Revisada por: Saturno 🪐
Última Atualização: 06/06/2025.Toscana, outono de 2010
A vida pode ser complexa e perigosa quando se trabalha para uma família da máfia, e Lídia sabia bem disso quando se candidatou a uma oferta de emprego para a casa Magnus, pois mesmo com os riscos, ela tinha uma filha para cuidar. E estava mais do que agradecida pelo emprego, podia dar à pequena uma cama macia e confortável, refeições deliciosas e a oportunidade de estudar em uma escola particular com bolsa de estudos, a Constance Elite Elementare School. Ainda que todos os benefícios que tinha com aquele trabalho, custasse um preço alto, que lhe era cobrado todas as noites pelo senhor Francesco Magnus.
— Ainda está acordada minha princesa?! — Lídia se assustou ao adentrar o quarto em que dormia com a filha, no setor dos empregados localizado na parte sul da mansão.
— Tive um pesadelo. — sussurrou a criança, estando abraçada às pernas e com marcas de lágrimas escorridas pelo rosto.
— Querida… — Lídia se aproximou da cama dela e sentando na beirada, a olhou com ternura — Se quiser me contar, estou aqui.
A mãe segurou a mão da filha, dando um sorriso reconfortante, encorajando-a a falar e desabafar.
— Não consigo esquecer daquela noite… — respondeu ela, num tom ainda mais baixo e voltando a lacrimejar — E dos gritos.
— Princesinha… — Lídia puxou a filha para mais perto e a abraçou forte, segurando suas emoções para transmitir segurança e conforto a filha — Está tudo bem agora, tente não pensar no passado, temos uma nova vida e estamos seguras agora.
assentiu com a cabeça, limpando as lágrimas e deu um sorriso fechado à mãe. Mesmo com as palavras confiantes de Lídia, a pequena sabia que não seria fácil para ela superar os traumas causados pelo dia em que a casa dos seus avós foi invadida por homens armados e sua família foi dizimada. Agora, era apenas ela e sua mãe contra o mundo, e para sobreviverem, precisavam fechar os olhos e apenas aceitar as regras impostas pela governanta da casa.
— Mamãe… — a pequena respirou fundo, pensando se iria ou não fazer a pergunta que lhe importunava o pensamento.
— Sim, querida?! — Lídia a olhou atentamente, enquanto acariciava seus cabelos.
— Por que todas as noites, a senhora precisa limpar o escritório do senhor Magnus? Não pode fazer isso de manhã? — as indagações de foram como uma facada no peito da mãe, fazendo-a se sentir constrangida pela percepção da filha.
Para uma mulher que perdeu os pais, os sogros, cunhados, irmãos, primos e o marido em uma única noite há quatro anos, precisava ser forte para proteger a pequena do assombroso mundo da máfia italiana.
— Querida… — Lídia tentava encontrar palavras para formular sua resposta de forma plausível e convincente, ao respirar fundo, ponderou seu tom de voz mantendo-o suave mesmo sendo firme — O senhor Magnus é muito exigente quanto a qualidade do serviço dos empregados, então… Ele prefere que eu limpe seu escritório em sua presença.
— Entendo. — o olhar da criança abaixou, a garota sabia que a mãe mentia, mas não questionaria nada, apenas apoiaria o sacrifício da mãe.
— Não se preocupe com meus afazeres, eu fui contratada para limpar e manter este lugar organizado, então… Apenas se ocupe com seus estudos, graças ao senhor Magnus, você estuda no melhor colégio particular deste país, é uma oportunidade única. — Lídia finalizou o assunto, desviando o foco para a filha — E como tem ido nos estudos?
— Tenho sido uma boa aluna, e vou te orgulhar muito no futuro. — sorriu mais abertamente para ela, e voltou o olhar para a janela — Amanhã teremos prova de matemática, e eu vou tirar total mais uma vez.
— Que bom, e saiba que já estou orgulhosa. — Lídia abraçou a filha mais uma vez, então a ajudou a se deitar, cobrindo-a em seguida e lhe dando um beijo na testa.
Na manhã seguinte, acordou antes mesmo do despertador da mãe tocar. Estava com tanta ansiedade para chegar na escola, que nem mesmo quis tomar café da manhã, apenas trocou de roupa rapidamente e pegando a mochila, seguiu correndo até o ponto de ônibus. A pequena não era a única daquela casa a frequentar a Constance Elite, a escola também recebia o filho caçula Magnus e a delicada Tommaso, filha de um amigo da família. Além de muitos outros herdeiros de famílias que também pertenciam à máfia ou eram associados.
— , … — Rosalia se aproximou dela, assim que a viu passar pelo portão da escola, o olhar animado e entusiasmado — Como estamos para a prova de hoje?
— Acho que bem. — respondeu ela, ainda assustada por sua euforia — Eu estudei antes de ir dormir.
— Estudar? Pra que? — a garota riu um pouco, para ela não havia tal necessidade porque era expert com números — A matéria é tão fácil.
— Fale por você. — a voz de Matteo soou atrás dela, com uma careta e olhar desanimado — Eu odeio geometria plana.
— Pois saiba que educação física também tem matemática e biologia, que são as matérias que você mais apanha, e carreira esportiva também não dá futuro a ninguém. — retrucou Rosalia, ao se voltar para ele.
— Fala isso para o Ronaldinho Gaúcho. — retrucou ele, seguro de seu argumento, apresentando seus jogadores favoritos — Ou o Ronaldo Fenômeno, além do mais, eu não preciso fazer faculdade de educação física se for um jogador de futebol.
— Contra fatos não há argumentos. — concordou segurando o riso — Desta vez não tem como te defender, Rosa.
— Ok, vou mudar minha fala, já que utilizou do futebol para me atacar. — ela manteve o olhar seguro para Matteo — A carreira esportiva não dá futuro a ninguém que não tenha talento, e você está nesta lista.
— Eu tenho talento sim. — retrucou ele.
— Acho melhor irmos. — disse , cortando o assunto — Ainda temos dez anos de idade, e uma prova de matemática nos aguardando.
Eles riram um pouco e seguiram para sala. Havia algo em comum entre o trio de amigos que os unia mais do que o fato de terem entrado na escola no mesmo dia, ambos eram filhos de empregados que trabalhavam para famílias da máfia, bolsistas e rejeitados pelos outros alunos. Por isso, não demorou muito para que Matteo se juntasse às duas meninas nas horas de intervalos, ou para os trabalhos em grupo, até que se tornassem amigos inseparáveis. O filho do motorista da família Cassano, a filha da cozinheira da família Tommaso, e a filha da empregada da família Magnus.
— Pode uma pessoa ser psicopata desde a infância? — comentou Matteo, num tom baixo, ao se aproximar das meninas no pátio da escola.
— Do que está falando Matteo? — olhou para o amigo confusa por suas palavras.
— Esse menino é um surtado, você ainda dá atenção a ele? — Rosalia riu baixo, mantendo sua atenção nos cálculos da prova, que insistia em refazer, pois não tinha conseguido entender a última questão.
— Diga logo, do que está falando? — insistiu , tentando entendê-lo.
— O filho dos Magnus, , ele tem uma cara de psicopata. — explicou Matteo mais abertamente, sentindo um frio na espinha.
— Por que acha isso dele?! — indagou , curiosa, ao voltar seu olhar discretamente para o menino.
— A forma como ele te olha, quando você passa por ele. — continuou o amigo, num tom preocupado — É como se ele fosse um predador selvagem e você a presa.
— Sério?! — segurou o riso, em respeito ao amigo e sua preocupação — Ele é um tanto quanto estranho mesmo, tenho que concordar, mas… Não acho que ele me olhe assim.
— Acredite, ele olha sim. — Rosalia parou o que fazia e concordou com o amigo — Por mais que eu deteste concordar com o Matteo.
— Bem, tem alguns problemas com a família, sabem que minha mãe trabalha para os Magnus há dois anos apenas, e eu não tenho muito contato com eles, reservo meu tempo em casa ficando apenas no meu quarto e às vezes dou algumas voltas escondidas pelo jardim… — vasculhou em sua memória os raros momentos em que viu alguém daquela família, além do filho caçula — Mas teve um dia, que eu vi o senhor Magnus batendo no rosto do , dizendo que ele era uma vergonha para a família e que apenas tinha orgulho do filho mais velho.
— Viu, é assim que nasce um psicopata, sendo rejeitado pelos pais. — comentou Matteo, confirmando suas teorias.
— E por falar em filho mais velho, alguma vez você o viu? — indagou Rosalia, curiosa pela informação — Dizem que ele é três anos mais velho que o , e que antes de ser enviado para a filial do Constance em Londres, ele era o melhor aluno da escola…
— E o capitão do time de futebol também. — completou Matteo antes que ela pudesse terminar sua fala — Quem me dera ter uma oportunidade dessa, algum olheiro me veria e eu me tornaria a próximo craque do Barcelona… Mas como bolsista e nascido na classe operária, nem posso me aproximar do time.
— Barcelona… — Rosalia soltou uma risada discreta e olhou para a amiga, que permaneceu pensativa.
— A única vez que o vi, foi… — pensou bem se deveria ou não falar o assunto, pois havia sido um dia bem difícil para a família, após o anúncio da mudança do primogênito — Naquele mesmo dia, ele estava de costas, apenas observando o pai bater no irmão.
— Tá explicado o motivo de ambos não se darem bem… — Matteo constatou a realidade, e tombando seu corpo, deitou no gramado mantendo a atenção no céu — Quando mais eu descubro sobre a vida dessas pessoas, mais eu me sinto feliz com a família que eu tenho.
— Por que diz isso?! — indagou Rosalia, surpresa pelo que dizia — Eu não me importaria se tivesse o dinheiro que eles têm, pelo menos já teria minha vaga em Harvard garantida.
— O que adianta ter dinheiro e não ser feliz… Ou amado por seus pais. — ele soltou um suspiro, ao se lembrar de seus momentos de lazer e diversão com os pais — Pelo menos sei que posso contar com minha família.
Explicou ele, seu conceito.
— Olhando por esse lado, Matteo está certo, mas… Querendo ou não, quando você tem dinheiro, pode proteger quem você ama. — as palavras de foram profundas, e refletiam a tristeza de seu passado e a perda do seu pai.
— Isso é verdade. — concordou Matteo, erguendo o corpo novamente — Eu ouvi meu pai comentando com minha mãe sobre o arranjo de casamento do senhor Mancini com a filha mais velha do senhor Tommaso.
— Ah, sim, eu ouvi minha mãe comentando com uma das criadas, parece que a irmã da , a senhorita Diana, se apaixonou por um plebeu como nós, e como castigo, o senhor Tommaso fez um acordo com o senhor Mancini, a mão da filha em troca de uma aliança entre as família. — Rosalia sentiu uma leve repulsa — Que nojo, ela agora vai se casar com um velho asqueroso.
— Bem que a falou sobre proteger quem se ama. — Matteo continuou a refletir na afirmação da amiga — Se o plebeu fosse rico, com certeza teria conseguido entrar pra família Tommaso.
não sabia o motivo por ter perdido sua família, mas sabia que parte disso se devia à falta de recursos financeiros que tinham. Seus avós eram pessoas humildes, que viviam do pouco que o comércio lhes proporcionava, assim como seu pai, um era mecânico que sempre prestava serviços a preços baixos para os moradores do bairro.
— ?! ?! — a voz de Rosalia despertou a amiga de seus pensamentos profundos.
— Hum?! — a menina olhou-a atentamente — O que foi?!
— É que você ficou estática, olhando pra frente. Está tudo bem? — indagou Rosalia.
— Sim, está, e nós temos que voltar pra aula. — ela se levantou, espreguiçando um pouco.
— Aula de história, por que é tão chato falar sobre o passado?! — reclamou Matteo, se levantando também.
— Para você, toda aula é chata. — Rosalia o criticou em risos, esticando a mão para que a ajudasse a se levantar.
— Eu deveria te deixar aí no chão. — retrucou ele, ao pegar em sua mão e a levantar — E a propósito, educação física não é chato.
— Educação física não é aula, é um passatempo que não deveria existir na escola, só serve para atrapalhar meus estudos. — argumentou Rosalia, dando o primeiro passo para seguir na frente.
— Fala assim porque suas notas são péssimas nessa aula. — ele riu dela.
— Já disse, não é aula, é passatempo. — corrigiu ela, num tom mais empoderado.
— Vocês dois um dia vão se casar, só acho. — comentou , rindo de ambos, e da careta que fizeram.
Os amigos seguiram para sala de aula, enfrentando mais três horas de aula, até serem dispensados. Naquela sexta, decidiu seguir para casa sozinha e caminhando, por mais que sua mãe lhe desse dinheiro para a passagem do ônibus, em alguns dias ela variava sua rota. Como o outono era sua estação favorita, nada melhor do que uma caminhada ao ar livre para apreciar a beleza da paisagem e dos tons terrosos das folhas caídas ao chão.
— Olha só, a filha da empregada está sem dinheiro para voltar para casa. — a voz de a despertou de seus pensamentos, fazendo-a parar.
Com o olhar assustado, sentiu um frio na espinha ao ver que o menino não estava sozinho, e tinha a companhia de mais dois amigos. A pequena não somente o achava estranho, como também tinha um certo medo dele, devido ao seus atos de aterrorizar alguns dos alunos bolsistas e sempre se meter em brigas de rua, mesmo com pouca idade.
— Está assustada em me ver?! Estudados na mesma escola. — continuou ele, num tom intimidador, ao se aproximar dela.
— Eu só quero ir para casa. — sussurrou , sentindo seu corpo paralisado pela proximidade dele.
O caçula Magnus já havia completado seus treze anos de idade, e ao contrário de que tinha apenas dez, ainda estudava no Constance Elite Elementare, por ter sido reprovado por dois anos. Considerado o terror dos professores, suas notas apenas haviam melhorado graças a constantes doações generosas do pai, aos cofres da instituição.
— A gente pode ir pra casa juntos. — ele sorriu de canto, tinha uma malícia nos olhos — Assim meus amigos também poderão te conhecer.
— Senhor Magnus, por favor, eu quero ir sozinha. — pediu a menina, deixando sua voz baixa, e reprimindo os traços de medo de seu rosto — Por favor.
Ela sabia que não era um bom garoto e tinha testemunhado isso na noite em que conheceu o primogênito da família. Alguém com tanto ódio pelo irmão no coração, era capaz de qualquer maldade com terceiros.
— Que isso, não precisa ficar tímida… — ele segurou forte em seu braço, a puxando para mais perto — Deveria se comportar como sua mãe, já que eu sou o patrão.
relutou com mais determinação às investidas dele, e em um relance de distração em que tentou mostrar força aos amigos, ela conseguiu se soltar dele o empurrando e lhe dando um tapa em seguida.
— Eu pedi para me soltar. — ela finalmente conseguiu a coragem para elevar mais seu tom de voz, mesmo com medo que aquilo pudesse prejudicar sua mãe.
— Ih, ela te humilhou. — Andreas lançou uma chacota do amigo, enquanto o outro ria.
— Sua vadia… — a olhou com raiva, então levantou a mão para bater nela.
Assim que deu impulso, no susto foi parado por outra pessoa que se colocou ao lado da menina.
— O que acha que está fazendo?! — a voz grossa e firme de , fez o corpo da menina estremecer por dentro, assim como seu irmão engolir seco.
— Me solta. — disse , forçando o tom de ordem.
— Se for para bater, que seja em alguém mais forte, assim vale a pena se gabar depois. — o primogênito largou o braço do irmão bruscamente, quase o fazendo cair ao chão, mantendo sua atenção fixa nele — Se está com raiva por eu ainda estar vivo, não desconte nela, venha e me mate adequadamente. Desconte em mim.
— Eu te odeio! — gritou , assustando até mesmo seus amigos.
— Volte para casa e esqueça o que aconteceu aqui. — ordenou , ao voltar seu olhar para .
A menina assentiu, ainda sentindo seu coração acelerado pelo medo, então dando o primeiro passo para se afastar, seguiu na direção contrária para chegar ao ponto de ônibus. Das muitas vezes que foi coagida por ao longo dos últimos sete meses, aquela havia sido a mais pesada de todas, e desta vez não guardaria segredo da mãe. já estava se sentindo mais do que sufocada ao morar na mansão da família, ao ver a mãe sendo explorada pelo senhor Magnus de todas as formas possíveis, e não poder contar que sabia.
Após a saída da menina, os irmãos Magnus continuaram a se encarar por alguns minutos em silêncio, até que…
— Vocês dois, se não querer sair daqui com o olho roxo, aconselho que se mandem daqui. — disse , com o olhar atravessado para eles.
— Aonde vão?! Estão com medo dele? — gritou aos amigos, ao vê-los sair correndo — Maricas… E você? O que acha que está fazendo, chegando aqui e bancando o irmão mais velho?!
— Eu sou seu irmão mais velho… — arregaçou as mangas de sua camisa em poucos movimentos e com certa elegância, então o olhou com seriedade — E acho que tenho que te lembrar disso.
Não foi uma surpresa para os pais quando chegou em casa com cortes na boca e o olho roxo, entretanto, ficaram mais felizes por ter o primogênito em casa naquela noite. Uma visita rápida e inesperada que acabou sendo benéfica para a filha da empregada.
— Como está sua filha? — perguntou , assim que foi servido por Lídia na mesa do jantar.
A mulher paralisou pela pergunta, tentando entender quando que havia tido algum contato com os filhos do patrão.
— Responda ao meu filho, Lídia. — o tom de ordem de Francesco a despertou, ele também estava curioso por aquilo.
— Está bem, senhor . — disse a mãe, sentindo um aperto no coração — Agradecemos pela bolsa de estudos que o senhor interviu para que ela recebesse, minha filha tem se esforçado muito para ser uma boa aluna.
— Satisfeito com a resposta, filho? — Marie controlou seu olhar de raiva para a criada, ela sabia muito bem o que acontecia no escritório do marido todas as noites, e odiava o fato de mãe e filha estarem na mansão.
— Sim, mãe. — voltou sua atenção para o irmão, que mantinha um sorriso de deboche para ele.
O caçula mesmo com raiva de ter apanhado dele, não se continha em deixar o sorriso de deboche estampado em seu rosto.
— Pode se retirar Lídia, deixe que Gertrudes conduza o jantar. — ordenou Marie, lançando o olhar para o marido, um recado oculto para que não a contrariasse na frente dos filhos.
— Sim, senhora. — a empregada assentiu com a cabeça e se retirou da sala de jantar.
Preocupada com a filha, seguiu até o quarto, onde a menina estava fazendo sua lição de casa. Lídia ficou um tempo em silêncio, apenas observando-a com carinho, até que despertou a atenção da menina.
— Mãe?! O que faz aqui? E o jantar? — perguntou , confusa por sua presença.
— Está tudo bem com o jantar, mas… — ela se aproximou mais da filha e sentou na cama ao lado — O primogênito Magnus, perguntou por você.
— Perguntou por mim?! — a menina sentiu um frio na espinha.
— , eu quero que seja honesta comigo. Tudo bem? — pediu ela, analisando as expressões da filha.
— Tudo bem. — concordando com a mãe, ela reuniu coragem para falar o que fosse preciso para ambas saírem daquela casa.
— O que aconteceu entre vocês dois?! — perguntou Lídia, temendo a resposta, porém, disposta a ouví-la.
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8 meses atrás…
— Não consigo imaginar desgosto maior que ter você como filho. — aquelas palavras saíram da boca de Francesco como uma adaga afiada.
Como uma lâmina cheia de veneno sendo travada no coração do filho caçula. Não era novidade para a preferência dos pais pelo irmão, e por mais que tentasse chamar a atenção deles, a única coisa que lhe restava eram as surras que ganhava do pai quando o mesmo se frustrava com algo. E nem mesmo a socialite Marie, o agraciava com o mínimo de afeto materno.
— Faça um favor para esta família e mude seu comportamento, se torne pelo menos a metade do que seu irmão é e já será uma preocupação a menos. — ordenou o pai, ao levantar a mão para ele mais uma vez e bater em seu rosto — Da próxima vez que você envergonhar esta família, vou esquecer que tem o meu sangue e lhe dar o mesmo tratamento que dou a quem me aborrece.
— Pai. — interviu nas palavras dele, chamando-a a realidade — Sei que está bravo, mas mal fez treze anos, não deixou de ser uma criança e ainda tem muito o que aprender… Não acha que está sendo rígido demais.
— Você com esta idade já era mais responsável que muito adulto que conheço. — Francesco olhou para o primogênito, mantendo seu tom sério e o rosto inexpressivo — Seu irmão precisa aprender que não é mais uma criança, e deve começar a agir como um Magnus de verdade.
— E para que eu preciso ser um adulto, o senhor já tem seu escolhido, eu nunca serei nada nesta família mesmo. — com a mão no rosto, revoltado pelo que o pai lhe fez, saiu correndo dali segurando o choro de raiva.
— Vá e não deixe que ele cometa mais nenhum absurdo. — ordenou o pai, mais áspero e impaciente.
— Amanhã eu volto para Londres, não estarei aqui para vigiá-lo, então deveria aceitar a oferta da diretora Morellis e fazer a doação a escola, assim se formaria no fundamental e eu poderia ficar de olho nele na Inglaterra. — aconselhou o pai, sabendo que sua ideia era plausível.
— Acha que não posso controlar seu irmão? — o pai o confrontou, elevando mais a voz.
— Ele odeia a todos nessa casa, mas pelo menos eu consigo contê-lo. — argumentou o filho, validando sua proposta — Pense sobre isso, eu vou atrás dele.
se afastou do pai e saiu da garagem, seguindo em direção ao jardim. Após caminhar alguns minutos procurando pelo irmão, o encontrou parado em frente a piscina. Ao respirar fundo, se aproximou dele mantendo o silêncio.
— O que está fazendo aqui? Veio rir de mim? — o tom amargo era nítido na voz de — Se gabar por ser o preferido?!
— Não, só quero saber se meu irmão está bem. — respondeu , mantendo a atenção na piscina à sua frente.
— Se estivesse mesmo preocupado comigo não ficaria assistindo enquanto ele me bate. — cuspiu a frase como se tivesse entalado em sua garganta — Pare de se fazer o irmão que se importa, porque eu sei que não se importa.
Ele deu um passo para se retirar.
— , espere. — o segurou pelo pulso — Vamos conversar.
— Eu não quero conversar, eu te odeio. — o caçula soltou seu braço com mais raiva ainda — E a única coisa que eu quero é que você morra.
o empurrou na piscina e saiu andando como se nada tivesse acontecido. Aquilo não seria um problema, apenas um desabafo de irmão descontando sua revolta no mais velho, exceto pelo fato de que não sabia nadar, e que possivelmente seu desejo se tornaria realidade.
Entretanto, a vida é imprevisível e de longe, a pequena observava todo o drama da família Magnus. No impulso após voltar do choque que foi ver um irmão empurrando o outro, ela se lembrou do comentário dos empregados sobre o primogênito ter um certo trauma da piscina por ter se afogado aos seis anos de idade. Foi então que a menina correu até lá e pulou na água sem se dar conta das consequências, afinal, ela poderia se afogar junto ao tentar salvá-lo.
— Você é muito pesado… — disse ela, com certa dificuldade ao tentar nadar e puxá-lo ao mesmo tempo.
