Revisada/Codificada por: Calisto
Última atualização: 25/09/2024Nunca imaginaria que conheceria alguém além dos limites nos quais eu estava fadado, na verdade, quem dirá descobrir quem de fato ele era.
Se antes já éramos opostos, agora éramos mais que isso. Éramos inimigos declarados. Mas não porque eu o via dessa forma, mas sim porque era como os Deuses queriam que nos tratássemos.
Entretanto, como poderia eu dizer para ele me ver de forma diferente a essa altura? Embora meu coração e razão dissessem que era exatamente isso que eu devia fazer? Para eu gritar aos quatro ventos, e principalmente para ele, que quem eu era não iria mudar. Assim como quem ele era para mim também não teria modificação alguma.
Nada disso mudaria, nada disso sequer chegava a me importar. Mas uma ameaça havia sido proclamada e uma sentença apontada para a sua cabeça.
Eu apenas o olhava com dois sentimentos que nunca achei que fosse sentir em toda minha existência: desolação e desespero. Um desespero horroroso, pois, enquanto ele me encarava de volta, eu já tinha uma resposta. E não era aquilo que eu queria ouvir, não era aquilo que eu precisava naquele momento. E com isso, vinha a desolação, me perfurando como uma flecha intrusa. A resposta que eu sabia que viria não era uma que eu iria aceitar.
E eu sentia que ele também sabia disso.
— Não ouse dizer nada — eu proferi com a minha voz embargada.
— Aruna...
— Não! Cale a boca! — Fechei meus olhos com raiva, e as lágrimas já rolavam de meus olhos.
— Eu nunca irei te esquecer, saiba disso.
— Michael! — gritei, me jogando com meus últimos resquícios de força, meus braços prontos para segurá-lo e nunca mais soltá-lo.
Mas então eu caí outra vez no chão lamacento, a chuva se misturando com as minhas lágrimas. Todos eles sumiram, incluindo ele. Incluindo Michael, aquele que nunca seria meu.
Num dia como outro qualquer,
Duas almas irão se encontrar.
Nenhuma delas irá entender,
Mas com certeza hão de se conectar.
As duas faces de uma mesma moeda,
Ao mesmo tempo tão distintas para se
reparar.
Mas se esse mundo, se esse mundo fosse deles?
Ah, se esse mundo, se esse mundo
fosse deles,
Em tudo eles iriam aproveitar.
Pois se esse mundo, se esse mundo fosse deles,
Com nada teriam com que se preocupar.
Apenas de se entenderem e se amarem
Até o fim dos tempos chegar.
🍃🎸🍃🎸🍃
Minha história de vida não tem muitos rodeios.
Quero dizer, para mim ela parece ser muito simples. Simplesmente complicada, mas simples.
Sou um jovem de recém-feitos 22 anos, carioca da gema amante de erva-mate e talvez um dos poucos fãs restantes de My Chemical Romance desse Brasil. As pessoas realmente não têm mais bom gosto... Ah não! Espera aí, deixa eu reformular isso: elas nunca tiveram. Não que queiram saber também disso, mas, eu — infelizmente — sou de uma família rica. Onde está a parte infeliz disso? Pois bem, todos votaram no maldito 17 e eu sou único inimigo declarado do Bolsoliro da minha casa cercada de idiotas. Isso já deveria dizer muito sobre quem eu sou, certo?
POIS NO CASO NÃO, NÃO DIZ!
— Cadê meu sachê de erva mate?! — gritei, esperando que algum tipo de divindade me mostrasse onde diabos meu amigo tinha enfiado meu pacotinho de chá.
— Ô, maconheiro, tá na gaveta de cima do quarto armário! — Felipe respondeu aos berros do segundo andar da sua casa de mauricinho filhinho de mamãe. Ele, por um tempo, achava que erva-mate era algum outro nome para falar da famosa e conhecida verdinha (que eu também não dispensava, mas isso não vem ao caso agora).
Pois é, o Felipe podia ser um pouco duro às vezes*.
Olhando o recinto que me encontrava neste exato momento, eu realmente acreditava que, muito provavelmente, se a casa da falecida avó de Felipe pudesse andar e tivesse pernas, chutaria as outras casas menos favorecidas que ela pela rua.
Juro, às vezes eu me sentia EXTREMAMENTE observado, Felipe dizia que a quantidade de erva estava me fazendo ficar doido, porém, de uma coisa eu sabia: eu não era doido nem maluco.
Eu não sabia explicar, mas a casa de Felipe tinha aquela aura de pessoas que facilmente chutariam pobres na rua por pura diversão. Talvez ela chutaria a minha cara também se eu não ficasse esperto. Mas também imagino que ela ficaria cansada em algum momento e, ao invés de simplesmente parar de chutar a cara dos outros que ela consideraria inferiores a si, Petúnia — como resolvi chamá-la a partir de agora — olharia para você e diria: "Você não merece um chute meu" e iria embora de forma elegante e até mesmo eloquente sem sequer olhar para trás e conferir seu estado. E você ficaria extremamente triste ao mesmo tempo que confuso de não receber um chute dela, entendem? Ela seria alguém esnobe, mas impactante nesse nível.
Sei que parece uma doideira sem fim o que estou dizendo, mas às vezes eu crio personalidades para coisas inanimadas na minha cabeça. Tornava a minha vida mais divertida.
Aliás, eu estou aqui comentando sobre a casa dos pais de Felipe, mas eu nem posso falar muita coisa, pois eu também nasci em um berço de ouro assim como ele.
Mas francamente, quem tem 6 tipos de armário espalhados pela cozinha sendo que nem há tantos utensílios para preenchê-los? Pessoas ricas com certeza não sabem gastar dinheiro com coisas de real importância e utilidade, mas a mãe de Felipe havia batido todos os recordes com a mobília de sua residência.
A mulher havia comprado cubos de gelo importados! Entendem isso? O gelo era de grife. O gelo.
Gente rica me dava nos nervos. E não, não venha com esse papo, de "mas, Michael, você é rico também pipipopo". Não, meus pais eram ricos. Eu era apenas uma sanguessuga, ou melhor, já tinha sido. Mas isso eu conto depois.
— Ei! Que merda que tem na composição desse gelo para ele ser tão importante assim? Hidrogênio de Júpiter? — indaguei, olhando para aqueles cubos que foram recém colocados na bancada por mim mesmo com certa irritação.
— A água é importada, estrupício! — gritou de volta Felipe, se aproximando enquanto vinha da sala.
—Igual a da Colombo*?
— Melhor que a da Colombo, meu companheiro*. Muito melhor. — Felipe então colocou uma das taças que estavam em suas mãos na mesa e retirou um cubo de gelo do balde metálico, dando um sorriso satisfeito quando esse caiu com um tinido perfeito na sua bebida.
Puta merda, água importada.
— Eu vou fingir que não vi isso pelo bem da nossa amizade — proferi, já revirando os olhos para a risada que se propagou no recinto.
— Que amizade? — O salafrário ainda teve a audácia de retrucar.
E como um adulto muito maduro que era, tomei a decisão mais plausível como resposta ao meu amigo:
Dei a língua para ele.
Após essa breve discussão, ouvi meu celular apitar e fui em busca do aparelho. Era uma mensagem de Davi.
Podemos dizer que ele era a "cota de classe média" do nosso grupo de burgueses privilegiados. Morador da periferia da zona norte do Rio de Janeiro, Davi chegou até mesmo a trabalhar em um dos muitos clubes que nossas famílias frequentavam quando tínhamos por volta dos nossos 17 anos.
Notaram que o verbo trabalhar está no pretérito?
Pois é. Ele foi despedido dentro de apenas uma semana por ter jogado um copo de uísque na cara de Felipe e ter mandado ele ir pro quinto dos infernos por ser, segue-se na íntegra as palavras proferidas por Davi naquele dia fatídico: um engomadinho de merda que não tem um pingo de empatia pelo trabalhador brasileiro de bem. Palavras dele, não minhas. E isso tudo ocorreu por Felipe ter pedido para ele trocar sua bebida umas 5 vezes seguidas e ele ter perdido a paciência com Lipe.
E a pergunta que eu faço é: e tava errado?
Colocar um engomadinho filho de papai que está no auge da puberdade junto de um menor aprendiz no mesmo ambiente só pode acabar em uma única coisa: caos.
Você deve estar se perguntando, neste exato momento, onde eu, Michael de Luna Cesarini — reles mortal inútil —, estava nisso tudo. Bom, fico feliz em dizer que vi o quebra pau de camarote e ainda defendi Davi das frescuras do imbecil do Felipe.
Depois disso, meu querido amigo — junto comigo — foi convertido por Davi para o mundo das pessoas com cérebro e nunca mais nos separamos.
E foi aí que nossa linda e comovente amizade começou. Fofo, não é?
🤓🌱 Brilha Linda Flor
| Hey, JK, tem certeza que querem que eu acompanhe vcs?
| Não sei se isso seria uma boa ideia
| Aliás, não sei nem se este evento seria apropriado para mim!
| Acho que é melhor deixar para outro dia...
| Tô vendo tudo preto
| ai minha pressão
🔗💔Emo Artista
Davi de Almeida Souza |
Para de palhaçada senão te dou um murro |
Te catequizo na porrada que vc bem sabe |
Como que esse evento não seria "apropriado" para vc?! |
Seu filho de Cruz Credo 😡 |
Nós só vamos tocar no bar do Juninho como sempre, não se esquece que dinheiro não sai da bunda, a não ser que a gente se torne stripper.|
NÃO VAMOS VIRAR STRIPER|
Às 23:00 chegamos aí. |
Se arruma krlh |
Senão a voadora chega no meio da sua cara |
Davi de Almeida Souza |
Para de palhaçada senão te dou um murro |
Te catequizo na porrada que vc bem sabe |
Como que esse evento não seria "apropriado" para vc?! |
Seu filho de Cruz Credo 😡 |
Nós só vamos tocar no bar do Juninho como sempre, não se esquece que dinheiro não sai da bunda, a não ser que a gente se torne stripper.|
NÃO VAMOS VIRAR STRIPER|
Às 23:00 chegamos aí. |
Se arruma krlh |
Senão a voadora chega no meio da sua cara |
— Ei, se apressa que a gente vai sair às 23 pra chegar meia noite — avisei em voz alta para Felipe, que havia ido ao segundo andar enquanto eu guardava meu celular depois de responder as mensagens desesperadas e sem nexo de Davi.
