Codificada por vênus. 🛰️ até o capítulo 1 | Aurora Boreal 💫 do capítulo 2 em diante.
Atualizada em: 16/04/2025
Kim tremia. Involuntariamente. Era o medo na sua manifestação mais instintiva.
Sobrevivência.
Suspirou uma última vez, desligando o aparelho com as mãos agitadas. Sentiria falta do ambiente climatizado, esse pequeno luxo que poupava seu corpo, naturalmente quente, de qualquer desconforto térmico. Mais que a temperatura agradável, estava cercado de todas as comodidades, desde a televisão gigantesca com pay per view e os jogos do Corinthians em HD até a cozinha planejada de que tanto se orgulhava, cenário que inúmeras vezes o ajudou a amolecer as mulheres que trouxe para casa, seduzidas pelo romantismo de um jantar preparado por ele mesmo.
A lembrança do último prato degustado antes de partir salgou-lhe a boca. salivou.
Pôs a mala no chão, já nostálgico. Aquele havia sido seu primeiro lar, sentia-se orgulhoso dele, vitorioso por ostentar um apartamento em Pinheiros, na grande São Paulo onde tudo já era tão caro. No entanto, no meio de todo o luxo, algum remorso ainda o encontrava, mesmo que em aparições rápidas e incômodas, como as de uma visita não solicitada, atormentando-lhe com a sensação de impostura. balançava a cabeça sempre que qualquer vestígio de culpa o acometia, empurrava a síndrome de impostor à fina força, soterrando-a no lugar mais fundo da sua mente, e afirmava para si mesmo que era, sim, merecedor de todas aquelas regalias. Por que não seria? Não era aquele o privilégio que lhe era nato, já que o mundo sempre foi um lugar generoso para aqueles que, como ele, receberam a dádiva de ser bonito?
Ah, a beleza podia abrir portas e carteiras, e tinha plena consciência da graça de que desfrutava, de que era um rapaz bem-feito, fornido, de feições harmônicas que combinavam delicadeza e masculinidade, evidenciada pelo maxilar marcado e pela estrutura óssea robusta, quebrada senão pelos dois olhos pretos que beiravam a inocência e contrastavam com toda virilidade em que o corpo fora forjado.
O calor da terra não o abandonou, mesmo depois de anos na cidade cinza de São Paulo, para onde se mudou com intuito de estudar e fazer a vida, conservava o amorenado natural no corpo. O suor que a pele cor de mel conhecia era exclusivamente das corridas matinais ou da rotina de exercícios, afinal de contas, todos desdobravam-se naturalmente aos seus encantos e tudo lhe custava pouco ou nenhum esforço. Vivera bem os seus 24 anos, em fartura, a faculdade concluída, o currículo recheado de cursos que o colocavam em qualquer emprego, embora nenhum parecesse estar a sua altura, pois não dependia de um salário no fim do mês...
Quis chorar. A realidade que ele conhecia estava se distorcendo irreversivelmente e estava certo de que jamais se recuperaria.
Dos amigos que fez em festas e viagens caras, não se despediu de nenhum, e ninguém sabia para onde estava indo, a não ser o cara atrás do guichê da rodoviária onde comprou a passagem com dinheiro vivo, impossível de ser rastreado. Arrumou o boné e deixou o apartamento completamente mobiliado sem sequer olhar para trás, apertando contra o peito os documentos e um papel em que leu as palavras mais duras de sua vida tão fácil:
PASSAGEM SEM VOLTA
Sem volta.
Era a única opção desde que recebeu a ligação de Jeon naquela manhã.
Porque se Jeon estava à procura dele, ele corria perigo.
Foi o som estalado e seco que as costas de fizeram ao levantar da poltrona do ônibus. O som seguinte foi um oco revestido de espuma, típico de uma pancada, porque esqueceu-se da altura que tinha e bateu a cabeça no compartimento superior.
A concentração de passageiros no corredor do veículo e toda a movimentação angustiada de gente procurando bagagem, atendendo telefone e avisando parentes e cônjuges da chegada misturava-se ao cheiro nauseante de salgadinhos baratos e crianças de fraldas sujas, provocando uma indisposição que obrigou a sentar-se novamente e aguardar que o corredor esvaziasse para descer daquela sardinha enlatada com o mínimo de dignidade.
Afastou a cortina de pano cinza da janela com as pontinhas dos dedos, esforçando-se para não se questionar quando havia sido a última vez que aqueles assentos e as demais coisas receberam uma higienização, e empurrou a trava de segurança para abrir o vidro e conseguir um pouco de ar fresco. Não conseguiu, o que entrou pela fresta foi mais barulho e cheiros ainda piores, com o agravante dos banheiros químicos bem perto de onde estavam estacionados e do ruído ensurdecedor de motores dos outros ônibus.
Derrotado, abaixou mais a aba do boné e cruzou os braços sob o peito, respirando curto e tentando aplicar a técnica de meditação que aprendeu numa das aulas de pranayama que tomou apenas para impressionar uma garota da faculdade, cuja vibe era meio “hiponga e natureba”. Que importava que ele não tivesse prática ou familiaridade com os termos e as posições, ou que não soubesse inspirar e expirar no ritmo sagrado da mãe Terra e do cosmos? E daí que ele achava que “namastê” era o nome da professora e não um cumprimento? Ele tinha dinheiro, e o dinheiro comprava tudo, principalmente o ingresso para qualquer ambiente, o passe-livre para qualquer círculo social, a chave mágica que abria qualquer porta, até mesmo as de bambu da sala verde do centro de yoga, cheia de mato, incenso e fontes artificiais que só davam vontade de fazer xixi.
A palavra foi um gatilho e a bexiga de apertou.
— Om saha navavatu…
Foi tudo o que conseguiu lembrar do mantra, repetindo baixinho como um escudo de proteção contra a insalubridade em que se viu inserido e concluindo que aquelas palavras não eram nem sânscrito, muito menos detentoras de algum poder. Seria muito mais efetivo cantar a música-tema do Dragon Ball Z.
Assim o fez.
— Com a minha mente, vou a mil lugares…
A estrofe fez rir pela primeira vez da própria desgraça, julgando cômica a coincidência entre a letra e seu fatídico desfecho atual: dado o seu estado de falência, a única forma de ir a qualquer lugar era, de fato, através da mente. E o lugar ao qual sua mente o levou naquele instante era tão distante fisicamente quanto era figurativamente. A imaginação e a necessidade de enganar a urgência de urinar transportaram-no ao cenário da classe executiva de uma aeronave, lembrança ainda vívida no seu cérebro cansado das treze horas de viagem.
A demarcação do tempo foi mais um gatilho. Recife não era o seu destino final. A capital era muito visada, muito urbanizada, com a densidade populacional muito alta, sem falar que diziam que a praia de lá tinha tubarão e o café custava 12 reais. Era preciso se embrenhar mais, se esconder, começar a vida toda de novo num local pequeno e de acesso restrito, onde seu carrasco jamais imaginaria pisar e onde ele passaria despercebido.
— Como se eu fosse passar despercebido! — respondeu à própria divagação.
A declaração tinha lá seu fundamento. Além dos traços faciais que apontavam de maneira escancarada a sua descendência, qualquer pessoa que olhasse para saberia que ele não pertencia a um ambiente como uma rodoviária de ônibus, mas, sim, a um estúdio de fotografia servindo como modelo de campanha para alguma marca de luxo.
E essa vantagem visual óbvia e imponente somava-se ao seu carisma natural, ao seu temperamento doce e galanteador que lhe conferia vantagens nas situações mais simples, como conseguir trocar o seu assento do meio na fileira de poltronas com a vizinha. A mulher, que havia pagado um valor extra para sentar-se à janela, só precisou de um “boa-noite” caloroso, um simples sorriso e uma piscadela charmosa para abrir mão do que era seu por direito e ceder seu lugar.
Era assim desde que se entendia por gente: tudo sempre lhe foi entregue de bandeja. No entanto, agora, a vida cobrava de volta cada mordomia que foi tão facilmente colocada à sua disposição. Ou melhor, Jeon cobrava de volta. Com juros e correções monetárias.
Parecia uma excelente ideia pegar dinheiro emprestado e sem burocracia com o “empresário” de quem ouviu falar nas mesas de uma boate em São Paulo. O cassino clandestino de Jeon , onde toda a sua desventura começou, veio envolto num embrulho elegante e irresistível que, a princípio, o distraiu dos perigos iminentes do conteúdo. Ele já era bem grandinho, sabia que, apesar do luxo e da exclusividade, o dito empreendimento mantinha uma constante tensão no ar e, cedo ou tarde, a natureza ilegal da coisa poderia alterar o jogo. Contudo, depois de ter conseguido se infiltrar num ambiente tão reservado, o risco passou a ser parte do prazer.
Assim como a serpente fez à Eva no paraíso, o dinheiro verdinho e ao alcance de seus dedos ambiciosos seduziu e o aprisionou na sua doce teia de ouro. Os primeiros empréstimos, em quantias mais modestas, exigiam dele parcelas pequenas e espaçadas, que o fizeram pensar que poderia pedir cada vez mais. Cinco mil para aquela viagem com a galera, três mil para aquele par de tênis, oito mil para um relógio da marca que os amigos tinham e assim, de bocado em bocado, de ganância em ganância, o moreno cavou a própria cova.
Sua última visita ao “escritório”, localizado em uma área afastada, escondida entre prédios comerciais numa ruela com ar de submundo, já havia fornecido fortes indicadores da cilada em que estava metido. A maneira como fora recepcionado pelo segurança, Choi , arrepiava-lhe todas as vértebras da espinha sempre que repassava os fatos pretéritos na cabeça, mas nenhuma força bruta e ameaça à sua integridade física eram tão intimidadoras quanto o sorriso de Jeon . Mais do que intimidador, era degradante. Era bem óbvio que ele era o cérebro e , os músculos, daí a fatia de satisfação pela sua humilhação ser muito mais apetitosa para o agiota dono do negócio que para o capanga que seguia ordens. Quando viu implorar pelo perdão da dívida, esmigalhando seu orgulho, riu-se com todos os trezentos dentes e a face do demônio finalmente se mostrou por trás dos óculos de contador e gênio da matemática financeira.
