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Revisada por: Lightyear 💫

Última Atualização: 06/05/2025

SKOGMYRK • FROSTHEIM

Os flocos de neve acumulavam-se nas extremidades do knarr, umedecendo a madeira, fazendo-a ficar mais escura do que de fato era e a inchando por consequência. A água, quase translúcida, desliza, guiando o pequeno barco de comércio em direção à entrada do vilarejo. A pequena camada de gelo que se formava sobre a superfície não era suficiente para congelar o rio, mas isso não significava que a água estivesse segura. O vento era cortante, carregado com uma eletricidade estática desconfortável; a respiração tornava-se fumaça ao ser exalada, esvaindo-se à frente de meus olhos. Racha meus lábios e faz minha pele arder. O tremor que envolve meu corpo há muito tomou um espaço secundário em minha mente, enquanto uso o remo para guiar o barco para longe das pequenas placas congeladas que se formam por meu caminho. Ao longe, posso ouvir o grasnar de dois corvos pairando elegantemente pelo ar e tenho vontade de rir. Apenas tenho vontade; eu não dou risada.
Os desfiladeiros de Skogmyrk parecem maiores do que eu me lembro de serem. Mais afiados, estranhamente intimidadores, ou talvez seja apenas o dia de hoje. Por baixo dos afazeres constantes e diários, por trás das crianças correndo por entre as palafitas que se espalham na entrada do vilarejo, há uma nota sepulcral intrínseca. Um prenúncio do que estava por vir durante aquela noite. A estática no ar faz com que os pelos de meus braços e nuca fiquem eriçados, os músculos do meu corpo tencionam, e sinto um pequeno espasmo percorrer minhas mãos, involuntário e dolorido. Merda…
Trinco os dentes com um chiado baixo, puxando o remo para dentro do pequeno barco, apoiando-o atravessado sobre o colo, e então uso os dentes para arrancar a faixa de tecido que envolve meu braço, da segunda falange do dedo médio, até a altura do cotovelo. O cheiro de putrefação atinge meu rosto e eu sinto meu estômago se contrair de imediato. Cuspo o pedaço de tecido e desfaço o curativo rapidamente, fazendo uma careta irritadiça; mais pela visão do ferimento do que qualquer outra coisa. A mordida havia sido leve, mas o veneno nela era pungente, o suficiente para estar se espalhando com velocidade por meu braço. Está dormente, e quando tento fechar os dedos, sinto os espasmos involuntários voltarem, fazendo minha mão se tornar instável, os dedos amortecidos, as pontas formigando, enquanto eu mal consigo segurar algo de maneira correta. As veias estão levemente saltadas, proeminentes sob minha pele, com uma tonalidade esquisita, uma mistura entre preto e pequenos pontilhados dourados, como lava.
Naquela manhã, o ferimento tinha pequenos centímetros; agora estava com dez centímetros. Estava se espalhando rápido, e não havia mais nada que eu pudesse fazer sobre isso. Tenho vontade de gritar, de chutar a merda do remo em meu colo até formar um buraco em meu knarr. Mas nada do que eu possa fazer contra mim irá mudar o fato de que o veneno, embora lento, estava aos poucos piorando. Inspiro fundo, o ar gélido cortando minhas vias respiratórias, fazendo-as queimar e arder. Mordo o interior de minhas bochechas, procurando minha bolsa na frente do barco, e retirando algumas faixas limpas. Com um grunhido baixo, tento limpar o ferimento da melhor forma que posso, e então volto a enfaixar meu braço, tomando cuidado para que não deixasse nenhum mínimo traço de pele exposta, apertando o suficiente para tentar não deixar que o veneno se espalhasse mais — embora fosse uma luta em vão.
Ouço, ao longe, o eco dos sinos do vilarejo.
Prendo minha respiração, mais por instinto do que medo, usando os dentes para amarrar com mais força do que necessário, antes de abaixar a manga de minha túnica e ajeitar o capuz que cobre minha cabeça. Volto meus olhos na direção da entrada do vilarejo, erguido entre palafitas e escadarias de pedra cravadas nas encostas das montanhas.
As pessoas estão agitadas hoje, posso imaginar o porquê.
É noite do Solstício de Inverno.