Foi aí que notei que nem eu e nem Felipe tínhamos a pontualidade como uma grande qualidade sobre nossa personalidade... tinha que ter marcado com Davi às 10 da noite para a gente conseguir chegar lá cedo e aproveitar alguma coisa. Bom, agora a gente que lutasse.
Retomei a minha busca de ir atrás de algum sachê de erva-mate para fazer meu chá e deixar meu dia mais feliz, enquanto também ia dando uma olhada na cozinha mais uma vez. Não sei vocês, mas eu gosto de observar a casa dos outros quando eu entro nelas. Sim, eu estou quebrando a quarta parede. Gostaram?
Passei por todos os armários da mãe de Felipe e só fui os achar no sétimo e último armário, na gaveta de cima. O 7 realmente era meu número da sorte. Depois da minha pequena aventura atrás do meu tão precioso chá, botei a água pra ferver e me joguei no sofá. Estava passando na GNT — canal de mãe divorciada com três gatos em casa, eu sei — um programa que falava sobre os mais recentes acontecimentos do país, e resolvi prestar atenção no que a moça com laquê no cabelo falava:
— Especialistas do país inteiro estão em busca de descobrir por que as mudanças climáticas e ambientais estão assolando as regiões do Norte e do Nordeste do Brasil. Um dos pesquisadores da UFRJ comenta sobre o caso: "Não se pode culpar apenas o desmatamento ou quaisquer outras ações antrópicas dos recentes acontecimentos nessas regiões. Alguns casos aconteceram sem nenhuma explicação iminente, tanto que chega a parecer até algo sobrenatural. Embora tenhamos ciência do quanto o ser humano pode destruir a natureza com as próprias mãos, e não podemos descartar que tais anormalidades podem ter sido iniciadas por nós". Mais pesquisadores e ONGS estão se disponibilizando para ajudar nessa questão.
A repórter então olhou para a outra câmera e deu um sorriso radiante como se nada tivesse acontecido a alguns segundos atrás e a notícia não fosse lá tão preocupante assim.
— E agora vamos para os esportes! A Copa América está dando o que falar! Estamos aqui com o repórter Otaviano que-
Revirei os olhos e mudei de canal na mesma hora.
Mas que porra? Agora além dos babacas ricos como ele ferrando com tudo, até mesmo as forças desconhecidas do universo decidiram terminar de desgraçar a vida do ser humano! Brasileiro não tem um dia de paz mesmo.
— Tá fazendo petróleo dentro desse banheiro, Lipe?! — gritei, impaciente, me esparramado no sofá em seguida.
— Tô me preparando pra dar na tua cara, isso sim!
Eu não disse? Linda amizade. O amor e o carinho chegavam a transbordar!
— Ai, ai, o amor é lindo, não é mesmo? — confirmei comigo mesmo em voz alta.
— Não sei para quem — choramingou Felipe de forma dramática e sofrida enquanto descia as escadas e se aproximava do sofá onde estava sentado. — Eu só queria um pouco de chamego, um pouco de reciprocidade. E sabe o que eu ganho? Exatamente: nada. A vida não está fácil para o Felipinho aqui.
Balancei a cabeça, segurando um riso. Felipe não pareceu notar e voltou a endireitar suas roupas.
— Diz aí, como eu 'tô? — Deu uma pequena voltinha mostrando seu grande e lindo sorriso.
Acreditava seriamente que aquele sorriso poderia curar a alma de quem o olhasse de tão brilhante que ele era, e Felipe não tinha a menor consciência sobre essa característica poderosa que possuía. Eu nunca fui muito de demonstrar o que eu sinto, algumas pessoas têm certa facilidade para lidar com emoções, essa era uma dádiva que eu não detinha. Mas eu o amava e ele sabia disso.
Agora chega de boiolagem porque eu sou emo e tenho uma imagem a preservar.
E falo sério sobre minha imagem porque, hoje em especial, eu tava um grande gostoso. Eu usava uma das minhas calças pretas de couro sintético preferida, pois sou protetor dos animais. Respeita minha história, carai! Juntamente à minha regata de marombeiro, que era preta, diga-se de passagem, e, fechando o meu visual, minha jaqueta preta de botões na qual meus dois melhores amigos e família sempre que viam a chamavam de: jaqueta de motoqueiro.
Ratificando mais uma vez: eu estava um tremendo de um gostoso. Mas como carioca é traumatizado por natureza, tenho certeza que, se eu estivesse em cima de uma moto, as pessoas iriam fugir de mim quando eu passasse andando pela rua. E adivinhem só qual era a cor da minha jaqueta?
Exatamente, era vermelha.
Pra dar aquela quebrada, né. Por essa ninguém esperava.
Enquanto isso, Felipe usava uma blusa branca larga com um desenho confuso no centro. Por cima, ia uma jaqueta que misturava o preto e o branco com uma gola lisa num tom escuro, e completando o look: jeans claros e alguns acessórios que ornamentavam harmonicamente o seu visual. Algumas argolas de pressão nas orelhas, pois ele morria de medo de agulhas, um cordão de corrente chamativa com uma chave prateada pendurada e várias pulseiras — tanto de miçangas quanto de correntes com pedrinhas brilhantes em ambos os braços — e até mesmo uns anéis também prateados na mão esquerda.
Meu amigo estava incrivelmente bonito, como de costume. Mas não queria aumentar o seu ego que já era tão alto quanto o monte Evereste tão facilmente. Então mantive minha cara de paisagem enquanto ele me encarava com expectativa.
— Estou pronto para parar o baile todo?
— Você está quase tão bonito quanto aquela cacatua que tentou te bicar no zoológico quando éramos menores — respondi, já rindo da cara enfezada de Felipe.
— Eu estou falando sério, seu zé ruela, eu quero estar arrumado para ir tocar hoje. — Felipe cruzou os braços em frente ao peito com a cabeça jogada para o lado me encarando. — Quero que seja sincero comigo, Michael.
— Tudo bem, Margarida, sem estresse. — Levantei as mãos, me rendendo. — Você está irresistível, Felipe.
— Eu sabia! — comemorou, balançando o punho no ar numa dancinha da vitória desajeitada. — Esse cabelo me deixou um gostoso, não? Resplandece minha pele alva e minhas qualidades.
— Sua pele o que? — Indaguei fazendo uma careta para o seu vocabulário do nada rebuscado. — De onde você tirou essa palavra?
— Davi — Respondeu e eu concordei com a cabeça me dando por vencido pois agora fazia sentido. Não subestimando a inteligência do meu amigo, mas também já subestimando um pouco. — Acha que o Enio irá se impressionar com meu visual hoje? Ou até mesmo ficará chocado com minhas palavras rebuscadas?
Só Deus sabe o que rola entre aqueles dois, nem me perguntem sobre isso, como já disse antes e repito: sou um mero espectador das gayzices alheias.
Felipe parecia esperançoso enquanto arrumava mais uma vez seus cabelos ralos e platinados. Eu me levantei do sofá dando de ombros.
— Não acho que ele vá ligar... Enio não é de se importar com muitas coisas — olhei de cima a baixo para meu amigo de forma debochada —, principalmente com o que você fala ou deixa de falar né, Lipe?
Felipe revirou os olhos e colocou a palma de sua mão na testa com uma pose de derrota.
— Por que é tão difícil beijar gente bonita hoje em dia? — lamentou de forma sofrida e dramática.
— E por que você só não aquieta essa sua bunda por um dia? — sugeri, rindo, e indo de volta para a cozinha sentindo um cheiro estranho mas familiar que me fez parar no meio do caminho. — 'Tá sentindo esse cheiro?
— Que cheiro? — Felipe se aproximou e parou do meu lado. — Do que você 'tá-
Antes que pudesse terminar sua sentença, vi uma fumaça cinzenta vazando da porta da cozinha.
Nos entreolhamos e saímos correndo e gritando em direção da panela que a alguns minutos atrás tinha meu chazinho de erva-mate. Enquanto desligamos o fogo e abríamos as janelas na esperança de fazer a fumaça se dispersar pelo ambiente sem deixar rastros na casa dos pais de Felipe, eu só consegui ouvir ele me dizendo de forma esbaforida enquanto balançava um pano de prato para cima e para baixo no ar:
— Me lembre de nunca mais deixar você e o fogão próximos outra vez!
Felipe dirigia meu carro com expectativas altas para hoje à noite. Já eu, tinha um total de zero.
Tipo, eu estaria no lucro se achasse alguém interessante e com mais de 3 neurônios nessa noite, mas ultimamente não caía nenhuma rede no meu peixe... espera.
Peixe na minha rede. Falei errado*.
E ao som de 'eu boto a pistola pro alto' — o que era cômico tendo em vista que nenhum de nós nunca viu uma arma, somos meninos direitos —, a gente foi até a casa de Davi, que, diferente de nós, era pontual até demais e já estava nos esperando em frente à rua olhando para os lados igual um maluco.
— Lá se vem o cão arrependido! — eu e Felipe gritamos ao mesmo tempo enquanto Davi nos encarava com desgosto do outro lado da rua.
— Não tem nenhuma moto passando, eu verifiquei — acrescentei, tentando acalmar Davi para ele atravessar a rua de uma vez, mas com tranquilidade. Segurança dos pedestres em primeiro lugar!
O terror de todo carioca, entretanto, não era ser atropelado, era definitivamente ver dois caras em cima de uma moto se aproximando ou virando a esquina. Às vezes, eu chegava até a ter pesadelos com isso...
Eu era uma pessoa que nasceu com a bunda virada pra lua quando se trata de fugir de assalto, tá maluco, apenas um enviado do diabo conseguiu me roubar uma vez. Agora, eu '’tava treinando pra qualquer ocasião que envolvesse correr e gritar.
E quando eu digo preparado, não é que eu esteja preparado de verdade, fala sério, meu único método é tentar seduzir o assaltante fazendo então, que ele se apaixone por mim. Essas e mais dicas vocês encontram no livro "vendida ao dono do morro".
Literatura de qualidade.
— Sabem, neste exato momento eu estava refletindo sobre as minhas escolhas de vida e me perguntando o que eu tinha na cabeça quando aceitei ser amigo de vocês — começou a falar Davi enquanto entrava no carro e Felipe dava a partida no automóvel. — Quem marca uma saída noturna às 11 horas pra chegar à meia-noite?! Eu deveria estar estudando agora ou vendo Spy X Family!
— Saída noturna? — Felipe começou a encarar Davi com as sobrancelhas arqueadas em descrença no banco da frente, mas logo voltou a olhar para o trânsito com uma risadinha desacreditada. — É sério isso?