48 horas. Foi o prazo concedido entre risadas cínicas.
Já haviam se passado 15 horas ou mais. daria falta dele, se não desse (ele tinha outros clientes na mesma situação), daria, era só juntar dois e dois. Estava em situação de três porquinhos, exceto que, no seu caso, o lobo-mau tinha um assistente para fazer o trabalho braçal. E ele iria soprar todas as casinhas até encontrá-lo.
— Ei! — a vizinha de poltrona alisou seu braço, assustando-o. — Dormisse, meu bem? O ônibus tá vagando, se aprume.
— Ah, eu me distraí. — preparou-se para levantar. — Muito obrigado, a senhora é um encanto.
— Você que é, meu bem. Sua avozinha lhe criou muito direitinho. Ela vai ficar boa, viu?
fechou os olhos, sentido. Claro que não havia revelado à companheira de trajeto o motivo de sua fuga em andamento, então, quando a vizinha sondou casualmente sobre as razões da viagem, ele rapidamente arquitetou uma façanha para deixá-lo bem na fita, adotando a narrativa de um moço trabalhador que gastara todas as economias para cuidar de uma avó doente que não existia. Quer dizer, a dele existia, muito bem, obrigado, lá na Coreia, mas a que ele inventou para sensibilizar a simpática estranha não passava de uma tentativa de manipulação para conseguir trocar de lugar e, ao que tudo indicava, um pouco a mais que isso.
— Você sozinho assim nessa cidade, me espreme o coração. — a mulher mexeu na bolsa e tirou de lá um maço compacto, bem dobradinho. — Não é muita coisa, mas vai dar pra comer e pegar a condução até Alagoas. É pra lá que você vai, né?
No seu íntimo, quis fazer cara de nojo para o dinheiro sujo e pouco, mas depois lembrou-se de que não estava em posição de negar nada, muito menos dinheiro, e dinheiro ainda era dinheiro, fosse amassado ou por transferência via PIX (até porque transações on-line e cartões de crédito não eram opção, pois deixavam um rastro que farejaria há quilômetros; além disso, seu nome e CPF não seriam capazes de abrir nem crediário em sapataria). Sua felicidade foi ter conseguido raspar a conta corrente e tirar de lá o último saque graúdo de uns mil reais que poderiam, aliás, deveriam mantê-lo por um mês e servir para alugar um quartinho qualquer no vilarejo, só. O jeito era aceitar a caridade.
— Dona Rita, não faça uma coisa dessas! — jogou o charme.
— Qual dona! Eu lá sou dona de nada. A única coisa que eu tenho é o meu couro, e já tá bem gasto.
— Não diga isso, eu acho a senhora uma mulher muito bonita.
Não achava, mas o elogio a amoleceu tanto que o bolo de notas ganhou outra camada. abriu o sorriso pontiagudo, recebendo a boa ação e os cuidados que dona Rita lhe recomendava com um olhar que parecia concentrado, mas com uma cabeça que estava na churrascaria fora da rodoviária, onde seria possível usar um banheiro mais sanitário e almoçar uma peça de carne mais generosa.
Despedidas feitas, cada um seguiu seu rumo, dona Rita, envaidecida pelas migalhas de atenção que o belo jovem lhe dedicou, e , ainda mais convicto do poder de sua aparência, decidido a usá-la sem pudor como amuleto de sua sorte. Sorte que, por um momento, pareceu lhe brilhar de volta, quando atravessou a rua em direção ao restaurante e encontrou um ambiente climatizado que fez seu corpo agradecer. Era feito para aquela temperatura, fora projetado para ter conforto, seu desígnio era ser servido e colher os frutos da sua beleza, mesmo que o fruto fosse um mero pudim numa embalagem plástica com um telefone anotado.
— Por conta da casa. — a atendente do lugar sorriu e deixou na mesa dele assim que terminou sua refeição. — Se precisar de qualquer coisa, pode me chamar. Ou me ligar.
— Obrigado, Kátia. — apertou os olhos para a tag no avental da funcionária. — É Kátia, certo? — repetiu apenas pela satisfação pessoal de vê-la derreter dentro da roupa ao ouvir seu nome pronunciado por ele.
A pobre vítima não pôde articular uma resposta mais elaborada que um “sim”, porque abriu a sobremesa e a calda sujou o dorso da mão que, instintivamente, foi ao encontro da boca carnuda. Soube o que fez no ato, e fez porque quis. Flertava tão naturalmente quanto respirava e divertia-se com o efeito que causava nas mulheres — em alguns homens também. Saboreava oportunidades como aquela, nas quais podia alimentar a sua vaidade, nutrir a grande estima que cultivava por si mesmo e amaciar seu ego, estrutura já naturalmente grande. Sem a menor intenção de ligar para a garçonete, engatou uma conversa inútil, agradecendo as gentilezas e apanhando mochila e mala para enfrentar nova viagem.
O sol lá de fora, encarou como uma afronta, pois entendia como implicância do grande astro se atrever a torrar sua linda cabecinha apesar do boné. Os dois minutos que precisou aguardar para que o sinal de travessia abrisse o incomodaram muitíssimo, e o impeliam a colocar o pé na listra branca da faixa de pedestres com a teimosia de uma criança birrenta. Sendo obrigado a recuar, amaldiçoou tudo que passou pelo seu campo de visão, desde o botão de parada que não servia pra nada até os carros que passavam em alta velocidade, indiferentes ao seu desejo soberano de estar do outro lado.
Irritava-o profundamente não ter seus caprichos imediatamente atendidos, mas nem por isso considerava-se mimado. Considerava-se bastante coisa, tinha várias opiniões sobre sua pessoa, mas eram todas muito positivas, e por causa delas achava que deveria ser imune às intempéries. Sempre foi um filho bom, nunca mentiu (as histórias da carochinha não contavam), nunca trapaceou (para ganho pessoal, era mera sobrevivência), nunca tirou nada de ninguém (se lhe davam de boa vontade, que podia fazer?)... As coisas caíam no seu colo, não seria indelicado de recusar. Merecia agora passar por aquele perrengue? Tinha certeza que não. O envolvimento com agiotagem foi um erro de percurso que deveria ser absolvido com misericórdia.
Pensava nessas coisas quando enfim conseguiu atravessar, e pensou também que foi uma ótima decisão fazer xixi no banheiro da churrascaria, porque quando voltou à rodoviária e passou pelas cabines, nem a fila nem os aromas eram convidativos. Ajustou a rota e procurou um posto de informações, que nada mais era que um flanelógrafo cheio de panfletos e avisos impressos, escaneando um por um em busca de um endereço de pensão ou pousada modesta que pudesse acomodá-lo a médio prazo.
— Conjugado individual equipado com copa e banheiro. Centro de Maragogi. — leu baixinho e sentiu dor em cada palavra. — 400 reais por mês.
Ponderou em silêncio. O valor, que até bem pouco tempo ele gastaria num único jantar, soou acessível, e aproveitou o wi-fi público para ligar para o número do responsável e conferir a disponibilidade. O proprietário confirmou a vaga e falaram de horários, calculando que a chegada se daria por volta das 18h, coisa que o dono da pousada lamentou profundamente, alegando que perderia um dia inteirinho de praia (mas que era isso mesmo, a praia não iria a lugar nenhum, ele poderia acordar cedinho no outro dia e se banhar no mar até ficar engelhado). A ideia da praia agradou, primeiro porque era de graça, segundo porque não era à toa que Maragogi levava fama de Caribe brasileiro.
Recebeu, depois disso, o endereço e algumas fotos do lugar, extremamente simples. Apertou a alça da mala com aflição, tentando transferir para o objeto inanimado um pouco que fosse da pressão sufocante que lhe comprimia. Rondava-lhe insistentemente a vontade de desistir e voltar, mas voltar para onde? Para a chave de braço de , prontinho para mandá-lo para o hospital? Se bem que, se ficasse em coma por apanhar do capanga de , poderia dormir sem pagar na UTI e se alimentar por uma sonda. Mas aí teria o rosto todo desfigurado da surra e isso o assustava mais que uma experiência de quase morte — supondo, é claro, que era o tipo de agiota que só batia, não matava.
— Não sei e nem quero saber. — resmungou e fez o sinal da cruz, dizendo a si mesmo que aquela pindaíba seria provisória, que sua formação em administração e seus cursos extras o colocariam em um emprego de alto escalão, capaz de lhe restituir a vida de príncipe que levava.
Contou trinta minutos, espera enjoada e infinita, e o segundo ônibus chegou, aparentemente, mais vago que o primeiro. Os passageiros, em sua maioria nativos, eram menos enérgicos que aqueles que desembarcaram na capital, inspirando uma certa calmaria coletiva, uma ausência de pressa, um ritmo interiorano mais lento, claramente distinto da loucura da cidade. A experiência desse embarque funcionou como uma prévia da tranquilidade que esperava encontrar em Maragogi, e o fato de não haver ninguém no trio de lugares de sua fileira permitiu que ele esticasse as pernas e emendasse um cochilo que durou as horas todas da viagem.
Despertou já em solo alagoano. Pelo fumê dos vidros, escapava uma paisagem relativamente comum: de um lado, um calçadão por onde circulavam ambulantes e turistas, e um mar bem lá no fundo, escuro e oculto, afastado por uma faixa de areia bem extensa. Do outro, lojinhas de comida, de artesanato e ruas de paralelepípedos formigando de gente pedindo desconto, comprando lembranças da região para grudar na geladeira e presentear amigos. Um marasmo calmante, uma brisa agradável e um clima de centro na beira-mar temperava tudo na dose certa, nem pacato demais, nem dinâmico demais. O letreiro de Maragogi exposto no meio da praça juntava pessoas para fotos e simpatizou com seu novo lar, ansioso para descer do ônibus e sentir a maresia.
