Codificada por: Cleópatra
Última Atualização: 31/10/2024Tentando afugentar aquele tipo de pensamento, Leonard soltou um suspiro resignado, enquanto sentia seus passos diminuírem. Por mais pressa que ele tinha de chegar em casa, o cansaço lhe dominava e travava o trabalho de seus músculos, os fazendo queimar e latejar de dor. O acúmulo de ácido lático gritou na forma de um princípio de câimbra que o fez bufar, enquanto seus pés mal conseguiam mantê-lo de pé, porque Leonard havia passado o dia todo sem se sentar por nenhum minuto. Sua preguiça era tanta que ele nem ao menos se despediu dos outros funcionários antes de sair do lugar que já não aguentava mais ver, mas era forçado porque dependia daquele emprego.
Seus pensamentos estavam concentrados em um único objetivo: se jogar em sua cama e se render ao cansaço, finalmente fechar os olhos, que pesavam e insistiam por um descanso, e relaxar sua mente perturbada por todos os problemas enfrentados naquele dia. A exaustão era tanta que Leonard mal se importava com seus sentidos anuviados pela fome, a dor em seu estômago e a pontada de enjoo a embrulhá-lo, quase trazendo a bile até a garganta em uma típica contração reflexa.
Merda! Ele odiava vomitar! Principalmente quando não tinha nada além de água em seu estômago.
Mais um longo suspiro escapou de seus lábios, e Leonard se praguejou mentalmente por isso, pois o enjoo aumentou, então respirou fundo e puxou a maior quantidade de ar que podia para oxigenar seu cérebro de forma apropriada. Parou por alguns segundos e apoiou as mãos em seus joelhos quando a tontura aumentou. Se sentiu bastante patético e particularmente idiota por ter ignorado seu organismo por tantas horas e deixado seu horário de lanche de lado para atender a Senhora Crasswell, uma madame, que além de ser irritantemente barraqueira, era casada com um dos homens mais poderosos da cidade, o dono da maioria das terras naquela região e que inclusive tinha seus olhos gananciosos vidrados na casa de medicamentos do senhor O’Connell. Leonard tinha receio do que seria de si se o chefe resolvesse fechar aquela venda, mas pelo amor que o outro demonstrava pela manipulação de produtos medicinais, o rapaz achava pouco provável que o Senhor Crasswell fosse bem-sucedido.
Embora antenado com os acontecimentos ao seu redor, Leonard às vezes podia ser tremendamente ingênuo.
Sua reflexão sobre o quanto era tolo e idiota foi interrompida quando a lamparina da rua deserta em que se encontrava piscou e apagou subitamente, o deixando apenas com a luz do luar para acompanhá-lo pelo restante do caminho.
— Perfeito! Como se já não me bastassem minhas pernas me deixarem à míngua! — a voz de Leonard ecoou rouca e exausta, e ele estreitou os olhos, já prejudicados pelo problema de visão que se recusava a corrigir com óculos de grau, ao tentar focar em algum ponto que pudesse orientá-lo,
Decidiu então por segui-lo, mesmo que não tivesse certeza. Fazia aquele mesmo caminho todos os dias nos últimos dois anos, jamais se perderia, por mais que sua casa não fosse exatamente perto de seu local de trabalho.
O barulho de seus pés se arrastando era a única coisa que podia ser ouvida àquela hora, já que uma boa parte da população da cidade já estava recolhida em suas residências, enquanto a outra desperdiçava seu dinheiro em algum cabaré lotado de belas donzelas. Se não estivesse tão cansado, talvez ele mesmo se presentearia com uma boa companhia para esquentar suas partes e satisfazer as necessidades que com toda certeza equivaliam a quase oitenta por cento de seu mau humor.
Uma risada falha e engrolada escapou de sua garganta, o fazendo tossir como se fosse um velho bêbado, e Leonard pigarreou em seguida para se livrar da sensação incômoda. Como se não bastassem todas aquelas sensações que o faziam desejar morrer, suspeitava que um resfriado também ameaçava acometê-lo.
Mais alguns passos daquele martírio sem fim, e ele se obrigou a diminuir ainda mais o ritmo, o que o deixou mais irritado consigo mesmo, então o clima deserto daquela rua e a ausência de ruídos trouxe um certo incômodo em seu peito. Se sentindo bastante covarde por seus batimentos acelerarem e ecoarem em seus ouvidos de forma vergonhosa, quase gritou de forma triunfante quando teve sensação de que um vulto havia passado bem rente ao seu lado esquerdo, e o teria feito se a reação mais óbvia de seu organismo não fosse a de paralisar todos os seus músculos.