Davi fingiu que não escutou e ainda olhava para mim com uma cara de julgamento claro, já que fora eu quem havia dado sinal verde para Felipe marcar de tocarmos no bar daquela vez. E ele repetia com os lábios: "onze horas?"
— As pessoas voltam para casa às onze horas! — disse Davi de forma exasperada. — Não o contrário!
— Regra básica de convívio social, Davizinho. — Coloquei a mão em frente ao meu peito como se fosse cantar o hino nacional para passar credibilidade ao meu companheiro claramente mas bem dotado de inteligência do que eu. — Se alguém marca um horário com você, no mínimo você tem que chegar meia hora depois, meu consagrado. Esqueceram da vez que eu cheguei no horário exato da festa do Pedrinho e a avó dele fez eu arrumar todos os salgadinhos da festa com ela?
— Aquela velha que ficou dando em cima de você a festa toda? — Lipe indagou, soltando uma gargalhada ainda mais alta enquanto dirigia o veículo.
— Por favor, não citar esse acontecimento, ainda fico arrepiado. Mas a mulher era super gente fina, acho que, se eu tivesse doidão, poderia ter aceitado ser o brinquedo sexual dela — disse, divagando.
E essa foi um daqueles momentos em que você percebe que certas coisas são feitas para ficarem apenas e unicamente na nossa cabeça porque, sentado no banco de trás, eu senti o olhar de Felipe pelo retrovisor e de Davi como de quem acaba de ouvir que eu tinha pegado o pai deles, ou no caso, a avó.
— Vai se tratar, garoto! — gritaram para mim tentando me dar tapas pelo vão dos assentos da frente.
Enquanto tentava me esquivar de seus tapas, como se fosse ensaiado, ambos pararam de forma abrupta quando uma melodia conhecida começou a reverberar na estação de rádio que estava tocando e começaram a cantar a música que, por coincidência ou por pura sorte do destino, estava tentando me ajudar. Um tanto tarde demais, diga-se de passagem, essa "ajuda", mas ela fez com que as pestes parassem de me bater por alguns minutinhos
— I've got to break free! — Eles cantavam tão alto que pareciam mais gritos desesperados de galinhas fugindo do galinheiro do que música. Pff, emocionados. — God knows, God knows I want to break free!
E assim fomos chegando sem muita demora, com Queen como nossa trilha sonora, ao barzinho que seria o felizardo da vez por nos ter como cantores da noite.
Era sábado e as ruas estavam bastante movimentadas e cheias de gente. Coloquei minha cabeça um pouco para fora da janela para sentir o vento no meu rosto e apreciar a vista. Ouvi Davi me avisando para ter cuidado e eu apenas o respondi de forma positiva que teria, como sempre.
Era possível ver luzes para todo canto que você olhasse, e um mar de pessoas que não parecia ter fim, embora já fosse tarde da noite. Uma disputa de sons que não acabava mais em lados diferentes da avenida, e embora eu reclamasse daquele tipo de coisa, às vezes, eu gostava disso tudo. De toda essa bagunça. Fazia eu me sentir vivo. Gostava de admirar as ruas, de explorá-las e conhecer novos lugares. Não era à toa que fui apelidado de '"cachorro de madame" por meus amigos.
A janela é um local sagrado, se alguém te dá a janela, case na hora.
Muitas vezes, esquecemos de ver o mundo ao nosso redor. A gente olha, mas não vê de fato, saca? Esses eram um dos momentos que eu me dedicava inteiramente a apenas parar e contemplar, nem que fosse minimamente, o que me cercava e que muitas das vezes pouca importância eu e o resto do mundo dava.
Eita, rimou.
Depois da minha breve viajada porque não posso desbancar os grandes filósofos — sou um cara humilde —, fomos adentrando mais caminhos do que conseguia contar, nos afastando mais e mais da parte urbanizada da cidade e chegando perto da praia e da natureza que a cercava. Quando Felipe finalmente conseguiu achar uma vaga embaixo de uma árvore simpática, foi que me dei conta que havíamos parado bem de frente ao barzinho que ficava em uma das muitas subidas de Grumari.
Algumas pessoas poderiam achar que aquilo era um quiosque, mas não. E nem a fachada do estabelecimento enganava quem estivesse disposto a encontrar aquele lugar que, na minha opinião, era fantástico. O bar era bem movimentado, mas, em contrapartida, não era tão bem frequentado...
Já caí na porrada com três mascotes de satanás por aqui. Não que eu seja uma pessoa violenta e tal, mas é que meus piercings e algumas das minhas tatuagens não fazem muito jus a minha personalidade de Maria mole.
Mas como dizia minha avó: nada que uma boa paulada nas costas não resolva.
Só que hoje eu 'tava com boas expectativas, sentido que seria uma noite ótima, talvez até acontecesse algo de novo na minha vida monótona e pá.
— Ei, maconheiro, vai ficar vendendo beleza aí no carro? — Felipe perguntou num tom um tanto impaciente.
Já falei pra ele que erva mate e maconha são coisas diferentes, teve um dia que ele gritou tão alto no shopping que o segurança até veio me revistar!
Vocês têm noção disso? O cara passou a mão no meu corpinho! E nem pagou uma coxinha antes! Fiquei deveras incomodado.
— Já falei pra você parar com essa merda, eu só fumei 3 vezes — murmurei enquanto saía do carro.
— 'Tá, 'tá, tanto faz. — Felipe deu de ombros.
Davi se mantinha em silêncio ao seu lado, observando os arredores um tanto mal iluminados que contrastavam com o letreiro de neon forte do bar.
— Davi, você 'tá legal? — indaguei, já me aproximando de sua figura com feições incertas e mãos um tanto encolhidas para perto de seu peito.
— Se eu disser que não — começou, levantando um pouco a cabeça para me dar um sorrisinho sem graça —, vai mudar alguma coisa?
— Não, absolutamente nada — Felipe se intrometeu antes que eu pudesse responder, enlaçando seu braço no pescoço de Davi, se enfiando entre nós dois. Balancei a cabeça em negação.
— Mas, aí, relaxa Davi. Não precisa ficar nervoso, eu 'tô com você.
— Isso não me acalmou nem um pouco. Na verdade... — Ele levantou o indicador de sua mão esquerda. — Isso me deixou é mais preocupado ainda.
Não era como se meu amigo tivesse fobia de pessoas, mas ele era o mais sossegado de nós dois e preferia a calmaria do silêncio, não era de se surpreender que, muitas das vezes, Davi era nosso mediador. Apesar de ele não achar, eu sempre achei que ele era o pilar que sustentava da inconstância que eu e Felipe representávamos.
— Ah, qual é! — gritou Felipe de forma ofendida enquanto Davi retirava o braço de Felipe de cima dos seus ombros e se afastava do nosso amigo.
Eu tentei segurar o riso, mas foi inevitável. Felipe me fuzilou com o olhar, mas tal feito não me deu medo nenhum.
Pelo contrário, me fez rir ainda mais alto e esquecer que eu estava tentando segurar a gargalhada há poucos segundos atrás. Davi me acompanhou na risada, porém de forma mais contida, mostrando suas duas covinhas fundas que enfeitavam seu rosto singelo.
Felipe bufou farto de nós dois, e foi em direção para a parte de trás do carro pegar algumas das nossas "tralhas" que trouxemos. Eu e Davi o seguimos, ainda que com a vista borrada pelas poucas lágrimas causadas pelo nosso ataque de riso repentino, para ir ajudar o enfezadinho, que tirava uma guitarra, um baixo e um amplificador de dentro da mala do carro. Ele agora também segurava suas baquetas da sorte que, por sinal, eram belíssimas.
Mas também, fui eu que comprei para ele. Meu gosto era impecável em qualquer coisa que eu me proponha a comprar, modéstia parte.
Tendo fechado a mala do veículo e nos organizado, nós finalmente fomos saindo do estacionamento com todo o equipamento que ia ser usado para a noite de hoje, já que o próprio estabelecimento já possuía alguns outros instrumentos e materiais que seriam necessários para uma ótima notícia para os que não gostam de carregar peso! Ou seja, para euzinho aqui.
"Ah, mas você puxa mais de 40 kg no supino toda terça e quinta, mimimi", são coisas completamente diferentes! Mas vocês claramente não estão prontos para essa conversa.
Sob a luz de uma lua nova brilhando naquele céu estrelado — hoje em especial ela estava ainda mais linda do que de costume —, senti um vento um tanto frio passar por mim como um abraço, o que fez com que meus cabelos negros esvoaçassem e a pele de meus braços se arrepiassem.
A sensação era... reconfortante.
Por alguma razão desconhecida por mim, mesmo que eu nem sequer morasse tão perto de áreas como as que eu me encontrava agora, eu amava a natureza e estar no meio dela. Me cagava de medo de estar perto de matas e florestas à noite? Com certeza! Morria de medo do homem do saco aparecer e me raptar.
Mas, de qualquer forma, a sensação de tranquilidade e paz que eu sentia em lugares como esse ainda eram muitos maiores. Eu sentia algo semelhante a... pertencimento. Não sei por que ou como, mas essa era a palavra que mais se encaixava para tentar explicar essas sensações estranhas, porém comuns, que eu tinha no meu dia a dia.
Mas voltando somente para a lua e seu brilho âmbar, eu sempre gostei de observá-la. Era como se fossemos um só. Coisa de maluco, eu sei.
— Estão sentindo esse cheiro? — perguntei, enquanto caminhávamos em direção ao bar.
— De mijo e corote? — Davi rebateu de uma forma debochada. — Se for esse o cheiro, estou sim. Até demais, diga-se de passagem.
Pior que o cheiro 'tava até que mais forte que o normal mesmo. Homem era uma desgraça, sério. Nem pra ir ao banheiro servia. Felizmente, sou uma fada muito bem educada, obrigado.
— Caralho, você conseguiu estragar o clima, né, vascaíno de Taubaté? — disse Felipe, rindo. Sim, o único defeito de menino Davi era torcer 'pro Vasco.
Era como mamãe sempre me disse: "tava bom demais para ser verdade."
— Não era esse cheiro que eu estava me referindo. — Ele fez uma careta para Felipe e se voltou para mim. — Mas a brisa de novidades, hoje, a noite promete!
🍃 Glossário dos Humildes 🎸
br> ²Falei errado – Meme de um homem que erra sua fala em entrevista para a rede Globo.
³Meu companheiro – Meme de como Lula se refere aos outros quando conversa.