Para sorte ou falta dela, o garoto já estava desacordado naquele momento, facilitando o projeto de resgate. Com muito esforço, ela conseguiu tirá-lo da água, e se lembrando dos procedimentos de primeiros-socorros que tinha aprendido na aula de ciências, começou a fazer a reanimação cardiopulmonar, repetindo as compressões torácicas por várias vezes até finalmente obter uma resposta positiva dele.
— Você está bem?! — perguntou ela, assim que ele começou a tossir dando sinal de que voltou a respirar.
— Acho que engoli muita água. — respondeu ele, ao voltar seu olhar para ela, inicialmente pensando que fosse outra pessoa — Quem é você?!
nunca havia visto ela na mansão, afinal, a mais importante das regras era que a pequena não poderia ficar passeando pela casa e nem se aproximar dos filhos dos donos.
— Meu nome é . — disse ela, num tom baixo ao se apresentar para ele — Sou a filha da Lídia.
manteve seu olhar mais profundo enquanto a encarava. Mesmo que seu coração estivesse acelerado por causa do ocorrido, não conseguia entender o que estava sentindo naquele momento.
Um misto de encantamento e raiva que mantinha sua atenção fixa nela.
Como a filha de uma criada ousou tocá-lo e salvar a sua vida…
Caindo (tudo está) caindo
Por tua causa eu me estraguei assim.
— I Need U / BTS
Toscana, outono de 2010
Para aqueles que pensam que apenas os mais afortunados poderiam ter o mundo em suas mãos, saibam que até mesmo para os filhos da máfia, nascidos em berço de ouro, nem sempre o dinheiro significava a liberdade. Uma realidade que Diana Tommaso estava experimentando, com o castigo que o pai lhe deu, após descobrir de seu romance com o jardineiro recém contratado.
— Pietro! — A voz da jovem soou esperançosa ao vê-lo, exatamente no ponto que haviam marcado de se encontrarem.
— Diana… — O sussurro dele fez o corpo de sua amada estremecer, sendo contemplada por um beijo acolhedor. — Por um momento, pensei que não viesse.
— Seu bobo, eu te amo — sussurrou ela de volta, sentindo uma aquecida no coração. — Jamais deixaria de vir.
Na alta madrugada, a esperança parecia ser a companheira do determinado casal e sua última tentativa de ficarem juntos e viver o amor proibido. Fugir de casa foi a parte mais fácil para Diana, pois não conseguia se imaginar casando-se por obrigação com um homem que já havia enterrado quatro esposas, no entanto, encarar o fato de ficar longe de sua família, se escondendo do pai, seria o mais doloroso para ela.
— Está arrependida?! — indagou Pietro, ao pegar a mala dela para carregar com a sua.
— Jamais, não me importo para onde vamos, desde que seja com você — assegurou ela, certa de sua decisão arriscada.
Um sorriso surgiu no rosto do homem, que sentia o coração acelerado pelas palavras dela, então uma longa pausa para mais um beijo apaixonado internamente fez o casal sentir o gosto da separação, o que de fato pareceu um vislumbre de premonição, sendo concretizado antes do amanhecer.
— Nunca imaginei que uma de minhas filhas me traria tamanha desonra. — O tom amargo e frio de Elio Tommaso despertou a atenção do casal.
Um frio gélido passou pelo corpo da jovem, temendo pelo pior, ao notarem que estavam cercados por homens armados.
— Papai… Por favor. — Diana não conseguiu controlar o tom de desespero em sua voz, se colocando à frente do seu amado.
— Saia da frente. — Elio retirou a arma da cintura, apontando para o rapaz atrás dela. — Ou me esquecerei que é minha filha.
— Papai… — Diana sussurrou, com lágrimas nos olhos.
— Senhor, por favor, faça o que quiser comigo, mas não machuque a sua filha. — Pietro, em seu pequeno passo de coragem, se colocou à frente da arma, trazendo sua amada para trás. — Eu amo sua filha…
— Um ninguém como você não tem o direito de amar alguém como minha filha. — Elio manteve seu olhar firme, mantendo a mira, então olhou para o lado, fazendo o sinal para que seus homens afastassem sua filha.
Logo, cinco homens se aproximaram. Dois seguraram nos braços da garota, a arrastando para longe dele, enquanto os outros seguraram o rapaz e começaram a socá-lo. Aos gritos de Diana por piedade, em desespero e agonia, a jovem foi forçada a assistir seu amado sendo espancado pelos homens do seu pai, no qual seus gemidos podiam ser ouvidos com nitidez.
— PAIIII!!! — o grito de Diana fez com que os homens parassem a sequência de socos e chutes. — Por favor… Eu faço o que o senhor quiser… Eu me caso com o senhor Manchini… Serei a esposa perfeita para manter a honra da nossa família… Mas, por favor, não o mate.
O chefe Tommaso deu alguns passos até a filha, com o olhar rígido, parcialmente inexpressivo.
— Saiba que estou desapontado com você, mas espero que cumpra com sua palavra — disse o pai, rudemente. — Ou ele sofrerá as consequências.
Diana assentiu com a cabeça, ao voltar o olhar para Pietro ao chão, ensanguentado. Com o aperto no coração, ela fechou os olhos, tentando guardar no mais profundo de sua memória o gosto doce do beijo dele.
— Joguem-no no beco da morte — ordenou o chefe Tommaso, ao referenciar a rua em que os banidos da máfia são jogados. — E marquem-no para que se lembre desta noite.
Mais lágrimas rolaram no rosto de Diana, enquanto era arrastada até um dos carros. Para a jovem, sua vida havia acabado naquele mesmo instante, sobrando apenas suas memórias como seu último fôlego.
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— Bonjour, senhoritas — disse Andreas, ao se aproximar das carteiras das garotas na sala de aula.
— Bom dia, And — respondeu Teresa, num tom animado ao olhá-lo com um brilho nos olhos.
— Bongiorno — respondeu Angela de forma desinteressada, mantendo o olhar no celular em sua mão.
— Quem é vivo sempre aparece para aula de manhã — brincou Roberto, rindo da careta do amigo.
— Achei que não viesse hoje, já que seus pais iriam viajar — comentou , ao chegar logo atrás, surpresa pela presença do amigo. — Você passou a semana se gabando que iria para as Maldivas.
Uma risada tímida soou de Giorgia, que estava ao lado da amiga, dando um aceno singelo. A delicada garota, mesmo sendo do grupo desde o jardim, ainda tinha certas dificuldades de socialização, muitas delas traumas de infância pelo casamento conturbado dos pais.
— Ah, Queen, nem me fale disso. — Ele bufou um pouco, com chateação. — Achei mesmo que fosse me livrar da semana de provas e simplesmente ir para o paraíso, mas parece que a viagem deles é apenas de casal.
— Esqueceram de mim, versão Riina. — Roberto soltou uma gargalhada maldosa, fazendo os outros rirem.
— Nem comento. — Andreas puxou sua cadeira e sentou, ainda inconformado com sua realidade. — E onde está nosso amigo?
— ? — indagou Giorgia.
— O próprio, quem mais seria?! — Andreas a olhou confuso.
— Ele não vem hoje — respondeu , ao se sentar também, soltando um sorriso cansado.
Dos muitos problemas que a garota estava enfrentando em casa por causa da irmã, ela ainda dividia sua atenção com os irmãos mais problemáticos que existiam no grupo de amigos da elite: os Magnus. e , por muitas vezes, a fizeram passar madrugadas em claro. Ambos crescendo juntos pela amizade entre as famílias, só ajudou ainda mais em sua aproximação e intimidade com os meninos.
— Sabe de alguma coisa? — perguntou Angela, interessada na informação.
— Reuniões de família — respondeu a Tommaso, abrindo o livro de geografia, pois seria a primeira aula. — Nada demais.
— Então já sabemos que ele não vai aparecer nos próximos dias — concluiu Roberto, já entendendo a situação do amigo.
— Algum problema com isso? — insistiu Angela, curiosa.
A recém-chegada no grupo, assim como a irmã gêmea, não conhecia os segredos ocultos das famílias que pertenciam à máfia, menos ainda o quão pesado era ser um herdeiro nascido neste mundo.
— Todos possíveis — sussurrou Giorgia, chateada pela notícia.
Em minutos, a atenção de se desviou para a filha da empregada, que passava pelo corredor, acompanhada dos amigos. A garota Tommaso não sentia nenhum pouco de afinidade com ela, não somente por sua classe social, como pelo fato de já ter notado que os irmãos Magnus sempre mantinham um olhar discreto para a garota invisível.
Em um rompante, se levantou de sua mesa e seguiu para o corredor, a fim de . Ao chamá-la, elevando mais a voz, fez os três amigos pararem paralisados pela abordagem, e parando em sua frente, precisou forçar sua resiliência para se dirigir a ela.
— Preciso falar com você — pronunciou para ela.
— Senhorita Tommaso — disse Rosalia, surpresa com o chamado dela, sem saber com quem dizia.
— Rosa, você e seu amigo poderiam nos dar licença? — tentou ponderar, porém soou como ordem.
— Claro, senhorita. — Rosalia segurou no pulso de Matteo e o arrastou para saírem de lá. — Te esperamos na sala.
— O que a senhorita deseja? — perguntou , ainda surpresa com a aproximação dela.
— Quero saber o que está acontecendo na mansão dos Magnus. — foi clara e objetiva.
— Me desculpe, mas não sou autorizada a entrar na casa grande, menos ainda me aproximar dos herdeiros — respondeu , demonstrando não poder ajudar.
— Não é o que me parece, já que você sempre está no campo de visão deles — retrucou , sentindo uma ponta de ciúmes.
— Senhorita… — se sentiu levemente intimidada pelo olhar atravessado dela.
— Espero mesmo que você permaneça bem longe deles, para o seu bem. — Mais uma vez em tom de ordem. suavizou mais seu olhar, ao notar curiosos atentos a elas. — Pessoas como você, apenas destroem o futuro de…
A garota Tommaso estava com raiva, não de , mas do jardineiro que havia seduzido sua irmã mais velha e instaurado o caos em sua casa. Não queria descontar na menina, mas, sabendo que os irmãos Magnus também tinham uma sutil curiosidade a respeito da filha da empregada, isso já era motivo para deixá-la irritada.
— Sim, senhorita. — Assentiu , algo que ela mais queria.
A pequena Miller sabia que, lá no fundo, mesmo sua mãe não admitindo, havia sido alguma família da máfia que tinha matado seu pai e parentes. E o que mais desejava era sumir da mansão Magnus com Lídia e ser livre bem longe dos olhares que lhe causavam medo. Em instantes, o toque do celular de interrompeu a tensão criada no ambiente, dando a a oportunidade que precisava para se afastar dela e seguir para as escadas onde os amigos curiosos lhe esperavam.
— Sim — disse ela, ao atender a ligação da irmã mais nova.
— Papai trouxe a Diana de volta, e parece que teremos bolo de casamento. — A voz da caçula pingava sarcasmo e deboche.
apenas respirou fundo e encerrou a ligação. Não que ela odiasse a irmã mais nova, porém Elena era apenas uma meia-irmã misturada à ideia de ser também sua prima. Um pequeno detalhe que existia na família Tommaso, graças à inveja e persistência de uma irmã ambiciosa, afinal, não era novidade para ninguém o constante interesse de Marcella pelo cunhado. Contudo, após a morte precoce da irmã, era um tanto quanto óbvio que a próxima a ocupar o cargo de esposa seria exatamente ela.
— ?! — A voz de Giorgia a despertou de seu devaneio. — Está tudo bem?
— Sim. — Assentiu a garota, ao notar que a filha da empregada já havia se retirado.
— Você saiu da sala com tanta pressa e ficou trocando palavras com a filhote de criada. — Giorgia a olhou curiosa, tentando entender o assunto que poderia ter rolado entre elas. — Aconteceu alguma coisa?
— Não, nada que seja importante compartilhar. — respirou fundo, reunindo forças para conseguir levar as horas de aula até o final.
As horas parecem longas quando estamos ansiosos para algo. Não que Tommaso se enfadasse facilmente com as aulas, pelo contrário, assim como os irmãos, ela tinha o dever e obrigação de orgulhar sua família seja em qualquer lugar. E no Constante não era diferente, a melhor aluna da escola e capitã das cheerleaders, popular e mais influencer que as mais destacadas socialites de toda Itália.
— Quer carona hoje? — perguntou à amiga, enquanto se levantava da cadeira, ajeitando sua bolsa.
— Ah, não — recusou Giorgia, mantendo seu material em cima da mesa. — Vou passar na biblioteca antes, preciso devolver alguns livros e tenho aula de reforço em inglês, após o almoço.
— Te vejo na segunda então — informou ela, dando o primeiro passo para se retirar da sala.
— Você não vai à minha festa?! — indagou Andreas, enfatizando a pequena recepção que organizava na casa dos pais. — Já não teremos o , você não pode deixar de ir.
— Farei o possível para comparecer, mas sabem que minha família agora está se preparando para o casamento da minha irmã, então… — Ela a fez entender suas prioridades pontuais.
— Ah, é verdade — concordou Giorgia, percebendo a preocupação disfarçada no olhar da amiga. — Seus amigos receberão o convite?
— Mas é claro que sim. — Assentiu a garota, já se adiantando para sair.
seguiu até o portão, onde o motorista já a aguardava para lhe conduzir até a mansão. No caminho, ela retirou o celular da mochila e mandou uma mensagem para o amigo.
…
Está acordado?
E por que não estaria?
Já estamos quase na hora do almoço.
Você não foi à escola,
mesmo tendo prova de alemão.
Eu já sou fluente, não preciso provar nada.
kkkkkkkkkkkk
Ainda assim precisa de notas para se formar.
Poderia me mandar um áudio.
Gosto da sua voz
Hum…
Como está?
Como eu tenho que estar?
Estou falando sério.
Você não foi à aula hoje.
Sabe que me preocupo.
Como pode uma garota de 12 anos
parecer mais a minha mãe que minha própria mãe?
?!
kkkkk
Te tenho como um irmão.
Sabe que quero ser bem mais que isso.
Ela soltou um suspiro profundo, olhando rapidamente para a janela do carro, vendo a vida se passando do lado de fora.
Hmm…
Sabe que não pode.
Você sabe o motivo…
Mas logo estaremos longe deles.
Vai mesmo se formar com a gente?
Claro que vou.
Ensino médio londrino nos aguarda.
Me liga, caso precise desabafar.
Um sorriso espontâneo surgiu no rosto dela ao ver alguns emojis sendo enviados por ele. Era raro os momentos em que se demonstrava descontraído e despreocupado com seus problemas com o pai e, na maioria das vezes, era ela quem mais apoiava o amigo em seus momentos de dor e angústia. Guardando novamente o aparelho na mochila, logo percebeu a aproximação do carro no portão de entrada do condomínio. Alguns metros depois, finalmente estava descendo do veículo em frente à entrada da mansão Tommaso.
— Voltando à realidade — sussurrou ela, ao subir os poucos degraus da entrada.
Sendo recebida na porta pela empregada, o olhar de passou pela sala, já encontrando seu pai e irmão conversando. Assim como todos os outros chefes de família, Elio Tommaso tinha aquela figura rígida e sombria de um mafioso implacável. Com a ajuda de sua cunhada, Marcella, após o acordo de casamento para que ela cumprisse a promessa de ajudá-lo com os sobrinhos, ele pôde seguir com a criação dos três filhos, frutos de seu amor por Franci, a mulher que verdadeiramente detinha seu coração e havia sido levada precocemente, vítima de leucemia.
Não era surpresa para a presença do irmão na cidade, já que o primogênito, Marco, estava sendo preparado para se tornar o braço direito do pai nos negócios. Entretanto, o que mais a deixava irritada era a notória demonstração de favoritismos do chefe da família pela pequena Elena, a princesinha caçula da casa, resultado de uma gravidez meticulosamente calculada pela tia para manter o casamento com o cunhado.
— Buongiorno, papà — disse ela, interrompendo a conversa de ambos, chamando a atenção para ela. — Buongiorno, Marco.
— . — O irmão sorriu de canto, erguendo de leve a taça de vinho em sua mão.
— Chegaste cedo, filha. — Elio a observou se aproximar deles. — Algo de errado na escola?
— Não, eu sempre chego neste horário — respondeu ela, mantendo a suavidade em sua voz. — Apenas não está aqui para receber sua filha todos os dias.
— Direta e sincera como sua mãe — comentou ele, mantendo a seriedade no rosto.
Aquele era o lado que Elio mais admirava em sua filha e ao mesmo tempo mais detestava. Apesar do jeito sereno, delicado e paciente que demonstrava ter, no fundo, seu lado racional a instigava a ser obstinada e empoderada.
— Onde está Diana?! — Sem rodeios, ela chegou ao assunto que queria.
— Não deveria se preocupar com ela — reforçou o pai, num tom mais áspero. — Mesmo sua irmã quase levando nosso nome e honra para a lama, ainda teremos uma festa de casamento na próxima semana.
— Onde ela está?! — insistiu , conhecendo bem o pai que tinha.
Mesmo com seus doze anos, ela já havia visto o pai sendo cruel e abusivo em diversos momentos. E em todos ela precisou ser forte para conseguir dormir à noite.
— No quarto — respondeu Marco, sentindo a impaciência do pai.
— Por que tanto quer saber? — indagou Elio, analisando as expressões da filha.
— Não posso mais saber sobre minha irmã? — retrucou ela, devolvendo a pergunta.
— Claro que pode. — Elio riu baixo. — E aconselho que aprenda com o erro dela, para assim não cometer o mesmo.
— Eu sei dos meus deveres com esta família, papai. — manteve a firmeza em sua voz. — Esteja certo de que não haverá desonra de minha parte.
Sem dar direito a uma argumentação do pai, apenas deu o primeiro passo para se retirar e seguiu até às escadas, subindo mais que depressa para o quarto da irmã. Com o coração aflito pelo que poderia ter acontecido para que o pai encontrasse a irmã e mais ainda preocupada com o que viria a acontecer com ela após o casamento arranjado.
— Diana?! — A voz de soou da porta, após o som de dois toques. — Posso entrar?
— Sim. — A voz baixa e falha da jovem teve entonação suficiente para que a irmã ouvisse.
— Você está bem?! — indagou ela, ao adentrar o quarto e fechar a porta.
O olhar de permaneceu atento à irmã, notando as olheiras aparentes e a expressão que confirmava as muitas lágrimas derramadas.
— O que você acha?! — Diana reprimiu o soluço pelo choro de toda a noite e manteve o olhar voltado para a janela. — Eu odeio ser dessa família… Odeio tudo isso.
— Di… — se aproximou mais dela e sentou na beirada da cama, pegando em sua mão para confortá-la. — Você sabia muito bem que algo assim poderia acontecer.
— Eu não sei como ele descobriu… — reclamou ela, suspirando fraco.
— Não deveria ter fugido — disse , sendo a única que aparentemente sabia dos planos da irmã. — Eu disse que era perigoso para você.
— Eu deveria ser dona das minhas próprias escolhas, … — Ela soltou um suspiro cansado e chateado. — Eu tenho vinte anos… Por que eu me sinto mais presa que os empregados desta casa? Até a filha da cozinheira tem mais liberdade que a gente.
— Eu sei que é clichê falar isso, mas, com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades — disse a menina, num tom descontraído, a fazendo rir um pouco.
— Mas não somos heroínas de quadrinhos — retrucou Diana, voltando o olhar marejado para ela. — Eu não quero passar o resto da minha vida ao lado daquele velho rude e grosseiro.
— Você sabe que o papai tinha outros planos para você — argumentou , demonstrando o descuido dela. — Não quero dizer que a culpa foi sua, mas deveria ter sido mais cuidadosa… Você se envolveu com o jardineiro e nem mesmo conseguiu disfarçar… E agora com sua fuga mal sucedida…
— Ele me ama, e eu o amo. — Diana abaixou o olhar, segurando as lágrimas que insistiam em escorrer pelo rosto. — Não sou como você, que sempre foi racional e consegue esconder seus sentimentos…
Um breve silêncio pairou entre elas, que se podia ouvir o som dos pássaros do lado de fora.
— Olha só como estamos aqui, eu sou a mais velha e ainda te peço conselhos — confessou ela a realidade.
— Diana… — a olhou com carinho. — Tem certeza desse sentimento que a fez cometer uma loucura? Você o conhece há apenas cinco meses… E olha o caos que se instaurou em nossa família.
— Eu o amo… Nunca tive tanta certeza em minha vida. — Assegurou a mais velha, com certeza no olhar.
— Eu não sei o que te dizer… — respirou fundo, temendo o peso de suas palavras. — Só peço que não tome mais nenhuma atitude impensada, não é somente a sua vida que está em jogo.
— Eu sei. — Diana forçou um sorriso e a puxou para um abraço. — São três vidas…
— Como assim?! — se afastou de leve, a olhando confusa por suas palavras.
— Estou grávida — sussurrou Diana, voltando a lacrimejar.
— Di… Se o papai descobre — comentou ela, sem saber o que pensar diante da situação.
Era insana a turbulência de acontecimentos, mas na máfia sempre era assim, não havia nada tão ruim que não pudesse piorar.
— Por isso que concordei que o casamento fosse na próxima semana — disse Diana, certa de que pelo menos o pequeno ser que havia dentro dela iria sobreviver a todo aquele horror. — Se o senhor Mancini achar que o filho é dele, ainda terei uma parte do Pietro comigo.
— Sabe que é arriscado. — não queria trazer nenhum peso para a irmã, mas tinha que novamente lhe trazer para realidade.
— Eu sei, mas estou segura de que vai funcionar. — Assegurou Diana, com base nas informações que havia recebido do irmão mais velho.
— Sabe que sempre terá meu apoio, não importa qual decisão tola que tome — reforçou ela, voltando a abraçá-la.
— Você é a melhor irmã do mundo — sussurrou Diana, ao sorrir com leveza, retribuindo o abraço.
Após o abraço, se levantou e deu um beijo na testa da irmã. Com um olhar de conforto, se afastou dela e retornou para a porta, seguindo para seu quarto. Após um banho relaxante, se manteve vestida com o roupão de banho, enquanto escolhia o que vestir. De repente, o toque do celular lhe chamou a atenção, era uma ligação de .
— Buongiorno — disse ela, ao atender, sentindo um sorriso surgir em seu rosto.
— Já passamos do almoço. — A voz firme dele soou do outro lado, com um toque de suavidade.
— Para mim, sempre é dia, já deveria estar acostumado — respondeu ela, rindo com leveza. — Achei que não fosse me ligar, já que está em casa desde ontem.
— Perdoe-me pelo silêncio — disse ele, tentando se redimir. — Reunião de família.
— Bem, isso não impediu o de me mandar inúmeras mensagens — retrucou ela, em provocação.
— Meu irmão não possui as mesmas obrigações que eu — explicou ele, em sua defesa.
— Sempre uma desculpa pronta, senhor Magnus. — Ela deu alguns passos para dentro do quarto, se aproximando da cama para se sentar. — Deixarei passar desta vez.
— O que me diz de um passeio ao ar livre? — sugeriu ele, em tom de convite. — Já almoçou?
— Ainda não — respondeu, curiosa. — O que eu teria neste passeio?
— Hum… Digamos que toda a minha atenção — respondeu ele, confiante em sua proposta.
— Ter a atenção de Magnus por um dia?! — Ela se viu surpresa.
— Uma tarde… E com direito a almoço especial — acrescentou ele, tornando irrecusável. — Te dou dez minutos para trocar de roupa.
— Onde está?! — perguntou ela, se aproximando da janela para conferir sua teoria.