Parecia que seu coração havia saltado até sua garganta enquanto Leonard tentava se mover sem o maldito sucesso.
Como numa brincadeira de péssimo gosto, viu a lamparina piscar, acender por breves segundos e se apagar novamente. Aquilo só poderia ser coisa de sua cabeça, mas Leonard não questionaria, mesmo que aquele fosse algum sinal de que estava ficando maluco. Então olhou rapidamente ao seu redor e conseguiu enxergar pouquíssima coisa, porém constatou algo que o fez odiar a si mesmo novamente: ele havia conseguido se perder.
Tantos anos sempre pegando o mesmo maldito caminho e conseguiu o feito em questão de minutos.
— Imbecil, babaca, idiota! — Definitivamente, estava ficando maluco.
Novamente, a sensação do vulto passando ao seu lado tomou conta de si, desta vez do lado oposto ao anterior, e Leonard se preparou para praguejar novamente, imaginando uma série de xingamentos que agora seriam dirigidos ao seu chefe, porém não houve chance para tal.
Agora tinha a sensação vívida de que algo havia passado por suas costas, o cercava, e, em vão, o homem tentou olhar em volta para identificar o que por fugazes segundos imaginou ser uma brincadeira de péssimo gosto.
Encontrou apenas o vazio.
O vento frio lhe atingiu o rosto.
Suspirou resignado e voltou a virar para frente, a fim de esquecer aquela paranoia repentina e se localizar para que finalmente pudesse ir para casa.
Seus músculos voltaram a paralisar e Leonard se sentiu tão gelado que naquele momento não lembrava da sensação aconchegante de suas extremidades aquecidas.
Um pouco adiante dele, em meio às copas das árvores, dois imensos olhos vermelhos o encaravam com ódio explícito. Seu corpo tremeu e seus joelhos fraquejaram, o que quase ocasionou sua queda, e ele engoliu em seco, sentindo um nó se formar em sua garganta.
Nunca havia visto tal criatura, que consideraria humana, se não fosse pelo longo focinho e os dentes arreganhados, e ela emitiu um rosnado que fez o corpo do rapaz tremer ainda mais.
Ao conseguir forças de um lugar que desconhecia, Leonard tornou a virar na direção oposta e correu desesperado. Seus músculos protestaram, seus pulmões imploraram por oxigênio e seus olhos ficaram embaçados pela tontura, que não havia o abandonado por momento algum.
Leonard não teve tempo para ir muito longe. Não teve tempo ao menos para sonhar com sua salvação, ou para ver o famoso filme que diziam passar na cabeça das pessoas quando a morte lhe abraçava. Ela veio brusca, num golpe doloroso e barulhento que o lançou de cara na estrada de terra, num baque que fez o osso de seu nariz estalar, enquanto seu peito era poupado de ser esfolado por causa do tecido de suas roupas, mas isso pouco importava, porque suas costas doíam feito o inferno. Cortes profundos haviam sido abertos em sua carne e ele sabia que a criatura havia o acertado com suas garras.
Tentou buscar ar, mas tudo que foi ouvido foi apenas um som semelhante a um engasgo de sua parte, sufocado por um uivo a cortar a noite.
A enorme pata atingiu sua região lombar e Leonard quase desfaleceu de dor quando sua coluna partiu e o imobilizou da cintura para baixo. Num resquício de loucura, tentou se arrastar e engasgou pela última vez quando mais um golpe o atingiu na cervical e cortou de uma vez por todas seu oxigênio.
Leonard nunca teve chance alguma e, por fim, a morte o abraçou.
Porém a criatura não parou por aí. O corpo do rapaz foi virado em decúbito dorsal e suas vísceras não demoraram a ser expostas para que toda a essência vital de Leonard alimentasse a fome desenfreada daquela que dali para frente todos passariam a conhecer como ‘A Besta de Loches’. Aquela que estaria presente nos contos das velhas senhoras, em volta de fogueiras, e estampada nas manchetes dos jornais.
Quando a escuridão dominava o coração dos mais frágeis e os gritos cortavam a noite, a besta se levantava para aniquilá-los e satisfazer seus desejos mais selvagens.
Com o sangue de suas vítimas a tomar seus lábios, caminhava sedenta por mais... Deixando um rastro sangrento de caos e destruição por onde passava.
O ser humano, arrogante como era, tinha, mais uma vez, sua inteligência posta à prova.
O que era aquela criatura? Haveria uma solução? Uma forma de pará-la?
A enorme poça do sangue de Leonard manchou a estrada, que nunca fora palco de uma morte tão grotesca, e várias horas depois, quando os passarinhos cantavam o despertar da aurora, o grito de uma donzela alertou a população.”