⁴Felipe pode ser um pouco duro às vezes* – Meme da dublagem do anime de Naruto. "O Naruto pode ser um pouco duro às vezes."
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre."
— Mensagem, Fernando Pessoa.
Dia 12 de setembro
As folhas das árvores faziam uma sinfonia calmante quando o vento batia nelas, levando algumas de suas folhas e algumas pétalas de flores a esvoaçarem e dançarem pelo ar.
O céu estava limpo de nuvens, Guaraci¹ com seu Sol agraciava a floresta naquela manhã tranquila, e seus raios quentes resplandeciam seu brilho no grande lago que se localizava no coração daquela mata.
Estava deitado em um grosso galho de árvore que ficava bem no alto, eu conseguia ter uma vista privilegiada de tudo e todos daqui de cima. Meus cabelos balançavam junto do vento refrescante que acariciava minha pele como um abraço aconchegante. Comecei a assobiar uma melodia que aquela bruxa velha havia me ensinado para espantar energias ruins, enquanto balançava meus pés virados para trás no ritmo.
Tudo estava em completa harmonia e... paz. A sintonia que sentia com aquela floresta era surreal e um sentimento totalmente único e inigualável me consumia.
Estava prestes a fechar os olhos e aproveitar mais daquela brisa refrescante e familiar, porém, de repente, senti uma presença se aproximando da árvore em que estava e me virei para olhar para baixo.
Uma grande serpente de fogo se aproximava de mim.
Suas escamas se mesclavam em tons amarelos, laranjas e vermelhos de forma esplendorosa. As chamas de fogo ficavam crepitando por cima delas e isso não parecia afetar em nada. Muito pelo contrário, aquilo só trazia mais imponência a sua figura e, até mesmo, grandeza.
Revirei os olhos para a serpente e pulei do galho em que estava para um outro mais baixo me aproximando de si. As árvores da floresta em sua maioria tinham galhos grossos e fortes, não precisava me preocupar em me pendurar nelas. Além do mais, eu e a floresta éramos amigos de longa data. Eu sabia que podia contar com ela, assim como ela sabia que podia contar comigo.
A floresta sempre viria em primeiro lugar para mim.
O animal com suas chamas ergueu a cabeça para mim e eu lhe dei um sorriso ladino.
— Já voltou, Boitatá? Ou deveria dizer... Luca? — Acenei com a minha mão livre e a serpente pareceu fazer uma careta para mim. — Como foi do outro lado do ty²?
A serpente então encolheu seu corpo escamoso e flamejante até virar uma pequena bola de fogo quente. Quando o fogo ficou mais forte, eu fechei um pouco os meus olhos devido a luz incandescente. E dali saiu, em toda sua beleza e esplendor, meu melhor amigo: Luca.
Possuía um cabelo com os mesmos tons dos caules das árvores daquela mata, seus olhos eram também da mesma cor — só que um pouco mais claros —, me fazendo lembrar um pouco do mel que as abelhas produziam para nós de tempos em tempos. E, mesmo com o contato excessivo do Sol, sua pele era branca como uma pérola imaculada.
— Ocorreu tudo bem, Aruna. Ou deveria dizer Curupira? — disse com um sorriso zombeteiro brotando de seus lábios cheios. — Não gosto de ir para fora da kaa³, mas quando Cuca diz achar necessário, nós-
— "Apenas obedecemos sem nada perguntar" — completei, imitando o tom de voz daquela velha rabugenta e balançando meus braços. — Eu sei, Luca. É só que... eu queria entender, sabe? Gostaria de conhecer mais sobre os abá⁴.
Luca me encarou com um olhar complacente, tinha resquícios de pena ali. E eu odiava isso. Mas mantive meu rosto do mesmo jeito: inabalável e sereno.
— Você sabe que Cuca não quer nenhuma das lendas saindo da ka'a. São as regras, Aruna. Você sabe disso melhor do que ninguém.
Eu revirei os olhos, completamente cansado. Cansado das regras, das limitações e, em parte, de ser quem eu era. Mas não iria exprimir isso para Luca. A situação dele era muito pior que a minha.
Eu era o Curupira. O demônio da floresta, o que confundia e desnorteava caçadores e os fazia se perderem pelas matas em puro pavor. Sempre gostei de me divertir mais às custas dos abá que tentavam entrar no nosso lar do que os expulsarem de vez. Era uma raça um tanto quanto perturbada, não aprendiam nunca que mexer com a natureza os trariam sérias consequências e situações irreversíveis.
Sendo assim, eu gostava de me divertir quando eles ousavam entrar na nossa ka'a. Era sempre adorável vê-los gritando e se borrando de medo, essa última parte de forma literal às vezes. Mas, quando ainda era criança, Luca me achou e... Bom, aqui estava eu.
Agora fazia parte do território protegido pela Cuca, a feiticeira, que ficava no Norte dentro de uma floresta que se chamava Amazônia.
Até hoje, eu era extremamente grato por tudo que Luca e aquela velha maluca fizeram por mim, mas confesso que eu às vezes tinha curiosidade de sair.
Sempre que escalava as árvores mais altas da mata perto da divisa que ficava depois do ty, eu via "árvores" diferentes das que tínhamos na floresta. Elas eram uma mistura de branco com cinza, e não havia folhas. De noite, elas chegavam até a brilhar como a lua. Havia épocas que, do nada, eu ouvia barulhos muito fortes onde eu acreditei por um certo tempo que eram os abá atacando nosso lar.
Mas então eu descobri que o barulho vinha do céu, eles na verdade jogavam luzes incandescentes lá, que explodiam de dentro para fora num brilho incomum que eu jamais havia visto em toda minha vida. Às vezes, até parecia que elas esfarelavam em pequenas pedrinhas brilhantes enquanto desapareciam no céu.
Queria saber como eles faziam aquilo! Queria tentar eu mesmo jogar luzes no céu e contemplá-las.
Eu via a beleza, o bonito do outro mundo que se encontrava tão perto do meu, mas não podia contemplá-lo de perto. As coisas, infelizmente, eram assim.
Um dia, eu contei sobre aquelas luzes para Luca, e ele me explicou que os abá comemoravam uma coisa chamada Ano Novo. E que esse Ano Novo significava que uma nova etapa de suas vidas iria começar. Luca me explicou também que os abá contavam o tempo.
Foi difícil para mim entender este conceito, mas os abá realmente eram bons em complicar coisas que já eram complicadas por si só. Eles criaram uma coisa chamada "números", que eram vários desenhos engraçados que significavam quantidade. Nós também tínhamos números, claro, mas não desenhávamos daquele jeito esquisito deles. Luca me ensinou que aqueles desenhos engraçados eram os números que nós falávamos. E que até mesmo era possível fazer contas com aqueles desenhos engraçados.
Eu achei tudo completamente fascinante.
🍃 Alguns Bons Anos Atrás 🍃
— Observe, Aruna. — Luca começou a mexer o dedo na terra de forma confiante, eu apenas acompanhava sua mão criando aquelas formas engraçadas que eu nunca havia visto antes. — Esse aqui é o peteī (um), este é o mokõi (dois), então vem o mbohapy (três), irundy (quatro) e po (cinco). Entendeu?
— Entendi! — Me levantei de onde estava, completamente animado, recriando os números embaixo de onde Luca havia escrito na terra úmida. — E esses?
Apontei para os outros números e Luca prontamente começou a me explicar um por um com um sorriso satisfeito na sua face bonita:
— Aqui estão o poteī (seis), pokõi (sete), poapy (oito), porundy (nove) e, por último — ele então desenhou um que juntava o símbolo do peteī com um novo que não tinha visto —, o pa (dez).
Repeti todos os seus gestos na terra, completamente encantado por aquilo.
— Isso é incrível, Luca! — falei de forma animada enquanto ainda apreciava todos aqueles símbolos novos e os absorvia em minha mente. — Foram os abá que temos que espantar que criaram isso?
Luca fez uma careta e negou com a cabeça.
— Os abá que vem aqui são seres desprezíveis e vis, Aruna. — Sua voz carregava um tom solene e firme, e aquilo fez meu sorriso de outrora morrer um pouco. — Entretanto, nem todos são maus. Mas não podemos contar com a sorte. Por iss,o temos que nos proteger sempre e não deixar eles passarem do ymiri. — Ele então segurou em meus ombros e fez eu olhar em seus olhos. — Você compreende, Aruna?
— Sim, Luca. — Mantive o olhar que ele me entregava sem piscar. — Eu entendo.
Luca então voltou com sua expressão doce de sempre e concordou com a cabeça.
— Você sabe que é meu melhor amigo, não sabe, Aruna?
— Bom, sou só eu e você neste lugar — brinquei com ele enquanto ele franzia as sobrancelhas. — Se a velha fosse sua melhor amiga, eu diria que você tem sérios problemas.
Luca riu, desacreditado, e me empurrou pelo ombro. Eu o empurrei de volta. E começamos essa briguinha boba enquanto nossos pés apagavam, sem querer, os vestígios dos desenhos engraçados que significavam números da terra.
🍃 Dias Atuais 🍃
— Não querendo ser inconveniente nem nada, mas... — Eu então pulei, aterrissando com os joelhos dobrados de forma perfeita a poucos centímetros de Luca. — Por que não foi logo reportar as boas novas para a gûaîbi*? Quero dizer, você é o verdadeiro mensageiro dela.
Luca suspirou e apenas passou por mim, dizendo silenciosamente que era para eu segui-lo. Não perguntei, sequer reclamei de sua atitude, apenas comecei a caminhar em seu encalço.
Embora ele fosse uma das lendas mais fortes do folclore, ele parecia de certa forma abatido e cansado. E isso me preocupava um pouco, porém não diria o que estava pensando em voz alta. Luca nunca foi bom em lidar com as pessoas se preocupando consigo, era sempre o oposto.
Ele que cuidava de todos nós, e não nós que cuidávamos dele.
— Sabe que eu não posso contar, Aruna. — me respondeu, ainda olhando para frente, afastando algumas folhas que estavam em nosso caminho apenas com um movimento de suas mãos ou cabeça. Eu havia aprendido aquele truque já fazia alguns anos, mas sempre esquecia que eu tinha tal habilidade. Só me lembrava dela quando as folhas batiam na minha cara e a floresta parecia rir de mim e da minha falta de tato. — Aliás, se Cuca souber que você tem alguma ideia das minhas saídas para o mundo dos abá, estamos perdidos.