Um som de riso surgiu do outro lado.
— , onde você está?! — perguntou , novamente, tentando encontrá-lo.
— Não adianta me procurar, não direi. Agora volte para dentro e se troque. Sabe que sou ciumento, não quero que outros te vejam de toalha — disse ele, ponderando seus risos.
— Abusado. — Ela riu, enquanto retornava para o closet. — Vou desligar e estarei em frente à mansão em dez minutos.
— Nove — retrucou ele.
— ?! — Ela tentou repreendê-lo.
— Se questionar, abaixo para cinco — brincou ele.
soltou uma gargalhada espontânea, encerrando a ligação. Sua relação com os irmãos Magnus sempre seria uma loucura para ela, pois, assim como eles a preocupavam, também havia os momentos de descontração que a levavam aos risos e mais risos.
Suave como manteiga
Como um criminoso disfarçado
Vou explodir como no jogo Trouble
Invadindo seu coração assim.
— Butter / BTS
Toscana, primavera de 2011
Dizem que a melhor fase da vida é o colegial.
Para Miller, a escola finalmente estava se tornando mais leve, lhe dando a possibilidade de guardar boas recordações, principalmente de seus dois amigos, que viviam brigando como cão e gato. Um ponto positivo em seu segundo ano no Constance Elite Elementare School? Nada de herdeiro Magnus para lhe encarar pelos corredores, ou segui-la na volta para casa. Com ambos os irmãos frequentando a filial da escola em Londres, a garota pela primeira vez sentiu a ambicionada sensação de liberdade.
— ! — O som de surpresa partiu de Rosalia, ao ver a amiga já sentada na cadeira, fazendo algumas anotações no caderno. — Chegou cedo, caiu da cama?
— Não. — A menina riu da careta estranha da amiga. — Por que a surpresa? Eu nunca me atraso.
— Mas nunca chegou antes dela — comentou Matteo, chegando logo atrás, dando um largo bocejo.
— É que passei a noite em claro desenhando e não consegui dormir — explicou a menina, voltando a atenção para eles. — Você é que chegou cedo, Matteo, sempre se atrasa.
— Ah, é que agora que a princesinha não está mais em casa, meu pai pode me dar uma carona — explicou ele, se sentando na cadeira e apoiando a mochila na lateral da mesa.
— Verdade, os herdeiros agora estão em Londres. — Rosalia tentou não demonstrar inveja, mas a frustração dos seus olhos a condenava.
— Sim — concordou , sentindo o doce alívio interno.
Até mesmo suas escapadas noturnas para contemplar a beleza do jardim sob as estrelas puderam enfim ser em plena paz e sossego. Afinal, quanto mais ela se esforçava para ser invisível na mansão Magnus, mais seu caminho cruzava com os herdeiros, principalmente o caçula inconformado. Após saber que a tímida garota havia salvado o irmão do afogamento, sua atenção começou a se voltar para ela, a fazendo se sentir desconfortável em alguns momentos, devido aos olhares constantes e fixos de .
— Foi uma comoção na casa dos Tommaso com a partida da , tanto para os empregados, quanto para a senhora Diana. — Rosalia se sentou na cadeira da frente, que ficava ao lado do amigo. — Pelo que notei ao longo dos anos, elas são bem unidas.
— E como tem sido o casamento dela com o senhor Mancini? A última notícia relevante foi a inesperada gravidez dela. Você prometeu nos atualizar — perguntou Matteo, ao pegar seu celular, já abrindo o aplicativo de jogos.
— Não imaginava que você fosse tão fofoqueiro, Matteo — comentou Rosalia boquiaberta com a indagação dele.
— Não sou fofoqueiro, apenas curioso o suficiente para me interessar pela vida da elite — explicou ele, em sua defesa, mantendo a atenção voltada ao aparelho em sua mão. — É como uma mistura moderna de Gossip Girl e Poderoso Chefão, só que em tempo real, e nem preciso pagar tv a cabo pra assistir.
riu do comentário do amigo, enquanto Rosalia revirou os olhos.
— Curiosidade mata, sabia? — reforçou ela, voltando seu corpo para trás, olhando o desenho que a amiga fazia no canto da folha do caderno. — Foi assim que perdemos a última governanta, a senhora Le Chant fazia muitas perguntas e ouvia atrás das portas.
— Pare de me recriminar, você também vive perguntando o que se passa na casa dos Magnus — retrucou ele, com propriedade.
— A família Magnus é sempre uma exceção à regra — Rosalia argumentou ao seu favor, voltando o olhar para ele com superioridade. — Estão no topo da cadeia alimentar, então todo mundo tem curiosidades para saber o que acontece com a família perfeita.
— Eles não são perfeitos — sussurrou , com sua atenção ao desenho que fazia.
Pelo contrário. Pensou a garota, se lembrando das variadas discussões que presenciou entre os irmãos, desde o dia em que ela salvou o primogênito.
— Nenhuma família é perfeita — questionou Matteo, a encarando convicto de sua teoria. — Eles só conseguem fingir melhor que os outros.
— Fazem isso muito bem — concordou Rosalia, voltando o olhar para . — Você não tem mais nada para compartilhar com seus amigos? Tudo parece tão parado com os herdeiros em Londres.
— Vocês sabem que eu não posso me aproximar de ninguém da família, e nem faço questão — explicou sua falta de informações, sentindo um leve calafrio. — Sempre que chego em casa, permaneço na ala dos empregados, reclusa no meu quarto. Mamãe também não me conta nada.
— Nossa... Até eu tenho mais liberdade, mesmo com os olhares atravessados da senhora Marcella — comentou Rosalia, soltando um suspiro fraco. — Me livrei da miss perfeita, mas ainda tenho que aguentar a tia e o projeto de naja.
— Projeto de naja? De quem você está falando? — perguntou Matteo, confuso pela colocação dela.
— Da princesinha Elena. — Rosalia pegou sua mochila e abriu para retirar o caderno. — Nunca vi alguém mais dissimulada que ela. Só tem nove anos e já é pior que a mãe em termos de falsidade… Já ouvi pelas portas várias discussões da com o pai, pela caçula sempre se fazer de vítima.
— Acho que me lembro dela em um jantar em que o senhor Tommaso foi convidado pelo casal Cassano — comentou Matteo, puxando o fato em sua memória. — Ela é prima e meia-irmã da . Isso me chocou quando você contou pra gente.
— Conviver com o filhote de cobra tem sido pior que os olhares repreensivos da . — Rosalia riu de nervoso. — A miss perfeita pode até ser educada e carismática com os outros empregados, mas comigo sempre foi áspera e autoritária, principalmente quando recebe convidados vip.
— Bem, os outros empregados não possuem a idade que nós temos, são bem mais velhos — explicou , ao se lembrar das palavras de , a ordenando a permanecer longe dos irmãos Magnus. — Levando em consideração o que aconteceu com a irmã dela.
— Verdade, coitado do Pietro... Agora vai passar a vida preso em uma cadeira de rodas — concordou Rosalia, lembrando do destino de todos que cruzavam os caminhos dos donos da máfia. — Ainda sonho com o dia que poderei sumir desse lugar e realizar meu sonho de Harvard.
— Achei que você fosse se candidatar ao MIT. Da última vez, disse que tinha mudado de ideia — comentou , surpresa pela mudança de planos da amiga.
— Olha, eu não me importaria se conseguisse uma bolsa de estudos de qualquer uma das duas — respondeu Rosalia, passando as folhas do caderno, enquanto vislumbrava seus sonhos. — Mas descobri que as entrevistas para estrangeiros no MIT são escassas e difíceis de passar, o que significa que tenho que concentrar minhas energias em Harvard.
— Desejamos boa sorte! — disse , admirada com a determinação dela. — Se eu conseguir uma vaga na Universidade de Milão, já me dou por satisfeita.
— Vocês duas não acham que é cedo demais para escolher uma universidade? Ainda temos tempo para saber o que fazer — questionou Matteo, estranhando a ansiedade delas, afinal, ele detestava estudar.
— Fale por você, que é um preguiçoso — retrucou Rosalia, decidida quanto aos seus planejamentos. — Quanto mais cedo eu me preocupar com o meu futuro acadêmico, mais eu estarei preparada para conquistá-lo.
— Eu não sou preguiçoso, só acho cansativo estudar agora e ainda ter que me preocupar com o que vou estudar no futuro — reclamou ele, emburrando a cara. — Além do mais, já sei o que quero ser... Jogador de futebol.
— E se você não conseguir? — indagou Rosalia, lançando um olhar duvidoso para ele.
— Se eu não conseguir, então serei um empreendedor. Vou abrir minha própria loja de artigos de futebol — exclamou ele, com um tom orgulhoso do seu plano B. — Ser um escravo da máfia é que não serei. Sei muito bem o que meu pai passa.
— Genial. — Rosalia, com desdém, deixou soar de forma sarcástica. — E vai falir no primeiro ano, já que você é péssimo em matemática.
— É para isso que tenho amigas inteligentes. — Ele voltou o olhar para , com um sorriso carismático.
— Não olhe para mim — disse , segurando o riso. — Não me envolva em seus trambiques.
— . — Ele fez cara de cachorro sem dono. — Eu sou muito criativo e hiperativo para ficar preso em uma sala de aula metade da minha vida, e muito medroso para virar capanga de Don Corleone.
Rosalia revirou os olhos, respirando fundo, enquanto riu baixo.
— Não entendo como somos amigos — disse ela, perplexa.
— É que eu sou puro encanto — brincou Matteo, dando uma risada boba.
— O que pretende cursar em Harvard? — perguntou , voltando o olhar curioso para a amiga. — Cada ano você muda de curso.
— Já me decidi, definitivamente. — Assegurou Rosalia, convicta de sua decisão. — Vou cursar engenharia da computação.
— Passar a vida sendo programadora. — Matteo fez uma careta.
— Não é só ser programadora, e eu gosto de tecnologia, é uma profissão muito bem remunerada — explicou ela, de forma coerente. — Além do mais, a grade curricular de Harvard é maravilhosa e vai me trazer boas oportunidades profissionais posteriores.
— Você me dá medo — sussurrou Matteo, ao se ajeitar na cadeira, ao finalmente notar que os outros alunos já estavam em sala de aula e o professor de Ciências adentrava.
Rosalia deu de ombros, se ajeitando na cadeira também. Foram uma hora e vinte minutos de aula, com o professor Marcel em seu entusiasmo, apresentando a proposta anual da feira de ciências para a classe, contendo o tema de livre escolha dos alunos e um incentivo de prêmio para os três primeiros lugares, os trabalhos seriam individuais naquele ano. Isto, devido a um pedido da diretora da unidade de Londres, para avaliar e reconhecer os alunos em potencial.
E claro que a notícia renderia assunto para o restante do dia.
— Se antes eu achava que não tinha futuro acadêmico, agora eu tenho certeza — comentou Matteo, ao juntar seus materiais e jogar na mochila. — O que eu vou fazer para essa feira?
— Coca-Cola e mentos — respondeu Rosalia, se levantando logo atrás, com tranquilidade na voz, não entendendo o desespero do amigo.
— O quê?! — Ele a olhou confuso.
— Ela já te deu a resposta, Matteo. — riu da sua cara, enquanto guardava seu estojo na mochila.
— Coca-Cola e mentos. Você pode fazer um vulcão de papelão, já que é tão criativo, então coloca a Coca-Cola em um recipiente dentro e joga bala mentos, assim vai provocar uma erupção artificial, que é resultante da desestabilização do gás que acontece sob um efeito dominó. Será mais eficaz se for diet, porque são menos encorpados e por isso facilitam o escape do gás — explicou Rosalia, como se o assunto fosse algo natural para ela. — Depois não diga que sou a amiga cruel e perversa.
Ela ajeitou a mochila nas costas e saiu andando.
— Rosa… — sussurrou Matteo, levando alguns minutos para assimilar o que ela havia dito, então finalmente alertou e correu atrás dela. — Ei! Espera, Rosa. Tem como repetir isso? Eu preciso anotar.
permaneceu alguns minutos apenas observando-os enquanto ria deles. Logo voltou o olhar para o celular que a mãe havia dado, era um aparelho velho, que apenas fazia e recebia ligações, no máximo mensagens de texto, uma estratégia que Lídia havia encontrado para se comunicar com a filha e lhe dar um pouco mais de segurança. Em instantes, o celular vibrou em sua mão, mostrando uma nova mensagem de um número anônimo.
Já se contavam duas semanas que a garota vinha recebendo inúmeras mensagens daquele número, sempre com frases curtas, que mencionavam sobre o que havia acontecido com sua família no dia do massacre. No início, a garota havia pensado ser com mais um de seus terrorismos, até que percebeu que o assunto era mesmo mais sério do que imaginava.
— O que quer agora?! — sussurrou para si, ao abrir a mensagem.
Um respiro profundo e o olhar atento na tela.
“Está na hora de lhe contar a verdade sobre a morte do seu pai…
Se quiser saber o segredo de sua mãe,
me encontre esta tarde, no mesmo endereço.”
sentiu um aperto no coração. Ela sabia muito bem qual endereço era. A casa onde morou parte de sua infância, que foi destruída pelas chamas, duas semanas após sua família ser enterrada, em uma rua pouco movimentada, bem ao sul da cidade de Siena. Mas como uma adolescente de 11 anos conseguiria fazer uma viagem partindo de Florença, onde morava atualmente, até seu antigo lar? Mais ainda. Sem que a mãe soubesse?!
— Eu preciso saber… — Novamente em sussurro, ela correu até os amigos, já tentando pensar em um plano de escape.
Pouco mais à frente, Rosalia se fazia de difícil, enquanto Matteo quase lhe implorava para lhe ajudar com o trabalho de ciências.
— Por favor, Rosa, você é a maga da tecnologia, é a melhor aluna em ciências… — Ele fez seu olhar infalível de gato tristonho. — Me ajuda.
— Essa é a última vez que faço isso por você. — Assegurou ela, num tom firme.
— Você sempre diz isso, e sempre o ajuda no final — disse , ao alcançá-los.
— Mas desta vez é real — garantiu Rosalia.
— Bem, agora sou eu que preciso de ajuda — disse , ainda traçando seu plano mentalmente.
— O que houve? — Rosa a olhou preocupada.
— Preciso que me convide para dormir na sua casa — pediu ela, com um olhar angustiado para a amiga.
— Hum?! — Rosa se sentiu pega de surpresa, sem saber o que responder.
— Sabe que não consigo mentir para minha mãe, e preciso ir a um lugar que ela não pode saber, então… — começou a explicar de uma forma simples e sucinta.
— Nem precisa terminar de dizer — afirmou Rosalia, já a entendendo. — Somos amigas, e amigos são para isso.
Ela olhou para Matteo, então voltou sua atenção para Miller.
— Tive uma ideia. Que tal a gente ir para a biblioteca pública para pesquisar sobre nossos temas da feira de ciências? Ou melhor, eu e o Matteo vamos, enquanto você faz o que precisa fazer, assim, quando voltar, nos encontra na cafeteria da senhora Carmel — disse ela, já bolando um plano mais convincente. — Então, vamos juntas para minha casa. Você só precisa dizer para ela que vamos passar a noite fazendo trabalho, e Matteo é o nosso cúmplice.
— Uau… — Matteo a olhou boquiaberta. — Tem certeza de que essa garota não é uma nascida da máfia?
Rosalia o olhou atravessado.
— Você é um anjo, Rosa! — a abraçou forte, com gratidão. — Obrigada.
— Amigas são para isso. — Rosa piscou de leve para ela. — Mas depois terá que contar pra gente o motivo.
— Prometo… — Assentiu , com um brilho parcial nos olhos.
Ambos os amigos acompanharam a garota até a estação de trem. não tinha muitas moedas em seu cofre, e o pouco dinheiro que conseguia era fazendo trabalhos escolares para os mais afortunados da escola, algo que Rosalia desaprovava na amiga, já que para a aspirante a engenheira, sua inteligência não deveria ajudar a elite a se dar bem nos estudos. Porém, era uma forma de ter o mínimo de independência financeira.
— Tome cuidado. Há rumores de que Siena tem ficado cada vez mais perigosa por causa da família Rivera — pediu Matteo, ao avisar a amiga, antes que ela subisse no trem. — Meus pais nem quiseram visitar a vovó Abigail este ano.
— Verdade, têm surgido muitos comentários na casa dos Tommaso também — concordou Rosalia, voltando um olhar preocupado para a menina. — , seja o que for, ligue para a gente.
— Sim, eu posso pedir à minha avó para te acompanhar. Ela sabe guardar segredo, então não tem erro — garantiu Matteo, disponibilizando a ajuda de terceiros.
— Não se preocupem, eu vou ficar bem, prometo! — Assegurou ela, já se afastando deles para entrar no trem. — Mando mensagem quando chegar lá e quando estiver voltando.
— Vamos ficar na biblioteca. Mande uma mensagem à sua mãe dizendo sobre dormir na minha casa — aconselhou Rosa.
assentiu com um sorriso e, ao respirar fundo, reuniu a coragem necessária para entrar no trem e seguir em direção às respostas há muito prometidas.
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Para aqueles que acham que os Magnus são os únicos com a coroa na cabeça, saibam que a disputada região de Toscana já foi palco de grandes confrontos entre as cinco maiores famílias da máfia italiana, o qual precisou de muitos acordos e barganhas para enfim a paz reinar nos negócios.
E se Magnus seria o futuro Don de Florença, a cidade de Siena já estava sob o comando do seu maior rival, ou com uma melhor colocação, o inimigo mais repulsivo que existia. Massimo, no auge dos seus 19 anos, já completava três assentado no trono de sua família como o novo Don Rivera, agora à frente dos negócios de forma oficial, isto devido à morte repentina do pai, que sofreu infarto fulminante causado por seus inúmeros problemas de saúde. Uma leve preocupação para o orgulhoso Eli Magnus, que nunca viu com bons olhos a criação do jovem inimigo, que sempre se mostrava contra as regras de boa vizinhança da máfia.
— Não acha que é novo demais para se viciar em jogos? — A voz grossa e áspera de despertou o irmão de sua reflexão momentânea.
— Não é porque estou jogando que vou me viciar — respondeu , de forma descontraída, mantendo os olhos focados em suas cartas.
Recentemente, o caçula havia aprendido alguns truques com um dos soldados do pai e queria experimentar suas habilidades de blefe no poker.
— Não viemos aqui para isso — retrucou , inexpressivo, permanecendo de pé atrás da cadeira do irmão.
— Cavalheiros... — colocou as cartas na mesa e sorriu de leve. — Agradeço o bom jogo, mas eu paro por aqui… Meu irmão está com medo que eu fique melhor que ele.
Assim que ele se levantou e encarou o irmão, seu olhar o atravessou, desviando para o dono da casa.
— Os irmãos Magnus. — O soar da voz de Rivera fez com que fechasse seus punhos automaticamente. — É uma honra terem aceitado meu convite.
— Estamos aqui, qual o assunto? — indagou , ao se virar para ele, mantendo seu tom mais rude e áspero, afinal, não confiava naquele falso sorriso de bom anfitrião.
— Por que está tão tenso, ?! — retrucou ele, rindo de canto. — Por que não aproveita primeiro as maravilhas que Siena pode te oferecer?!
— Tempo é dinheiro, e não viemos de Londres para brincar, não somos mais crianças. — Simples e objetivo, o primogênito manteve sua atenção em tudo o que acontecia ao seu redor.
A área privativa do saguão do hotel Scapole, onde estavam, era ampla e muito bem decorada. Apesar da arquitetura medieval ser predominante quanto à estrutura do lugar, sua decoração moderna transmitia um certo charme, proporcionando beleza e elegância à construção. , de repente, começou a rir com leveza e espontâneo, deixando o ar pesado e tenso, um pouco mais descontraído.
— Desculpe, meu irmão, ele nem sempre foi assim tão sério, mas não seria uma má ideia algumas voltas pela cidade. Já faz tanto tempo que viemos aqui da última vez. — manteve o bom humor, afinal, não se importava com os assuntos sérios e negócios. Se estava ali por obrigação, não lhe custava nada aproveitar a oportunidade para se divertir.
Em seus planos, ao mesmo tempo que iria apaziguar a situação, isso também irritaria seu irmão.
— Esplêndido! — Rivera sorriu de canto, como se estivesse satisfeito com a aceitação de , contudo, mantendo seu olhar venenoso para o primogênito, que havia virado novamente para ele. — Deixarei ambos em boas mãos com as melhores guias que este hotel pode oferecer e nos vemos mais tarde, em nosso jantar de associados.
Assim que observou duas mulheres com aparência de universitárias se aproximarem deles, soltou um suspiro cansado e impaciente, principalmente por saber que, por trás de cada passo do inimigo, sempre haveria uma surpresa desagradável. Já o caçula, abriu um singelo sorriso, ao cumprimentar as mulheres, não se importando com sua pouca idade. Se sendo adolescente era obrigado pelo pai a se comportar como um homem, então, agiria como tal a seu modo e conforme conveniente.
— O que está fazendo, ?! — perguntou , mantendo o tom baixo ao falar próximo do ouvido do irmão, se virando de costas para o inimigo, direcionando seu olhar para os homens, que permaneciam jogando cartas na mesa ao lado.
— Se estamos na chuva, que mal tem nos molhar? — De forma discreta, ele manteve seu rosto suave ao responder o irmão. — Você pode até ser o perfeito e inteligente em tudo, mas precisa saber jogar, irmãozinho, e, em alguns momentos, temos que jogar conforme as regras do inimigo.
A expressão logo mudou na face de , demonstrando estar surpreso com o lapso de maturidade do irmão. Então, assentindo à sugestão de seu anfitrião, apenas seguiu pelo percurso que as duas mulheres lhes apresentavam até a saída do hotel. Um carro já os aguardava, com destino à praça principal da cidade. Se, para , aquele passeio repentino seria pura diversão, para o primogênito, seria a oportunidade de reconhecimento de terreno. Uma singela pesquisa de campo.
Em um dado momento, , percebendo que uma das mulheres lhe observava bastante, certamente o vigiando para seu patrão, acabou por lhe escapar de seu campo de visão, se afastando deles e seguindo pela direção contrária. Seu interesse estava em descobrir todos os pontos de negociações que a família Rivera havia levantado naquela cidade. Após um tempo andando pelas ruas e totalmente longe de seu caminho de volta, o primogênito Magnus começou a ouvir barulhos estranhos vindos de um beco próximo.
O que lhe atraiu a atenção.
Há metros dele, estava um trio de homens cercando uma jovem garota, tentando forçá-la a ceder aos seus desejos perversos.
— Que isso, prometo que não vai doer muito — disse o homem mais robusto, ao segurá-la com força pelo braço.
— Por favor, me solte, me deixe ir — pediu ela, já em lágrimas, temendo o que eles poderiam fazer com ela.
— Será que ela é virgem? Quero ser o primeiro — disse o homem magrelo, já retirando o canivete do bolso para amedrontá-la mais.
— Do que está falando… — O robusto apertou mais o braço dela, que seguia se debatendo para se soltar, mesmo estando acuada no canto. — Todos sabemos que isso está extinto em Siena.
— Eu serei o primeiro — disse o terceiro ruivo, com olhar de predador.
— Não, por favor… — Ela tomou coragem, em meio ao seu desespero, e enchendo seus pulmões de ar, soltou um grito alto e forte. — SOCORROOOOOOO!!!
