não ver a expressão estampada no rosto de quando eu o deixei. Novamente.
Assim como tinha feito naquela noite.
Nós dois estávamos deitados, o êxtase que ambos tínhamos alcançado pela primeira vez — ou eu devia dizer primeiras vezes? — era mais forte do que o previsto e tão bom quanto os livros, séries e colegas mais experientes retratavam.
Quer dizer, claro que eu já tinha gozado antes, mas em um voo solo, descobrindo o meu próprio corpo com os meus dedinhos dançantes. Realmente transar, colocar tudo aquilo em prática foi... Uau. É, não tinha como definir.
Era provável que fosse virgem, assim como eu, já que foi sua primeira namorada desde o colégio e com certeza teria me dito se eles tivessem transando. Eu mal podia esperar para contar pra ela que eu tinha perdido a virgindade!
Puta merda.
.
— Vou pegar outra garrafa de vinho, quer?
E .
O homem ao meu lado me puxou para mais perto no instante em que minha mente deu um click. beijou minha nuca, acariciando com suavidade as minhas costas. O clima leve e repleto de sentimentos conflitantes, porém tão bons, foi cortado por mim praticamente pulando para fora da cama, cobrindo meu corpo com um lençol quando uma vergonha absurda que me atingiu.
— O que aconteceu? Eu fiz alguma coisa errada? Eu te machuquei? — perguntou preocupado, pronto para se levantar da cama e me dar qualquer assistência necessária. — ? Eu tô preocupado, amor. Fala comigo, por favor.
Amor. Aquela palavra tinha sido usada naquela cama muitas vezes em vão.
— Não devíamos ter feito isso.
— Eu sei. — suspirou, passando a mão pelos cabelos castanhos desengrenados. — Eu vou falar com a sobre isso, explicar tudo para ela. Mas o que aconteceu aqui foi sério, . Isso significou muito para mim.
— , não — implorei, mordendo meu lábio inferior para segurar o choro. Trair minha melhor amiga com o namorado dela na sua cama era repugnante, mas ouvir uma suposta declaração dele ali, no quarto deles? Isso era demais. Estava na hora de começar a consertar os meus erros. Certamente, as emoções dele estavam atordoadas pela situação. Desenrolei palavras em ansiedade, enquanto catava minhas roupas. — Você vai falar com ela e eu também. Vamos consertar isso. Provavelmente não vamos nos falar por um bom tempo e eu entendo isso. vai ter todos os motivos do mundo para querer que eu fique longe de você e dela. Ela vai estar puta contigo também, mas vai te perdoar, porque vocês dois são incríveis juntos. Só nós três podemos ficar sabendo disso. Isso aqui não aconteceu hoje.
E assim, tão rápido quanto tinha aparecido, eu virei as costas e o deixei.