A placa da parada foi se aproximando e todos foram saindo, se dando as boas-noites e comentando sobre a goleada do Sport no Santa Cruz, totalmente acostumados à vida no paraíso. desceu por último, vendo-se um pouco perdido tanto pelo encanto do lugar quanto pela sua completa solidão. Não conhecia ninguém além do seu Girvan, dono da pousada, e só o “conhecia” por telefone, o que o fez apelar aos céus para que sua única esperança de abrigo não fosse um golpe e estivesse mesmo esperando por ele no conjugado. Tomado por um misto de receio e empolgação, regulou a alça da mala para carregá-la lateralmente e não danificar as rodinhas com o pedregulho no chão, andando até achar um banco na praça e mais um posto de wi-fi grátis.
O celular que costumava pipocar de mensagens acusou apenas uma notificação, novidade à qual estava se habituando desde que tinha trocado de número, de chip e de operadora. A solitária mensagem veio do seu Girvan, passando o endereço do que seria a sua casa pelo próximo mês. Jogou as coordenadas no Google Maps e estudou o percurso, que, graças a Deus, poderia ser feito a pé, e estava prestes a mandar um áudio para seu anfitrião quando alguém passou por ele, falando num tom modulado bem audível.
— ! Onde eu coloco isso?
O moço empilhou algumas caixas no chão, um pouco mais à frente de onde estava sentado, e a manobra mostrou um cidadão de boné virado para trás que podia muito bem ganhar a vida como sósia do Di Caprio, pois tinha os mesmos olhos amendoados e os traços de galã de cinema. Ultrajado pela formosura alheia, sentiu-se ofendido, pensando pela primeira vez que poderia não ser a pessoa mais bonita do recinto.
A audácia!
Resolveu assistir à cena exclusivamente para procurar algum defeito no rapaz que pudesse lhe devolver a confiança, acompanhando discretamente a movimentação dele, entrando e saindo de uma loja com os pacotes que se acumulavam no batente da vitrine. Na terceira viagem que fez, veio acompanhado de uma mulher bravia, dona de uma pele retinta de um preto lustroso e perfeito, esbravejando ordens impacientes contra ele:
— Tem uma van com o porta-mala aberto na tua fuça e tu tá me perguntando onde que é pra botar? Faça o seguinte, pegue tudo e jogue pra cima.
— Bem mansinha, a bichinha… — ele soltou uma gargalhada que expôs uma arcada dentária igualzinha à de uma criança encapetada que usou chupeta até os oito anos de idade.
— Se saia, viu, Hansol.
franziu o cenho. “Hansol” soava coreano, mas a cara dele dizia o contrário. Sacudiu a cabeça, não existia “contrário” de coreano, só existia diferente, logo, corrigiu-se mentalmente, concluindo apenas que tanto a cor quanto a fisionomia divergiam da maioria das pessoas que viu até então. Na verdade, importou-se pouco ou nada com a procedência duvidosa do rapaz, a tal era muito mais interessante, porém, ela sustentava uma postura quase assustadora que ativou seu sentido aranha e o avisou que ela não era do tipo que cairia nas suas gracinhas.
Estava pronto para abandonar o desenrolar daquele filme quando um som de porta destravando indicou que o motorista da van estava descendo. Ouviu nitidamente quando os chinelos de borracha estalaram contra o calçamento de pedra, acusando a falta de altura do condutor em questão, que precisou pular para descer do veículo. Seguiu a silhueta indefinida com olhos curiosos e foi acometido de um sentimento de gravidade zero quando a figura misteriosa se revelou, iluminada por uma fraca luz amarela de poste.
O vento agiu em favor da estrela recém-chegada na cena, balançando os fios loiros e ondulados de uma moça vestida num top de crochê e num short jeans rasgado, exibindo uma pele de bronze médio misturada a um tom rosado que atestava frequentes exposições ao sol. Os olhos, acesos como dois farois, eram expressivos mesmo à distância, pintados de verde-azulado por trás de cílios extensos e acima de bochechas salpicadas de sardas.
As sardas eram a-do-rá-veis.
— , deixa de ser ruim! — foram as primeiras palavras que ouviu dela, e a voz era tão linda quanto todo o resto.
— Tá com pena de Hansol, dona ? — rebateu. — Leva ele pra tu.
riu gostoso, cumprimentando ambos, uma com um abraço e o outro, com um soquinho. não conseguiu pensar em nada para defini-la, nenhuma comparação justa surgia para a beleza de pé ali, a única coisa que ecoava em seu pensamento era que ela parecia um biscoitinho do céu. E foi a essa imagem doce e pueril que se ateve, foi a essa ideia que se agarrou com força, tomando como verdade que a moça em que pusera os olhos uma única vez na vida era feita de açúcar. Ela, do outro lado da calçada, sem se saber observada e admirada, seguia empenhada na tarefa de registrar as mercadorias, totalmente alheia ao fato de que seu nome estava sendo assinado em algum canto bem fundo do inconsciente de , não com tinta nem outro material apagável, mas com o que quer que fosse usado para gravar sensações no cérebro, indeléveis e inesquecíveis.
— … — suspirou sozinho.
O vocativo materializado em sua boca quebrou o devaneio e um lapso de consciência o fez tornar à realidade, lembrando-o de que aquela visão poderia se esvair a qualquer minuto se ele não capturasse algum elemento concreto para acessá-la outra vez. Os telefones adesivados na van eram as únicas pistas de um paradeiro, as chances de um contato futuro, mas os telefones tinham dígitos demais para o tanto de que competia com sua visão turva. O nome estampado na lateral do bagageiro, por sua vez, era mais fácil e de breve assimilação: Van Driel Resort. leu em voz alta, releu, repetiu três, quatro vezes, e guardou para si como um bilhete dourado.
Van Driel Resort. Soava chique e importado — como ele. achou apropriado que houvesse um anjo sinalizando seu caminho e julgou que surgira na sua frente, divina e etérea, como a figura de musa para apontar a direção da sua jornada, à semelhança do que fez a lendária da mitologia grega, guiando seu amado pelo labirinto através de seu fio vermelho…
O fio vermelho já estava lançado.
E mal podia esperar para segui-lo.
E desligou. E assim que a tela do celular se apagou, ela começou a andar pela loja ainda fechada procurando seu entregador que ela esperava que estivesse, naquele momento, à caminho da casa de dona Margarida.
— Valeu, Luquinhas! — Hansol destrancou a porta e entrou na loja com um sorriso que quase não aparecia por ali.
— Tavas aonde? — a morena cruzou os braços sobre o peito, o que chamou a atenção dos olhos claros e curiosos de Hansol.
— Ali. — o rapaz fez pouco caso e apontou para qualquer direção.
— E a entrega de dona Margarida? — franziu o cenho. Aquilo não estava cheirando bem.
— Que entrega? — Hansol perguntou verdadeiramente curioso. Não lembrava de nada programado para o dia. Do que estava falando?
— Ai, Jesus. — a mulher fechou os olhos e procurou algo em que se apoiar, não encontrando um único objeto no caminho das mãos. Hansol que lhe amparou, lhe abraçando pela cintura. — A entrega, Hansol. Oito capas de almofada e uma manta pra sofá que demorou quinze dias pra ficar pronta. É a maior venda do mês, Hansol. — e respirou fundo. — Acho que tô tendo um treco.
— Que pacote era esse? — Hansol perguntou enquanto olhava ao redor, sem nunca soltar a patroa que passava as pontas dos dedos na testa. — Ah, é aquele? — e sabia exatamente onde estava o pacote. Tanto que olhou na mesma direção de Hansol. Ela rezava para que fosse uma ilusão, que o pacote não estivesse ali, mas lá estava ele, cuidadosamente elaborado.
— Tu visse e num levasse, Hansol? — rapidamente se soltou dos braços alheios.
— Primeiro, não me chama…
— Uma praga dessa passa um mês em São Paulo com o pai fugido e vem com história de mudar de nome. Me poupe, viu, Hansol? — ela interrompeu a fala alheia. Estava cansada de Hansol tentando agir como o pai que a muito o deixara com a mãe ali.
— E que horas eu tenho que levar? — o rapaz suspirou cansado. Não adiantava insistir: nunca o chamaria pelo segundo nome.
— Agora, Hansol! Já era pra ter ido. Vá ligeiro, pegue o carro. — ela se adiantou e pegou a chave no suporte que ficava no balcão do caixa. — Eu disse a dona Margarida que você tava chegando.
— A dona Margarida é aquela que mora perto do resort? — ele pegou o pacote e foi pegar a chave que insistentemente lhe estendia.
— A própria. — ela começou a empurrá-lo para fora.
— , vai levar uns 20 minutos pra chegar lá. — Hansol arregalou os olhos claros.
— Faça virar 10. Vista sua roupa de canguru e dê seus pulos. — a moça sorriu. Hansol negou com a cabeça como sempre fazia quando ouvia falar sua frase sobre cangurus. — E antes que você reclame, a entrega tava no quadro. Você que não viu.
— Você e seu quadro. — ele suspirou. Precisava aprender um pouco mais de organização com a patroa. Sem opção, ele partiu para a entrega que, segundo , teria que chegar em 10 minutos.
A moça então se ocupou com a última peça que estava produzindo. Era um vestido de crochê que vira no Pinterest outro dia. Sem a receita, que era paga, só lhe restava tentar. “Dona” provavelmente seria sua modelo. E riu com o pensamento. Não se acostumava a chamar a quase patroa pelo nome, sem o “dona” de acompanhamento. Já fornecia peças para os Van Driel há muito tempo, era quase um vínculo empregatício. Era fato que elas tinham quase a mesma idade, mas não tivera a mesma sorte de nascer em uma família rica. Pelo contrário, estava sempre lutando. Tinha ido parar em Maragogi para viver da sua arte, e desde então lutava para dar certo.
se perdeu nos pontos do crochê e nos pensamentos que vez ou outra lhe vinham à mente. Quando despertou do quase transe, checou o relógio na parede. Ainda não estava na hora de abrir. A vida ali só começava mesmo perto das 10. Tinha alguns minutos para provar o vestido. Amarrou e arrematou a linha e foi para os fundos da loja, onde tinha instalado uma espécie de vestiário. Tirou a camiseta e a parte de cima do biquíni e vestiu o vestido. Tinha ficado melhor do que imaginava.