— Cale a boca. — O robusto tampou a boca dela com a outra mão, a pressionando ainda mais contra a parede. — Vou te ensinar a obedecer quando um homem manda.
O olhar da menina demonstrou seu medo, assim como as lágrimas que escorriam pelo seu rosto. Internamente, a mistura de agonia e desespero crescia mais e mais dentro dela.
— Um homem de verdade jamais faria isso com uma mulher. — A voz de soou atrás dele.
Seu habitual tom sério, firme autoritário e áspero, fazia qualquer um temer.
— Quem é você? E quem acha que é para se intrometer nos negócios alheios? — indagou o ruivo, ao olhar para ele, mostrando o canivete em sua mão.
— Eu pedirei educadamente, apenas uma vez. Se cooperarem, posso deixá-los inteiros — continuou ele, se aproximando mais. — Deixem-na e saiam daqui.
O magricelo soltou uma gargalhada, zombando dele. Até o momento, , mesmo tentando, não conseguia ver o rosto da menina, que era escondida pelo homem robusto.
— Se livrem dele logo — mandou o robusto, enquanto continuava segurando a garota.
Os dois tomaram impulso para investir seus pequenos objetos cortantes contra Magnus, entretanto, como um disciplinado e bem preparado herdeiro da máfia, o primogênito não sentiu nenhum esforço em desarmar ambos os homens e os socar um pouco, ao mesmo tempo que lhe quebrava alguns membros no percurso dos golpes.
— Você é o próximo — disse , ao limpar seus lábios inferiores, sentindo o gosto de sangue em sua boca por um corte provocado pelo magricelo.
— Eu vou matar você com minhas próprias mãos — afirmou o robusto, ao lançar a garota no chão, a fazendo bater a cabeça na lixeira próxima.
O que levou ao seu desmaio de imediato.
— Estou esperando. — Assentiu , com um sorriso de canto debochado. — Se conseguir chegar até aqui.
Foi num piscar de olhos que o robusto tomou impulso para correr até ele, já com os punhos fechados. Magnus apenas pegou o canivete do chão e lançou contra o homem, o acertando na região da jugular. Foi questão de minutos para que o inimigo parasse no meio do caminho, sentindo o impacto, desabando ao chão logo depois. Ainda irritado com a cena em que presenciou, se aproximou da garota caída e ao virá-la para identificar seu rosto, seu corpo gelou de imediato.
Ele precisou respirar fundo para dominar suas emoções e se manter racional diante da situação, porém era nítido seu olhar de raiva. Pegando-a em seu colo, saiu daquele beco escuro e úmido, não se importando com o lixo que havia deixado para trás. Carregando-a durante todo o caminho, apenas se preocupava em levá-la a um lugar seguro o mais rápido possível.
Assim que chegou ao hotel, não se incomodou de ser avistado de longe pelo irmão, e, exigindo as chaves de uma suíte premium para a recepcionista, levou a garota ainda desacordada. Com o auxílio de uma das camareiras, sua protegida foi colocada na cama com roupas limpas e as feridas com curativos.
— Hum… — Algumas movimentações na cama, e, sentindo seu corpo dolorido pela queda brutal, aos poucos a garota foi recobrindo a consciência.
Ao abrir seus olhos, se espantou por se deparar em um lugar estranho, com o Magnus encostado na janela, a observando, com as mãos nos bolsos e um sorriso escondido no rosto.
— Não é um sonho — disse ele, imaginando o que ela estava pensando. — Você está bem, ?!
O coração dela pulsou um pouco mais forte, quando finalmente assimilou o que tinha acontecido com ela e onde estava.
— Senhor Magnus… — Ela manteve sua voz mais baixa.
Mesmo sendo uma garota comunicativa e alegre, algo dentro de a fazia travar na presença de qualquer membro daquela família. Se era por causa de sua mãe, ou pela severidade de como eram tratadas na mansão, a garota apenas não conseguia ser ela mesma por completo perto deles.
— Não me respondeu — insistiu ele, se mantendo imóvel, apenas a observando.
— Eu estou bem, sim. — Assentiu, balançando a cabeça.
— Tem certeza? — insistiu ele, com preocupação. — Está com fome?
— Não, senhor — disse ela, com mais segurança. — Eu estou bem… Obrigada por…
Ela manteve seu olhar abaixado.
Por dentro, não sabia se ficava aliviada por ter sido salva, ou apreensiva por ter sido ele.
— Que bom… — Ele suavizou um pouco mais o olhar. — Então, agora pode me dizer o que está fazendo em Siena?!
continuou em silêncio, apenas respirando fundo, sem a mínima ideia do que responder.
Agora, todos estão olhando para nós com pipoca na boca
Esperando para ver o que vai acontecer com nós dois.
— Lotto / EXO
Siena, primavera de 2011
Dizem que uma mentira contada cem vezes acaba se tornando uma verdade.
Mas e quando não sabemos nem mesmo que mentira contar?
Foram longos minutos em silêncio em que permaneceu com sua atenção fixa no chão, ainda abraçada às suas pernas como um gatinho medroso. O olhar fixo e intenso de em sua direção a deixava ainda mais apreensiva, à procura de palavras para lhe formular uma resposta convincente. O coração apertado, com medo do que o primogênito pudesse fazer com ela, ou pior, lhe delatar para a mãe.
— Eu... — Ela respirou fundo. Por mais que forçasse, sua voz soava em sussurro. — Por favor, não conte à minha mãe.
Ela finalmente tomou coragem e levantou seu olhar para ele, os olhos marejados e amedrontados que causavam certo impacto ao rapaz. não gostava de admitir em suas reflexões internas, mas desde o momento que a filha da empregada lhe salvou a vida, seus pensamentos vinham sendo direcionados constantemente àquele dia. A forma singela e delicada que a garota lhe olhou, não se importando de quase ter se afogado no processo do resgate.
— Não deveria estar em Siena. — Seu tom de repreensão a estremeceu por dentro. — Mas não vou contar, será mais um segredo nosso.
Por mais que sua voz soasse com desagrado pela presença da menina naquela cidade perigosa, seu olhar para ela se mantinha sereno e acolhedor, o que causava ainda mais confusão na mente de , pois, ao mesmo tempo que ela sentia medo por aquela áurea dominante que emanava do rapaz, ela também se sentia protegida por ele. Principalmente nas muitas vezes que a salvou das implicâncias do irmão caçula.
— Obrigada — sussurrou ela, sentindo uma dupla gratidão naquele momento.
— Não saia do quarto, voltarei em algumas horas. — O tom de ordem foi sutil e direto.
O que significava que não retornaria para casa naquele dia, o que muito a preocupou. adentrou o banheiro e, após dez minutos, retornou trajando outra roupa mais formal, um terno azul marinho, combinado a uma gravata cinza grafite e o all star branco nos pés.
— Mandarei um serviço de quarto, você precisa comer algo — disse ele, ao ajustar o relógio em seu pulso e voltar o olhar sério para ela. — Não abra a porta para ninguém, a menos que seja o seu jantar.
— Sim, senhor. — Ela assentiu com a cabeça.
O primogênito Magnus soltou um suspiro cansado, imaginando que a deixar ali pudesse lhe causar alguma dor de cabeça futura, porém não havia outra solução. Contudo, tinha negócios para tratar com o novo Don de Siena, o jovem Massimo Rivera. Então, ao descer para o saguão do hotel, se dirigiu à recepção para dar as instruções sobre o serviço de quarto, para que levassem o jantar da garota. Segundos depois, ao se afastar do balcão da recepção, ele foi recepcionado por uma funcionária que o guiou até a área vip do restaurante. Não demorou até que aparecesse em seu campo de visão, com gestos despreocupados e acompanhado das duas guias que foram designadas a cuidar deles. Mais um suspiro cansado surgiu em , pela postura descuidada do irmão, pois baixar a guarda em solo inimigo não era uma atitude prudente.
— Aqui está o próximo Don Magnus. — A voz de Rivera soou atrás dele, o fazendo se virar de imediato. — Achamos que tivesse se perdido no caminho. Fiquei preocupado.
— Já estamos no horário do jantar, vamos falar de negócios agora? — indagou , não deixando espaço para falsas cordialidades de seu anfitrião.
— Bem que me disseram que os irmãos Magnus eram dois polos divergentes. — Ele voltou o olhar para o caçula no bar. — Um despreocupado demais e o outro...
— Eu apenas não gosto de perder o meu tempo com coisas banais — explicou , suavizando a voz para manter o bom clima.
— Ah, sim... Certamente seu tempo com aquela garotinha deve ter sido bem proveitoso, já que não está tão de mau-humor como mais cedo. — O comentário de Rivera mencionando fez os punhos do primogênito se fecharem inconscientemente. — Agora estou curioso para saber qual o seu tipo ideal de mulher... Pela forma que a trouxe, deve gostar de garotas puras e indefesas.
— Este assunto não lhe diz respeito. — manteve a seriedade no olhar, engolindo seco a raiva pela insinuação dele.
— Magnus… Já deveria saber que tudo que acontece em minha cidade me diz respeito. — Massimo deixou sobressair seu olhar arrogante e superior naquele momento.
— Ela não pertence a esta cidade. — se esforçou para manter a cordialidade, deixando seu tom mais fluido, continuando o olhar firme.
— Não é o que eu acho. — Massimo soltou uma risada rápida e sarcástica. — Você conhece as regras, Magnus. Quem entra na minha cidade sem convite, pertence a ela.
Rivera não sabia quem era a garota que seu inimigo havia levado ao hotel, mas as ações de em abrigá-la já indicavam uma oportunidade de usar a situação a seu favor. Assim eram as coisas na máfia, os Dons sempre precisavam estar um passo à frente de seus inimigos, e cada detalhe era a chance de lhe render lucro ou o azar de sofrer alguma perda.
— Claro... — sentiu seu sangue ferver de raiva diante daquela insinuação de poder. — Mas tais regras não se aplicam a acompanhantes, e aquela garota está sob a minha proteção... Você acabou de sentar no trono do seu pai, Rivera, e não acho que seja sensato gerar transtornos aos seus convidados, afinal, você possui muitos subordinados em Siena que dependem da autorização da minha família para fazer negócios em toda Toscana.
Uma das muitas habilidades do primogênito Magnus era sua facilidade em criar fortes argumentos, ponderado em suas palavras e observador a ponto de analisar seu inimigo e descobrir seus pontos fortes e fracos em um curto espaço de tempo.
— Para alguém que não gosta de poker, você é um bom jogador. — Massimo deu um discreto sorriso de canto, utilizando de ironia naquele comentário, pois internamente estava em fúria pela ousadia do garoto.
— Como eu disse, tempo é dinheiro, e não costumo gastá-lo banalmente. — A postura rígida e fria de o fazia remeter seu avô Eli Magnus, um dos maiores patriarcas da máfia italiana.
A quem Massimo vagamente tinha um leve senso de respeito e admiração, pela trajetória do homem que ergueu a família do pó em meio da segunda guerra mundial e a fez ser a mais importante da Itália na região de Toscana.
— O que me leva a perguntar, mais uma vez, a que se deve o convite que recebemos? — continuou , demonstrando o encerramento do assunto anterior.
Mesmo estando implícito, Rivera conseguia sentir aquelas palavras como um aviso cordial para que ele se mantivesse longe da garota em seu quarto. Entretanto, a postura de Magnus fez seu inimigo se interessar ainda mais pela história.
— Algo de nosso interesse. — Massimo deu o primeiro passo para seguir até a mesa reservada a eles. — Me acompanhe, por favor, temos um intrigante assunto para tratar.
voltou seu olhar mais uma vez para o irmão, que parecia não se importar com os assuntos chatos da máfia e apenas ambicionava se aproveitar da experiência que teria em sua única noite em Siena. E suas guias turísticas estavam ávidas a lhe proporcionar a mais alucinante noite de sua vida, sem se importar com a pouca idade do menino.
— Estamos aqui, qual seria o assunto do meu interesse? — indagou , ao se acomodar na cadeira, com seu olhar discreto e atento a toda movimentação do lugar.
Sua preocupação estava mais no irmão inconsequente e suas altas gargalhadas na área do bar, um adolescente de quatorze anos imaturo que se achava o adulto quando lhe convinha.
— Presumo que soube dos boatos de um carregamento seguindo para Lisboa que sofreu um ataque — iniciou Massimo o assunto, não detalhando os envolvidos.
— A notícia chegou a Florença, mas não achamos pertinente. — sabia vagamente do ocorrido, um breve comentário do assistente do pai, lhe atualizando das notícias da cidade em seu relatório semanal. — Pertencia a você? Lorenzo Moretti já fez sua retratação?
— Felizmente não pertencia a mim, e o fator chave é que o serviço de entrega não pertencia a transportadora Ravena. Dizem que o contratado foi uma empresa nova de Portugal — continuou ele, respondendo à pergunta de Magnus, ao se servir de uma taça de vinho. — Ao que se sabe, a carga era muito importante, e os donos do prejuízo são a família Cassano.
— Se Gavino Cassano não se importou em dar as costas para a tradição e fez negócios ocultos, não é do meu interesse. — soltou um suspiro cansado, demonstrando desinteresse ao assunto. — Todos sabem que a única empresa autorizada a fazer transportes a partir de Toscana é a que pertence ao Lorenzo. E Gavino tanto sabe das regras que nem sequer pediu socorro à casa Magnus.
— É neste ponto que quero entrar. — Massimo ajustou sua postura na cadeira, com seriedade na voz. — Como uma empresa portuguesa consegue entrar e sair de Toscana com facilidade? Tirando o fato de permitir que seja atacado um transporte importante?
— Está insinuando que minha família não protege bem as fronteiras? Ou permite que qualquer um entre e saia sem prestar contas? — forçava uma respiração tranquila, porém dava para ver seu olhar atravessado para o homem à sua frente.
— Pelo contrário, estou lhe alertando que existe alguém querendo violar nossas fronteiras e devemos ter cuidado pelo bem dos negócios. — Massimo não gostava da casa Magnus, mas não podia negar o poder, força e prestígio que tinham na região, então neste momento de iminente ameaça, ele precisava unir forças com o inimigo. — Um dos nomes da minha folha de pagamentos me mandou um alerta, algumas famílias de fora estão interessadas em nossa região…
— Estão achando que a Itália é uma terra sem donos e sem lei? — indagou ele, sobre a afirmação do homem.
— Talvez pelo fato dos mais velhos serem conhecidos como pacíficos demais e agora estarem se aposentando — supôs Rivera. — Nem tudo deve ser resolvido com diplomacia, somos os Dons da Itália, nossa palavra é lei.
concordava com uma coisa, ele não deixaria nenhuma afronta passar sem uma resposta à altura.
— Não vou me misturar com um traidor como Cassano, mas... — Seu olhar se voltou mais uma vez na direção em que o irmão estava, não o encontrando. — Descubra o que tinha no carregamento e o quão valioso era, então verá como a família Magnus lida com esses assuntos.
levantou-se da cadeira e percorreu o olhar pelo restaurante, constatando a ausência do irmão. Certamente, o caçula já estava em seu quarto, encerrando a noite a seu modo peculiar de se divertir.
— Magnus. — Massimo se levantou logo atrás. — A última vez que tentaram dominar Toscana, tivemos muitas perdas... E foi exatamente assim que começou, com uma família gananciosa.
— Tem a minha garantia de que nada mais passará pelas fronteiras de Toscana sem que eu saiba. — A voz de soou com segurança e firmeza, o que impressionou Rivera. — E quanto a Gavino, ele e toda a família Cassano sofrerão as consequências de se quebrar as regras.
— Gostaria de me encarregar dele, se for possível. — Rivera não quis soar como uma permissão, mas odiou a forma que as palavras saíram. — Tenho algumas contas a acertar.
— Fique à vontade. — Assentiu o primogênito.
Por mais que o primogênito ainda estivesse no colegial e sendo treinado para assumir os negócios da família futuramente, já tinha algumas responsabilidades a seu encargo, que, mesmo à distância de estudar em Londres, não o impedia de executar suas funções com maestria. Após se afastar do anfitrião, Magnus se dirigiu até o saguão do hotel em direção ao elevador. Seus pensamentos o fizeram refletir por um tempo os questionamentos de Massimo, afinal, para convidá-lo a Siena por este assunto, certamente o novo Don Rivera estava mesmo inquieto com a possibilidade de um ataque a eles.
Dividir para conquistar, esta foi a principal estratégia de seus inimigos no tempo em que as famílias da máfia de Toscana estavam em guerra. Tudo havia iniciado com o roubo de uma carga de vinhos dos Rivera, prosseguindo com a chacina de algumas famílias importantes e incêndios criminosos em pontos estratégicos. Foi em um tempo que os jovens herdeiros nem sonhavam em nascer e já havia rivalidades dentro e fora das fronteiras.
— Senhor Magnus. — A voz baixa de soou, assim que a porta se abriu e adentrou o quarto.
Um respiro profundo de alívio pela garota tê-lo obedecido. Logo o olhar de se moveu para a varanda do quarto, a porta de acesso estava aberta e a brisa fresca da noite adentrava o lugar. Não precisou de muito para que ele entendesse que havia mais alguém naquele ambiente.
— Parece que não sou o único a me aventurar em Siena. — A voz de pareceu mais sarcástica que o habitual, seguida de uma risada abafada.
O caçula apenas se pronunciou mediante os passos de aproximação do irmão.
— O que faz em meu quarto?! — indagou , ao parar no vão de passagem e o observar.
— Estava seguindo para minha noite de aventuras quando observei um mordomo saindo do seu quarto com o carrinho de jantar — explicou ele, com tranquilidade, mantendo sua atenção no horizonte. — Fiquei curioso para saber se meu irmão havia convidado alguma acompanhante para passar a noite.
Ele riu novamente e se virou para o mais velho, o toque de malícia e sarcasmo exalava de seu olhar.
— Só não esperava encontrar a filha da empregada aqui. — Um sorriso de canto presunçoso e o ar de ironia. — Pretende seguir os passos do papai?
deixou soar o assunto, não se importando com o que a garota ouviria. Afinal, todos ali sabiam exatamente o que acontecia entre o senhor Magnus e Lídia quando as portas do escritório estavam fechadas.
— O que eu faço ou não da minha vida não lhe interessa — respondeu de forma seca e áspera. — Saia do meu quarto e esqueça que a viu.
— Hummm... — soltou outra risada tendenciosa e deu alguns passos até o irmão, parando em um ângulo que era possível ser visto por . — Dizem que escondido é mais interessante..., mas não acha que ela é nova demais e atraente de menos?
Nem mesmo as palavras haviam saído de sua boca e foi interrompido por um soco de seu irmão que o deixou desnorteado. , presenciando toda a cena, levou a mão à boca no susto da ação, transparecendo seu olhar amedrontado.
— Ai... — riu mais um pouco, sentindo a dor no canto da boca ao passar a língua no local. Sentiu o gosto de sangue devido a um pequeno corte provocado. — Isso tudo porque não quer admitir?
sabia que a provocação poderia lhe custar mais algumas dores, então endireitou seu corpo e adentrou o quarto. Seu instinto masoquista não lhe permitia sair em silêncio.
— Se não a quer... Ideias é que não me faltam... — Outro soco lhe fez silenciar, um ainda mais forte que o primeiro, quase o derrubando no chão.
— Eu vou dizer mais uma vez para ficar claro. — pegou com agressividade no pulso do irmão, seu olhar sombrio emanava uma fúria incomum. — Não ouse tocar nela, ou vou me certificar que não toque em mais nada.
— É apenas a filha da empregada! — o encarou sem demonstrar medo, pelo contrário, se deliciando com a reação do irmão. — Fique tranquilo, irmãozinho, seu bichinho de estimação não faz o meu tipo.
Em um movimento brusco, o caçula se soltou do irmão e se dirigiu à porta. Ao parar em frente, voltou o olhar para a garota, que se mantinha encolhida no topo da cama, estática pela interação dos irmãos.
— Você não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, querido irmão, menos ainda impedir que outros se aproximem dela. Uma hora até os filhotes de cachorro crescem e ficam sem controle. — Uma última risada irônica e deixou o quarto, batendo a porta.
não conseguia entender de fato o que lhe acontecia internamente. Ao mesmo tempo que seus pensamentos eram constantemente invadidos pelo rosto de , lhe deixando estático, ele também se enfurecia por pensar tanto na filha da empregada, a ponto de não querer imaginar nenhum outro se aproximando dela. Logo a imagem dos três homens no beco a coagindo lhe invadiu a mente, o fazendo ficar ainda mais irritado pelas palavras realistas do irmão.
— Esqueça o que ouviu neste quarto e nunca mais saia de casa sem permissão — disse ele, num tom que exalava ordem, porém com serenidade.
apenas assentiu com a cabeça, sentindo o coração ainda acelerado pela exaltação entre os irmãos. Por um breve momento, o primogênito se pegou olhando-a com profundidade, com a sensação de estar hipnotizado pela forma delicada e singela da menina se comportar, mesmo em momentos de tensão. Ao respirar fundo, voltando à realidade e reprimindo seus pensamentos tortuosos, ele se aproximou da porta para se retirar.
— Tome um banho e descanse. Tem toalhas limpas no banheiro. Retornaremos à Florença pela manhã. — Seu tom de ordem era nítido, mas se esforçou ao máximo para que as palavras soassem com sutileza.
— Eu perdi meu celular... — anunciou ela, ao se lembrar da situação perigosa que passou mais cedo. — Aqueles homens... quebraram, e não consegui dizer à minha amiga que estou bem.
Amiga?! Pensou ele, puxando alguma informação relevante de sua memória.
— A filha da cozinheira dos Tommaso?! — indagou ele, finalmente associando a pessoa à imagem que tinha vagamente.
— Sim, a Rosalia. — Assentiu ela. — Disse à minha mãe que dormiria na casa dela.
não tinha mais nenhuma alternativa a não ser jogar abertamente com ele e esperar por sua ajuda. Afinal, com a perda do celular e seu silêncio, ela temia que a amiga pudesse ter entrado em desespero e delatado a Lídia os planos da filha.
— Não se preocupe com isso — disse ele, com segurança. — Apenas descanse, eu cuidarei do resto.
retirou o celular do bolso e, girando a maçaneta da porta, saiu do quarto para lhe dar mais privacidade. precisou de mais alguns minutos para finalmente sentir seu coração mais calmo e se levantar da cama. Voltando a atenção de relance para a porta, ela pôde ver com clareza a sombra de projetada no chão. Certamente ele se mantinha parado do lado de fora como um cão de guarda. A menina não desejava aquilo, ter a atenção do primogênito, pois sabia o quão angustiante era a situação de sua mãe naquela casa e a forma que o senhor Magnus a tratava como sua propriedade.
— Eu não deveria ter vindo... — sussurrou ela, frustrada pela perda de tempo.
Seu objetivo de se encontrar com a pessoa que lhe mandou a mensagem não se concretizou. Ao chegar ao lugar, apenas se deparou com a velha edificação em seu estado deplorável de desgaste e abandono. Vazia e silenciosa. No impulso da chateação por se sentir enganada, a garota saiu correndo pelas ruas desconhecidas até trombar nos três homens que a acuaram.
— Não posso causar problemas à mamãe... — sussurrou novamente para si, seguindo até o banheiro.
Lídia era mesmo uma mãe afortunada. Por mais que tivesse apenas 11 anos, era responsável e muito madura para uma criança da sua idade. Talvez pela perda dolorosa que teve no passado, tendo presenciado o massacre da sua família. Ou, por saber claramente o quão pesado era o sacrifício de sua mãe para mantê-las vivas. Ela precisava ser forte e encarar os desafios da vida de frente, se esforçando ao máximo para não criar problemas para a mãe.