Os Anciões costumavam chamá-la de a Noite Mais Longa. Uma vez por ano, o dia inteiro seria obscurecido, a lua permaneceria até o amanhecer do segundo dia. E, em algum momento, a aurora boreal tomaria os céus, em um espetáculo de cores, carregando as oferendas para os deuses, e compactuando para que as Muralhas permanecessem fixas em seu lugar, e que os monstros que espreitavam as Florestas de Pedras ficassem de fora. Lembro-me dos rituais e de como, de todas as nossas tradições, esta era a que eu mais gostava. Lembro-me de acordar bem mais cedo que meus irmãos e ajudar meu pai com as preparações. De cortar cordas e enroscá-las nas lanternas flutuantes, espalhando-as ao redor de nossa casa e por todo o rio que havia em nosso quintal. De rir quando meu pai tentava pendurar as lanternas na copa das árvores e acabava caindo feio em bancos de neve. Das comidas espalhadas em grandes mesas no centro do vilarejo, em que Halli, um de meus irmãos mais velhos, faria questão de arrastar-me para baixo das mesmas, a fim de roubar alguns doces antes que o banquete fosse de fato liberado para consumo. Minha mãe ficaria furiosa com nossas estripulias, mas meu pai iria gargalhar alto, e Ivar, meu outro irmão mais velho, apenas resmungaria que tinha “vergonha” de nós — e, quando ninguém estivesse olhando, pediria igualmente um pedaço.
Lembro-me das pequenas bolinhas com tinta ressecada, até virarem pó, que algumas senhoras da costura faziam e entregavam para as crianças atirarem umas nas outras, criando uma confusão de cores entre o chão coberto de neve e roupas. Enquanto isso, os adultos estariam dançando perto das fogueiras, cantando, os tambores entoando uma música marcada, que seria impossível de ser ignorada, impossível não se balançar ao ritmo de seu som. E então, quando os gritos das criaturas ecoassem de dentro das florestas, quando as garras arranhassem as pedras que envolviam as muralhas, e o estrondo de suas mandíbulas fechando-se contra o vazio, em busca de carne humana, estaríamos protegidos. Eram sensíveis aos sons e à luz; não conseguiam resistir à atração do calor, pois eram espíritos parcialmente permeados por gelo puro, como mariposas com a luz. Mas não nos alcançariam porque, ao fim da longa noite, a aurora boreal iria se espalhar pelos céus, iluminando-os como um lembrete das dádivas dos deuses sobre nós, e um lembrete de que estávamos novamente protegidos.
Mas a aurora boreal não apareceu aquela noite.
Nem nas seguintes.
E uma parte de mim não pode questionar o que havia dado errado naquela noite. Tento buscar ao fundo de minha mente, mas a memória é difusa, estrangeira e corroída por emoções que não tenho certeza se quero visitar. Ao menos, não agora.
Não faço ideia do que os sinos significam para esse vilarejo, mas observo os moradores pararem suas preparações e então voltarem-se na direção de outro knarr aproximando-se a alguns metros de distância à direita de onde estou. O silêncio que se estende pelas palafitas é perturbador. Não posso deixar de sentir uma ponta de tensão espalhar-se por meu corpo, enquanto tento vislumbrar, discretamente, o que há no outro barco, mas seja o que for, está perigosamente coberto por panos para impedir a visão. Ainda assim, posso vislumbrar algumas mechas vermelhas abaixo do tecido, e há pontos de sangue espalhados pelo tecido o suficiente para que eu perceba, não muito tempo depois, que se trata de um corpo.
Uso o remo para deslocar meu barco mais à esquerda, aproximando-me de um pequeno píer, estreito e com a madeira desgastada, onde retiro a corda grossa para amarrá-lo o mais firme que consigo. O gelo desloca-se abaixo de mim, e por um segundo, quase tenho a sensação de que há algo dentro da água.
Sei que é puramente paranoia, ou talvez as toxinas do veneno estivessem começando a me fazer alucinar, mas, por uma fração de segundos, breves, meus olhos seguem o movimento. A água não forma padrões estrangeiros normalmente, apenas forma os padrões que a correnteza segue. Então, é certamente algo estranho e curioso perceber que, a alguns metros de onde estou, a água forma círculos, como bolhas que se erguem até se esvair na superfície. Esse pequeno ponto deixa-me alerta, e por um momento, posso jurar que vi ossos...
Ossos congelados…

— Você tá fazendo aquela cara de novo — A voz de corta meus pensamentos, e eu volto-me em direção à, talvez, a única amiga que eu tinha naquele lugar.