— Cheguei! — Hansol se anunciou, assustando a patroa.
— E precisa gritar? Jesus, que susto. — ela levou a mão ao peito, o que chamou a atenção de Hansol. O vestido que acabara de terminar tinha duas tiras que deveriam cobrir os seios, mas que Hansol achava que não estavam servindo de muita coisa.
— , não tá faltando ponto aqui? — a mão atrevida dele puxou a lateral externa da tira.
— Hansol! — imediatamente se afastou e tratou de cobrir o seio quase exposto. — Tire a mão!
— Tá faltando ponto? — ele insistiu na pergunta.
— Não! — ela respondeu como se fosse óbvio.
— O conceito do vestido é peito de fora? — Hansol ergueu uma sobrancelha, verdadeiramente curioso.
— Eu só não te mostro agora o que é peito de fora porque não vou ficar nua na sua frente.
— De novo. — ele completou com um sorriso.
— Não devia nem ter acontecido. — suspirou.
— Tá, . Foi um erro, mas foi gostoso.
E quando Hansol lhe tocou o pescoço, fechou os olhos. Hansol era bonito, tinha dedos bonitos e sabia muito bem o que fazer com eles. Estava sóbria quando dormiu com Hansol uma noite, e não se arrependia, mas definitivamente aquilo não poderia se repetir.
— Se saia! — ela se afastou. — Eu sou sua patroa.
— Você não pode negar o que aconteceu. — Hansol apontou com um sorriso.
— Vá abrir a loja que as peças não vão se vender sozinhas. — ela cruzou os braços sobre o peito, o que atraiu (de novo) os olhos bonitos de Hansol.
— Peito de fora. — ele insistiu com aquele sorriso de menino atentado que tinha aprendido a gostar.
— Num tá. Vá ‘simbora. — ela o dispensou com a mão. — Ligue o ar. Abra o caixa… — ela foi gritando as instruções.
— Eu sei abrir a loja. Veste uma roupa que é melhor. — ele rebateu. Moleque atrevido. Dany se olhou no espelho. O busto do vestido era um pouco… explícito. Mas não podia negar que era uma bela peça.
— Será que eu… Não. — ela espantou o pensamento com a mão. Não podia dar ouvidos a Hansol e seu falatório. Aquela era uma bela peça. Ia vender rápido. E ela precisava produzir rápido. Conseguiria, era boa naquilo. Com um sorriso satisfeito, tirou o vestido e tornou a vestir o biquíni. Nem sempre os vestia, mas naquele dia em especial pretendia ir à praia, precisava sentir a areia sob os pés. Estava com muitos pensamentos na cabeça e precisava falar para só o mar ouvir.
Quando saiu do vestiário em direção à loja, já a encontrou aberta. Algumas pessoas já caminhavam no espaço. Cumprimentou alguns turistas, recebeu uma cliente que mês sim e mês também estava lá, apenas mais uma ricaça, e foi olhar o movimento da rua. Era sempre bom parar na porta da loja usando uma de suas peças, chamava a atenção das pessoas.
Porém a atenção de foi capturada por um corpo alto e quase bronzeado. Não que eles fossem incomuns ali, estavam em um paraíso à beira mar, mas aquele era diferente.
— Um dia isso aqui vai ser tomado por olhos puxados. Primeiro Hansol, agora o grandão… — refletiu e riu sozinha, sem sequer imaginar o que estava por vir.
Depois que seu Girvan lhe entregou as chaves da modesta casa onde se hospedaria, ele olhou ao redor e soltou um suspiro aliviado: jamais conseguiria encontrá-lo ali, camuflado em meio a tantas outras casinhas de paredes de cal e telhados frágeis, amontoadas umas nas outras entre as ladeiras desniveladas de Maragogi. As ruas do vilarejo eram basicamente as mesmas e os caminhos de calçamento pedregoso se configuravam de uma maneira confusa, remetendo à estrutura de um labirinto (principalmente para os não nativos), e isso lhe causava uma falsa impressão de conforto e segurança. Sentia-se difuso, escondido, tomado por uma estranha sensação de pertencimento e embebido por uma lembrança que se alastrava pela sua corrente sanguínea e dominava sua mente.
— Siri, pesquise sobre o fio de . — foi a ordem que deu ao plugar o celular no carregador e conectá-lo ao Wi-Fi da casa.
— O fio de é um mito grego no qual a moça, filha do rei Minos, cai de amores pelo belo Teseu, jovem guerreiro que se voluntaria para entrar no labirinto do terrível monstro, Minotauro.
Um jovem forte e bonito perseguido por um monstro no labirinto pareceu altamente relatável — especialmente a parte do “bonito” — e, ao se olhar num espelho de moldura laranja minúsculo pendurado na pilastra central, estava convicto de que era o herói da própria história.
E que merecia a mocinha loira e linda.
— O Minotauro era uma assustadora criatura meio homem e meio touro que se alimentava de carne humana. De acordo com a lenda, Teseu consegue encontrar a saída do labirinto e escapar do apetite mortal do monstro graças ao fio vermelho fornecido por sua musa.
— . — repetiu em voz alta o nome que vinha lhe rondando o pensamento. — A minha recompensa.
— Para além da mitologia grega, o fio de também é utilizado para nomear um método de solução de problemas de lógica e raciocínio-
estalou a língua e interrompeu a explicação da assistente virtual encerrando o aplicativo. Não queria saber de matemática. Queria permanecer na poesia.
Afinal de contas, bem ou mal, ele estava no paraíso.
O barulho suave das ondas ao fundo e o silêncio da vila envolviam-no como uma promessa de paz, misturando-se ao eco enfeitiçado que deixou no seu cérebro. Enquanto ele começava a se instalar e desfazer sua única mala, analisou as peças de roupa disponíveis e elegeu uma camisa branca de botão para o cabide, na esperança de que a gravidade fizesse por ele o trabalho de desamassá-la. Confiou que o milagre doméstico se realizaria sozinho e abriu a pequena porta sanfonada do banheiro, tirando a blusa no meio do caminho e abafando um grito nela ao ver o tamanho do box. Seria difícil caber ali, mas era o que tinha. Pelo menos por enquanto.
Entrou para um banho gelado debaixo de um cano sem chuveiro, deixando a água golpear suas costas sem nada para amenizar a fúria e muito menos regular a temperatura. O banho de água fria era literal e metafórico também, mas não estava inclinado a se lamentar porque tinha um plano. Um plano que, na sua cabecinha confiante, era infalível.
— Um emprego no Van Driel Resort é meu fio de . — levantou o rosto, seu maior trunfo, na direção do bocal que jorrava água doce, depois se sacudiu como um filhote de Golden Retriever, revigorado pelo efeito. — É assim que eu vou sair desse labirinto.
Estava certo da sua vitória, pois os caminhos que vislumbrava para si levavam todos à grandeza, sem exceção. Seu currículo era impressionante, renderia um cargo alto, além disso, tinha jogo de cintura, saberia fazer as conexões certas, conquistar aliados, bonificações, aumento de salário… Era uma trajetória fácil e ascendente, sem dúvida, além do mais, sua beleza iria colocá-lo novamente nos lugares em que deveria estar.
Amarrou a toalha na cintura e saiu do banho, calçando os chinelos para não tomar um choque do seu mini secador dobrável, que ele esperava que não queimasse nem causasse um curto-circuito na fiação questionável da casinha. Checou a voltagem compatível e secou os fios com a ajuda de uma escova, modelando um penteado para o lado e um pouco de pomada para manter no lugar. Deu o toque final com os dedos e encarou seu melhor amigo mais uma vez, triunfante:
— Gato. — soltou para o espelho. — Só falta miar.
Vestiu a camisa levemente amassada da viagem e fechou mais botões do que o de costume, passando o excesso de tecido para dentro da calça jeans preta e elegante. Na mochila, colocou uma cópia do currículo e outros documentos e verificou o percurso até o Van Driel Resort enquanto apanhava o óculos escuro e o relógio de marca, filhos únicos do tempo das vacas gordas. Estava pronto para mais uma caminhada, pois além de estar fora do seu orçamento, Uber não era um serviço que existia no vilarejo: tudo era, normalmente, acessado a pé. Os poucos carros que circulavam pela orla eram fretados por empresas de passeios levando turistas para praias mais distantes, atividade que mantinha a economia da pequena cidade e o sustento dos moradores.
O sol da manhã tingia o céu de tons alaranjados, o cheiro do mar cruzava as ruelas e os sinais da maresia estampavam todos os portões de alumínio e as grades das janelas. procurou pensar em coisas assim, sem importância, como a ferrugem que maltratava os varais e os compensados de ferro, para enganar a sensação eufórica de antecipação que varria o seu peito. À medida que a fachada do Van Driel Resort deixava de ser um oásis longínquo e se transformava numa visão real e próxima, algo vibrava no seu interior, cantando a vitória antes do tempo, e cada passo em direção ao luxuoso hotel agitava seu corpo com uma alegria prematura.
Era óbvio que tudo daria certo. Tinha hora marcada, cortesia do seu Girvan, que simpatizou com ele e o colocou em contato com um dos gerentes, conhecido seu. Assim, chegou ao resort certo de duas coisas: aproveitaria ao máximo aquele ar-condicionado potente e sairia de lá empregado.
As portas automáticas abriram, refletindo sua imagem perfeitamente alinhada na superfície translúcida e liberando o frescor do ambiente climatizado junto com um cheiro de gente rica. Adentrou o hall do resort, atraindo olhares de hóspedes e funcionários, e sorriu envaidecido do seu pequeno sucesso de público. Virar cabeças por onde quer que fosse não era novidade para . Era o fardo de sua beleza óbvia, peso que carregava com orgulho, e que o fazia alongar os músculos sem motivo algum ou jogar para trás um cabelo que não estava atrapalhando o seu rosto só pelo efeito que o movimento causava nas pessoas, sobretudo mulheres. Sobretudo, naquele caso, mulheres recepcionistas.