A menina caminhou até o banheiro, não se conteve em reparar no luxo que era o ambiente. Parecia com os grandes palácios reais que via na internet, revestido de mármore nobre, as louças brancas de alto nível e os metais dourados folheados a ouro, remetendo à grandeza da máfia. Tão confortável e chamativo quanto os banheiros da mansão dos Magnus, e com o tamanho que parecia caber 3 quartos de empregados dentro. Seus pensamentos se perderam ali dentro, até que ela voltou à realidade e se lembrou da ordem do primogênito. Ao tomar seu banho, voltou a vestir a mesma roupa que estava em seu corpo quando acordou. Retornando, seu corpo gelou ao se deparar com o olhar frio de para ela, como se tivesse feito algo de errado.
— Troque esta roupa, você acabou de se banhar e estas em seu corpo estão sujas. — Seu habitual tom grosso e áspero a fez estremecer por dentro, então, mantendo a serenidade na face, apontou para uma muda de roupas em cima da cama.
apenas assentiu com a face e pegou rapidamente, retornando ao banheiro. Das muitas manias que o primogênito tinha, organização e limpeza eram as mais visíveis de se notar e importantes para ele. Quando a garota retornou ao quarto, estava sentado na poltrona ao lado da passagem para a varanda. Seu olhar na menina se desviou para a cama por um momento, indicando para ela que deveria se deitar e dormir. Entendendo o recado, continuou em silêncio e se deitou, se cobrindo com o edredom. Apesar da sua mente e corpo cansados pelo dia que teve, ela se forçou a não adormecer de imediato. E mesmo constrangida pelo olhar fixo do rapaz para ela, manteve sua atenção à claridade da lua que adentrava o quarto.
Na manhã seguinte, despertou aos poucos, sentindo o feixe de luz em seus olhos. O sol já adentrava o quarto sem pedir licença. Erguendo um pouco o corpo, ao esfregar seus olhos com as mãos, ainda sonolenta, sua mente foi lentamente recobrando o raciocínio, até que ela se lembrou por completo de onde estava. Sua parcial noite em claro teve uma breve rendição quando suas pálpebras pesadas venceram e se fecharam, não se importando com a presença do primogênito. O rapaz, por sua vez, continuou acordado, enfrentando as longas horas da madrugada, enquanto mantinha sua atenção na filha da empregada, que dormia como um anjo. Para , nem mesmo passar pelos treinamentos de tortura psicológica do pai conseguia ser mais doloroso que controlar os muitos pensamentos que lhe perturbaram a mente. E isso aumentava seu estado de irritação. Afinal, ela não era ninguém a se considerar em sua vida. Então por que o fazia se preocupar tanto? Não que ele tivesse atração pela garota, afinal, aos seus olhos, ela ainda era considerada apenas uma criança, contudo, o sentimento que não ousava consentir e admitir era de admiração.
Uma pequena, delicada e tímida garotinha havia enfrentado a água e o perigo para salvar sua vida.
— Bom dia — disse ele, se mantendo no mesmo lugar, sentado na poltrona, a observando acordar por completo. — Voltaremos para casa em vinte minutos, aproveite para tomar café.
Ele voltou seu olhar para a mesa de refeições que tinha no hall de entrada do quarto.
— Obrigada — sussurrou , ao respirar fundo e se levantar com cautela, seguindo para a mesa.
Um banquete digno da realeza a aguardava, o que a deixou estática inicialmente, por se deparar com alimentos que apenas eram servidos aos patrões e agora ela tinha a oportunidade de experimentar. Ela voltou seu olhar surpreso para ele, como se quisesse perguntar: "Isso tudo é para mim?"
— Coma apenas aquilo que lhe der vontade — disse ele, em resposta ao olhar dela.
assentiu de imediato, sem notar que um sorriso singelo e espontâneo lhe escapou pelo rosto. se viu ainda mais admirado com a cena que presenciava, sentindo uma estranha aquecida no coração. Exatos vinte minutos depois, ambos saíram do quarto e se juntaram a , que os aguardava na recepção. O caçula tentou ignorar a presença de entre eles, porém seus olhares curiosos para ela eram constantes e seguidos de risadas disfarçadas.
— Se persistir em não fazer silêncio, voltará para casa a pé. — O soar repreensivo de para o irmão assustou , que estava no banco de trás do carro.
— Eu não disse nada. — segurou o riso, adorava provocá-lo ao último nível.
O primogênito olhou para o reflexo do irmão no retrovisor da frente e depois para o de , que se mantinha com o olhar abaixado. Com um longo suspiro, se preparava mentalmente para as horas que teria que dirigir até Florença. Por mais que a idade liberada para dirigir no país fosse a partir de 18 anos, o rapaz havia conseguido uma licença especial por já ter conseguido sua habilitação no Reino Unido.
— Não deveria nem mesmo pensar — retrucou o mais velho, com sua atenção na estrada.
— Poderíamos ter ficado mais algumas horas — reclamou o caçula, chateado por ter encerrado sua diversão com as guias do hotel. — O que há de errado em se divertir?
— Não o obriguei a retornar comigo. — soltou outro suspiro.
— E dar motivos ao nosso pai para me dar uma surra? — soltou uma gargalhada boba. — Não estou a fim de sentir dores este final de semana.
Se inicialmente para o caçula se mudar para Londres havia sido um castigo do pai, agora estava achando o ápice de sua liberdade estar longe do homem que lhe tratava com tanto desprezo. E por mais que tentasse entender os motivos da nítida diferença de forma de tratamento entre os irmãos, já começara a não se importar mais com os momentos de humilhação e apenas acostumou-se com as dores que sentia antes, durante e depois.
— Não se preocupe, voltaremos a Londres na segunda pela manhã — afirmou o primogênito, ao voltar seu olhar para o retrovisor frontal e encontrar o olhar de .
direcionou seu olhar para a estrada e, retirando os fones do bolso, o conectou no celular e deu start em sua playlist regada a canções do Linkin Park e Nirvana. O restante do caminho foi em silêncio, com apreensiva internamente, pois não sabia o que tinha acontecido com sua amiga e temia chegar à mansão acompanhada dos irmãos. Entretanto, um leve suspiro de alívio veio a ela, assim que reconheceu a rua onde se localizava a biblioteca pública de Florença. parou o carro e desceu, abrindo a porta de trás em seguida. Nem precisou de palavras para que ela entendesse que deveria descer também. Mais à frente, a menina avistou a amiga acompanhada de Matteo, com seus olhares transbordando curiosidade.
— Oficialmente, você passou a noite na casa da sua amiga — afirmou , com segurança da história que pretendia sustentar. — Sua mãe não lhe fará perguntas.
— O que você fez? — perguntou ela, num tom baixo e quase falho.
— Eu apenas assegurei que seu álibi não falhasse. — Ele se permitiu deixar um sorriso de canto escapar em seu rosto. — Não foi o que prometi ontem à noite?!
Entretanto, quando percebeu a espontaneidade de seu sorriso, voltou à seriedade e deu o primeiro passo para se afastar dela.
— Não se esqueça de que não pode sair sem permissão. — Relembrando-a sua ordem, seu tom ficou mais áspero e seco.
assentiu com a cabeça e, se desviando dele, seguiu até seus amigos. Ela sabia que a palavra “permissão” não se referia à sua mãe, e sim, a ele. Contudo, mesmo com o coração apertado, ela estava um pouco mais aliviada por estar de volta e bem fisicamente.
— ... O que aconteceu? Ficamos preocupados — disse Rose, ao abraçá-la bem apertado. — Foi por pouco que eu não liguei para sua mãe.
— Nós te esperamos na cafeteria, depois fomos à estação, mas você não apareceu — completou Matteo, ao voltar discretamente sua atenção para frente e perceber que ainda os observava de longe.
— Me desculpem, aconteceu um contratempo que me impediu de voltar ontem — explicou ela, sem saber como expor toda a situação.
— Contratempo com o nome Magnus? — Rose a indagou, estava mesmo aflita. — Eu quase levei um susto quando minha mãe veio me dizer que ele estava com você.
— Ele ligou para sua mãe? — ficou desnorteada com a revelação. — E a minha mãe?
— Não se preocupe, sua mãe não sabe de nada — explicou Rose, direcionando sua atenção para os carros que passavam na rua. — Vossa majestade ofereceu um acordo em troca de um álibi perfeito.
— O que você fez para conseguir a proteção do Magnus? — perguntou Matteo, curioso.
desviou o olhar de seu amigo para o chão, constrangida pela entonação da sua pergunta.
— Eu… — voltou a atenção para a amiga, tentando ignorar aquela pergunta. — O que aconteceu, Rosa?
— Minha mãe ligou para a sua, dizendo que você estava em nossa casa e que dormiria lá por causa da nossa feira de ciências — contou a menina, com toda tranquilidade do mundo, recordando do momento. — Em troca, garantimos com o Magnus a minha sonhada bolsa de estudos na filial do Constance em Londres.
— Ele ofereceu uma bolsa de estudos para você em troca da ajuda da sua mãe? — Era surreal demais para acreditar.
— Sim. — Assentiu Rosa, certa da situação. — Inicialmente, ele ofereceu dinheiro, mas minha mãe disse que ajudaria se a filha dela tivesse oportunidades melhores de estudo. Então ele me perguntou o que eu queria.
— E a nossa amiga gananciosa não pensou duas vezes em nos deixar para viver em meio à elite — Matteo comentou, transparecendo seu tom chateado.
— Deixe de ser dramático — Rosa disse com desdém, revirando os olhos. — Você sabe muito bem que meu plano para o futuro é Harvard, e como seria ambição demais pedir uma vaga na minha universidade favorita, me contentei apenas com o melhor colégio de ensino médio da Europa. Pelo menos estarei um passo mais próximo do meu objetivo.
— O que você tem contra estudar na Itália com seus amigos? — questionou o menino, ainda chateado.
— Não vejo futuro estudando aqui. Além do mais, todos os filhos de empregados que saíram do fundamental no Constance não conseguiram boas escolas para o ensino médio — argumentou ela a realidade. — Você sabe que o Constance tem a unidade de Londres para fazer a separação entre as classes e assegurar as oportunidades nas mãos da elite.
Rosalia estava correta, dos poucos alunos bolsistas que tinha em sua escala, menos de 1% conseguia trilhar rumos melhores após saírem do ensino fundamental. Alheia ao debate entre os amigos, , ainda desnorteada com os acontecimentos do dia anterior, agora se encontrava perplexa e temerosa. Afinal, a pior coisa na vida era dever favores para alguém da máfia, principalmente se este alguém fosse da realeza de Toscana.
Afastado do grupo de amigos, retornou ao carro e deu partida em direção à mansão da família. Por um breve momento, voltou a atenção para o irmão que dormia ao lado e soltou uma risada boba.
— Se está rindo, é porque está de bom humor — comentou , permanecendo com os olhos fechados.
— Você não estava dormindo? — retrucou ele, voltando à seriedade.
— Disse bem, estava. — O caçula se ajeitou no banco e abriu os olhos, retirando os fones do ouvido. — Estamos indo para casa?
— Sim. — Assentiu.
— O jantar foi promissor? — indagou, curioso.
— Notícias indesejadas, mas não se preocupe, nosso pai não saberá de suas aventuras — assegurou ele, olhando o reflexo do irmão no retrovisor. — Mas terá que ser bem mais convincente desta vez, ou não conseguirei te acobertar.
— O que aconteceu? Quem é você e o que fez com o ? — brincou , rindo baixo. — Bastou uma noite com a filha da empregada para ficar bonzinho?
— Nem uma palavra sobre este assunto com o papai — ordenou ele. — Ou farei com que passe a noite no hospital de tanto apanhar.
soltou uma gargalhada sarcástica.
— Agora está explicado. Sua proteção pelo meu silêncio. — Ele bufou de leve, porém deixando uma risada rápida soar. — O primogênito sendo o primogênito.
— Sabe que não jogo para perder. — Assentiu ele, com um sorriso de canto discreto.
soltou um suspiro reflexivo, ele sabia que havia um lado sombrio e oculto de seu irmão que até mesmo seus pais não conheciam. E não se importava com isso, a relação de ambos era um misto de amor e ódio que acabou se transformando em cumplicidade e parceria ao morarem juntos em outro país.
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Provença, inverno de 2012
Uma sexta-feira chuvosa se colocava diante do mais novo supervisor interno da Interpol. Louis Durand estava frustrado por seus planos terem sofrido alterações de última hora. Não havia sido fácil conseguir infiltrar um espião na máfia italiana, e por não ter escolhido direito a pessoa certa para a missão, agora tinha que lidar com as consequências.
Pietro deveria apenas se concentrar em seu papel de jardineiro inexperiente para coletar informações relevantes, porém, após sua imprudência em achar que poderia sair do plano e enfrentar a máfia, agora estava preso a uma cadeira de rodas e envolvido emocionalmente com Diana Tommaso. A sorte foi não terem descoberto a identidade verdadeira do rapaz e ainda o deixado vivo para se lembrar que uma filha da máfia é inalcançável para qualquer mortal da plebe.
— Ahhhhh. — O agente soltou um suspiro cansado ao manter seu olhar no quarto de anotações na parede do seu escritório no porão.
Já contavam dois anos de afastamento pelo fracasso da última operação. Agora, após muitos pedidos para uma nova oportunidade, o agente estava começando do zero, pela segunda vez, o seu plano de ataque. Estudando cada detalhe das informações que possuía sobre o massacre da família Miller e o envolvimento da máfia de Toscana no assunto. Sua mente seguia cansada com tudo aquilo e do fato de sempre parecer andar em círculos. Ele precisava chegar mais perto, precisava avançar em suas investigações e fazer justiça nem que fosse a seu modo.
— Querido… Não vai dormir? — A voz de sua esposa lhe despertou a atenção.
A mulher se manteve parada no último degrau da escada, atenta aos movimentos do marido. Amber já havia presenciado muitas noites de Durand em claro, traçando suas estratégias de ataque e montando as missões de seus espiões. Devido ao cargo elevado de supervisor de investigação, seus dias em campo deram lugar à rotina administrativa que o permitia trabalhar em sistema home-office. Com isso, a necessidade de recrutar bons agentes foi confirmada após dois fracassos em missões de infiltração.
— Deu errado novamente? — perguntou ela, preocupada com o lado perfeccionista do marido.
— Se você quer algo bem-feito, faça você mesmo — disse ele, em resposta enigmática.
Contudo, ela sabia muito bem o que significava aquela resposta. Para alguém como Louis, ter uma família era como ter sua própria kriptonita, entretanto, quando foi promovido, encontrou a oportunidade de levar seu interesse romântico pela confeiteira Amber Floratta adiante, a transformando na senhora Durand. E, com isso, acabou por também ganhar um enteado de brinde. Estando por detrás das missões, nos bastidores, sua exposição era o mínimo possível. Trazendo assim segurança à esposa.
— Sei que vai conseguir dar um jeito. — Com o andar suave, ela foi se aproximando dele, até que o abraçou por detrás, envolvendo seus braços em sua cintura.
— Agradeço por ser mais otimista que o seu marido — brincou ele, soltando uma risada baixa e tocando nas mãos dela que o envolviam. — Só você pra não me deixar perder a cabeça.
— É para isso que servem as esposas — assegurou ela, lhe dando um beijo no pescoço. — E esposas ficam carentes quando o marido só tem olhos para o trabalho.
Sua reclamação soou como uma indireta para ele.
— Estamos sozinhos? — indagou ele, ao se virar para a esposa com um sorriso de canto malicioso.
— Liam me ligou dizendo que chegaria mais tarde. Hoje foi seu primeiro dia no emprego de meio período na oficina — respondeu ela, ao elevar seus braços e envolver no pescoço dele. Amber manteve seu olhar sugestivo. — O que significa que temos a casa vazia.
— Interessante. — Louis pegou sua esposa no colo, a fazendo soltar um gritinho meigo de susto, então, seguindo até as escadas, começou a subir os degraus. — Que tal um banho estimulante?
Ela sorriu mais abertamente, com o olhar concentrado em seu marido. Por mais que Amber soubesse das inúmeras aventuras amorosas que Louis teve em seus tempos de agente em campo, a mulher controlava com rigidez o ciúmes que tinha dele. Não deixaria que suas inseguranças atrapalhassem o bom andamento de seu casamento. Afinal, não é todo dia que se esbarra em um homem inteligente, bonito e protetor, que se interessa por uma mãe solteira, com um filho rebelde e incompreendido.
O jovem Liam, era uma mistura ofensiva de badboy e gangster, que fazia a vida de sua mãe ser um tanto quanto complicada e atordoada. Com extrema revolta interna por ser filho de uma relação extraconjugal forçada, tinha descoberto aos dez anos de idade que seu pai era um policial corrupto de Lisboa que havia abusado de sua mãe. Quando o homem soube da gravidez, por ser casado, forçou Amber a abortar, entretanto, a mulher fugiu de Portugal, se mudando para a Espanha, pois não queria desistir da criança. Para ela, o filho saber a verdade poderia ser mais doloroso que os bullyings que sofria nas escolas, relacionados ao fato de não ter um pai.
O garoto, de uma criança quieta e medrosa, mudou radicalmente sua postura no momento que viu pela fresta da porta o senhor Garcia, dono da cafeteria em que a mãe trabalhava, ameaçar a mulher a demissão caso ela não o satisfizesse. Com um filho para criar, sendo apenas ela contra o mundo, Amber precisou lidar com os diversos tipos de situações machistas para sobreviver. E o dia em que teve mais orgulho de seu filho e maior dor de cabeça, foi neste mesmo dia em que a criança de apenas dez anos adentrou o escritório do homem repugnante e lhe ameaçou com um canivete, se o homem ousasse encostar em sua mãe novamente. A partir de então, Liam permitiu que a raiva crescesse dentro dele, o tornando um adolescente agressivo e indiferente aos sentimentos alheios. O que antes eram chacotas das outras crianças, começou a fazê-las temer a sua presença.
Então, poucos meses após completar treze anos, o adolescente descobriu o romance dos adultos, o que resultou no incêndio do apartamento onde moravam e uma briga calorosa entre ele e Louis, com socos e cortes. No final, Durand sendo mais velho e experiente, acabou por conquistar o respeito e admiração do garoto, além de ganhar ainda mais o coração da mulher que lhe despertou o interesse. E como investigar a corrupção do senhor Garcia e seu envolvimento com a máfia italiana, seria sua última missão em campo, o homem se deixou envolver por Amber, iniciando um relacionamento mais sério.
— Já vai retornar ao porão? — resmungou Amber, ao se enrolar um pouco mais nos lençóis da cama.
— Vou deixá-la dormir um pouco — brincou ele, com um sorriso de canto, ao beijar seu pescoço de leve. — Você sempre fica cansada depois que eu mato sua carência.
— Hum… — Ela escondeu seu rosto com o lençol, morrendo de vergonha do seu comentário.
— Vou conferir se o Liam já chegou — disse ele, ao se levantar da cama e vestir a roupa antes de sair do quarto.
De fato, o adolescente já se encontrava em casa, sentado numa das cadeiras da cozinha, mexendo em seu celular, parecendo estar concentrado no que digitava. Durand adentrou o espaço com tranquilidade, seguindo até a geladeira para pegar água gelada. Ele não tinha nenhuma vergonha de demonstrar seu afeto com Amber na frente do enteado, então sempre que os momentos mais íntimos entre o casal aconteciam, o padrasto continuava a agir com a naturalidade de sempre.
— Chegou agora? — indagou Louis, após ter dado o primeiro gole na água que havia despejado no copo.
— Sim — respondeu o garoto.
— Qual o relatório do dia? — Continuou sua indagação.
— Quer mesmo falar sobre isso aqui? — Liam parou o que digitava e olhou para ele, estava confuso pela pergunta. — Contou à mamãe?
— Não, claro que não, este é o nosso segredo de pai e filho. — Louis soltou uma risada baixa. — Só estava te testando.
Com a falha de todos os agentes de campo que Durand havia recrutado, seus planos precisaram sofrer mudanças, e a frase “se você quer bem-feito, faça você mesmo” nunca foi tão real para ele. Sem o conhecimento de Amber, o agente havia recrutado o próprio enteado extraoficialmente e agora o estava treinando para ambos trabalharem juntos. Liam, em sua fase experimental, não se importava com o lado exigente e perfeccionista do padrasto, pelo contrário, estava se divertindo com a ideia de ser um agente de campo e passar por momentos de adrenalina nos quais poderia usar toda a sua raiva e agressividade acumulada.
— Vamos ao porão — ordenou Louis, ao deixar o copo em cima da bancada e seguir para a porta de acesso às escadas.
Liam apenas assentiu e se levantou da cadeira para segui-lo. No andar de baixo e com a porta devidamente fechada e trancada, ambos começaram a conversar sobre as experiências de Liam como um aluno do colegial à procura de emprego de meio período nas oficinas da cidade. Sua missão era se infiltrar em todas, trabalhando em cada uma por sete dias apenas e depois ser dispensado por não se adaptar. No final, teria que prestar um relatório a Durand sobre toda a rotina do lugar e se havia encontrado algum ponto de fraude.
Durand já estava de olho em algumas delas, pelos negócios com um fabricante de pneus de Toscana e agora usaria seu aprendiz para fazer o trabalho de campo e lhe trazer informações ao final do dia.
— Então? — perguntou Liam, mantendo seu olhar no quadro de anotações. — Eu passei no teste?
— Ainda faltam duas oficinas, e não terminamos o seu treinamento — disse o homem, concentrado em alguns papéis em sua mão. — Não vou mandá-lo para Itália. Além de não estar pronto, ainda tem quinze anos. Sem contar a sua mãe.
— Você sabe muito bem como dobrar ela — argumentou Liam, num tom áspero. — Faz isso todas as tardes, antes de eu chegar em casa.
— Olha só, o adolescente está monitorando os pais?! — brincou Durand, com sarcasmo. — O que eu faço com a sua mãe não é da sua conta, mas se quer saber… Ela sempre sai satisfeita e pedindo por mais.
— Que nojo. — O garoto fez uma careta, revirando os olhos.
— Foi você quem provocou. — Louis esticou os papéis para ele. — Quero que estude sobre ela, em breve fará contato.
— Esta é a menina que Pietro não conseguiu se encontrar com ela? — indagou Liam, ao pegar os documentos e folheá-los.
— Sim… — Durand respirou fundo, ainda relutante em envolver o enteado naquela missão em específico. — Deixarei que inicie a leitura, mas apenas te deixarei participar desta missão se eu achar que está pronto.
— Não farei como os outros — retrucou o garoto.
— Não é pela sua capacidade, eu acredito que conseguirá — afirmou Louis com segurança —, e sim pela sua mãe. De todas as máfias, a mais cruel e inescrupulosa é a italiana, e é ela que vamos abater.
— Não se preocupe com a mamãe. Contanto que eu volte para o jantar, está tudo bem — assegurou Liam, convicto de seu potencial para a tarefa que o padrasto pretendia lhe passar.
O adolescente já havia encarado altos e baixos em sua vida, se tornado forte e maduro o suficiente para tomar decisões importantes e complexas. E não falharia com Durand de alguma forma, ele queria deixar o marido de sua mãe orgulhoso.