Não era que eu não tivesse oportunidades de fazer amizades com as pessoas dos vilarejos. Elas não sabiam meu sobrenome, nem mesmo o sabia; eu era cuidadosa quanto a isso, e tampouco sabiam de onde eu vinha, logo estava protegida ali. Permanecer como uma desconhecida, não era apenas um ato de sobrevivência, mas, igualmente, algo suficientemente libertador. Perguntas e associações não seriam feitas ao direcionar-me como a sobrevivente do massacre que havia dizimado um vilarejo inteiro. Eu não seria , a amaldiçoada, ali; no entanto, assim como essas pessoas não sabiam quem eu de fato era, deixá-las entrar em minha vida era uma porta aberta em convite para que descobrissem.
era, talvez, a única pessoa no vilarejo que nunca me fazia perguntas. A Sacerdotisa do Vidente Haakon era até mesmo simplória: você não fazia perguntas sobre sua vida pessoal, e ela não as faria de volta para você. Ela era uma boa companhia, mesmo que não passássemos muito tempo conversando; ter sua presença costumava me dar uma ponta de conforto, ainda que efêmera. Era uma jovem linda, de cabelos loiros grossos presos em duas tranças pesadas, cuidadosamente feitas à perfeição, e com um arco de ouro ao redor de sua cabeça. Os olhos eram tingidos por um pigmento escuro, deixando-os ainda mais profundos, de um azul cristalino como a água em que outrora me guiara até aquele lugar. A pele dela parecia com a própria neve que envolvia toda Frostheim, mas era seu sorriso, sempre doce e compreensivo, que mais cativava.
Certamente, teria sido a mulher mais disputada de todo o continente, se não tivesse escolhido o caminho do sarcedócio. Não faço ideia do porquê ela o fez. não tinha motivos para o fazer, deuses. Ela poderia ser uma princesa e ter se casado tão bem ao ponto de nunca mais se preocupar em passar fome outra vez em sua vida, em poder usar vestidos belos e ter as mais variadas joias, até mesmo nos dias de hoje. Sei que existem pretendentes determinados a deflorar ou a roubar seu coração. Mas a lealdade e postura de eram inquebráveis, irredutíveis. Ela pertencia ao Septo do Vidente Haakon, e apenas a este Septo. Sua alma, coração e vida eram de Haakon, assim como alguns outros sacerdotes que se espalhavam pelo vilarejo: curandeiros, guias religiosos ou apenas adivinhos. Todos eles seguiam as palavras de Vidente Haakon, o tocado pelos deuses.
Seja lá o que isso signifique, afinal. Se deuses existissem, eu duvidava muito que se importassem o suficiente conosco mais. Era difícil acreditar nessa história quando eu sabia que nem mesmo as preces mais desesperadas poderiam convencer a intervenção divina.
Tento ignorar meus pensamentos, concentrando-me no que está dizendo, mas só percebo tardiamente que já havia perdido metade do que ela dissera. Suspiro pesado, estupefata, terminando de prender meu knarr no píer, e então usando a mão estendida dela para alçar-me para cima na palafita. Coloco-me de cócoras, discretamente favorecendo meu braço direito, enquanto recolho não apenas meus pertences, mas também, igualmente, as bacias com as caças que havia conseguido capturar naquele dia nos limites da floresta.

Ele quer falar com você, — A voz de é quase tão aveludada quanto mel, e isso me faz pausar por uma fração de segundos. Desvio meu olhar da cesta com os coelhos mortos, a pele disposta em outra cesta para ser trocada com Grid mais tarde, antes que o Solstício de Inverno começasse, para encarar minha amiga.

morde o lábio inferior, gesto que estou começando a reconhecer que faz sempre que hesita. Estreito meus olhos, mas não respondo nada a princípio. revira os olhos, suspirando pesado, e então ajuda-me a retirar e assegurar o restante das cestas; o vento gélido atinge seu rosto adorável, fazendo com que os fios de seus cabelos, mais curtos, se desprendam de sua trança e choquem-se contra sua maçã do rosto.