— Posso ajudá-lo, senhor?
— Por favor, senhora… — ele tirou os óculos, para o deslumbre da funcionária, e apertou os olhos para o crachá. A técnica de chamar alguém pelo nome era infalível, além de um galanteio milenar. Fazia as pessoas se sentirem importantes, validadas e, consequentemente, mais molinhas e suscetíveis à sua lábia. — Senhora Vilma, certo? Eu tenho uma reunião com o senhor Tavares.
— Ah, por favor, só Vilma mesmo. — ela arrumou o cabelo pintado de acaju rapidamente. — Documento, por gentileza.
estendeu o RG junto com um sorriso.
— Posso oferecer um café enquanto espera, senhor Kim? — Vilma leu a identidade.
— Só , Vilma. — ele atacou novamente. — E eu aceito sim.
Vilma derreteu-se toda, registrando o documento dele e posicionando a câmera para tirar uma foto provisória que ela passaria a tarde inteira admirando depois, quando ele fosse embora. Talvez até imprimisse uma cópia e guardasse na bolsa para chorar por ela no banheiro na hora do seu intervalo desumano de apenas quinze minutos. Feito o cadastro no banco de dados, conseguiu permissão para esperar no lobby e o expresso que a própria dona Vilma fez questão de levar. Observou o movimento de turistas, ajustando sua mira à procura de quem pudesse lhe render alguma vantagem, quando uma saída de banho de crochê jogada por cima de um biquíni preto chamou seus olhos e prendeu-os ali.
Os fios loiros que ele já havia visto (e que ele já havia desejado enroscar em seus dedos) foram puxados para cima e amarrados por um elástico de cetim, deixando o rabo de cavalo cair em cascata pelos ombros conforme a moça caminhava, engatando uma animada conversa com outra tão bonita quanto. Mas já era tarde para qualquer tipo de disputa, a atenção de já era cativa, fidelíssima, e saiu vencedora.
… Que encanto havia sobre aquele nome?
Tinha uma certa predileção por loiras, era verdade, mas não era só a cor do cabelo que conferiu à jovem um espaço no peito tão inflado do rapaz, eram os olhos de vidro, afiados feito duas lâminas, que mexeram com algo lá dentro dele que ele não sabia direito o que era — até porque dentro dele já havia muito de si ocupando espaço e mal sobrava o que ofertar para outras pessoas. Mesmo imerso em seu devaneio, reconheceu , que acompanhava a amiga rumo à piscina de borda infinita e cujos gestos indicavam que reclamava de alguma coisa. apenas ria. Gostoso, ritmado, perfeito, chegando até onde ele estava como música nos seus ouvidos…
Ela era linda. Ela era linda e ele precisava abordá-la, mas, pela primeira vez na vida, não estava 100% confiante das suas jogadas porque deixou suas armas de sedução mais pesadas no apartamento que abandonou em São Paulo. Saberia exatamente o que fazer se dispusesse do seu arsenal completo: convidaria para um jantar intimista, escolheria um vinho excelente para harmonizar com uma massa caseira e abririam a noite ao som de um jazz suave, quando ele aproveitaria para falar todas as informações sobre música que tinha decorado para impressionar mulheres e deixá-las no modo pré-sexo. Depois, uma mão pela coxa, uma distância cada vez menor, e aí era só tomá-la num beijo tão incrível que o único desfecho possível seria tirá-la do seu vestidinho preto e deixá-la maluquinha de amor.
Suspirou, sentindo a temperatura corporal subir conforme a imaginação pintava a cena na sua cabeça. Então, suspirou de novo, lamentando não ter mais o apartamento matador, o vinho, nem a máquina de fazer macarrão fino. O que ele tinha era uma quitinete e uns quilos de arroz na despensa, que desbloquearam uma memória traumática de quando ele tinha 9 anos e se apaixonou pela garota que sentava na frente dele na escola, mas que acabou rejeitando friamente o seu amor e o arroz doce que ele preparou para se declarar.
Aquele foi um recreio muito difícil…
Era óbvio que ele estava muito mais atraente agora e que não iria aparecer na frente da com uma lancheira de arroz doce e um desenho perguntando “você quer ser minha namorada?”, mas ele queria, sim, aparecer na frente dela de alguma forma — ele apenas não sabia como ainda.
Mas ele saberia. No tempo certo, ele saberia.
— … Kim? — um homem de meia-idade anunciou o nome dele e levantou-se para cumprimentá-lo, acordando do seu sonho. — Tavares, muito prazer. Foi o Girvan que mandou você, certo?
— Sim, e obrigado por me receber. — fez uma varredura rápida do senhor, encontrando um chaveiro com um escudo vermelho e dois remos cruzados pendurado no bolso dele. — Falei pra ele que estou procurando um emprego e ele me disse que tinha um amigo que poderia ajudar.
— Agora ele me chama de amigo? Quando eu deixei ele no Bar da Loira na final do Campeonato Pernambucano pra pagar a conta, ele me chamou de tudo, menos de amigo! — riu.
— Bom, eu acho que ele superou esse episódio. — conferiu o chaveiro outra vez, reconhecendo o time. — Mas caso o senhor precise de companhia para assistir uma partida do Náutico, eu estou disponível.
— Desde que você pague a cerveja!
O rapaz gargalhou, vitorioso. Seu carisma foi, como sempre, seu amuleto da sorte, e a barreira da formalidade já estava quebrada.
— Vamos conversar no meu escritório. — Tavares sugeriu com tapinhas nas costas.
A sala onde Tavares reinava não era tão luxuosa quanto o restante do resort, mas era ampla e condizente com a arquitetura chique e moderna do local. As pastas com protocolos de conduta e as políticas da empresa ficavam em prateleiras laterais, alternadas entre placas de reconhecimento e um exemplar do código do consumidor. Em cima da mesa, a foto da família era menor do que a foto dos jogadores do Náutico segurando a taça do Pernambucano e, além dos dois porta-retratos com as maiores paixões do gerente e o computador, só havia um copo com canetas.
O copo com emblema do Náutico. E uma das canetas também.
puxou uma cadeira e colocou a mochila no chão, tirando de lá seu currículo recheado dos cursos que fez com o dinheiro de , quando um frio na espinha o assaltou e ele balançou a cabeça, dissipando a fumaça da lembrança como se o agiota fosse capaz de farejar seu medo. Não era hora de pensar naquele nome nem naquela história. Era hora de ver o Tavares se maravilhar com a sua formação e, quem sabe, acertar no Bar da Loira o seu primeiro happy hour como auxiliar administrativo do Van Driel Resort.
— Impressionante. — Tavares assobiou, virando a página. — Da teoria, eu tenho certeza que você entende, mas e a prática?
— Perdão?
Tavares puxou a cadeira para mais perto da mesa, mas a barriga alta de tanto chope o empurrou de volta.
— Rapaz, aqui tem uma fortuna. Faculdade, especialização… — ele balançou a folha. — Mas você já aplicou isso em algum lugar? Qual a sua experiência de trabalho?
raspou a garganta e a língua enrolou. Por um instante, perdeu seu rebolado e viu-se preso no paradoxo que a maioria dos jovens enfrentava na hora de procurar o primeiro emprego: a falta de experiência. Entretanto, ele não se considerava como a maioria dos jovens, um rosto como o dele só aparecia uma vez a cada 100 anos, mas estava bem claro que aquilo não o ajudaria em nada naquela situação. Tavares, por sua vez, ficou um tanto comovido com a decepção estampada nos seus olhos, tanto que começou a suar de nervoso e precisou enxugar a testa com um lenço que ele tirou de uma gaveta.
— Olha, estudo é muito importante, mas pra uma vaga na administração aqui no Van Adriel Resort é preciso uma certa bagagem. Você pelo menos estagiou em alguma empresa antes?
A resposta era não. Mas ele era inteligente e parecia um ator de dorama. Não era o suficiente?
— Eu poderia aceitar um estágio aqui, caso haja algum. — tentou sorrir, mas faltou vontade.
— Infelizmente, eu não tenho nada assim no momento. — o gerente angustiou-se, pegando a caneta do Náutico e virando o currículo de para o verso. — Mas eu gostei de você, garoto, eu vou anotar o meu telefone e… Espera. — ele quase esfregou o papel no nariz. — Aqui diz que você tem licença de arrais amador? Pode dirigir pequenas embarcações?
— Sim, senhor. — ele confirmou, nostálgico. Mais uma loucura financiada por um certo alguém para se exibir para os amigos nas viagens para Angra.
— Nesse caso, eu posso colocar você como piloto de barco. — Tavares bateu na mesa. — Você sabe, nós oferecemos passeios turísticos para as piscinas naturais, é um trajeto simples e curto, mas o grupo Van Driel exige que seja realizado por profissionais habilitados. — ele vasculhou a folha novamente. — É a única coisa na qual você tem experiência comprovada.
“E a única coisa mais ferrada que eu nesse momento é esse teu time…”, quis dizer, mas se freou. Por mais frustrado que estivesse, a culpa não era do seu Tavares. Nem do Náutico. Nem dele. A culpa era…
Ele não sabia de quem era. Ele só sabia do calor se formando no centro do seu peito, irradiando pelo estômago numa queimação decepcionante de expectativas indo para o brejo. O pior é que ele nem podia se dar ao desfrute de rejeitar a oferta, seu dinheiro estava acabando e ele não podia recorrer a ninguém que conhecia sem se denunciar como eterno devedor de um cassino ilegal; a saída era pilotar a lancha ou pilotar seu lindo corpo de volta para São Paulo com a corda no pescoço. E o pescoço dele era bonito demais para ser torcido pelo .
Passar de auxiliar administrativo para arrais amador soava como um retrocesso, no entanto, sem opções como estava, preferiu encarar essa parte da jornada tal qual a letra da sua canção guilty pleasure favorita: uma escalada.
Ele até ouviu The Climb da Miley Cyrus tocando ao fundo quando disse:
— Eu aceito.