Porque nada disso é coincidência
(DNA)
Porque nós encontramos o nosso destino.
— DNA/BTS
Paris, primavera de 2013
O lado bom de ser uma das melhores alunas de um colégio da elite é ter a liberdade de ir e vir quando quiser.
Há três semanas para as férias de verão, estava em seu passeio anual pelas ruas de Paris. A cidade luz, além de ser seu refúgio nos momentos de tristeza e aflições, agora também era o novo lar de sua irmã Diana, que, por uma estratégia de negócios do senhor Mancini, toda a família havia se mudado para a cidade francesa.
Naquela manhã, a princesinha Tommaso estava em sua pesquisa de campo sobre as tendências parisienses da estação atual. Por um contratempo dos estudos, seus planos de acompanhar os luxuosos desfiles da semana de moda de Londres, Paris e Milão, foram cancelados, lhe fazendo se contentar apenas com os catálogos premium que recebeu das marcas, com algumas peças sob medida de presente. Para a adolescente mais influente da Itália, que ditava a moda entre as garotas de sua idade até mesmo fora de seu país natal, todo o seu guarda-roupas era composto das grandes marcas europeias, em sua maioria sem ter desembolsado nenhum centavo.
— Diana?! — Com o tom de surpresa, atendeu a ligação inesperada da irmã mais velha. — Por que está me ligando?
— Você saiu pela manhã sem deixar recado, achei que tivesse retornado para Londres — explicou ela, serenamente, o motivo da ligação.
— Estou dando meu passeio anual pela rua da moda — contou a garota, ao parar em frente à Freek for Woman, uma loja de alfaiataria especializada em ternos femininos de alta costura. — Como não pude acompanhar os desfiles presencialmente, preciso me atualizar na melhor rua de Paris.
O lugar mais frequentado pelas mulheres da elite na cidade.
— Mancini deixou um recado antes de sair. Temos um jantar hoje à noite, ele quer que você vá conosco — continuou Diana, tentando não demonstrar que estava apreensiva por aquilo.
Era notório que não gostava de seu marido, também havia sido contra o casamento forçado, mesmo sabendo que o pai não consideraria sua opinião sobre o assunto. Contudo, o que mais desagradava a princesa Tommaso era o primogênito Mariano Mancini, um libertino regado a ações irresponsáveis que não demonstrava respeito por sua madrasta e menos ainda pela pequena Julie, a filha de Diana.
— Teremos a presença desagradável do seu enteado? — indagou ela, ao entrar na loja e começar a analisar as peças em exposição.
— Possivelmente. — Assentiu ela, soltando um suspiro fraco. — Você sabe que o desejo do Mancini é que o filho dele se case com você.
— Se a vida dele depender desse desejo, se considere viúva, irmãzinha. — O tom irônico soou, seguido de uma risada rápida.
se aproximou de um conjunto de terno feminino bege e tocou de leve no tecido para sentir a textura, feita de linho egípcio, com uma modelagem impecável que transmitia elegância e conforto.
— Confesso que não é fácil a convivência com Mariano, mas… Foi o que a vida reservou para mim. — Diana sentiu-se um pouco reprimida ao avaliar sua realidade. — Oficialmente, ele é o herdeiro do meu marido.
Seu conturbado casamento com Alfredo Mancini havia iniciado com o pé esquerdo e muitas lágrimas. Se lembrar da primeira noite com o marido era como sentir novamente as dores internas e externas de se entregar a um homem ríspido pelo qual não sentia nada. E após pouco mais de três anos de casada, ela ainda se sentia desconfortável todas as vezes que o homem a tocava.
Entretanto, ela estava grata pela vida da filha, pois, mesmo com a descoberta de Mancini, que o bebê em sua barriga não era de fato dele, Diana havia conseguido clemência do marido e a permissão de continuar com a gravidez. Em troca, ela seria a esposa mais exemplar que já existiu no mundo, com o comprometimento de jamais negar os desejos do marido.
— Um momento, Di… — voltou o olhar para o atendente que se aproximou dela e afastou um pouco o celular do ouvido. — Bonjour, gostaria de reservar três unidades desse nas cores branco, bege e preto, s'il te plaît.
— Para qual credencial que enviaremos? — indagou o funcionário, a fim de identificar a identidade dela.
— Tommaso — respondeu ela, arqueando a sobrancelha direita.
— Perfeitamente, senhorita Tomasso, já possuímos vossas medidas. — O bom funcionário já sabia de cor quem era cada uma das clientes no seleto cadastro da loja. Olhando para o modelo apontado, conferiu o código de identificação da peça. — A senhorita deseja que embrulhe para presente?
— Não — respondeu ela, e acrescentou: — E desejo que entregue até o final da semana no endereço de Alfredo Mancini.
— Como quiser, senhorita. — Assentiu ele, memorizando as ordens. — A senhorita necessita de alguma peça em especial para este dia?
— Sim, quero algo casual que possa vestir em um jantar formal — pediu ela, olhando para os outros modelos femininos da loja. — Aquele macacão cinza, pantacourt.
— Buscarei para senhorita. Um momento, por favor — disse o homem, se afastando dela.
Ela assentiu e se aproximou em uma das poltronas para se sentar, então retornou a ligação.
— Seu enteado é um escroto, que te assedia quando o pai não está por perto — comentou , relembrando um dos muitos desabafos da mais velha. — Se fosse eu, já teria delatado ao Mancini. Seu marido pode ser um homem horrendo, mas duvido que deixaria o filho dele mexer com você.
— Eu não posso. — A irmã soltou um suspiro cansado. Seu casamento era um fardo que apenas ela deveria carregar, e por mais que estivesse feliz pelo apoio da irmã, sabia seus limites. — Alfredo pode achar que estou inventando, tentando trazer intrigas para a família.
— Por favor, Di, ele conhece o filho horrendo que ele tem, sabe muito bem das muitas encrencas que o Mariano já se envolveu. Até preso por dirigir embriagado ele já foi — argumentou , não entendendo a recusa da irmã. — Não entendo o motivo de tanto medo.
— Você não entende, , eu já sou grata por ter a Julie… Mancini poderia ter me feito abortar ou jogado ela na primeira lata de lixo que encontrasse — retrucou Diana, tentando sufocar seu tom de angústia. — Preciso ser a mulher perfeita para ele, sem reclamações.
— E vai continuar aguentando as provocações do filho dele?! — questionou a mais nova, inconformada com aquilo.
Uma das muitas revoltas de era de não poder ser livre como desejava. Olhando para a vida de sua irmã mais velha, a fazia sentir raiva do pai e ao mesmo tempo frustrada por também já possuir seu futuro traçado desde antes de nascer. Entretanto, em seu caso, ela ainda podia dar suas opiniões e se beneficiar por não ser tão controlada pelo pai como a mais velha.
— Esqueça isso, , este é um assunto que somente eu tenho que resolver — pediu Diana, ponderando sua voz, a deixando mais suave.
— O que significa que não será resolvido. — soltou outro suspiro cansado e engoliu seco sua chateação. — Mas tudo bem, não vou mais comentar o assunto, pelo menos o Mancini ter descoberto serviu para sabermos que a delatora de todos os nossos segredos sempre foi a filhote de naja.
— Elena era somente uma criança na época. — Diana tentou relevar, pois ainda tinha um carinho pela meia-irmã caçula.
— Uma criança? Ela já nasceu sabendo ferrar a vida dos outros, eu jamais confiei naquele na aprendiz de falsiane — retrucou ela, ao avistar o atendente retornando com uma caixa de acrílico nas mãos. — Tenho que desligar agora, estou no meio de uma compra.
— Boas compras para você. Te vejo no almoço? — indagou.
— Não, vou almoçar com uma amiga — revelou ela sua programação. — Mas diga ao seu marido que terá minha presença no famigerado jantar.
— Obrigado, — disse Diana, antes de encerrar a ligação.
esperou até que o funcionário parasse em sua frente e retirasse a roupa solicitada de dentro.
— Senhorita Tommaso, aqui está seu pedido. Gostaria de experimentar? — perguntou ele, ao lhe entregar.
— Sim. — guardou o celular dentro da bolsa e se levantou, então pegou a roupa e acompanhou o atendente até a área dos provadores.
Não demorou muito para que ela terminasse sua transação e saísse da loja. Mais algumas voltas pelo quarteirão sendo seguida a distância por seu motorista Juarez, que se mantinha atento às ordens e o trajeto de sua senhora. Ao chegar à unidade do Starbucks, adentrou a cafeteria, logo avistando sua amiga de infância parisiense, Genevieve Ginevra.
— Ginevra — disse , ao se aproximar da mesa.
— ! — A garota se levantou de imediato e lhe deu um abraço apertado. — Que saudade, há tempos não a vejo em Paris.
— Verdade. — Um largo sorriso saiu em seu rosto, enquanto lhe retribuía o abraço de forma saudosa. — Tenho andado tão concentrada nos estudos que mal tenho tempo para meus hobbies.
— Está em sua semana de pesquisa de campo? — perguntou a amiga, ao se afastar e voltar a se sentar.
— Sim, sabe que preciso da minha semana de refúgio em Paris todo ano antes das férias de verão — explicou ela, assentindo.
se sentou também e voltou a atenção ao cardápio na mesa, começando a avaliar o que pediria.
— Fiquei te esperando na semana de moda de Paris, mas não a vi em nenhum desfile — contou a amiga, ao sugar um pouco do seu Ice Coffee pelo canudo.
— Semana de moda, igual semana de provas — disse, em uma explicação simples e objetiva. — E você, como estão os estudos?
— Tediosos, mas consigo relevar. O que importa é que estou na melhor escola de artes e serei uma top model de sucesso no futuro — respondeu ela, com um olhar confiante.
— Te desejo sucesso, você realmente nasceu para as passarelas — concordou , a elogiando. — Deve ter sido um barulho e tanto para o senhor Ginevra, quando contou a ele sua decisão.
— Meu pai não gosta muito dessa coisa de modelo e exposição, sabe disso. Por nossa família ter seu lado sombrio dos negócios, minha fama poderia chamar a atenção para ele — explicou ela o seu ponto preocupante. — Mas quando ele me viu desfilando, ficou encantado.
— Fico feliz que tenha o apoio dele, mesmo sendo muito nova para enfrentar os holofotes.= — comentou Gen, ao observar o atendente se aproximando.
— Tenho que confessar, meus quinze anos têm sido pura diversão, mesmo com as responsabilidades do trabalho de modelo — confessou ela.
Após fazer seu pedido e ser prontamente servida, retornou ao assunto.
— E quando a verei em Londres?! — indagou .
— Você está em Londres? — Ela se mostrou surpresa. — Mas e Florença?
— Estou estudando na unidade do Constance de Londres, colégio interno com direito a festas do pijama aos finais de semana — contou, deixando soar um toque de animação em sua vez.
— Imagino o quão divertido deve ser estudar com você. — Genevieve a olhou meio chorosa.
— Você ainda pode se mudar para lá, Londres é tão boa para modelos quanto Paris — argumentou , incentivando a amiga.
— Já foi difícil para o papai aceitar comigo aqui em Paris, imagine sair do país. — Ela soltou um suspiro cansado e manteve a atenção na amiga, que bebericava seu cappuccino tradicional. — Mas… E você? Além de Londres, mais alguma novidade? E não vale falar sobre o casamento da Diana, pois essa fofoca já é antiga.
Ambas riram.
— Bem… Em breve, um pouco distante, ficarei oficialmente noiva. — manteve seu olhar na xícara de café, se permitindo entrar em seus devaneios. — Tudo pelos negócios da família.
Ela não queria pensar em seu futuro casamento, menos ainda se sentir ansiosa por tal evento. Entretanto, quanto mais ela se aproximava de seus dezessete anos, a idade estipulada pelo pai para seu noivado, mais seu coração se mostrava inquieto e indeciso.
— Mas isso será apenas daqui dois anos, então ainda tenho provas de geometria para me preocupar e minha vaga na universidade — continuou ela, dando uma risada final.
— Como se você precisasse se preocupar. — Gen soltou uma risada ponderada. — Já se decidiu pelo curso?
— Já. Vou pelo que brilha meus olhos mais do que os croquis de moda da tia Sophie — revelou ela, de forma enigmática.
As amigas continuaram por mais algumas horas, entre o almoço e as conversas sobre os desfiles de moda e o futuro delas. Ao final da tarde, retornou à casa da família Mancini, em que estava hospedada, e se refrescou um pouco em um banho relaxante, logo se aprontou para o jantar. Ao sair do quarto, ela deu alguns passos pelo corredor para chegar à escada, quando cruzou com o primogênito da casa.
— Princesa Tommaso — disse ele, num tom debochado e malicioso. — A cada dia mais linda e atraente.
— Mariano… Quero que tenha em mente que eu não sou como minha irmã, então, não se atreva a se aproximar de mim — disse ela, com seu tom seguro e empoderado. — Eu sou um brinquedo caro, e você é uma criança pobre.
— Pobre?! — Ele riu, sentindo uma acidez na garganta pelas palavras dela.
— Sim… Comparado aos irmãos Magnus, você é daquelas crianças carentes que mora debaixo de uma ponte e jamais terão a oportunidade de tocar em algo tão valioso quanto eu. — Ela sabia que, de todas as filhas da máfia, ela era a mais cobiçada pelos herdeiros, por isso, não se importava com nenhum deles.
De opinião própria e personalidade forte, ela jamais abaixaria para um homem, principalmente um do tipo de Mariano. Ao primeiro passo para passar por ele, teve seu pulso agarrado pelo rapaz, que o apertou com força e brutalidade.
— Quem você pensa que é para me comparar a eles?! — indagou ele, num tom áspero e amargo.
— Sou Tommaso. — respondeu ela, com o olhar fixo nele, não demonstrando medo nenhum. — E vou mostrar o que acontece quando alguém me toca sem permissão.
Ela se aproximou mais dele e, em um piscar de olhos, deu uma joelhada forte na região das genitais do homem, o fazendo gemer de dor e conseguindo se soltar dele no processo.
— Nunca mais ouse pensar em tocar em mim. — Agora foi a sua vez de soltar uma risada debochada, então seguiu para as escadas.
No andar de baixo, o casal de anfitriões já estava à espera de ambos os jovens. O senhor Mancini se encontrava com a filha nos braços, entretido enquanto brincava com a criança. Se como marido ele não conseguia ser sutil e amoroso, para a surpresa de Diana, Alfredo a cada dia se mostrava um pai bondoso e atencioso para a pequena Julie.
— Estou pronta e no meu horário — brincou ela, disfarçando seu pequeno atraso.
— Não se preocupe, Mariano ainda não desceu também — disse Diana, ao mover seu olhar para a filha, que soltava gargalhadas no colo do pai, ao rir de suas cócegas.
— Bem… Acho que vai demorar — sussurrou , disfarçando.
— O que você fez? — indagou a mais velha.
— Você ouviu? Eu disse alguma coisa? — Ela riu baixo, com os olhos brilhando.
— ?! — Diana insistiu, apreensiva, pois conhecia o temperamento da irmã.
— Fique tranquila, eu não fiz nada que ele não merecesse — alegou ela, em sua defesa.
respirou fundo, se preparando mentalmente para a programação proposta. O jantar não era apenas em família, mas um jantar de negócios com alguns membros importantes da elite parisiense. Tommaso reconheceu alguns rostos de políticos que frequentavam festas em sua casa, o que a fez perceber que ele queria usar sua presença na cidade como uma confirmação que a aliança entre as famílias estava mais forte do que nunca.
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— Acho que precisa de alguém para salvar sua noite! — A voz de despertou de seus pensamentos.
A jovem estava próxima à vidraça lateral do restaurante, contemplando o jardim de inverno decorativo. Seu estilo era provençal acompanhando a arquitetura tradicional do lugar, sutil na escolha das plantas e marcante na ambientação proposta pelas pedras naturais aparentes na estrutura da edificação.
— Magnus. — Um sorriso sutil e singelo surgiu em seu rosto, então a garota voltou o olhar para o reflexo dele no vidro que a separava do jardim.
A dois passos dela, com um olhar sereno de quem não se importava com o mundo ao seu redor, apenas com a garota diante dele.
— O que faz em Paris? — indagou ela, curiosa por sua presença ali.
— Estou acompanhando meu padrinho por alguns dias. Senti sua falta na escola — respondeu ele, ao dar um gole em sua taça de vinho. — Está em sua semana da moda?
Sendo sua melhor amiga e crescendo juntos, o caçula Magnus já tinha decorado todo o calendário de Tommaso. A única garota que o olhava com carinho e afeto verdadeiro sempre fazia seu coração pulsar um pouco mais forte com sua doçura e sutileza. Que o entendia de verdade e lhe emprestava suas tardes para esquecerem os problemas da vida e se divertirem como jovens despreocupados.
— Sim. — Assentiu ela, prontamente voltando-se para ele. — Seus pais sabem que está com o tio Giordano?
— Claro que sim, não seria louco a ponto de criar motivos para passar a noite no hospital, tão próximo do feriado — brincou ele, tomando outro gole.
manteve seu olhar nele, pensando no que havia dito. Além do irmão, apenas ela e seus dois amigos, Robert e Andreas, sabiam sobre as surras que o caçula ganhava do pai. E o grupo de amigos, por terem crescido juntos e se tornado tão próximos, mantinha segredo absoluto sobre o assunto.
— Não acha que é novo demais para bebidas alcoólicas? — indagou ela, elevando a mão até a taça dele e pegando para si.
Com o olhar sério e a sobrancelha direita arqueada, a jovem sabia muito bem como impor respeito diante do sexo oposto.
— Troco todas as garrafas da minha adega por você — retrucou ele, num tom provocativo, dando um passo para mais perto.
— Suas palavras me fazem sentir lisonjeada, mas somos amigos, e sabes que não gosto de misturar as coisas — argumentou ela, ao tocar em seu tórax, mantendo uma linha de afastamento.
— Nós dois sabemos o real motivo. — tocou na mão da garota e, segurando, a beijou de leve. — A vida é muito curta para se privar das coisas boas…
Ele sorriu de canto e piscou de leve para ela, lhe arrancando uma risada boba.
— E como não é possível tê-la — continuou ele, ao pegar sua taça de volta. — Terei que me contentar com o vinho.
Ela riu mais um pouco e voltou a olhar para o jardim.
— Está tudo bem com você? — perguntou ela, suavizando mais a voz. — Da última vez que nos vimos, foi no aniversário de sua mãe.
— E eu estava com o nariz sangrando na cozinha da minha casa — completou ele, ao se lembrar do evento. — Comparando a hoje, nunca estive tão bem…
— Nem parece que estudamos na mesma escola, nunca nos vemos — comentou ela, achando a situação frustrante.
amava a companhia conturbada e divertida do amigo.
— Isso tem apenas uma resposta… Você é aplicada demais e eu sou o aluno rebelde. — Ele piscou de leve mais uma vez e sorriu de canto.
Então olhou para a taça vazia e soltou um suspiro de chateação.
— Que tal fazermos algo mais interessante?! — sugeriu ele, ao deixar a taça em uma mesinha de apoio ao lado e esticar a mão para ela.
— O que me sugere?! — indagou ela, ao olhar para sua mão, pensando se deveria ou não aceitar.
— Como não posso te fazer gemer… então me permita te fazer rir — explicou ele, de forma provocativa e maliciosa.
— … — Seu tom foi de sutil repreensão, segurando o riso.
— Vamos — insistiu ele, balançando a mão. — Quando foi que eu te decepcionei?
— Até hoje… nunca. — Ela segurou sua mão e voltou o olhar para a direção em que a irmã estava. — Mas tenho que voltar antes do amanhecer.
— Não acho que seja obrigada a dormir em casa hoje. — Ele segurou em sua mão, entrelaçando seus dedos. — Esta noite, você é minha!
Ele soltou uma risada boba e alta, então a guiou para fora do prédio. ainda não podia dirigir pela idade, então, inesperadamente, a levou para a direção do metrô. As experiências de com transportes públicos não se podiam contar, ela só havia andado de ônibus uma vez, no dia em que ajudou a irmã em sua fuga malsucedida. Estações depois, eles desceram em um bairro da periferia, chamado de B13, e andaram mais alguns minutos até chegarem ao point dos artistas de rua, o lugar favorito do caçula na Cidade Luz.
— Para onde me trouxe? — perguntou ela, não desconfiada, mas, sim, curiosa.
— Às vezes precisamos nos sentir livres. E uma vez você me disse que Paris é o seu refúgio. — Ele voltou seu olhar para ela, com uma paz e serenidade incomum. — Não há lugar mais libertador nesta cidade que aqui.
Suas palavras despertaram interesse em . Assim como os irmãos Magnus, ela sabia o quão pesado era ser um herdeiro da máfia. A forma que a família sugava suas energias destruía seus sonhos e te aprisionava em seus negócios.
— Me mostre então?! — Ela o olhou com segurança, demonstrando confiar nele.
Com um sorriso bobo, o caçula a puxou para continuar andando com ele. O lugar exato ficava embaixo de um viaduto, onde os artistas de rua se juntavam para fazer batalhas de dança, grafites improvisados nas paredes e manobras de skate. A maioria já conhecia de outras vezes ali, e logo o caçula foi apresentando a amiga para geral.
Por um momento, ele pediu para um dos seus conhecidos um skate emprestado para tentar algumas manobras. Foi surpresa para a garota, que nunca o tinha visto fazer tal coisa. E mais?! era bom nisso. E sempre que o fazia, de fato se sentia livre das amarras que o prendiam, livre do sobrenome Magnus e de toda dor que lhe causava.
— Quer experimentar?! — perguntou ele, ao parar com o skate na frente dela e lhe oferecer a aventura.
— Ah, não, eu não quero cair e não estou com a roupa apropriada. — Ela apontou para o macacão em seu corpo. — É peça de alfaiataria.
— . — Ele riu, descendo do skate e dando espaço para ela. — Desde quando uma roupa te impede de se divertir?
Ela riu assentindo, então subiu em cima do skate.
— Se eu cair… — iniciou.
— Estou aqui para te segurar — afirmou ele, com o olhar seguro para ela. — Temos a noite toda para nos divertir.
E assim foi.
Com risos e provocações saudáveis por parte de , que sentia seu coração aquecido apenas por proporcionar a amiga uma noite de descontração em seu lugar favorito da cidade.
Uma amizade que valia mais que o mundo inteiro da máfia.
Há muitas coisas que brilham
Mas olhe o que é real entre elas
Me chame, querida, me chame, querida.
— Call Me Baby / EXO
Toscana, outono de 2013
De todas as datas comemorativas do ano, o dia de ação de graças deveria ser o mais importante e esperado por todos, pois estar grato significa que um dia você foi abençoado.
Esta era a data mais apreciada por e sua mãe, e faltavam duas semanas para acontecer. Algo que poderia ser considerado intrigante, pelo fato de ambas terem vivido grandes perdas e muitas lutas e sofrimento posteriores. Entretanto, mãe e filha seguiam gratas por suas vidas e por ainda sonharem com um futuro melhor para elas. Lídia mantinha seu coração esperançoso, ansiando por uma realidade melhor para a filha.
— Mamãe, ainda está dormindo?! — sussurrou a garota, ao acordar pela madrugada e olhar para o lado.
A mulher não se moveu, de fato estava em sono profundo. Sentindo sede, se levantou da cama e olhou para a garrafinha ao lado, estava fazia, fato que lhe arrancou um suspiro cansado. Ela não queria sair do quarto, evitava fazer isso nos dias em que os herdeiros estavam em casa, entretanto, a sede lhe dominou, a fazendo sair de seu minúsculo quarto e seguir em direção à cozinha.