— Podia parecer pelo menos mais empolgada, ; não é todo dia que Mestre Haakon deseja conversar com alguém, e tampouco capturar sua atenção. É uma honra, por que não pode mostrar-se feliz pelo menos uma vez?
— Porque não estou.

Faço uma careta. Minha intenção não era ser ríspida, céus, longe disso. havia sido a única pessoa naquele vilarejo que havia se disposto a aproximar-se de mim, uma estrangeira, sem nenhuma intenção secundária que fundamentasse seus atos. Ela simplesmente havia se aproximado, e por algum motivo que até hoje eu não conseguia entender o porquê, não havia ido embora. Tenho vontade de acertar minha cabeça em um dos pilares de sustentação do píer, mas tento forçar-me a apenas oferecer um sorriso autodepreciativo para , a fim de diminuir a intensidade de minha desconfiança.

— Só acho estranho — digo, dando os ombros e tentando desviar do assunto em questão — que Mestre Haakon queira conversar comigo, quando há opções bem melhores para se examinar — Tento não parecer que estou prestes a cuspir a palavra “Mestre” , mas é claro, , sendo a pessoa astuta que era, percebe facilmente o meu desprezo pela palavra. — Sou apenas uma caçadora, , e não pretendo ser nada mais do que isso.
— Mas não deveria! , Mestre Haakon vê potencial em você — diz , insistindo no assunto, e percebo que estou trincando os dentes com um pouco mais de força do que deveria. Não quero conversar sobre aquilo, pois sei que é mentira, ele não vê o potencial, vê algo além disso, algo que não sou capaz de compreender ainda, mas que sei que não é puro! E insistir no assunto é tão incômodo quanto qualquer outro membro daquele vilarejo que desejava saber mais sobre mim. — Desde que chegou aqui, temos mais comida, as pessoas falam que trouxe sorte para este lugar... eu sei que você pode fazer muito mais do que apenas caçar, pode... pode se unir a nós, os sacerdotes, curar, com os poderes que você tem, , esse vilarejo não precisaria mais temer...

Minha risada é um pouco mais afiada do que desejava que o fosse, mas é o suficiente para silenciar , e isso era tudo o que eu queria. Sorte? Ela acredita que eu trago sorte? Pelos deuses, o quão tola poderia ser afinal! O que faria quando descobrisse quem era a culpada pelos monstros que destruíram o meu vilarejo? O que eles iriam dizer quando percebessem que quem havia sido deixada para trás era uma espécie de piada cruel dos monstros que se espreitam na escuridão, e não o contrário? Por um segundo, sinto o impulso de contar tudo. Quero gritar com para que não me olhe daquele jeito! Quero que ela me despreze, que perceba o perigo que sou, que me odeie tanto quanto eu me odeio... mas mordo minha língua com força até sentir o gosto de sangue.
A dor, pelo menos, clareia minha mente.

— Não estou pedindo para que se junte ao septo, , só... — suspira suavemente, uma lufada de ar gelado que se projeta para frente de seu rosto. Engoli em seco, terminando de amarrar as cestas e então os jogos em minhas costas. O cheiro é desprezível, mas o peso, familiar o suficiente para acalmar-me. Começo a andar em direção ao mercado flutuante, concentrando-me nos estalidos da madeira abaixo dos meus pés, e não na voz que me segue um pouco mais atrás, carregando as peles limpas dos animais. — Pode tentar só conversar com ele? Uma vez só, , por mim, por favor... — pede, sua voz agora um pouco mais desesperada.

Lanço um olhar irritada para alguns moradores do vilarejo que me lançam olhares curiosos e então paro de andar. Volto-me na direção de e seguro o braço dela, tentando controlar meu temperamento. Não quero explodir com ela, não quero que veja esse meu lado — corroído por meu próprio autodesprezo, a raiva que havia infestado tudo o que eu lembrava de quem era, e agora, torna-se apenas uma lembrança dolorosa e desprezível de quem havia me tornado —, mas deixá-la continuar com aquilo era insuportável!