— Será que estamos mesmo? — perguntei num tom duvidoso, mas tendencioso, o que fez Luca virar um pouco a cabeça como se quisesse me repreender. — Pense comigo, meu caro amigo, o que eles de fato fariam conosco? Você é o Boitatá e eu sou o Curupira. Eles realmente podem fazer algo contra nós? Além do mais, temos muitos curiosos nessa ka'a.
Luca balançou a cabeça em negação.
— Você sabe muito bem que, se os deuses ficarem sabendo que estamos desobedecendo ordens, eles não terão piedade de nós. Podem jogar nossas almas no fundo das Terras Infernais de Anhangá, ou de repente — ele estalou seus dedos em frente ao meu rosto, me fazendo esquivar-se de si quando pequenas faíscas saíram deles. —, nos jogarem ainda com vida para sucumbirmos nas garras de um dos 7 monstros lendários.
— Esses monstros não existem! São histórias para assustar os curumins⁵. — Revirei os olhos. — E a gûaîbi disse que nossa existência é uma dádiva...
— Uma dádiva dada pelos deuses, Aruna. Uma dádiva que eles podem arrancar de nós a qualquer momento — proferiu solenemente Luca, e então ele se virou para mim. Seus olhos pareciam chamuscar assim como suas chamas que outrora sobrepujam suas escamas de serpente. — Não importa todas as histórias que Cuca nos contou, eles são seres divinos e eternos. Eles têm poder sobre nossas vidas, quer você goste disso ou não.
Suspirei, derrotado.
Meus estados de espírito atualmente eram uma mistura de estar de saco cheio com tudo e todos, estar extremamente curioso com o mundo ou apenas querer desaparecer sem deixar rastros para alguém poder me encontrar e confirmar que nunca mais teriam controle nenhum sobre a minha existência.
Todos nós tínhamos apenas um destino: ou irmos para o caminho de luz ou para as Terras Infernais. Era simples. Entretanto, havia boatos que nem todas as lendas de fato encontravam seu caminho por estarem de certa forma presas as suas histórias.
Lendas viviam não só dos deuses, mas também dos humanos. Os abá. E das histórias que eles contavam e espalhavam sobre nós.
Antigamente, era importante que eles soubessem que nós éramos reais, que estávamos aqui. Mas com o passar dos anos, os abá ficaram mais violentos e revoltados e começaram a nos caçar. Com isso, os deuses e as lendas mais poderosos decidiram que seria mais seguro que nós nos escondêssemos dos humanos e só interviéssemos na natureza quando os deuses achassem de extrema necessidade.
Curiosidade: os deuses nunca falavam nada.
Era tão difícil se comunicar com aqueles idiotas, diga-se de passagem. E as lendas que tomavam conta das regiões do Brasil, assim como a Cuca tomava conta da região Norte, sempre mantinha extrema cautela e restrição.
Eu peguei a época dourada das lendas. Antigamente, nós assustávamos e dávamos lições nos abá enxeridos e até mesmo buscávamos pelos nossos que estavam perdidos por aí. Eu nunca fui permitido sair do território da ka'a. Mas Luca sim. E vez ou outra ele achava várias novas lendas para nós.
Havia também momentos que Cuca conseguia rastrear lendas há quilômetros de distância com seus poderes e logo em seguida enviava Luca ou uma outra lenda que ela julgava ser competente para a trazer para nós e a deixar segura. Só conhecia duas lendas que haviam vindo da terra dos abá e me contavam histórias de como as coisas funcionavam do outro lado, mas já fazia tanto tempo que elas tinham migrado para a floresta que nem elas conheciam mais o mundo de fora, o mundo além do ty.
Então, todo meu conhecimento atual não passava de um grandíssimo nada. Era uma completa inutilidade.
Eu, ainda divagando em meus pensamentos, acabei batendo meu corpo em algo forte e rígido. Era Luca que havia parado sem aviso prévio, pois já havíamos chegado na entrada da casa da velha doida. Luca mexeu suas mãos para os lados para abrir a corrente de água, esta que se abria daquela correnteza cristalina como se fosse uma cortina. Assim que passamos por ela, a água se fechou atrás de nós e voltou a correr em seu curso normal.
A casa da Cuca era muito rústica até: uma grande caverna que ficava embaixo de uma das cachoeiras mais antigas que havia na ka'a. O lugar era um ponto estratégico, ficava bem no meio do coração da mata. Um lugar, segundo ela, que fazia seus poderes aumentarem e ficarem mais estáveis. Todavia, ele ainda ficava muito para dentro do local, sendo bem distante da divisa do ty com o mundo dos abá.
Luca voltou seu olhar para mim, como se esperasse que eu dissesse alguma coisa. Eu apenas dei de ombros sem saber muito bem o que dizer, ele pareceu convencido com isso.
Respirou fundo e voltou a olhar para o grande pedregulho que bloqueava a entrada da casa da Cuca:
— As lendas saíram para brincar hoje à noite — recitou, fazendo um símbolo em cima da pedra, no qual apenas eu, ele e mais um de nós conhecíamos sobre. — E os deuses trouxeram suas bênçãos e contas. Todas as lendas que saíram para brincar, estas contas terão que pagar. As que vieram os deuses prestigiar, seus presentes irão ganhar. Já os que se perderam no caminho, com as sete criaturas terão de dançar.
Assim que terminou o desenho, a pedra magicamente rolou para o lado e nós rapidamente entramos sem nem pestanejar, fazendo o pedregulho logo voltar para seu lugar de origem como se nunca houvesse se mexido.
Nos encaramos uma última vez e prosseguimos.
A caverna era escura e não era possível ver muito de seu caminho além das tochas espalhadas pelas paredes rochosas e cinzentas que serviam apenas como indicadores, já que não conseguia enxergar muito bem com aquilo. E naquele momento eu também não queria ampliar minha visão para ver melhor, estava com preguiça, confesso.
Até que senti um vento forte passar por mim, trazendo poeira e folhas consigo. Tanto eu quanto Luca tapamos nossos rostos com os braços e esse mesmo vento que apenas passava por nós pareceu nos circular e nos puxar de forma brusca para frente. Antes que pudesse soltar um pequeno grito de preocupação, a força do vento desapareceu e, quando tirei o braço de meus olhos de forma confusa, lá estava a velha maluca.
Cuca no momento se encontrava na sua forma humana de feiticeira, não a do grande jacaré verde e horrendo que todos temiam.
Seus olhos eram esverdeados e havia algumas sardinhas pincelando sua face negra que não parecia envelhecer nunca mesmo com sua idade mais do que avançada. Seus cabelos estavam cheios e presos num penteado exótico e bonito, a cor deles era igual a dos de Luca, mas um pouco mais escuros e extremamente rebeldes.
Ela usava itens brilhantes no pescoço e nos cabelos, suas vestimentas eram largas e coloridas de várias camadas. Uma roupa comprida que me lembrava por alguma razão uma rede, mas eu só não chamaria aquilo que ela usava de rede, pois ela não parecia exatamente com uma.
Era mais bonita do que aquilo, será que eu poderia experimentar algum dia?
— Claro que pode, curumim — ela disse em voz alta.
Eu lhe fiz uma careta.
— Eu acho que me recordo de te pedir para não ler meus pensamentos, gûaîbi⁶ — alertei, me aproximando um pouco de seu grande caldeirão que borbulhava com um líquido de cor roxa.
— Pediu? Não me lembrava. — Deu de ombros. — A partir de agora ficarei mais atenta. Mas a que devo a honra de tuas visitas? — indagou ainda nos observado.
Como consegue ser tão sonsa?
— Fico muito agradecido por isso. — Sorri falso para ela. — Apenas quis ver como estava, oras. Não posso?
— Poder, tu até podes, só é... incomum — expressou sua incompreensão.
— E o que de fato é comum, não é mesmo? — retruquei, arqueando minhas sobrancelhas, zombeteiro, porém sincero.
— Ele me viu chegando e nós viemos conversando até aqui, espero que não se importe, Cuca — Luca se intrometeu e explicou de forma educada, sendo o mediador que era.
Bufei, irritado.
— Claro que não me importo, curumim — disse a velha com um sorriso, me ignorando e voltando a se aproximar de seu caldeirão borbulhante. — O que trouxe para mim desta vez, Boitatá?
Luca ficou desnorteado, e olhou da velha para mim sem saber muito bem o que fazer. Eu apenas dei meu último suspiro de descontentamento, fora uma perda de tempo ter acompanhado Luca até aqui. Aliás, nem sabia por que eu tinha vindo.
— Acho que essa é minha deixa — disse de forma despretensiosa já me afastando. — Aadjuma⁷, pessoal-
Quando dei um passo, a velha se aproximou de mim outra vez tão rápido que eu nem sequer vi ela se mexendo, ela estava segurando um pedaço de madeira pontudo que agora apontava para meu peito. Em reflexo, eu agarrei o bastão perto da ponta e a encarei.
— Fique, Curupira. — Arregalei meus olhos, não esperando por aquilo. Ela então afastou o bastão de mim o colocando encostado na parede da caverna, seus mirantes ainda me fitando. — O que Luca me contar hoje, irá servir para tu também.
— Irá? — perguntei, confuso, apontando para meu rosto.
— Para ele? — Luca completou, mas com um tom totalmente animado, também apontando para mim.
— Sim, para ele — Cuca confirmou. — Quero que você vá junto de Boitatá amanhã para além do ty. E, para isso, tu precisas saber um pouco do que irás encontrar.
— Mas... — Luca parecia desnorteado por ela saber que eu tinha conhecimento de para onde ele ia. Já eu, não consegui segurar o meu sorriso que insistia em rasgar o meu rosto e parecia que não queria sair de lá tão cedo.
Minha vontade era de gritar e sair dando pulinhos e girar por aquela caverna inteira, mas me segurei, pois havia acabado de ganhar meu passe de ouro para sair e ver além da ka'a, além das lendas da floresta. Ganhei meu passe para enfim sair e ver o mundo.
Minha chance.
— Por que isso do nada, Cuca? — Dessa vez, queria mostrar minha gratidão, por isso não chamei a velha de... Bem, velha. Nenhum de nós sabia o verdadeiro nome de Cuca, somente os deuses. Então só poderíamos chamá-la pelo seu nome como lenda, seu nome próprio como feiticeira e humana era um grande mistério. — Quero dizer, você nunca-
— Deixei outra pessoa além de Boitatá e Boto saírem? — disse, com um sorriso pequeno nos lábios, eu concordei com um aceno. — Confesso que não queria continuar deixando o Boto saindo. Ele me traz mais problemas do que de fato informações. Boitatá estava fazendo tudo praticamente sozinho — explicou, voltando a pegar uma colher de madeira e mexer em seu caldeirão, que começou a soltar uma fina camada de fumaça. — Acho que tu serás de mais ajuda do que o Boto por agora.