— O que mais vai acontecer agora que está na universidade? — A voz de interrompeu o silêncio entre os irmãos, o que fez parar no meio do corredor, sentindo as pernas travarem de imediato.
— Não me diga que está saudades?! — brincou , rindo baixo da pergunta do irmão. — Nossas vidas vão seguir o curso que devem seguir.
— Não sei se quero prosseguir com meu futuro acadêmico daqui dois anos — explicou ele, soltando um suspiro fraco. — Não sou impecável como você.
Um soar amargo saiu dele.
— Das muitas coisas que você não gosta, deve haver algo que desperte o seu interesse. — As palavras de tinham uma fluidez de aconselhamento. — Você se entedia com muita facilidade, então faça aquilo que gosta.
— E levar uma surra por escolher algo que o papai não aprove?! — O caçula, que estava sentado no chão, encostado na porta de saída para o jardim, o olhou confuso pela sugestão do irmão, depois soltou uma risada boba.
— Você sempre apanha de qualquer forma — brincou o mais velho, mencionando a realidade.
O ambiente parecia descontraído entre os dois.
— Errado você não está. — Mais um suspiro cansado vindo dele, que deu impulso para se levantar do chão. — Mas não vou me preocupar com isso agora, além do mais, após completar maior idade, poderei considerar minha segunda opção.
— Fala do quê? — perguntou , intrigado.
— Do meu refúgio — explicou o caçula. — O padrinho mora em Roma agora.
— Fala do tio Giordano?! — Ele logo se lembrou de quem o irmão falava.
— Sei que posso contar com ele. — E rindo brevemente ao vir uma lembrança em sua mente. — Exceto para me dar bons conselhos…
O primogênito também riu. Ele sabia o quão insistente Nicolo Giordano era com seus conselhos.
— Amanhã retorno para Londres — anunciou , se dirigindo para a porta de acesso ao corredor.
— Não vai passar o dia de ação de graças em casa? — indagou .
— E por qual motivo eu faria isso? Por gratidão a todas as vezes que fui internado no hospital por ser espancado por meu próprio pai? — Ele tentou, porém o sarcasmo era nítido em sua voz. — Não sou nenhum pouco grato a isso.
— Tenha juízo em Londres — pediu o mais velho, demonstrando suas preocupações com ele.
— Fique tranquilo, irmãozinho, agora eu sei me divertir em oculto. — eEle deu impulso e saiu da cozinha aos risos.
Ao passar pelo corredor, se deparou com ainda paralisada, e piscando de leve para ela, continuou seu caminho até seu quarto. A menina continuou onde estava, tentando entender o que faria, se voltaria ou não para o quarto, sem finalizar o que tinha ido fazer na cozinha.
Mais um longo tempo em silêncio, até que…
— Não deveria estar fora da cama a essa hora. — A voz de a despertou de seus pensamentos.
Ela arregalou os olhos, se mantendo em silêncio, não acreditava na possibilidade de ele saber que ela estava ali.
— Não pense besteiras, não coloquei nenhum rastreador em você enquanto dormia. — Continuou ele, parecendo ouvir os pensamentos dela. — Apenas a sua respiração que é alta o suficiente para que eu a sinta do outro lado da parede.
Em instantes, a silhueta da garota apontou na passagem dos cômodos, meio encolhida e com a garrafinha em suas mãos.
— Vejo que a sede despertou seu sono — supôs ele, ao olhar a garrafinha vazia.
Ela assentiu com a cabeça, mantendo o olhar nele.
— Pegue sua água e volte para o quarto, amanhã você acorda cedo para ir à escola — disse com suavidade, porém num tom de ordem.
Ela assentiu em silêncio novamente e se aproximou da geladeira.
— Soube que está frequentando uma escola pública agora. — Continuou ele, puxando assunto. — E que recusou a bolsa de estudos que meu pai te ofereceu em um colégio particular da cidade.
— Sim — sussurrou ela, afirmando sua decisão.
— Por quê? — Continuou ele, se encostando na beira da bancada e colocando as mãos nos bolsos da calça do pijama, a observando a todo momento. — Por que recusou?
— Não quero deixar o Matteo sozinho. — Ela voltou sua atenção para ele, após terminar de encher a garrafinha. — Rosalia está em Londres agora, na filial do Constance, cursando o ensino médio em uma das melhores da Europa e se preparando para Harvard… E os pais do Matteo não podem pagar as mensalidades, a família Cassano não se importa com o filho dos empregados, e ele não conseguiu passar nas provas de admissão para conseguir uma bolsa.
— E?! — Ele não conseguia entender o motivo dela abrir mão de algo que a beneficiaria no futuro por alguém insignificante como o filho do motorista.
O que o deixou irritado internamente, fazendo seus punhos fecharem espontaneamente.
— Ele é meu amigo, não posso deixá-lo passar pelo ensino médio sozinho. Já que a Rosa está longe, essa a missão agora é minha — brincou ela, ao rir de leve, se lembrando do dia da despedida da amiga.
O mesmo dia em que o choroso Matteo a fez prometer que não o abandonaria também.
— Se ele estudasse com você, no colégio particular?! — perguntou , refletindo em suas palavras. — Aceitaria?
— Acho que sim, talvez… Por que a pergunta, senhor Magnus? — indagou ela, curiosa por todos aqueles questionamentos.
— Não importa, apenas vá dormir. — Ele respirou fundo, pensando por alguns segundos, e antes que ela passasse por ele para sair da cozinha: — Você gosta dele?
a pegou pelo braço, a parando no caminho. Ele precisou controlar a aspereza em sua voz, pois não queria aceitar que a garota tivesse algum sentimento por outro.
— Matteo é meu amigo, apenas isso. — tentou controlar seu olhar de medo, porém sem sucesso.
Sentiu um leve latejar de dor na área em que ele segurava de forma brusca. Era um fato que não conseguia controlar sua força quando estava com raiva. Mesmo que suas emoções pudessem estar escondidas e seu rosto transmitindo serenidade, inconscientemente não perceberia se a estava machucando ou não.
— Tenho ele como o irmão que nunca tive — explicou ela, com mais clareza, se sentindo coagida. — E ele me vê como sua irmã mais nova.
sentiu a necessidade de completar sua fala, pois temia que ele pudesse fazer algo de ruim contra o amigo. Seus dias de liberdade haviam se encerrado no momento em que a salvou em Siena. Daquele dia em diante, o primogênito Magnus contratou um segurança para contar os passos da menina por onde quer que ela fosse.
O que a fazia sentir-se ainda mais sufocada.
— Senhor Magnus, está me machucando — sussurrou ela, ao desviar seu olhar para o braço preso à mão forte dele.
respirou fundo. À medida que soltava seu braço, ele fechou os olhos, se obrigando a voltar à razão. A última coisa que desejava era machucá-la.
— Vá para o quarto, e volte a dormir. — Mesmo em um tom baixo, a entonação de ordem foi percebida pela garota.
— Sim, senhor. — Assentiu ela, disfarçando o suspiro de alívio.
Os olhos marejados foram dando lugar às lágrimas que escorreram por seu rosto ao longo do caminho de volta ao quarto. sentia uma sensação de agonia que lhe causava desespero interno. Não entendia o que ela tinha feito de errado para que o primogênito agisse de tal forma.
Na manhã seguinte, pouco antes de seguir para escola, ela se permitiu tomar café da manhã na cozinha, com os outros empregados. A única coisa que ambicionava era uns míseros minutos de paz.
— Jovenzinha. — A governanta se aproximou dela, com ar rude e grosseiro. — Sua presença está sendo solicitada no escritório do senhor Magnus.
O corpo de gelou com aquelas palavras, com medo de ter feito algo de errado e descontarem em sua mãe.
— Senhora Vernice. — A voz de Lídia saiu trêmula. — O que querem com a minha filha?
— A senhora Magnus apenas solicita a presença dela. — Ela manteve o olhar firme.
A menina, após engolir seco, se levantou da cadeira, temerosa.
— Seja o que for, eu responderei por ela. — Assegurou Lídia, se colocando na frente da filha.
— Recolha-se aos seus afazeres, senhorita Miller. — Gertrudes lhe lançou um olhar intimidador. — A criança virá comigo.
— Está tudo bem, mamãe. — Assentiu , mesmo com medo, porém se esforçando para não deixar a mãe mais preocupada ainda.
Em silêncio, seguiu a governanta pelos corredores da casa, a cada passo ficando mais apreensiva pela solicitação da dona da casa.
— Senhora Magnus, aqui está a filha dela — anunciou Gertrudes, ao abrir a porta do escritório e dar espaço para a menina entrar.
— Ótimo, deixe-nos a sós — ordenou Marie, com o olhar fulminante para a garota, sentindo ainda mais desprezo por ela.
A menina manteve seu olhar abaixado, enquanto a mulher a encarava. Marie não conseguia deixar de imaginar as noites de traição do marido com a empregada, e se não podia tocar em Lídia, ela estava disposta a descontar sua raiva na criança. Apenas precisava de um motivo plausível para isso, o qual havia conseguido graças aos olhos atentos de sua governanta.
— Você não deve nem mesmo imaginar o que faz aqui. — Iniciou a mulher, após a onda de silêncio que tomou conta do lugar.
— Não senhora — sussurrou , se encolhendo um pouco.
— Mas certamente sabe o que acontece entre meu marido e sua mãe todas as noites nesse lugar. — O tom de amargura surgiu com um toque de rancor, fazendo Marie fechar seus punhos ao imaginar a cena.
permaneceu em silêncio, sentindo os olhos começarem a lacrimejar.
— Eu não deixarei que o mesmo aconteça com meu filho e você no futuro. — A mulher deu alguns passos até parar em sua frente. — Não vou permitir que a futura senhora Magnus passe pelo que eu estou passando.
— Eu não entendo suas palavras, senhora — sussurrou mais uma vez, mantendo o olhar abaixado.
— Olhe para mim — ordenou Marie, com mais frieza.
Assim que ergueu um pouco mais a sua face e levantou o olhar, conseguiu ver com nitidez os olhos negros de ódio da mulher. Em um piscar de olhos, a mão de Marie se ergueu e com precisão encontrou o rosto da menina, lhe acertando um tapa forte e doloroso. segurou as lágrimas no canto dos olhos, assim como o sentimento de raiva que lhe era novo. Por que ela estava passando por aquilo? A única coisa que fizera foi salvar a vida do herdeiro.
— Vou dizer apenas uma vez, então preste atenção... Não siga os passos de sua mãe e fique longe do — concluiu a mulher com amargura. — Agora saia.
assentiu, sentindo seu rosto formigando de ardência pelo tapa. Tanto que poderiam ver a olho nu, a marca das mãos de Marie. Em silêncio, ela saiu do escritório e seguiu diretamente para seu quarto, com um pequeno alívio pela mãe não estar à sua espera.
A garota sentou nos pés da cama com os olhos cheios de lágrimas que não se permitia deixar cair. Lentamente, ela elevou sua mão ao rosto, tocando na região que persistia com a ardência. A sensação das mãos de Marie tocando seu rosto veio com mais força, como se estivesse apanhando novamente. Então, finalmente ela fechou os olhos e caiu em choro, não pela dor física, mas pela dor interna de não poder viver outra realidade senão aquela. Em instantes, seu choro foi interrompido pelo toque do seu celular no bolso. Inicialmente pensou que fosse seu amigo Matteo para perguntar o motivo de seu atraso, porém, ao olhar para tela, a mensagem indicando número restrito lhe fez assustar.
— Hum?! — Ela respirou fundo, e sussurrou. — Número restrito.
Logo se lembrou do dia em que recebeu a mensagem de convite para ir a Siena. Mas aquele número era novo, assim como o celular. Será que era a mesma pessoa? Pensou consigo, e enfrentando seus medos e traumas, ela aceitou a chamada, permanecendo em silêncio.
— Seu número foi grampeado, mas consigo bloquear o sinal por cinco minutos apenas — disse a voz do outro lado da linha, de forma precisa, para que a menina não se preocupe. — Bom dia, .
— Quem é você?! — perguntou ela, sentindo sua voz trêmula.
Não confiava naquelas palavras.
E se fosse alguém a mando de Magnus para lhe testar?
— Sou a pessoa que vai te livrar dessa prisão — afirmou a voz, com segurança e firmeza.
A entonação do homem soou de forma familiar para ela, que, de imediato, sentiu seu coração se encher de esperança.
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Encostado ao muro do Colégio Secundário de Florença, a escola pública de ensino médio da cidade no qual os amigos estudavam, estava Matteo com seus olhos concentrados no celular em sua mão, enquanto jogava a versão android do FIFA 2013. Seu amor pelo futebol conseguia ir além da compreensão de seus pais, contudo, apesar de ambos saberem da cruel realidade em relação à falta de oportunidade para o filho, continuavam apoiando o filho e mantendo seu sonho vivo.
— Ricci. — A voz grossa e firme de soou, frente ao garoto, despertando sua atenção de imediato.
Um frio passou pelo corpo de Matteo. Raramente as pessoas o chamavam pelo sobrenome, e sendo um Magnus ali diante dele, o deixava ainda mais temeroso ao motivo de sua presença.
— Senhor Magnus. — O menino engoliu seco, era sua primeira vez em um possível diálogo com a realeza.
— Venha comigo. — manteve o tom sério, com o olhar inexpressivo, deu meia volta e começou a andar. — Vamos dar uma volta.
Matteo sentiu uma breve paralisia em suas pernas, não controlou seus pensamentos a ponto de não permitir que sua vida inteira passasse diante dos seus olhos. Ele sabia muito bem o quão incisivo o primogênito estava em controlar os passos da amiga e principalmente as pessoas que se aproximavam dela. Por mais que não conseguisse se expressar para ele, sua agonia conseguia ser vista em seus olhos pelo amigo.
— Eu... — Matteo respirou fundo, tentando reunir coragem para falar algo. — Eu tenho aula, agora, senhor.
— Não acho que deva se preocupar com algo tão normal, quando se é convidado pelo dono da cidade. — A entonação de fez o menino sentir calafrios na espinha.
— Sim, senhor. — Assentiu Matteo, dando o primeiro passo para segui-lo.
Um silêncio permaneceu entre eles, até que estacionou seu carro em frente ao Centro de Treinamento do maior time de futebol de Florença e ordenou que o acompanhasse. Os olhos de Matteo brilharam de imediato, tanto que não conseguiu nem disfarçar sua emoção por estar ali. Por um curto espaço de tempo, o menino esqueceu-se de quem o levara e apenas deixou-se ser guiado pela empolgação do momento.
— Vamos entrar. — Continuou , ao disfarçar o sorriso de canto em seu rosto.
Mais uma vez, o primogênito havia acertado em suas avaliações a respeito dos amigos de .
— Senhor Magnus, o que estamos fazendo aqui? — indagou Matteo, confuso pela situação, pois em sua mente apenas coisas ruins lhe passavam.
— Logo saberá, apenas me siga — respondeu ele, com seu jeito enigmático de ser.
Adentrando o lugar, logo avistou o dirigente Artemio Rossi. O primogênito havia agendado uma reunião com o homem mais importante do time Fiorentina, aquele que contratava e demitia.
— Magnus. — O homem soltou um grito de entusiasmo ao vê-lo — Finalmente veio se juntar ao time?
— Se eu for jogador, não serei o patrocinador — brincou , num tom mais sério, porém mantendo a suavidade em seu rosto. — Não se pode ter os dois.
— Ah... — O homem se fez de triste, então desviou seu olhar para o garoto ao lado, que visivelmente estava deslumbrado com tudo o que via.
Era sua primeira vez tão perto do seu time do coração.
— Este é o garoto? — indagou Rossi, não dando muita credibilidade.
— Acredite, ele pode se tornar mais do que os olhos veem, basta a motivação correta. — olhou para Matteo. — Voltarei daqui algumas horas, aproveite seu momento.
Matteo assentiu prontamente, sentindo o coração aquecido pelo que viveria aquela manhã. As horas se passaram com o garoto visitando cada centímetro das instalações do Fiorentina. Pisou no gramado do centro de treinamento e até obteve a oportunidade de conhecer os jogadores titulares daquela temporada. Ao final da tarde, após vivenciar todo um sonho de pequeno, ele sentiu o ápice da realização que uma criança de família de classe trabalhadora poderia sentir.
O gostinho da grandeza.
— Senhor Magnus. — Matteo soltou um suspiro frustrado pelas horas terem passado com tanta rapidez.
— Você pode viver isso aqui todos os dias se quiser. — Num tom baixo, porém, nítido e firme, pronunciou suas palavras instigantes. — O Fiorentina possui dormitórios e professores próprios para os jovens das categorias de base, ainda que você tenha apenas treze anos e não possa jogar na sub-16, toda regra tem a sua exceção, e você teria mais tempo para se preparar para jogar profissionalmente.
— Seria incrível, morar aqui e... — Matteo parou o vislumbre que estava tendo e o olhou com seriedade. — Quando conseguiu a vaga para Rosalia em Londres, ela teve que ser o álibi perfeito para .
Matteo podia ser disléxico com as questões escolares, mas era muito esperto desde pequeno. Em sua mente, as peças do quebra-cabeças já começavam a se encaixar.
— O que eu terei que fazer em troca? — indagou ele, sabendo que tinha um preço a ser pago.
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— Senhor, agradecemos por tudo que temos e todas as coisas boas que nos aconteceram ao longo deste um ano. — Iniciou o pai de Matteo, sua oração de agradecimento por aquele dia. — Agradecemos por todas as bênçãos, pelos amigos e por nossa família.
— Amém! — disseram o restante em coral.
Finalmente o Dia de Ação de Graças tinha chegado. Em uma ação de gratidão aos amigos que fizeram ao longo dos anos, o motorista Domenico e sua esposa Nerina, promoveram um almoço de ações de graças em sua humilde casa, aos fundos da propriedade da família Cassano. O convite se estendeu a Lídia e sua filha, além da viúva Celestina, a cozinheira dos Tommaso e mãe de Rosalia. A menina, porém, estava ausente por seus estudos em Londres.
Uma tarde de sorrisos e alegrias que faziam todos os envolvidos sentirem imensa gratidão pelo momento. Após saborearem o delicioso banquete preparado por Nerina e Celestina, os filhos presentes saíram da casa para dar uma volta pelo jardim. Por mais que os Cassano não fossem tão generosos com os empregados, também não os proibiam de desfrutar da beleza de sua propriedade. E havia um lugar em especial que Matteo queria mostrar à amiga.
— Para onde está me levando, Matteo!? — indagou , ao ser conduzida por ele, que a puxava pela mão.
— Você vai ver — respondeu o menino, continuando a caminhar.
Mais alguns passos apressados, e finalmente pararam em frente a um lago artificial que havia próximo à casa de seus pais. Um pequeno oásis que seu pai havia criado nos momentos livres, sob a autorização dos donos do terreno.
— Olha se não é lindo — disse o menino, mantendo o olhar nos poucos peixes que tinha nadando pelo lago. — Levou anos para ficar pronto, foi o meu pai quem fez com as próprias mãos.
ficou notoriamente impressionada com a beleza do espaço, não somente pelos peixes e a água cristalina, como também pelas plantas que cercavam o lugar.
— Sim, é lindo… — Assentiu ela, com um brilho nos olhos. — Eles nadam de forma tão despreocupada.
— É porque não devem favores à máfia — brincou o amigo, arrancando risadas dela.
— Isso é verdade. — voltou seu olhar para ele. — Estou grata, Matteo.
— Grata?! — Ele a olhou de volta, confuso.
— Sim, grata. — Assentiu ela.
— Pelo quê? — perguntou ele.
— Por estar aqui hoje, longe daquela casa e com o meu melhor amigo. — Ela abriu um largo sorriso. — Só faltou a Rosa aqui, assim vocês poderiam me matar de rir com suas trocas de amores.
Matteo fez uma careta engraçada, arrancando algumas gargalhadas dela.
— É divertido vocês dois juntos. — comentou a menina, ao se sentar na grama e manter a atenção para o lago.
— Aquela traidora… — Matteo resmungou, se sentando ao lado dela e inclinando seu corpo para trás, se encostando na grama. — Nos abandonou por Harvard e nem se deu o trabalho de vir no dia de ações de graças.
— Você sabe que a bolsa de estudos dela não se estende às visitas à família — explicou , entendendo o lado da amiga. — E ela nos fez uma videochamada há dez minutos.
— Não é a mesma coisa sem ela aqui. — Seu resmungo perdurou.
— Um dia, vocês ainda vão se casar — disse , rindo em seguida.
— Não, eca… — Matteo fez outra careta e ergueu o corpo ficando sentado. — Como pode achar isso?!
— A forma como olhava para Rosa quando ela te ensinava os exercícios de ciências — continuou a amiga, se lembrando dos momentos em sala de aula. — Eu shippo vocês dois.
— Hum… — Matteo abraçou suas pernas e ficou olhando para os peixes. — Sinto falta dela.
Ele não queria confessar a realidade, mas, lá no fundo, ele gostava da nerd metida chamada Rosalia. Um longo silêncio pairou sobre eles, com ambos presos em seus pensamentos dos tempos divertidos que o trio estava junto, apenas se preocupando com os trabalhos intermináveis e as semanas de prova que os deixavam em surtos, principalmente ele.
— ... — disse ele, num tom baixo, quebrando o silêncio.
— O que foi?! — Ela manteve sua atenção também nos peixes, ainda impressionada com o dia que estava vivendo.
Ela desejava parar aquele momento e apenas eternizá-lo.
Tanto quanto sua mãe estavam felizes longe da mansão que as sufocavam e aprisionavam. Longe dos olhares dos Magnus que tanto lhe faziam mal.
— Você é minha melhor amiga, preciso te contar uma coisa. — Iniciou ele, um dos assuntos mais sérios de sua vida.
— O que quer me contar?! — Ela voltou seu olhar para ele, curiosa.
— O primogênito Magnus me fez uma proposta… e eu ainda não aceitei… — Matteo sentiu um aperto no peito, ainda não tinha dado sua resposta final, pois queria contar à amiga primeiro. — Ele me ofereceu uma vaga como trainee no sub-16 do Fiorentina.
— Sério? — abriu um largo sorriso. — Matteo, é a oportunidade do século, você vai poder realizar seu sonho de ser um jogador profissional no futuro.
— , você não entende?! — Ele voltou seu olhar marejado para ela, se sentindo culpado. — Ele me ofereceu a vaga para que eu me afastasse de você. Sendo um trainee, vou ter aulas com os professores próprios do time. Ficarei longe como a Rosalia.
Matteo conseguia ver nitidamente que estava afastando de seus amigos mais próximos, da mesma forma que tentava impedir as pessoas de se aproximarem dela através do segurança.
— Eu entendo…, mas não importa. Você precisa aceitar — disse ela, o encorajando com firmeza. — E tenho certeza de que seus pais também acham isso.
— Não posso — recusou ele, abaixando o olhar com tristeza.
— Por que não? — indagou ela.
— Não posso viver meus sonhos às custas do sofrimento de uma amiga. — Ele levantou seu olhar para ela. — , pode não me contar, mas eu vejo nos seus olhos que morar com essa família não te faz bem.
— Obrigada por ser um bom amigo. — se inclinou um pouco para abraçá-lo bem apertado. — E eu te deixo aceitar a vaga. Se não o fizer, deixarei de ser sua amiga.