— Maravilha! — Tavares comemorou, enérgico. — Vejo você amanhã!
descobriu muito rápido que não havia praia paradisíaca no mundo que compensasse o sacrifício de acordar às quatro horas da manhã.
Mas a enseada em Antunes chegava bem perto de valer a pena.
Na penumbra, a praia exibia uma calmaria que só se quebrava pelo som suave das ondas, coisa que, mesmo depois de duas semanas de trabalho, ainda não tinha perdido a graça. Era o mesmo mar todos os dias, o mesmo caminho até as piscinas naturais, as mesmas águas geladinhas e deliciosas, mas até a mesmice e a rotina eram de se admirar naquele lugar. Antes de “bater o ponto” e fazer a primeira saída, banhava-se na praia, embebia-se de luz, depois metia-se numa blusa de proteção, num colete, pintava o rosto de branco com filtro solar e começava seu trabalho de trazer e buscar gente ao lado do Zé, guia nativo que colocaram para acompanhá-lo. A função do Zé era explicar por que a temperatura do mar era tão diferente ali no meio e alertar sobre os corais e as áreas de preservação, e a do era pilotar o catamarã.
Porém, para isso, ele precisava, todos os dias, empurrar a Sereia Holandesa para o alto-mar.
A embarcação tinha um nome de batismo diferente, é claro, mas tanto ele quanto o Zé concordaram que “Van Driel 8” não tinha o mesmo apelo que “Sereia Holandesa”, e era assim que eles a chamavam em segredo. Era um cara legal, o Zé, fácil de conviver e fácil de conversar, mas essa parte dizia muito mais sobre do que ele, porque era naturalmente comunicativo e de personalidade magnética. A afinidade foi tamanha que Zé, veterano, teceu muitos elogios ao novato para o seu superior imediato e já se falava em promover para piloto de lancha, fazendo trajetos mais exclusivos e caros.
No entanto, enquanto a promoção não chegava, suava para desencalhar a Sereia.
— Perdesse as forças, foi? — Zé reclamou quando parou de puxar a corda amarrada à proa para analisar as palmas das mãos. — Um galalau desse.
— Não, é que eu acabei de passar protetor solar e tá deslizando.
E um creme para amolecer as cutículas também, mas o Zé não precisava saber.
— Pois agora foi que quebrou dentro. — o nativo começou a empurrar a popa da nau. — E tu quer pilotar o catamarã como sem colocar ele na maré?
— Você podia colocar pra mim, amigão. — gritou, com a metade do corpo coberta pela água.
— Mas eu tô com rei da cocada preta e não me avisaram. — Zé debochou. — E tu vai ficar aí só sendo bonito?
— Eu sou bonito.
— E eu sou o Zé. Agora vai, ô Brédi Pití, empurra a embarcação comigo.
gargalhou, divertido pelo sotaque que agora lhe era totalmente familiar. A fala cantada dos alagoanos era um charme à parte, ajudava a compor o cenário divino com um toque de graça que só existia ali. Além disso, até o jeito de xingar era diferenciado: o Zé soltava os palavrões com o ritmo de um rapper e a diferença entre esse seu lado e a postura profissional que ele assumia quando os turistas chegavam fazia rir lá de dentro da cabine de comando, sozinho com o seu ventilador (que não estava dando conta do recado naquela manhã).
O sol ardia implacável no céu, refletindo-se na superfície do mar, que cintilava em azul e verde. Na terceira viagem do dia, já estava suado e fatigado, ajustando o leme com esforço para manter o rumo em meio à intensidade do calor. A cabine abafada tornava-se claustrofóbica à medida que a quentura incidia sobre ela e, ao olhar pelo deck, a vontade que ele tinha era de se jogar na água para se refrescar. Rejeitou a própria solução, afinal, estava em serviço, no entanto, o ar cada vez mais espesso secava a sua garganta e turvava sua visão, como se a pressão do calor estivesse comprimindo sua cabeça.
Ao chegar à piscina natural onde os turistas desembarcaram junto ao guia, estabilizou a Sereia, travou o leme e saiu da cabine esperando que a brisa marítima aliviasse seu mal-estar, quando tudo girou num espiral enorme, pintando pontinhos coloridos na paisagem. A sensação de vertigem veio forte e o venceu num nocaute, desequilibrando seu corpo imenso e derrubando-o na água. Ele caiu pesadamente, fraco demais para coordenar as braçadas para voltar à superfície, e antes que conseguisse se orientar, encontrou um fundo de banco de areia muito mais depressa do que imaginava.
Logo, seus neurônios confusos apontaram um lapso de raciocínio rápido: o fundo não era de areia, porque se fosse, não haveria sangue misturando vermelho à água translúcida conforme ele afundava. Sabia que era inútil gritar, mas o fez por instinto, engolindo um bocado de água que só piorou a angústia do sufocamento e apagou seus pensamentos por completo. A dor explodiu na sua cabeça, latejando, e a última coisa que conseguiu ver antes de apagar totalmente foi o recife de coral que atingiu na queda e lhe abriu a nuca, que agora ardia de um modo insuportável.
Os olhos dele foram derrotados pelo sal e pela pancada, a sensação terrível do afogamento desligou todos os seus sistemas e sequer tinha forças para se debater. Mais distante dali, ocupado com o acompanhamento dos clientes, Zé não se deu conta da ausência do piloto, muito menos do acidente, que aconteceu longe dos olhos de todos.
Menos de uma pessoa.
Num perímetro demarcado por bolas flutuantes de segurança, o Van Driel 1 ondulava, ancorado no seu posto de patrulha. A embarcação de tamanho menor monitorava a área, de onde uma dupla composta por um salva-vidas e um homem de nariz afilado observava a cena.
Bom, pelo menos o salva-vidas observava a cena. O homem falava e se movia animosamente, como se tivesse acabado de tomar três energéticos seguidos e por isso fosse incapaz de se concentrar num único ponto.
— Ele não está tornando. — foi a constatação feita pelo par de olhos aguçados, indiferentes à claridade que cegava a maioria.
— O quê? — o homem redarguiu. — Você viu alguma ocorrência?
A resposta foi apenas o barulho ligeiro do salva-vidas ajustando seu equipamento e mergulhando no mar em direção ao piloto submerso. O macacão aquático ajudava a vencer a tensão da água, rasgando-a com habilidade, rapidez e a eficiência de quem estava acostumado a agir em situações de risco, e os óculos de mergulho forneciam a nitidez necessária para enxergar tudo apesar da refração. Conforme a profundidade se adensava, a adrenalina era liberada nas veias do profissional, impulsionando o mergulho até o ponto onde o piloto afundava de olhos fechados e sem energia. Prendendo o ar no diafragma e controlando a respiração com as técnicas aprendidas no treinamento, o resgate foi realizado com auxílio da própria água, que diminuiu a massa do piloto ferido e permitiu que ele fosse impulsionado para cima.
Quanto mais próximos da superfície, porém, mais real ficava o peso de e seus músculos, dificultando o resgate. A gravidade começou a fazer seu trabalho e a anular a força do empuxo, obrigando o salva-vidas a abraçar pela cintura alta para erguê-lo.
— Aqui, Seokmin! — gritou para o colega que esperava aflito na proa do barco, colocando a cabeça de para fora da água. — Sobe ele!
Seokmin, mais forte e corpulento, puxou desacordado para dentro da embarcação, deitando-o no chão branco e encharcado que também ficou colorido de sangue. O responsável pelo salvamento subiu em seguida, livrando-se do óculos e do bocal, já em busca da caixa de primeiro socorros e posicionando-se de joelhos ao lado do piloto para iniciar o atendimento.
— Seo, segura a cabeça dele, mas cuidado. — ordenou, colocando uma gaze na nuca ferida. — Ele bateu no coral.
— Aquilo corta feito uma navalha, será que foi muito fundo? — o colega pressionou o curativo atrás da cabeça de .
— Não sei, ele precisa acordar primeiro. — respondeu, prendendo as narinas de e soprando ar na boca entreaberta, alternando a manobra com pressões no peito aderido pela regata branca com uma mancha bem grande de vermelho desbotado. — Vamos, grandão. — novamente, aplicou a técnica da respiração boca a boca e a compressão torácica. — Reage pra mim, vai.
A água salgada presa na traqueia de foi expulsa por uma tosse que o acordou, esquentando suas têmporas a ponto de estourar de tanta dor, enxaqueca e sol a pino na cara. As costelas, agora também doloridas da massagem no peito, pareciam prestes a se romper quando ele buscou o ar, sentindo tudo queimar pelo caminho. Abriu os olhos vagarosamente, aturdido e sem saber onde estava, mas suspeitando bastante de que havia morrido e chegado aos portões celestiais, pois os olhos de vidro que encontraram os seus eram bonitos demais para serem deste mundo terreno e quente.
Assim como a boca rosada, as bochechas salpicadas de sardas e o decote revelado pelo macacão de mergulho cujo zíper abriu no processo.
— … — balbuciou, torpe, num ínfimo momento de consciência antes de desfalecer de novo.
— Vocês se conhecem? — Seokmin estranhou, atraindo o olhar da loira.
— Não. — tornou a fitar , estudando a princípio o seu estado de saúde, mas se perdendo um tanto na beleza surreal do moreno. — Aqui tem muitos coreanos, mas eu me lembraria de um desse tamanho.
— Ele não é tão grande assim. — Seo murmurou e inflou a postura.
imitou a careta do colega e voltou sua atenção para o ferido, segurando o rosto perfeitamente esculpido. Notou a respiração alheia normalizando, ainda que lenta, e tanto o suor como a água evaporavam depressa dos braços torneados, impelindo-a a arrastar o rapaz para a sombra e apoiar a nuca machucada numa toalha, enquanto Seokmin orientava que o guia do Van Driel 1 os levassem de volta para a costa.
— … — voltou a chamar.
— Oi, eu tô aqui. — ela atendeu sem questionar como ele sabia o seu nome. Estava vivo, teria tempo para fazer isso depois, de preferência quando ele não estivesse banhado em sangue (o que a lembrava de concluir seu trabalho). — Seu pescoço dói? Consegue mexer?