Ah, o Boto Cor de Rosa. Nosso adorável Kauã.
Cuca o encontrou junto de Luca no ano, segundo os abá, de 1987.
Ele era um dos mais novos por aqui, mas adorava bancar o sabichão por saber um pouco mais do mundo dos abá. Ele nunca deixou de fugir para lá, e por isso, no fim, Cuca vendo que não poderia controlar muito sua índole, resolveu designá-lo a ajudar a procurar outras lendas com Luca. Kauã era um grande apreciador de seres, como ele bem gostava de dizer. Para mim e Luca, ele era um grande libertino, um baita de um safado. Para a velha, ele tinha uma alma livre. Mas livre até demais.
— Mas você sempre disse que eu não era qualificado para isso — retruquei, mostrando meu incômodo. — O que te fez mudar de ideia do nada?
Luca dessa vez pareceu concordar com minhas palavras, embora eu pudesse sentir um certo receio vindo dele.
Querendo ou não, estávamos falando com a patrono da nossa região inteira. Depois do Deus do Sol, Guaraci, Cuca era a segunda no comando daquele lugar. Os deuses junto com as lendas dividiram as regiões do Brasil para tentar tomar conta e controlar tanto nós lendas como os humanos. A região Norte era a mais forte de todas e, surpreendentemente, mesmo com todo o caos e problemas que ainda tínhamos, era uma das regiões mais estáveis junto com o Nordeste.
Cuca, despreocupada, cuspiu para dentro do seu caldeirão e voltou a nos dar atenção. A fumaça pareceu crescer mais e ficar ainda mais forte.
— Neste momento, eu acho que estás pronto, curumim. Sei que está. E, devido a isso, não faz sentido eu te manter aqui quando pode ajudar — explicou de forma tranquila, enquanto a fumaça espessa circulava seu corpo inteiro e a deixava com uma aura ainda mais poderosa e ameaçadora. — E então? O que me diz?
Luca se manteve quieto a conversa inteira, sem dar um pio ou uma tossida. Olhando para meu amigo e a velha maluca, eu dei um de meus sorrisos mais travessos e respondi:
— O que preciso saber para não assustar os abá?
Guaraci¹ - Deus do Sol
Ka'a² - Floresta
Ty³ - riacho, rio pequeno
Abá⁴ - Humano
Curumim⁵ - criança
Gûaîbi⁶ - velha
Aadjuma⁷ - estou indo/até logo/tchau
Não sei se outro dia haverá."
— Manhã de Carnaval, Elizeth Cardoso.
Dia 13 de setembro
Eu já estava acordado, eufórico e extremamente agitado.
Pulei entre as copas das árvores altas, assobiando algumas cantigas antigas que Luca havia me ensinado com destino a um único lugar: um dos riachos que ficava para o lado oeste da floresta.
Na verdade, estava querendo me encontrar com uma pessoa em específico, pessoa esta que sempre seria minha maior confidente e companheira. E eu precisava urgentemente lhe contar as boas novas.
Mas antes de ir até ela, queria prestar uma visita a uma outra pessoa que também era muito querida por mim.
Depois de pular mais um pouco pelas copas, havia finalmente chegado no poço o qual eu procurava. O lugar era tão bem escondido que parecia uma pequenina florestinha dentro da mata. Várias plantas circulares e fortes estavam boiando na água cristalina daquele lago, mas, no centro delas, como se o resto das plantas e rochas estivesse orbitando ao seu redor, estava uma grande e belíssima flor rosa com tons arroxeados e brancos nas pontas.
Aquele ponto cor de rosa era a protegida de Jaci.
A estrela das águas, a que era tão deslumbrante quanto as próprias estrelas que pintavam e iluminavam a noite mais escura, a grande flor amazônica que tinha um perfume inconfundível para todos aqueles que tivessem a oportunidade de se aproximarem e conhecê-la: a Vitória-Régia.
Assim que pulei da árvore e coloquei meus pés no chão um pouco úmido, pareceu que a água se movimentou um pouco, me fazendo dar um pequeno sorriso de lado.
— Aruna? É você? — Uma voz que parecia reverberar por todo lugar se fez presente.
Aquela voz doce não vinha de um lugar em específico, parecia que vinha de tudo e ao mesmo tempo do nada. A pergunta se manteve um tempo pelo ar, sumindo aos poucos.
— Sim, sou eu — disse, me aproximando e me sentando na beirada do lago. — Me permite? — Apontei para os meus pés, indicando que gostaria de colocá-los na água.
— Mas é claro que sim! — falou, animada, a voz que eu sabia que estava vindo da linda flor. Podia ser um pouco confuso para alguns conversar olhando para uma flor, mas não para mim. Marina era uma amiga de muito tempo, praticamente minha irmã mais velha.
Quando eu não tinha Luca, era para ela que corria por companhia e diversão. Marina era uma das lendas mais antigas entre nós, suspeitava até que ela deveria ser mais velha que a Cuca. Mas ela nunca disse ou confirmou nenhuma das minhas dúvidas quando era criança, e hoje em dia eu achava um tanto indelicado perguntá-la tal coisa sem um bom motivo.
Fazendo as águas do lago tremerem e as plantas logo começarem a rodar e girar em volta de si, se erguendo no ar, da grande flor rosada surgiu um espectro transparente com o formato de uma linda mulher.
Seus cabelos eram lisos e muito compridos, seus olhos ao mesmo tempo que pareciam atentos eram doces e seu corpo tinha uma aparência esguia e unhas um tanto pontudas.
Lembravam um pouco as minhas, pensei comigo mesmo.
Era claro que Marina não usava roupas, mas sua forma era fluida como a água e um tanto azulada, era possível ver um pouco através dela, mas não muito. Me lembrava uma ninfa, embora ela não fosse uma.
Ninfas de verdade eram um tanto traiçoeiras, mas eu a chamava às vezes assim de uma maneira carinhosa. E ela não parecia ligar. Aliás, ela mantinha uma boa relação com as ninfas da floresta.
Acho que as ninfas que não deviam gostar de mim, na verdade.
— Como tem estado? — comecei a falar enquanto balançava meus pés dentro do lago.
Ela se aproximou um pouco, pulando entre as vitórias-régias que flutuavam.
— Bem, querido. Você sabe, não acontecem muitas coisas por aqui. — Colocou uma de suas mãos finas em um dos ouvidos. — Mas eu sempre ouço muitas coisas, e fiquei sabendo que você está muito feliz.
Arqueei uma de minhas sobrancelhas e apoiei minhas mãos na terra de grama molhada.
— E como você ficou sabendo disso, minha querida iporã?
Marina era realmente bela, tinha a opinião de que ela era uma das criaturas mais estonteantes daquelas matas. Por isso, sempre a chamei de iporã. Ela era linda tanto por fora quanto por dentro. Logo, ela era minha querida iporã.
Abriu os braços como se aquilo explicasse muita coisa.
— Eu tenho meus meios — respondeu, dando uma piscadinha.
Balancei minha cabeça em negação, mas sorrindo para ela.
— Até onde você sabe? — Agora eu havia colocado também minhas mãos dentro da água e limpava um pouco a sujeira delas e do meu rosto pela corrida entre as copas e cipós.
— Não muito, apenas que Cuca lhe designou uma missão. — A última parte ela disse num tom baixo e se encolheu um pouco enquanto dizia. Eu voltei meus lumes castanhos claros para seu rosto.
— Creio eu que você não gostou muito da notícia — concluí em voz alta, mordendo meu lábio inferior.
Marina apertou suas duas mãos sobre seu peito e abaixou a cabeça olhando o lago.
— Você sabe que não gosto dos abá, Aruna — confidenciou de forma apreensiva. — Nós não sabemos do que eles são capazes...
— Nós não sabemos do que ninguém é capaz, Marina — a corrigi de forma firme. — Se você acha que todas as lendas são boas, está enganada.
— É claro que não acredito nisso, Aruna! — se defendeu, agitando um pouco a água e as plantas. Seu corpo parecia flutuar por cima da água junto das outras vitórias-régias. — Mas com as lendas nós temos um pouco mais de conhecimento. Nós somos muitos? Sim, somos. Mas não tanto quanto os abá. Eles estão por toda a parte e em qualquer lugar. — Ela se impulsionou para frente e veio pulando entre as plantas restantes que nos separavam, uma delas flutuou até a beira em que eu estava sentado e com isso iporã esticou suas mãos para mim.
A história de Marina era um grande fardo ao meu ver, e todas as vezes que eu a visitava naquele poço, eu me enchia de indignação.
Sua lenda nasceu da primeira Vitória-Régia: a bela índia Naiá. Ela se apaixonou por Jaci, a Deusa da Lua, quando viu seu reflexo nas águas do Igarapé, desejou ir morar com ela no céu e se tornar uma estrela para sempre poder estar ao seu lado. Por dias a fio, Naiá ficava naquele rio admirando e esperando algum sinal de Jaci. Por conta disso, ela às vezes passava dias sem comer e beber absolutamente nada.
Até que um dia resolveu mergulhar no rio, mas ela já estava muito fraca e foi indo cada vez mais fundo e fundo até — infelizmente — morrer afogada. Jaci então, encantada com a paixão e devoção de Naiá para consigo, a transformou num tipo diferente de estrela. A estrela das águas, a Vitória-Régia. Quando nós lendas voltamos a existir, minha querida iporã teve o azar de ser a escolhida para ser a nova vitória-régia.
Marina havia me contado que a própria Jaci teria a visitado, anos e anos atrás.
Ela teria feito uma proposta para minha querida amiga: ela poderia aceitar entregar sua vida como humana de bom grado para Jaci e ela então não sofreria dor alguma com tal entrega, ou ela teria que morrer da mesma forma que Naiá, afogada e sem força alguma para se salvar. Agonizando até que as águas de algum canto qualquer preenchesse seus pulmões por completo e ela desse seu último suspiro. Marina não teve escolha, assim como nenhum de nós, mas diferente de mim e de outras lendas que já havíamos nascido com nossa sentença, ela foi escolhida muito tarde.
Às vezes, ela divagava, dizendo que ela já havia nascido com aquilo, que ela tinha sonhos recorrentes com a água e com a lua. Mas ela não tinha nada aparente que confirmasse suas palavras. Pareciam ser só dizeres que ela tentava agarrar para se sentir menos triste pelo seu destino.