, chega! — Corto-a entre dentes, e então dou um passo em sua direção, minha voz caindo algumas oitavas enquanto suspiro pesado. — Me desculpa — Peço com sinceridade, soltando o braço dela. Então, seguro a frente de seu vestido e ajeito os laços que estão desalinhados ao redor do corpete. Suspiro pesado, porque era típico de não verificar se todos os nós estavam devidamente amarrados e seguros. Incomoda-me mais o fato dos nós estarem desorganizados, do que a necessidade de a tocar ao fazê-los. — Eu não sou o que você procura, . Eu sinto muito, mas eu sou apenas uma caçadora. Coisas ruins acontecem a tudo o que eu toco. Coisas imperdoáveis. O que eu te mostrei aquele dia, na campina, foi apenas um truque simples, minha mãe me ensinou quando eu era pequena, mas só isso — A mentira havia saído tão facilmente de minha boca que percebo, com assombro, que estou impactada com a minha própria performasse.

Eu nunca havia gostado de mentir. Não via ponto nisso — e achava uma perda de tempo ridícula. Mas percebo agora o quão mais familiarizada estou em criar histórias e ocultar meu verdadeiro passado, o verdadeiro eu, se isso me proteger de ter mais alguém entrando em um lugar que não deveria: meu coração. Prendo minha respiração, sentindo o tremor percorrer meu corpo, mas não é culpa do vento. Por favor, por favor, , acredite em mim, não faça perguntas, só confie em mim...

— Certo, vou falar com ele — cedo, por fim, mas apenas para silenciá-la e encerrar aquele assunto de vez.

Engulo em seco, erguendo meu queixo para sustentar o olhar de minha amiga, com uma expressão firme. Estou fazendo uma barganha, um negócio com ela, e preciso que o leve a sério, do contrário, estarei fodida, e não de um jeito bom.

— Mas vai me prometer que não irá dizer mais palavra alguma sobre isso, certo? Nem mesmo com seu mestre. Por favor, . Esse assunto, tudo sobre ele, o que viu aquele dia na campina, morre aqui, entendeu?