— Eu… — se moveu minimamente, confirmando as respostas.
— Ok, se consegue mexer, não quebrou nada. — apertou os ombros dele, endireitando-o.
Assim que a dormência do braço passou, o rapaz levantou o membro em direção à cabeça pulsante, cuja cefaleia era agravada pelo ronco do motor, mas teve o movimento barrado por , que segurou sua mão e, logo em seguida, as laterais do seu pescoço, estabilizando-o contra o balançar do barco.
— Eu sei que está doendo aí atrás, mas não se preocupa. Vamos te levar ao ambulatório e vai ficar tudo bem. Por enquanto, não toca, tá?
Então, o efeito da queda desapareceu.
Porque sorriu.
— Você… — sorriu de volta. — Você me salvou!
— É, é o meu trabalho.
— Eu estou no céu? — ele tentou tocá-la, mas os sentidos ainda estavam embaralhados e ele terminou com o dedo flutuando no ar. — Você é o anjo que mandaram pra me buscar?
— Coitado. — Seokmin interveio, aproximando-se. — Ele tá delirando, .
desanimou novamente. Ele era Teseu, o herói, e era a mocinha. Quem era aquele cara de nariz afilado? Não tinha papel para ele na sua história. Sem espaço para Seokmin figurante na lenda do fio vermelho.
— Ele acabou de sair de um afogamento, Seo, é normal que ele esteja aturdido.
— Ele não saiu, você que tirou ele de lá. — Seokmin sentou-se ao lado dela e teve raiva da desvantagem. Além de estar fraco demais para engatar uma conversa normal, Seokmin não era feio e parecia bem íntimo da sua salvadora quando passou o braço por ela e lhe deu um beijo na bochecha. — Você é incrível, sabia? Um dia eu ainda vou casar com você.
“Não!”, quase gritou, mas teve presença de espírito para contornar o rompante e fingir que estava inconsciente.
— Vai tentar esse golpe em alguma das suas alunas da terceira idade, vai. — provocou. — Professor de zumba.
— É instrutor de hidroginástica. — Seokmin reiterou.
— Zumba. — a loira insistiu. — Agora pega um algodão ali da caixa de primeiros socorros e uma água mineral gelada.
Seokmin acatou a ordem e lamentou quando precisou soltá-lo para embeber o algodão com a garrafa de água, mas sua agonia não durou muito, porque a moça imediatamente tornou sua atenção para ele e começou a deslizar o chumaço geladinho pelo rosto levemente ardido, amenizando a sensação de ressecamento e atenuando o calor infernal. O juízo foi retornando aos poucos, à medida que umedecia sua face e lhe dedicava cuidados, e conseguiu discernir a ordem dos acontecimentos, lembrando que seus lábios tiveram um contato, ainda que motivado por força maior, com os dela. Passou a língua por eles para saber que gosto ela tinha. Tinha gosto de sal. E o sal alojado em sua garganta a arranhava terrivelmente e ele teve sede de água doce.
Ou talvez de ...
— Consegue sentar para beber um pouco de água? — ela perguntou, vendo que ele sugava a própria boca. — Devagar, ok?
A salva-vidas inclinou o corpinho dela sobre o de , oferecendo o contrapeso necessário para ajudá-lo a se levantar, e apoiou as duas mãos nas costas dele para garantir que ele não caísse. No automático, o piloto voltou a levar a mão à nuca assim que se sentou e teve que segurá-la, causando com o toque um alívio instantâneo na pele morna do rapaz.
— Já já a gente resolve isso. — ela o tranquilizou mais uma vez, segurando-o agora pelo queixo e colocando a boca da garrafa na dele. — Bebe um pouco. — ele obedeceu. — Isso. Me fala quantos dedos você vê aqui.
contou três dedinhos numa mão pequena e delicada.
— Linda… Muito linda. — ele suspirou baixinho.
— Oi?
— Três.
— Ótimo. — a moça relaxou um pouco ao vê-lo recobrado, abrindo mais o macacão que parecia apertá-la. — Agora, me fala seu nome.
O piloto esqueceu por uma fração de segundo. E nem era por causa do corte na nuca.
— . Kim .
— Kim , o que você faz? — ela tirou os braços da peça, descendo-a até a altura do umbigo e revelando um biquíni amarelo por baixo.
detestava amarelo.
Mas ali ele gostou.
— Eu sou piloto da Sereia Holandesa. — precisou de mais um gole de água.
— Sereia Holandesa?
— É como eu e o Zé chamamos o Van Driel 8.
abriu a boca num círculo perfeito.
— Você estava com o Zé, então você é o piloto novo.
— Sim, e… — tomou um susto que rachou a cabeça dele outra vez. — Alguém precisa avisar pra ele o que aconteceu e levar um piloto até lá pra trazer o pessoal de volta antes que a maré-
— Calma. — respirou fundo e espelhou o ato. — Eu também trabalho no hotel, o piloto daqui já entrou em contato pelo rádio, tá tudo bem. Vamos cuidar de você, certo?
— V-você… vai cuidar de mim?
— Talvez, eu sei costurar uma pessoa. — ela riu da própria piada. — Mas acho que o enfermeiro lá do resort vai fazer melhor.
— Chegamos. — Seokmin surgiu novamente, e teria revirado os olhos se eles não estivessem tão sensíveis. — Tá tirando a roupa por quê?
— Vou acompanhar ele até a enfermaria. — desceu mais o macacão, livrando as pernas compridas e torneadas e colocando-se de pé.
Era impossível saber qual dos dois babou mais com a visão.
A moça, por sua vez, alheia aos dois marmanjos admirando suas curvas, apanhou um short, uma camiseta e um chinelo, socando-os numa bolsa e voltando-se para os rostos paralisados de ambos.
— Seo, ajuda ele a levantar.
Seokmin fez uma careta discreta que devolveu.
— Tudo bem, eu não tô mais tonto. — garantiu. — Eu consigo andar até a enseada.
Com a ajuda da salva-vidas, que levava a bolsa acima da cabeça e o guiava com a mão desocupada, desceu a escadaria do barco, encontrando a água que batia no peito e sentindo-se levemente zonzo pela ondulação do mar — ao contrário do que ele havia afirmado. Mas ele preferia desmaiar de novo a receber algum auxílio do nariz afilado que apontava muito para (e que queria casar com ela).
Não podia culpá-lo. era um espetáculo, e a parte do cérebro que deixou no coral já não importava tanto porque foi graças a esse incidente que ele pôde interagir com ela. Alguns miolos perdidos no recife eram um preço justo a se pagar por aquele contato físico e pela imagem do bronze nas costas bem ao alcance da sua vista, andando na frente dele em direção à praia e virando um rosto magnífico de tempos em tempos para conferir se ele estava bem.
Era agridoce. não se lembrava da última vez que alguém (além dele mesmo) se preocupou com o fato de ele estar bem ou não. Aparentemente, nenhum dos seus velhos amigos procurou por ele, o que era bom, considerando o quanto estava envergonhado, mas mesmo seus pais, o elo de afeto mais sólido que tinha, o tratavam com notas de ressentimento desde que havia decidido sair de casa para estudar e tentar ser independente.
Machucava muito saber que ele tinha falhado miseravelmente, porque, em algum lugar no entremeado de toda aquela confiança e segurança aparente, ele sabia que, sim, tinha falhado.
Acontece que ficava impossível pensar no seu fracasso ou em qualquer outra coisa quando havia uma mulher deslumbrante revelando um corpo tão deslumbrante quanto conforme a água ficava mais rasa. Ele não era nenhum tarado, então se esforçou ao máximo para não olhar fixamente para o bumbum redondinho e molhado bem na sua frente, até porque ele queria retribuir a o tipo de atenção que lhe conferiu e que ele não estava acostumado a receber: a que ia além da sua aparência.
Por mais que os lábios dele ainda formigassem do boca a boca e que pensar naquilo lhe desse borboletinhas no estômago, concluiu que tudo era o efeito colateral do acidente, do calor e do bumbum perfeito da , que estava ali fazendo o seu trabalho e nada mais. Não podia se permitir ficar naquele estado de encantamento, pelo contrário, as pessoas é que sempre ficavam encantadas por ele. Estar do lado vulnerável e exposto era novidade, e assim que colocassem o encéfalo dele de volta dentro do crânio, ele iria recuperar o controle dos seus sentidos e deixar de ter espasmos involuntários todas as vezes em que encostava nele.
Ao atravessar a faixa de areia, o burburinho que causou foi diferente e menos velado. A marca de sangue em sua camisa e o corte em sua nuca geravam uma pergunta óbvia sobre o que poderia ter acontecido, mas assim que puseram os pés na calçada e vestiu o short e a blusa que estavam na bolsa, as pessoas leram o emblema do Van Driel Resort e a indicação “salva-vidas” nas costas dela, tirando imediatamente suas conclusões.
— Afogamento?
— Meu Deus, foi afogamento!
— E esse sangue? Será que ele está bem?
Os espectadores acompanhavam aflitos e curiosos, enquanto gentilmente pedia as licenças e abria passagem. As pedras quentes maltratavam os pés de e ela, meiga e amável, ofereceu seu par de chinelos que não chegavam nem perto do número do rapaz, rindo com um sopro pelo nariz ao ver que não adiantaria nada.
— Seo… — ela cantarolou novamente, em tom de favor prestes a ser pedido.
— E eu vou queimando o casco, é? — ele cruzou os braços.
— Você não vai levar pontos na cabeça, pode ir descalço até ali. — ela manteve a sobrancelha erguida. — Se você ajudar, eu retribuo a sua visita ao meu posto e vou na tua aula de zumba.
sentiu muitas coisas com tomando a dianteira e dando comandos a seu respeito, no entanto, a frase “pontos na cabeça” lhe tirou o pouco de sanidade que restava e a cor foi embora junto. Pontos? Ninguém tinha falado nada sobre pontos. Que tamanho era a agulha? O atendimento era descontado na folha de pagamento? Ele não tinha dinheiro para isso.