Minha querida iporã antes possuía um corpo como o dos abá, vivia entre eles... não conseguia nem estimar tamanha fora sua dor naquele tempo em ser arrancada de seu lar, de seu antigo mundo, da sua antiga vida.
Eu olhei para seu rosto bem delineado, porém com apenas uma cor azulada como cor, e segurei suas mãos com as minhas, nas quais foram apertadas na mesma hora. Queria saber e poder ver as verdadeiras cores de Marina pelo menos uma vez.
— Me prometa que tomará cuidado, Aruna — sussurrou acariciando minhas mãos. Inconscientemente, cheguei mais perto de si e encostei minha testa na dela. O toque fez com que um pouco de água escorresse pelo meu rosto, mas eu não ligava. Só queria dar aquela certeza para Marina, de que eu ficaria bem. Era o mínimo que eu poderia fazer por ela. — Prometa que não se aproximará dos abá.
— Mas e se algo acontecer? — indaguei num tom baixinho.
— Nada irá acontecer — me assegurou.
— Mas e se, iporã? Se acontecer alguma coisa, o que eu devo fazer?
Ela então afastou um pouco nossos rostos. Encarava meus olhos castanhos, e eu os seus, feitos de água. Pensamentos rondavam minha mente. E desses muitos pensamentos, a maioria eram minhas muitas dúvidas. Perguntas que, provavelmente, ninguém iria querer me responder.
Acreditava que para ela também, mas eu não conseguia decifrar quais exatamente seriam.
— Se algo acontecer, o que não vai, mas se ocorrer — ela dirigiu sua mão para a minha bochecha e acariciou ali —, quero que você fuja.
Franzi minhas sobrancelhas, ela só podia estar brincando comigo.
— Já lidei com os abá antes. Não sou inexperiente.
— Não com os abá de hoje, não no território deles — reiterou, segurando meu rosto de forma cuidadosa, passando suas finas unhas pontudas pelos meus cabelos vermelhos que insistiam em cair em meu rosto dourado. — Os tempos mudaram, Aruna. Nós estamos presos aqui, mas eles não. Eles conhecem coisas que não temos a menor noção, criam coisas que nós nunca nem sequer poderíamos imaginar. Me prometa que, se ver um deles, irá fugir. Irá correr o máximo que você puder.
Eu desviei meu olhar do seu. Não queria prometer aquilo, eu não era fraco. Poderia me cuidar! Mas ela ainda segurava meu rosto e me olhava, esperando uma resposta.
— Aruna...
— Irei pensar — disse por fim, ainda sem olhar para si.
Marina, vendo que não iria arrancar mais nada de mim, pareceu se dar por vencida e soltou meu rosto, me dando um beijo na testa.
— Confio que você fará o certo quando a hora chegar — falou, se afastando um pouco de mim enquanto eu tirava meus pés virados ao contrário do lago e me levantava.
— Onde está Iara? No lugar de sempre? — perguntei antes de me retirar dali.
Marina me deu um sorrisinho e negou.
— Para o Norte —iIndicou antes da água entrar em rebuliço outra vez e ela desaparecer junto do rio. — Até breve, Curupira.
Concordando com a cabeça, comecei a escalar o tronco das árvores, e antes que pudesse pular para a próxima e ver a última vitória-régia cair no lago, sussurrei:
— Até, pequena Iporã.
Enquanto pulava e me arrastava entre os troncos fortes e robustos das árvores mais uma vez, eu me peguei pensando no quanto eu nunca tive medo dos abá.
Mas Marina havia levantado um bom ponto: eu não tinha medo deles ou a floresta me passava uma falsa segurança?
Talvez eu não tivesse medo deles porque, de certa forma, eles estavam na minha área. Em meu território. Eu sabia que tinha vantagens sobre eles aqui, sabia como tirar proveito das situações. Do outro lado do ymiri, eu não teria chances. Teria meus poderes? Sim, mas não podia usá-los ao meu bel-prazer.
Regras dos deuses, não minhas!
De qualquer forma, pensar naquelas possíveis possibilidades e razões me trouxe um grande incômodo dentro do peito. Fazia eu querer me debater, gritar e chorar, e eu tinha plena consciência que nada disso adiantaria. Eu queria sair de mim mesmo para fazer aquela dor invisível passar, aquele desespero que espetava, que sufocava, que tanto me afligia e parecia querer me afogar. Às vezes, queria poder evaporar como quando Luca tocava suas chamas numa poça de água e elas sumiam pelo choque térmico.
Antes que pudesse ceder àquela sensação tenebrosa, eu escutei alguém cantando. Uma voz afinada, limpa e até mesmo angelical. Luca havia me explicado o conceito de anjos também, eram crenças interessantes que os abá possuíam.
Cuca dizia que alguns de fato existiam, me perguntava se poderia conhecê-los algum dia.
Junto da cantoria, também comecei a prestar atenção no barulho da cachoeira. A correnteza forte que batia violentamente nas pedras quando descia, mas depois seguia tranquilamente seu percurso.
Uma vez, Kauã havia me dito a seguinte frase: "A vida é como uma cachoeira. Nós caminhamos e caímos, passamos por diversas turbulências. Ou às vezes sofremos uma queda tão forte que parece impossível de se reerguer, de voltar para a superfície do que um dia já fomos. Mas, depois de um tempo, sempre conseguimos encontrar nosso ritmo. E a queda em nossas lembranças se torna apenas um mergulho muito fundo e demorado."
Lembro de lhe perguntar se aquilo era realmente verdade, pois algumas pessoas viviam na turbulência. Kauã me disse que nada podemos fazer por aqueles que insistem em continuar presos nela e nunca querem de fato sair. Não sei se entendi muito bem o que ele quis dizer, mas na época apenas concordei consigo.
Vale ressaltar que aquela foi a única vez que vi Kauã falar tão sério na vida. Não sei o que havia dado nele, entretanto. Mas, algum dia, eu ainda iria descobrir o que fora aquilo. Aquele seu momento de sinceridade. Não era comum que o safado do boto cor de rosa resolvesse — do nada — te dar um baita conselho de vida.
Apertei meu passo e finalmente avistei a pessoa da voz bonita, cantarolando uma música que por mim já era muito conhecida.
Ele olhava para o céu, sentado em cima de uma rocha com suas pernas finas. Dessa vez, sua grande cauda azul, de um tom claríssimo que se mesclava com a cor do mais belo e limpo ouro, não estava aparente.
Uma pena, pois amava apreciar a cor de suas escamas.
Passava suas mãos pequenas que continham algumas guelras azuis e translúcidas entre seus dedos pela pedra molhada, e embora seu olhar fosse para cima, além das folhas das árvores que tampavam um pouco o Sol, seu rosto e suas expressões estavam para baixo. Completamente perdidas. Fui andando lentamente em sua direção sem ele sequer reparar.
— Manhã, tão bonita manhã. De um dia feliz que chegou. O Sol no céu surgiu... E em cada cor brilhou. Voltou o sonho então, ao coração.
Essa música. Ele sempre se emocionava cantando aquela música, e eu sabia muito bem o porquê. Mas não queria vê-lo triste outra vez.
Não dessa vez.
— Depois deste dia feliz... — comecei a cantar junto com minha voz muito mais grave que a dele. Ele se assustou, mas me deu aquele sorriso resplandecente, fazendo seus olhos se tornarem dois riscos enquanto se virava para me ver. — Não sei se outro dia haverá! É nossa manhã, tão bela afinal.
Estiquei minha mão junto de uma reverência, convidando-o para dançar comigo.
Como eu sabia daquele gesto? Ele mesmo havia me ensinado. "Era assim que convidávamos alguém para dançar de onde eu vim", ele dizia.
Na mesma hora, se levantou da pedra onde outrora estava sentado e pulou para a terra firme, segurando minha mão na mesma hora.
— Manhã de Carnaval! — cantamos os dois em uníssono e em perfeita harmonia, segurando nossas mãos e girando pela terra. — Canta o meu coração, a alegria voltou tão feliz a manhã desse amor!
Nós giramos tão forte que no final acabamos caindo um em cima do outro, a grama amortecendo nossa queda. Gargalhamos alto, ficando um bom tempo assim. Cheguei até a limpar algumas lágrimas que escorreram de meus olhos.
— Obrigado, Aruna — agradeceu Mateo, enquanto ainda sorria para mim.
— Não foi nada, Mat.
— Você sabe que, para mim, é tudo.
Sim, eu sabia. Mas nunca deixaria de tentar fazê-lo feliz. Odiava vê-lo tão abatido e triste, lembrando da vida que ele nunca poderia ter.
Da vida que nós nunca teríamos.
— O que está fazendo nessa parte da floresta? — perguntei, divertido, para continuar com o bom clima em que estávamos. — Você sempre diz que o lado norte não é "lá aquelas coisas".
Mateo então se ergueu do chão, ficando sentado enquanto endireitava seus cabelos lisos e pretos.
— A correnteza daqui dá para o ymiri que divide a floresta com o lado dos humanos. — Mateo nunca os chamava de abá, eram sempre humanos. E isso nunca mudou, parecia que ele colocava um peso enorme naquela palavra toda vez que a dizia.
— Todo mundo já está sabendo que eu irei sair da floresta? É sério? — ralhei, indignado.
— Eu só sei porque Marina falou comigo hoje mais cedo — se defendeu Mateo, levantando os braços. — Nós dois somos seres ligados à água, Aruna. Não é tão difícil nos comunicarmos através dela.
— Eu sei, eu sei — falei, resignado, mas ainda fazendo uma careta. — Mas às vezes é chato não ter esses privilégios comunicativos — brinquei, cutucando seu ombro.
Mateo riu, negando com a cabeça.
— Está confiante? As pessoas costumam acordar mais cedo quando estão nervosas, sabia? Mas você faz tudo ao contrário. Quando está nervoso, acorda muito mais tarde.
Dei um sorriso sem graça.
— Acho que é um mau meu — falei, apontando para meus pés virados ao contrário enquanto os balançava.
Mateo me olhou e negou com a cabeça, rindo.
— Você não perde uma, não é?
— Foi você que acabou com minha diversão do dia — disse, extremamente magoado. — Era para eu vir te contar da minha missão e agora todo mundo já sabe dela. Qual é a graça?
— Eu apenas sei que você vai sair, não o que você vai fazer seu dramático — Mateo revelou, entrelaçando seus dedos curtos uns nos outros. — É algo perigoso?
— Luca disse que não — lhe assegurei. — Que é apenas o que ele chama de vistoria.