•••


O templo do Vidente tocado pelos deuses ficava a alguns quilômetros mais para cima do vilarejo, encravado nas montanhas altas que formavam o fjord. Havia uma pequena discrepância entre a terra de lama e neve, com árvores despidas, as cabanas de madeira e as palafitas de madeiras com as cabanas suspensas por andaimes firmes que Skogmyrk possuía. O cheiro de peixe, cerveja e até mesmo metal que vinha do centro do vilarejo, ou o cheiro profundo de terra molhada, sangue e sujeira que vinha das partes que rondavam o centro, alterava-se consideravelmente do que era o caminho para o templo de Haakon.
O chão se tornava mais uniforme, com um caminho de pedra e cristal trabalhado que fazia com que a neve o refletisse em meio aos degraus que se erguiam. Lanternas flutuantes eram dispostas pelo caminho, no topo das árvores, cobertas por uma fina camada de papel amarelado; os desenhos e runas antigas criavam padrões coloridos e irregulares nos chãos. O ar adquire, mesmo no inverno, um cheiro pungente de lavanda, orquídeas e alguma coisa silvestre, quase primaveril, carregada. Incomodava o nariz, como algum tipo de incenso, mas não havia nenhum pequeno palito de madeira, envolto por pós-aromáticos queimando por ali; não, havia apenas um caminho de pedras planas formando uma longa escadaria que atravessava as montanhas, expondo-se para fora e rastejando-se para dentro da pedra sólida, como se fossem uma coisa só. Longos e imponentes pilares de mármore branco estendiam-se nas partes de fora do templo, e se eu estreitasse um pouco os olhos, eu até conseguiria ver alguns dos sacerdotes de Haakon caminhando pacificamente de um lado para o outro.
Ai, não parecia que nevava.
Flores de Idunn se espalham pelo caminho, ou como minha mãe costumava chamar, de Rosas de Inverno: eram flores parecidas com rosas, cresciam e eram cuidadas como roseiras, no entanto, apenas floresciam durante o inverno e durante a noite. Brilhavam como se estivessem cobertas por uma pequena camada de bioluminescência azulada, mas isto era apenas efeito causado nas lanternas, porque, na verdade, tinham uma pequena nota dourada. Seus esporos, no entanto, cintilavam como pequenas estrelinhas brilhando com quase todas as cores do arco-íris. E, em pequenas quantidades, apenas fazia com que seu nariz coçasse um pouco, mas em abundância, o veneno agia como um alucinógeno.
Posso sentir a magia no ar como estática, pulsando por baixo de meus pés, de meu corpo como um coração unido, movendo-se ao meu redor como algo vivo, e não apenas uma ferramenta. Engulo em seco, tencionando minha mandíbula com força, adentrando no templo sem me apresentar, sem dizer nada. Parece que Haakon já deveria estar esperando minha chegada ali, porque os sacerdotes não reagem a minha presença — apenas seguem com seu cotidiano, acendendo uma parede de velas empilhadas ao redor dos pilares, finalizando a comida em bandejas elegantes de prata para o festival esta noite, ou podando cuidadosamente pequenas ervas em seus pedestais para o que eu preso ser a fabricação de remédios; tudo vivo e movendo-se para o Solstício de Inverno. Aperto meus lábios com força.
Sinto que irei vomitar, mas não sei dizer exatamente bem o motivo. Há algo ali que me deixa em alerta; um cheiro esquisito, estrangeiro e inegavelmente familiar. Pisco, surpreendida pelo aroma, lançando um olhar ansioso ao meu redor. Já o senti antes, em dias como aquele, quando ainda morava no meu vilarejo. O gosto metálico que percorre minha língua é de revirar o estômago, tenho certeza de que irei vomitar. Não gosto do que sinto. Ignoro o tremor que me envolve, fechando minhas mãos em punhos firmes, e arrependo-me imediatamente. Minha mão direita tem outro espasmo, desta vez um pouco mais dolorido, e preciso usar todo o autocontrole para não reagir ao puxão que o músculo oferece, ocultando-o propositalmente para que os sacerdotes não percebam o gesto — mesmo que eu tenha cambaleado um pouco para frente.
Meus passos ecoam pelo grande hall de mármore branco e ouro.
Tudo ali é tão claro, tão luminoso, que meus olhos levam um tempo para se ajustar, e, quando o fazem, continuam apresentando pequenos pontos obscurecidos nos cantos da visão. Tento não fazer uma careta, buscando com o olhar onde, diabos, Mestre Haakon deveria estar. É como se estivéssemos em uma realidade paralela, onde a neve que assola o vilarejo é mera memória ali. Não parece justo. Observo de soslaio ao menos três sacerdotes mexendo em alguns vasos, onde as trepadeiras se erguem até o teto, repletos de frutas de aparência cristalizada. Estão ali frutos das Rosas de Inverno, se chamavam Pomos, havia me dito uma vez.
Frutos que tinham a aparência de uma maçã, mas que, na verdade, suas colorações eram semelhantes a ouro e cristal, em seu interior. Era uma planta sagrada, usada para ingestão somente durante o Solstício, mas percebo que ali, talvez, a produção não seja somente para uma data comemorativa. Tenciono a mandíbula, tentando não evidenciar minha raiva pela situação. Era ruim o suficiente para que os invernos que castigavam a região nos obrigassem a fazer expedições para Além da Muralha, pelos chefes dos vilarejos e alguns dos seus melhores guerreiros. Era simplesmente frustrante observar o quão bem aquelas pessoas passavam ali, enquanto pessoas no vilarejo morriam de fome.
Oferenda aos deuses meu c…

— Acharam-no hoje de manhã, mestre. — Um sacerdote informa a Vidente Haakon em tom de voz baixo, urgente, mas ainda sou capaz de ouvir se prestar muita atenção.
— Onde? — A voz de Haakon, a figura encapuzada e envolta de um manto pesado, preto, de couro, é estranhamente... suave. Aveludada, doce e... pacífica? Contrasta com sua altura e os músculos por baixo de suas vestimentas, cicatrizes o suficiente para que eu pudesse ver — ao menos as espalhadas em seus braços. Inúmeras delas. Algumas mais profundas que as outras, mais abertas e desgarradas; outras, formando meias-luas. Ignoro o espasmo em meu braço direito e respiro fundo, enquanto dou um passo para trás, tentando me ocultar em meio a um pilar grosso.