E como assim aula de zumba?
— Eu já disse, é hidroginástica. — Seokmin corrigiu a loira e cedeu o par de chinelos ao piloto à contragosto.
— O importante é que você faz as senhorinhas se mexerem e vencerem a artrose. — piscou, colocando o braço de em volta dos seus ombros. — Ali, pega do outro lado.
— Só você já tá bom. — avisou, aceitando o apoio da moça.
Outra careta de Seokmin, uma que dizia “ótimo, porque se dependesse de mim você teria virado comida de peixe”. O trio começou a andar rumo ao hotel, acompanhado pela pequena plateia intrometida que fazia fotos e vídeos.
— Turista é uma graça, né? — Seokmin zombou. — Quer registar tudo que vê.
Só então percebeu os celulares apontados em sua direção e errou a passada, trôpego como um gambá bêbado. Exposição era tudo o que ele não precisava no momento, mas ser salvo de um afogamento no lugar mais tranquilo da Terra, onde nada acontecia, era o suficiente para virar notícia. Procurou se convencer de que o alarde sobre o seu resgate não ultrapassaria as fronteiras de Maragogi, pois só a ideia de ver seu lindo rosto sendo repassado viralmente pelo WhatsApp era debilitante o bastante para derrubá-lo ali mesmo, e ele não podia fazer feio na frente de . Já era muito esforço andar naquele sol com a nuca rasgada, um chinelo que não era dele e reunindo coragem para encarar a agulha sem chorar.
— Quase lá, viu? — apertou o braço dele, medindo a diferença de altura entre os dois. — Tudo bem aí em cima?
A cabeça de parecia uma panela de pressão, ainda assim, ele falou que estava tudo bem porque achou que aquela resposta faria sorrir.
E ela sorriu.
Sorriu, contudo, por puro profissionalismo, para transmitir calma e segurança ao piloto alto e visivelmente pálido. não era capaz de ver a própria nuca, mas era, e o que ela via estava lhe preocupando um pouco. Tinha agido depressa e evitado um dano maior com o estanque da gaze, mas ainda era necessário esterilizar a área, limpá-la, aplicar um anti-inflamatório que arderia um bocado e costurar tudo a sangue frio — e pelo tamanho do bico que vinha fazendo desde que tinha acordado, a salva-vidas soube que ele precisaria de alguém pra segurar sua mãozinha enquanto levava os pontos.
Ela seria essa pessoa. O pós-salvamento também fazia parte do seu trabalho, além disso, já tinha ouvido do Zé uma ou duas coisas sobre , sendo uma delas o fato de ele ser sozinho na ilha, sem parentes ou conhecidos. A solidão do rapaz a amoleceu um tanto, algo que não era tão difícil assim, pois era toda coração pulsante e isso fazia com que ela olhasse mais para fora do que para si mesma, dedicando sua vida a salvar a de outros. Era a sua vocação, seu dom inato, algo manifesto nela desde que tinha seus cinco anos de idade e pulou no mar para resgatar uma tartaruga que não precisava de resgate: pelo contrário, criança e sem saber nadar, quem precisou do resgate foi ela. Ao ser socorrida, seu pai, branco como a areia de Antunes, lhe deu sua primeira lição de biologia marinha, dizendo: “filhinha, tartarugas são, por natureza, excelentes nadadoras.”.
Mas não era uma tartaruga, era responsabilidade dela agora, e, assim que finalmente chegaram ao hotel e encontraram a dona Vilma na recepção, orientou a funcionária a respeito das suas outras responsabilidades.
— Vilminha, por favor, aciona alguém pra ficar no meu lugar lá no posto. E outro piloto pra trazer o Zé e o pessoal dele de volta. — ela bateu levemente no abdômen de , indicando a sua missão. — Eu vou com esse pequenininho aqui na enfermaria. Pega uma toalha pra ele?
A recepcionista lembrou do rosto do rapaz (que ela não tinha esquecido ainda) e sofreu ao vê-lo naquele estado, correndo com a toalha e pedindo para que a mantivesse informada. A salva-vidas, entendendo a fascinação, apenas concordou e se dirigiu à ala hospitalar com o galã coreano pendurado nela. Seokmin estava pendurado nela também, mas quando olhou no relógio, viu que estava quase na hora da sua aula.
— Eu tenho que ir. — ele estalou um beijo na bochecha da moça. — Te vejo mais tarde?
— Vou estar no mesmo lugar de sempre.
O lugar de sempre era o posto dela, no quadrante oeste da piscina natural, para onde Seo tomava a balsa todos os dias somente para desfrutar de alguns minutos de atenção da loira antes de começar a trabalhar. era sua musa desde que se entendia por gente, cresceram juntos ali na ilha, aliás, ele que a ensinou a nadar depois do episódio da tartaruga. O tempo lapidou a admiração mútua que sentiam um pelo outro, todavia, a de Seokmin transformou-se numa paixão que não conseguia corresponder. Até trocaram beijos que incendiaram o coração do rapaz, mas, no dela, mal acenderam uma fagulha.
Há muito que ela não sentia sequer uma faísca, na verdade. Isso porque não se permitiu, porque muito cedo decidiu focar toda a sua energia em fazer seu próprio nome, em construir sua carreira e não depender unicamente de ser a…
— Senhorita Van Driel, o enfermeiro está aguardando. — Vilma avisou .
perdeu as forças das pernas novamente. Van Driel? era dona daquilo tudo?
— Só , Vilma. — ela reforçou, derrotada, e levou a tiracolo pelo corredor iluminado, parando numa porta branca de ambulatório. — Prontinho. Tá entregue.
— Você vai ficar comigo, né? — segurou as mãos dela num impulso, entrando e sentando-se na maca.
Ela ia, mas achou o desespero dele engraçado. E fofo também.
— Sério? — ela apertou a mão dele antes de soltá-la. — Você tem medo de agulha?
— Não, mas tá doendo tanto que… — ele mais uma vez quase tocou o corte.
— Vamos manter suas mãos ocupadas. — entrelaçou os dedos dele entre os seus. — Já vai passar, o enfermeiro é excelente.
— Você também é. — deixou escapar. — Quer dizer, eu não vi, mas tenho certeza de que foi um mergulho incrível. Você agiu tão rápido e cuidou tão bem de mim…
De repente, ele não sabia para onde olhar. Achava que estava tímido, mas como poderia ter certeza? Timidez não combinava com sua autoestima delirante e raramente ele experimentava uma sensação assim, que esquentava as pontinhas das suas orelhas e avermelhava seu rosto, enquanto o oceano que tinha no lugar dos olhos continuava encarando-o.
— Não foi nada, é o meu trabalho.
— Eu não sei como agradecer. Tecnicamente, você é minha chefe.
suspirou, cansada.
— Meus pais são seus chefes. — ela corrigiu. — E meus também. Eu sou funcionária daqui tanto quanto você.
O piloto pensou em perguntar “por que?”, mas se conteve. Na sua cabeça (ou nos 75% que sobraram dela), não fazia sentido trabalhar sem necessidade, porém, aquela era a concepção dele que, perto de um propósito de vida como o de , perdeu bastante força e pareceu bem vazia. Não conseguia se ver abrindo mão de nada em prol de alguém, especialmente um desconhecido, mesmo assim, ali estava , gastando uma manhã inteira de babá dele.
Ela era mesmo incrível.
— Posso te perguntar uma coisa? — ganhou um aceno positivo de . — Como você sabia meu nome?
O rubor ganhou a face dele toda e fez ele apontar a vista para o chão — o que era, no mínimo, inédito. Em uma situação como aquela, ele naturalmente manteria um contato visual inquebrável enquanto lançava seu feitiço de sedução.
— Eu ouvi chamarem você e fiquei com isso na cabeça. — ele confessou. — Bom, pelo menos na parte da minha cabeça que ainda tá aqui.
— Se serve de algum consolo, eu ouvi dizer que o coral passa bem.
— Serve sim. — foi a vez dele de rir. — Eu odiaria saber que causei algum desequilíbrio ao ecossistema.
— Só ao da sua cabeça… — ela mostrou os dentes tais quais pérolas.
— Podemos começar? — o enfermeiro apareceu com uma bandeja e intuitivamente apertou mais as mãozinhas presas nas suas.
— Vai acabar logo. Se você não chorar, eu te dou um pirulito. — ela prometeu com mais um sorriso.
— Chorar pra que, homem? Tá até famoso! — o enfermeiro avisou. — Já visse a página da ilha, ? O Seokmin deu foi entrevista falando do resgate.
— O resgate que eu fiz?
— Ele falou no teu nome o tempo todo. E do rapaz aqui também. Kim, né?
“Puta que pariu, Seokmin.”
ficou petrificado e o choque de ter seu nome circulando num portal de notícias foi o seu anestésico durante os pontos, mais rápidos e indolores do que ele achava que seriam, justamente pelo fato de ele não estar nem pensando neles. Sentiu alguma coisa semelhante a cócegas na nuca e de novo o ímpeto de meter a mão e coçar e, apesar do ferimento limpo e fechado, a dor de cabeça não o abandonava, vinha agora na forma de enxaqueca, toda do lado esquerdo, rachando de susto pelo seu nome divulgado aos quatro cantos.
Tomou um fôlego profundo. Talvez estivesse sendo paranoico demais. Quais as chances de uma notícia banal como aquela chegar em alguém fora da ilha? Nenhuma.
A não ser que alguém estivesse procurando.
Bem longe dali, numa sala no cassino ilegal, houve um estralar de dedos e uma gargalhada sonora voltada para a tela de um celular.
— O vai ficar tão feliz de saber que eu te achei, Kim . — cerrou os punhos. — Se prepara. Eu tô indo te fazer uma visitinha.
Continua...
Nota da autora: Olá! Essa história está sendo escrita por três autoras e as atualizações podem demorar um pouco. Esperamos que você goste e comente sempre que possível. Com carinho e com loucura, Daphne M, Ilane CS e M-Hobi.
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