— Vositalia? — Mateo fez uma careta confusa. — O que significa isso?
— Não, Mat. Vis-to-ri-a — repeti lentamente para ele. — Luca disse que nós apenas iremos verificar algumas partes da cidade dos abá. Você sabia que eles chamam as aldeias onde moram de "cidade"? Não é intrigante?
— Sim, é bem "intrigante" — concordou com um certo desgosto.
Eu apenas revirei meus olhos.
— Por que nenhum de vocês está feliz por mim? — proferi irritado, me levantando de onde estava, assustando Mateo. — Eu sempre quis isso! Conhecer coisas novas, ver além da floresta. Por que ninguém fica só um pouquinho orgulhoso pela minha conquista?!
— Aruna, você sabe que eu tenho minhas ressalvas quanto aos humanos! Eu infelizmente carrego lembranças demais comigo, mesmo eu não querendo elas. — Mateo se levantou, também irritado e extremamente incomodado apertando suas mãos em punhos ao lado do corpo para se conter. — Vocês foram escolhidos para serem as próximas lendas depois da revolta dos deuses, eu não. Eu já nasci com esse fardo, sou a reencarnação de Iara desde que me entendo por gente. Uma Deusa e lenda, e você sabe que parte das memórias dela são com os humanos...
— Nem todos eles são maus — o cortei, fazendo seu olhar desapontado voltar com tudo. E aquilo me destruía por dentro. Mas não achava justo ele generalizar todos como seres ruins, não achava que estava errado em lhe contestar. Nem todas as lendas eram boas também, e eu não gostaria que me julgassem apenas pelas ruins. — Você sabe disso. Viveu entre eles.
— É claro que eu sei de tudo isso, Aruna! Mas é muito difícil não ter medo, não ter receios quando eu os vejo o tempo inteiro tentando me matar em meus sonhos. Quando vejo eu mesmo os matando, esquartejando e afogando vários deles nos rios desse lugar... — Ele olhou para os lados, dando um suspiro forte, sugando todo o ar que podia para dentro de seus pulmões e voltou a olhar o céu. — Meu tempo sem as memórias de Iara já passou.
Parecia estar à beira das lágrimas, e a minha garganta ficou seca demais de repente.
De forma impulsiva, o puxei para mim e o abracei. Seu corpo tremia um pouco devido às lágrimas que finalmente conseguiram espaço em seus olhos, e eu apenas o apertei mais forte e acariciei seus cabelos negros.
Quando Mateo me contava aquelas coisas, pensava se o antigo Curupira havia sofrido algo do tipo. Se ele tinha também ressalvas quanto aos humanos, assim como Mateo tinha as dele. Se havia matado os abá de forma tão cruel e grotesca quanto Iara havia os matado.
Lendas escolhidas eram bem diferentes das que eram também deuses e reencarnaram como Mateo. Lendas escolhidas, como eu, Luca e Kauã, por exemplo, eram como receptáculos. Nós fomos escolhidos pelos deuses ao nascer, ou um pouco mais tardiamente — como era o caso de minha querida iporã — para recebermos os poderes de uma lenda que já não estava mais entre nós devido à Revolta dos Deuses.
Não guardávamos memórias passadas, pois éramos o novo. "A nova geração", como Kauã costuma nos dizer. Eu era o Curupira, o novo Curupira. Não um ser que dividia mente e corpo com a lenda antiga que um dia existiu de alguma forma.
Já lendas reencarnadas eram um tanto diferentes. Lendas que reencarnaram não eram apenas lendas, e sim deuses também. Deuses que não deviam ter sido aniquilados na Revolta, mas, por terem dois papéis, tiveram que partir. Com isso, seres como Mateo são a reencarnação desses deuses e seus poderes.
Mateo era Iara, a Deusa das águas. A história dela não era nem um pouco agradável, Iara era muito trabalhadora e corajosa e seu pai sempre lhe enchia de elogios e tinha muito orgulho da filha que tinha. Mas seus irmãos morriam de inveja de seus feitos e regalias. Até que a ira foi crescendo dentro deles, e os irmãos decidiram invadir sua cabana com a intenção de acabar com a índia de uma vez por todas. Enquanto se defendia, Iara acabou os matando.
Seu pai chegou logo depois e viu seus filhos mortos e a filha intacta no local, já pode imaginar o quanto ele ficou enfurecido, não?
Iara tentou fugir pela mata, mas seu pai conseguiu alcançá-la e como punição por ter assassinado seus irmãos, a jogou no rio Amazonas. A índia estava prestes a dar seus últimos suspiros quando os peixes a levaram para a superfície e, sob o reflexo da lua, foi quando ela se transformou em metade sereia. Dali em diante, ela se tornou não só uma lenda, como também uma Deusa, dona das águas e dos mares. E toda sua existência, embora ela fosse extremamente poderosa e pudesse ter tudo o que quisesse naquela altura, foi de muito ressentimento e raiva.
Iara era esperta e empática na mesma medida que era calculista e vingativa.
E sua família havia despertado o seu pior lado.
Seu ódio por humanos a fez atrair muitos homens que a lembravam de seu pai e irmãos para o mar e matá-los. E até mesmo quando apenas a ameaçavam tocá-la ou desrespeitá-la, aquela vida lazarenta não duraria muito tempo. Iara era poderosa e bastante criativa, nenhum humano ou criatura gostava de se meter com ela. Todavia, ela era muito grata pela segunda chance que os deuses lhe concederam e, para com eles, Iara era extremamente devota.
Quando houve a Revolta, ela foi a única lenda que se entregou de bom grado para Tupã e os outros do conselho. Devido a isso, os deuses remanescentes lhe fizeram uma promessa: todos os deuses que também eram lendas iriam reencarnar em algum momento oportuno do universo.
Mas é claro que eles não contavam que uma hora eles também trariam as lendas de volta e tal ação coincidiria com a tal promessa feita naqueles tempos que pareciam tão longínquos.
Se eu já achava minha situação complicada, a de Mateo era mil vezes mais.
Enquanto fazia carinho em sua cabeça, às vezes raspando em suas orelhas pontudas, ele respirava de forma pesada em meu ombro. Mas ele nada dizia, e muito menos eu. Nós sabíamos que de vez em quando a melhor coisa a se fazer, era não dizer absolutamente nada.
O dia estava finalmente chegando ao fim, o sol já estava indo para seu descanso e, em breve, Luca viria me procurar. Mas se Mateo precisasse ficar comigo até eu ter que partir, eu ali ficaria por ele. Pois eu amava meu amigo, não seria absolutamente nada sem Mateo. E, acredito eu, que ele mesmo tinha plena consciência disso.
Apesar de sermos seres místicos, os deuses não nos tratavam muito como tal. Sentíamos às vezes demais, nos machucávamos, muitos de nós tinham a mesma fisionomia dos abá. No fundo, não éramos muito diferentes deles, mesmo não estando na Terra pelas mesmas razões. Mateo tinha dias difíceis, e eu nunca viraria as costas para ele ou ignoraria sua dor.
Antes que pudesse dizer algo para ele, ouvi passos se aproximando. Mateo pareceu notar também o barulho e levantou um pouco sua cabeça de meu ombro. Ouvi um galho sendo quebrado do meu lado esquerdo há alguns metros de distância. Me virei rapidamente, colocando Mateo atrás de mim. Sabia que ele era um Deus e que ele era muito mais forte que eu, mas, quando meus instintos despertavam, eu agia totalmente por impulso. Ele também pareceu esticar suas mãos para trás das costas em direção da água da cachoeira, mas, assim que a figura que surgiu dos arbustos apareceu, ambos reviramos os olhos.
— Ó, eles estão aqui mesmo! — falou Luca para uma outra figura bem pequena que apareceu ao seu lado. Uma pequena ninfa de cor amarela, devia ser uma das ninfas das flores do lado leste. — Aguyjé*, Nefeli.
— Não há de que, Boitatá — disse ela com sua voz bastante fina que trazia alguns barulhos diferentes no final de suas palavras. Sempre que as ninfas falavam, parecia com o barulho de pequenos badulaques que os abá traziam consigo para a floresta. Ela então se virou para mim e deu um sorrisinho torto. — Curupira. Iara.
— Anauê* para você também, Nefeli — respondi seco, quase cuspindo seu nome enquanto cruzava meus braços em frente ao meu tronco.
Mateo saiu de trás de mim e lhe deu um aceno sorridente. Sempre simpático com quem não devia. Ela acenou de volta para ele, todavia.
— Estou indo agora — anunciou para não sei quem, porque por mim ela já teria sumido dali assim que Luca havia dito que nos achou. — Qualquer coisa só chamar, Boitatá.
— É claro, aguyjé mais uma vez, Nefeli — agradeceu mais uma vez Luca.
Nefeli então deixou um pequeno beijo em seu nariz e voou floresta adentro. Assim que Luca se aproximou de nós, revirei meus olhos. Mateo riu da cena.
— Está pronto? Temos que estar fora da floresta assim que escurecer.
— Por que tão específico? — Mateo se intrometeu, interessado.
Luca deu de ombros.
— Pedido da Cuca.
— Eu adoro que você simplesmente não questiona nada do que essa velha maluca te manda fazer ou diz — retruquei, estalando minha língua no céu da boca e me despedindo de Mateo com um abraço que foi prontamente retribuído por ele.
— Acabou as reclamações, Aruna? — perguntou, já se afastando de nós, andando de volta para os arbustos de onde havia vindo. — Precisamos ainda pegar roupas adequadas para ir para a cidade dos abá, vamos logo.
Neguei com a cabeça e voltei minha atenção para Mateo.
— Volto em breve, apenas espere — lhe garanti. Ele me deu um sorriso diminuto.
— Lembre-se que, não importa onde você estiver, qualquer água, lago, riacho ou mar em que encontrar, você pode falar comigo. — Apertou minhas mãos. — Apenas jogue seu sangue na água e me invoque. Eu irei lhe atender na mesma hora.
Concordei com a cabeça.
— Rohayvu*, Mateo — sussurrei antes de soltar suas mãos e ir para onde Luca me esperava, acenando para meu amigo.
— Rohayhu avei*, Aruna — respondeu em alto e bom som para mim enquanto eu partia para o mundo desconhecido.
O mundo que sempre quis pisar com meus pés invertidos e conhecer: o mundo dos abá.
Iporã* - nome de origem tupi-guarani que traduz a beleza das águas.
Aguyjé* - obrigado/obrigada.
Rohayvu* - Eu te amo.
Rohayvu avei* - Eu também te amo.