À frente dos dois homens, encontrava-se um corpo. Eu o reconheço: um garoto do vilarejo. Acho que seu nome havia sido Halfdan, sei que havia vendido algumas peles para sua mãe, Tova, há pouco mais de uma semana, e de tê-lo ouvido vangloriar-se de sua nova espada para mim, mostrando-me alguns movimentos. Era apenas um garoto, talvez no máximo 15 anos. Seus cabelos vermelhos como fogo agora estavam em carne viva, mas o sangue estava seco. Os ossos se projetavam, tortos, com a brutalidade do ataque, e havia duas marcas de mordidas grotescas: uma em sua garganta, dilacerando-a, e outra na lateral de sua cintura. Suas veias projetavam-se ao redor de sua pele, pálida e fina como papel, com algo estranho parecendo mover-se dentro dele, manchando suas veias protuberantes de preto. Assim como as minhas... não preciso de um segundo olhar para saber exatamente o que havia acontecido a ele. Meu braço tem um novo espasmo, e a marca da mordida cravada em minha pele parece pulsar. Ou reconhecendo, ou um doloroso lembrete do que em breve, muito provavelmente, me aconteceria.
Os olhos do sacerdote quase me pegam, mas sou mais rápida.

— Perto das Muralhas, ao Leste daqui, umas duas horas de caminhada, em meio às florestas.
— Entendo — Vidente Haakon exala lentamente, antes de inclinar seu rosto para a esquerda, em minha direção. Espero que ele perceba que estou ali, mas, por um momento, permanece apenas em completo em silêncio.

Para alguém despreparado, a visão do rosto do vidente poderia até mesmo ser chocante — não por suas cicatrizes. A maioria das pessoas naquele lugar possuía cicatrizes espalhadas pelo rosto e corpo, a deformidade, seja causada pela fome ou por aventurar-se para além das muralhas, todos as tinham, a não ser talvez por algumas crianças. O que impressiona de fato em Vidente Haakon, é a ausência de seus olhos.
Eram completamente brancos, o tom leitoso evidenciava que não possuía visão alguma. Contava-se que Haakon, assim como Odin, ousara um dia, e por isso, os deuses haviam o recompensado. Haakon havia prometido, tal qual Odin, seus olhos para a Árvore da Vida e, como recompensa por seu sacrifício, concederam a ele a habilidade de premonição. Podia ver o futuro, de acordo com , e podia-se perceber: sua vida era permeada por magia. Ele era magia. Os cabelos platinados, presos em apenas uma trança única, grossa como os cabos dos barcos dos vilarejos, mas com pequenas contas metálicas com runas espalhadas pelas mechas. Não havia barba, apesar de ter uma cicatriz atravessando lateralmente suas maçãs do rosto e nariz. Não era profunda para ser nojenta como as que eu tinha, mas era o suficiente para lembrar que, seja lá qual foi o confronto dele, ainda o havia marcado. A pele, branca como neve, destacava as tintas douradas que tinha em seu rosto, decorando-o com runas e duas faixas alguns centímetros mais grossas, indo do início dos olhos até o fim da mandíbula, paralelas e perfeitamente retas. Um colar com uma pequena chave dourada repousa à frente de seu peito, pendendo um pouco em sua posição inclinada, projetando-se para fora de suas túnicas limpas de linho esbranquiçadas, o tecido com uma tonalidade amarelada, pelo uso contínuo.
Por um breve momento, tenho quase certeza de que ele não me viu. Seu rosto está apenas virado para o lado, seus olhos leitosos movem-se rapidamente por suas orbes, parecendo registrar alguma coisa, mas então, observo o canto de seus lábios se curvarem levemente para cima, parecendo satisfeito com algo. Por algum motivo, fico ainda mais em alerta. Merda...

— É falta de educação escutar a conversa alheia, ao menos, participe desta, — Vidente Haakon diz.


Continua...


Qual o seu personagem favorito?


Nota da autora: Sem nota.

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