— Hum… Eu que agradeço por ser seu amigo. — Ele retribuiu o abraço com carinho, e voltando o olhar para frente, logo se afastou da amiga.
Uma sensação gélida passou por seu corpo ao cruzar seu olhar com , que estava próximo e observando a conversa deles.
— O que foi?! — indagou , estranhando a reação dele.
— Acho que está na hora de voltar para casa — sussurrou ele, engolindo seco.
— Hum?! — deu meio giro no corpo para a direção que o amigo olhava, então a garota também sentiu o corpo estremecer.
O olhar de fúria do primogênito Magnus era nítido…
E lhe causava ainda mais medo.
Você vai se machucar! Fuja ou você vai se machucar!
Às vezes ser corajoso demais pode ser ruim
Peça ajuda, peça ajuda a alguém
Ou então só observe em silêncio por agora...
— Face (페이스) / NU'EST
Roma, outono de 2014
O momento mais promissor da vida de um jovem adulto é quando se torna um universitário.
Aos seus 21 anos completos, Segre finalmente havia chegado ao seu último ano letivo da faculdade de três anos, com honras e um acúmulo total de 320 créditos em seu curso técnico científico de psicologia, o renomado Laurea Triennale In Scienze E Tecniche Psicologiche, da Universidade de Roma. Não havia sido fácil para a jovem enfrentar a vida adulta acadêmica, longe da família e em um país cuja cultura é totalmente diferente da sua. Filha de um excêntrico casal de brasileiros, , como chamada pelos íntimos, havia conquistado sua bolsa de estudos em Roma, através do consulado italiano no Brasil. Tudo graças à descendência italiana que herdou por parte de seu avô paterno, Giuseppe Segre, um imigrante que se estabeleceu na cidade de Curitiba.
— Ahhhh… — disse a garota, ao se espreguiçar da cadeira, na qual passou a madrugada em claro, escrevendo seu artigo sobre anomalias comportamentais e as diferenças e semelhanças entre masoquismo e sadismo. — Acho que preciso de um minuto de sono.
Por influência do coordenador e melhor professor de seu curso, o dr. Nicolo Giordano, acabou por seguir sua linha de pesquisa e especificação para a área relacionada com o assunto de seu artigo. Inicialmente, a garota havia se interessado pelo estudo sobre a Síndrome de Estocolmo, apresentado pela professora e especialista Margarete Leone. Entretanto, agora, ao final de sua graduação, ela já estava mais do que decidida pela especialização que pretendia se aprofundar no mestrado que enfrentaria no futuro.
— Um minuto só?! — Caterina soltou uma gargalhada boba, pois já estava acostumada com os hábitos noturnos de sua amiga.
Ambas haviam se tornado amigas no momento em que descobriram ser colegas de quarto, e mesmo seus turnos de estudos sendo desencontrados, uma encontrava apoio no entusiasmo da outra. Ao contrário do curso de psicologia, o curso de jornalismo a qual Caterina cursava lhe exigia 4 anos de estudos dedicados à escrita e busca pela informação, além de muitas horas de estágio.
— Você me entendeu… — soltou uma risada boba e a olhou atentamente impressionada com a disposição da amiga logo pela manhã. — E o que faz aqui nessa hora? Não deveria estar na aula de redação?
— Ah, aquela aula tediosa. — Ela soltou um suspiro fraco e cansado, ao levar a mão no pescoço, enquanto se aproximava de sua cama para se sentar. — Nem acredito que ainda tenho mais dois anos com aquele professor chato.
— Você não achou chato quando se envolveu com ele no primeiro dia, achando que era um veterano — retrucou , rindo um pouco mais dela. — Quando foi que ele ficou chato?
— Quando dei um fora nele — respondeu ela, com serenidade, retirando o celular do bolso. — Vou aproveitar minha manhã para colocar minhas leituras em dia, comprei a coleção dos Bridgertons e não comecei nenhum até agora.
— Você e seus romances do século XIX. — se manteve impressionada com a amiga. Por mais que estivesse sonolenta, ainda conseguia se atentar a ela. — Se não se incomoda, eu vou tirar um cochilo, pois tenho um almoço com o professor Giordano hoje.
— Almoço? — Caterina estranhou a primeiro momento, então brincou. — Não achei que gostasse dos mais velhos.
Ambas deram algumas risadas.
— Ele tem sido meu mentor há um ano e meio, isso porque minhas notas são as melhores da turma, assim como meus argumentos nos debates clínicos — assegurou , se lembrando do dia em que o professor lhe ofereceu um estágio em seu consultório. — Não posso recusar, sou uma bolsista estrangeira.
— Ah, verdade… Meio estrangeira — corrigiu ela. — Já que você tem sangue italiano também.
— Sim — confirmou , ao se aproximar de sua cama e se deitar. — Já que vai fazer sua leitura, eu vou ao meu sono merecido.
A melhor parte da amizade de ambas é o máximo respeito e privacidade mútua entre elas, que lhes permitia as muitas brincadeiras sobre suas situações acadêmicas. Logo, ao se aconchegar no cobertor, fechou os olhos e se permitiu finalmente a se render ao sono e ter suas valiosas horas de descanso. Pouco antes do horário do almoço, a brasileira despertou com o toque do celular da amiga, que recebia uma chamada. A jovem olhou em volta e percebeu que Caterina estava no banheiro a se banhar, o que explicava o aparelho tocando sem ser notado.
— Caterina, seu celular está tocando — gritou ela, já se descobrindo para levantar da cama.
— Apenas ignore… É o Santoro — respondeu, se referindo ao professor tedioso.
— Tudo bem. — soltou uma risada boba e caminhou até o guarda-roupas, o abrindo.
Ela não sabia o que vestir, mas deveria ser algo casual, já que não era o dia de acompanhar o doutor Giordano em nenhuma consulta especial. Após minutos de indecisão, ela pegou uma camiseta básica com um jeans surrado e o all star de sempre, o look inseparável de todo universitário de Roma, exceto, claro, os estudantes de moda.
— Já está saindo? — indagou Caterina, ao sair do banho e olhar para a amiga se maquiando.
— Sim. — A garota pegou a bolsa transversal e jogou sua carteira e o celular dentro, então. — Te vejo mais tarde?
— Hum… talvez, se eu não passar a noite na redação revisando a diagramação dos artigos para a próxima edição do jornal — respondeu ela, ainda enrolada na toalha, seguindo para o seu lado no guarda-roupa.
A parte negativa de se dividir o dormitório oferecido pela universidade era exatamente a questão de espaço, ter apenas um lado do guarda-roupas e metade do quarto. seguiu seu caminho para o restaurante Osteria Fortunato que seu professor lhe mandou. Após alguns minutos de caminhada, finalmente acabou chegando ao metrô e, por uma confusão nas placas de aviso, pegou na direção errada, o que lhe custou dez minutos de atraso.
— Professor Giordano — disse ela, ao se apresentar diante dele, em meio ao salão de mesas do restaurante.
O garçom a acompanhava, pois havia lhe mostrado o caminho. O olhar do professor se manteve sereno para ela. Conhecendo-a bem, sabia que sua aluna brasileira nunca era pontual em nenhum de seus compromissos. Ele havia visto em um grande potencial para se tornar a melhor em sua área de profissão, melhor até que ele mesmo. Não somente isso, a jovem tinha conquistado sua confiança a ponto de lhe fazer ter uma ideia de experimento para ela.
— Sente-se, senhorita Segre — disse ele, ao pegar na alça da xícara de café e levar à boca.
Ela assentiu com a cabeça e, puxando a cadeira, se sentou em seguida, não se contendo em observar toda a arquitetura ao seu redor. O restaurante, em seu luxuoso estilo de decoração, trazia consigo um sutil toque de clássico dos grandes coliseus combinado ao tradicionalismo do barroco italiano.
— Estou aqui, professor. O senhor disse que seria um assunto sobre meu futuro acadêmico, isso me deixou um pouco ansiosa — admitiu ela, num tom baixo, suas emoções.
— Imagino, senhorita. — Ele deu um sorriso gentil. — Venho prestando atenção em você desde o início, quando era uma simples caloura, sabe disso, senhorita Segre. E confesso que a cada semestre tem me impressionado com sua dedicação e inteligência.
— Agradeço o elogio e reconhecimento, senhor. — Assentiu ela, devolvendo o sorriso.
Ainda que sua amiga com seus comentários engraçados que soavam como brincadeiras sobre ela ter algum envolvimento com seu professor no futuro, não tinha nenhum sentimento pelo homem que não fosse admiração por seu profissionalismo dentro e fora de sala de aula. Entretanto, ela sabia de muitos casos de envolvimento de alunas com professores da universidade, o que lhe fazia temer um pouco os interesses dele por ela.
— E sobre meu trabalho de conclusão de curso, lhe enviarei meu artigo até o final da semana para que avalie, assim irei me submeter à publicação como me orientou — explicou ela, o seguimento da primeira etapa de sua monografia de graduação sobre seu complexo tema. — Ainda estou na fase de pesquisas e já me encontrei com os dois voluntários de pesquisa de campo que pediu.
— Quais são?! — indagou ele, reflexivo nas palavras dela.
— A senhora Petrick, do departamento de legislação acadêmica, me indicou um orfanato do qual vou ter material para trabalhar. Além de ser um trabalho social que também contará como horas complementares, vou poder dar sequência à parte prática da minha monografia — explicou ela, sendo servida pelo garçom, com um cappuccino nutella, seu favorito. — Escolhi uma criança de oito anos e uma adolescente de quatorze.
Após tanto tempo de trabalho juntos, o professor já havia reparado em muitos detalhes sobre ela.
— Interessante. — O professor respirou fundo, parecia ainda pensativo em seu verdadeiro motivo de estarem ali. — Me recordo que já expressou seu desejo de avançar academicamente e a Universidade de Florença oferece um excelente programa de estudos de Mestrado em Psicologia.
— O senhor já mencionou sobre seu amigo reitor de lá — comentou ela, puxando o nome do homem mencionado em sua memória.
— Posso lhe conseguir uma bolsa de estudos, com alojamento independente, assim terá sua privacidade de volta e um apartamento apenas seu. — Continuou ele, induzindo a conversa ao ponto que desejava. — Continuarei sendo seu mentor, é claro, mas conhecerá professores melhores e mais reconhecidos no meio que eu.
— Entendi. — Respirando fundo, assim como ele, ela também o conhecia bem para saber que havia um acordo por trás daquela conversa. — Mas há algo que eu preciso fazer em troca.
— Sim. — Assentiu ele, sem rodeios.
Aquele era o ponto fraco de Nicolo Giordano, seu alto prazer em barganhas e acordos, que aprendeu com o pai desde pequeno, para conseguir o que quisesse. Afinal, as pessoas sempre tinham algo pelo que trocar, em qualquer situação.
— Em sua dissertação de mestrado, pretende continuar a linha da monografia? — indagou ele, esperançoso por uma resposta positiva.
— Sim, senhor. — Assentiu ela, respirando mais profundamente. — Porém não quero trabalhar ambos os casos de anomalia comportamental, pretendo seguir apenas uma linha de pesquisa e entender melhor sobre o assunto.
— E qual deles você escolheu? — Seu olhar interessado a deixou inquieta internamente.
— O prazer da dor — respondeu ela, descrevendo o termo de sua escolha.
— Estou feliz que tenha escolhido este caminho, e… — Nicolo voltou seu olhar para o lado, percorrendo pelas mesas, até que parou em uma ao reconhecer um rosto sentado. — Tenho um paciente que quero torná-lo seu objeto de estudo para o mestrado. Se aceitar, terá todas as oportunidades que lhe apresentei.
— E quem seria este paciente? — indagou ela, confusa pelo professor lhe repassar um paciente, sendo ela tão inexperiente.
— Estou olhando para ele — respondeu seu professor, a fazendo olhar na mesma direção.
ficou em silêncio por um tempo, observando uma família sentada na mesa distante, a única ocupada no lugar além da deles.
— Qual dos dois garotos? — indagou ela, tentando adivinhar pela postura deles.
— Como sabe que são os filhos e não os pais? — perguntou ele, voltando o olhar para ela, a fim de analisar suas expressões.
— Intuição — respondeu.
— O mais novo. — Continuou ele, a analisando. — Está entrando em sua fase adulta, acabou de completar seus dezessete anos.
— E por que o senhor está me repassando este paciente? — Ela estava curiosa pela história por trás.
— Não posso, por ética profissional — explicou ele.
— Ele é seu… — Ela iniciou sua suposição, até ser interrompida.
— Ele é meu afilhado, seu nome é… Magnus. — Finalizou ele, sem a deixar pensar o inapropriado.
— E por que eu? — Esta era a pergunta chave em sua mente.
— Porque confio em você — respondeu ele, soltando um suspiro baixo e mantendo a atenção nela. — Acredito no seu potencial.
, voltando o olhar para ele, estava um misto de confusão e insegurança. Mesmo que o professor demonstrasse acreditar em sua capacidade, a própria garota não se sentia apta o bastante para isso.
— Seria muita responsabilidade, professor Giordano — esclareceu ela suas inseguranças com aquele comentário.
— Sei que é capaz de… Ele será seu primeiro paciente, oficialmente o primeiro — reforçou ele, a fazendo se lembrar que já será uma profissional habilitada ao serviço.
Ela assentiu ainda reflexiva.
— Posso lhe dar a resposta na próxima aula? — indagou ela.
— Claro. — Assentiu ele, não demonstrando sua frustração interna. — Que tal almoçarmos?!
Após o pequeno banquete que foi servido a eles, se despediu do professor e seguiu até a saída, porém, antes de se retirar por completo, ela observou muito bem Nicolo se aproximar da mesa em que a família estava e lhes cumprimentar. O caminho para a livraria próximo a universidade foi reflexivo e cheio de perguntas. Ela já iria lidar com adolescente em sua monografia, entretanto, com uma situação de vida inteiramente diferente. Ela não sabia ao certo o que viria a seguir, pois ainda precisava passar por todo o processo construtivo do trabalho de conclusão de curso, apresentar de forma impecável sua monografia e enfim obter seu diploma acadêmico e realizar o juramento da profissão.
Para chegar ao seu primeiro paciente, ainda havia um longo caminho pela frente.
— Italo — disse , assim que adentrou a pequena livraria de esquina, já avistando o seu dono.
Italo Ungaretti era um jovem boêmio de vinte e cinco anos, que inicialmente se interessou pela brasileira que visitava sua livraria com frequência. Após alguns foras dela, ambos acabaram desenvolvendo uma singela amizade, regada de conversas descontraídas sobre livros medievais e séries de ficção com mundos distópicos.
— Brasileira — disse, num tom risonho, ao finalizar o atendimento e se aproximar dela. — Deixa eu adivinhar… Outro dark romance para sua leitura do final de semana?
— Bem isso — concordou ela, segurando o riso. — A realidade é bem diferente, mas este tipo de literatura vem me ajudando a entender a mente de pessoas que escrevem histórias assim.
— Analisar mentes de autoras de romance é um bom nicho de pesquisa, pelo menos você se diverte com as leituras — brincou ele, me conduzindo até a sessão correta.
Havia feito uma reforma recentemente, mudando as estantes de lugar.
— Já te agradeço por me fazer descontos incríveis nos exemplares — brincou ela, de volta, dando uma olhada superficial nos títulos.
— E como anda a monografia? — perguntou ele, curioso.
Italo já havia ouvido as muitas histórias dramáticas da garota sobre suas madrugadas em claro fazendo artigos, relatórios, redações e estudando para as provas semestrais. A faculdade e o estágio a estavam consumindo de uma forma que não conseguia explicar. Mesmo não pretendendo demorar, acabou excedendo seu tempo limite para retornar ao dormitório, perdendo o toque de recolher e ficando trancada fora de casa.
— O que eu faço agora?! — Ela soltou um suspiro cansado e chateado, havia planejado chegar ao dormitório e finalizar a diagramação das referências do seu artigo.
Parada diante do prédio do dormitório, ela ficou mais alguns minutos se sentindo culpada por não ter voltado mais cedo. Devido à insistência de Italo, acabou aceitando seu convite para conhecer uma nova cafeteria que tinha aberto próximo à livraria, que abrigava obras de artistas de rua em sua decoração. Agora, estava impossibilitada de entrar no prédio e sem a menor ideia do que fazer, já que sua amiga não atendia as chamadas dela.
— Senhorita Segre?! — A voz do professor Giordano soou atrás dela, aa ssustando de leve.
— Ah?! — Ela se virou e soltou um suspiro de susto misturado ao alívio. — Professor!?
— O que faz aqui fora? — indagou ele, ao olhar para a porta do prédio fechada e a maioria das luzes apagadas.
— Eu… acabei me atrasando e não sei o que fazer. — Seu olhar amedrontado ficou mais nítido a ele.
— Venha comigo, não deixarei minha aluna passar a noite na rua — disse ele, estendendo a mão para ela, indicando onde seu carro estava estacionado.
Ela assentiu em silêncio, o seguindo até o carro. Esta seria a segunda vez que a universitária entraria no apartamento do professor. A primeira havia sido para buscar uns documentos de um paciente. A cobertura de causar inveja se localizava na parte da cidade onde os prédios são mais modernos e volumosos. Ao passar pela porta de entrada, ela observou seu professor fechá-la adequadamente e dar mais alguns passos adentro para depositar o paletó no encosto do sofá, juntamente à maleta, seguindo depois para a cozinha.
— Está com fome? — indagou ele, já abrindo a geladeira.
O conceito aberto dos ambientes permitia que toda área social do apartamento fosse visualizada de qualquer ponto. A jovem tentou disfarçar, contudo, era visível seu deslumbramento com a arquitetura do lugar. O conceito menos é mais era demonstrado na decoração minimalista, combinada ao estilo industrial presente nas escadas e nas esquadrias de metalon.
— Não — respondeu ela, se encostando nas costas do sofá, o olhando. — Eu estou sem apetite.
— Não se preocupe com seu artigo, você pode me entregar até sexta-feira — disse ele, como se soubesse o foco do seu silêncio.
— Agradeço… Sei que estou apenas no início do meu tcc, mas já me sinto tão pressionada a não desapontá-lo — confessou ela, segurando o marejar de seus olhos.
tinha um excelente controle emocional, característica essa que aumentava ainda mais as expectativas de seu professor a seu respeito. Capaz de não demonstrar reações ou sentimentos em momentos críticos, além de estar sempre preparada para enfrentar situações conflituosas e complexas. Na visão de sua família, a brasileira era tida como uma jovem inexpressiva. O que levou a ser a escolha perfeita para a missão a qual Nicolo queria incumbi-la.
— Tem estado muito tensa ultimamente, consigo perceber isso nas aulas práticas — comentou ele, mantendo a serenidade, enquanto se dirigia até o fogão com sua cafeteira italiana na mão direita. — Vou lhe fazer meu famoso cappuccino caseiro pelo menos. Sabe que não gosto de receber visitas sem lhe oferecer algo que me custe fazer.
— O senhor tem certeza que não é brasileiro? — brincou ela, se aproximando da área da cozinha. — Somos nós que gostamos de receber as visitas na cozinha, de preferência fazendo algo para comer.
— Talvez sejamos parentes — brincou ele de volta, a fazendo rir.
Algumas risadas espontâneas.
— Professor?! — disse ela, o despertando a atenção.
— Sim?! — Ele manteve o olhar no preparo do café.
— O senhor… possui muito contato com seu afilhado? — perguntou ela, demonstrando sua curiosidade pelo assunto.
Por mais que os assuntos com Italo fossem divertidos, não conseguiram abafar tais pensamentos de sua mente.
— Fico satisfeito que minha proposta tenha despertado interesse, mas só a deixarei conhecer meu afilhado no momento certo — respondeu ele, já encerrando o assunto.
— E qual seria este momento? — indagou ela, o olhando atentamente.
— Após a sua formatura, quando for a profissional que está se preparando para ser. — Finalizou ele.
Ambos ficaram por um longo tempo em silêncio, apenas saboreando as sensações que aquelas xícaras de café lhes causavam, desde o aroma até o sabor. Foi como o despertar de um devaneio quando a campainha soou, fazendo o professor estranhar.
Quem lhe visitaria naquela hora da noite?
— O senhor estava esperando alguém? — indagou ela, também estranhando.
— Aparentemente, não — respondeu ele, se afastando da banqueta que sentou e seguindo até a porta.
Nicolo era tido como um homem caseiro, mesmo sendo sociável e comunicativo, não gostava de receber visitas, menos ainda de comparecer aos muitos eventos da elite italiana. Por isso, o sentimento de inquietação.
Assim que abriu a porta…
— Posso ficar aqui esta noite, padrinho? — A voz sussurrada de tinha traços de amargura e raiva.
, que estava parada atrás do anfitrião, conseguia visualizar como espectadora toda a cena. Seus olhos encararam os do adolescente por um breve momento, até que foram direcionados ao pequeno corte no canto de sua boca e os notórios hematomas em seu pescoço.
Mate-me suavemente
Feche meus olhos com o seu afago
Eu não posso nem rejeitar, de qualquer forma
Eu não posso mais nem tentar escapar.
— Blood Sweat & Tears / BTS
Noruega, inverno de 2014
Dizem que o inverno é frio e monótono, e a única coisa que se espera fazer é se aconchegar em frente a uma lareira acesa, enrolada em cobertores até que a neve acabe.
Entretanto, na visão do pai mais durão de todos, a estação mais gelada do ano era o convite para um retiro nas montanhas entre pai e filho, com o objetivo de um treinamento pesado, escondido da mamãe coruja. E assim foram Durand e Liam para sua aventura, duas semanas antes do natal e com a promessa de que voltariam a tempo para a noite de ceia.
A trilha de Ragdeskogen se localizava ao leste da cidade norueguesa de Odda, bem afastada dos olhares de civis, e entre as altas árvores cobertas de neve, o militar alugou uma cabana para oito dias, abastecida com tudo o que precisavam para a estadia. Não havia tanto requinte e luxo quanto um quarto de hotel, porém lhes dava o mínimo de conforto que uma edificação do porte conseguia.
— Achei que viríamos de carro — comentou o jovem, enquanto carregava as bagagens para dentro.
Ele havia carregado todas elas ao longo do extenso caminho que andaram a pé, sem nenhum tipo de ajuda do padrasto.
— Nem começamos e já está de corpo mole? — Durand soltou uma risada sarcástica. — Tem certeza de que quer ser meu filho?!
Liam jogou as bagagens ao chão e o olhou seriamente, demonstrando não estar ali para agir como uma criança.
— É disso que estou falando. — Continuou o homem, entendendo o olhar do filho. — Quero sentir confiança em você.
— Vamos começar agora, então. — O rapaz estava ansioso para saber como seriam aqueles dias em meio à neve de dezembro sendo treinado pelo pai.
— Tem certeza de que não quer descansar? — indagou o pai, o analisando.
— Estamos aqui para isso, não é?! — insistiu, reafirmando seu desejo.
Pelo planejamento de Durand, ele começaria pela preparação física até chegar ao emocional do garoto. Precisava levá-lo ao extremo para lhe mostrar que quando o assunto era o mundo perigoso em que adentraram, qualquer coisa que ele passasse naqueles dias seria o paraíso comparado às torturas da máfia italiana.
— Retire o casaco, vamos tomar um pouco de ar — disse o homem, retirando o seu casaco também e o jogando no sofá.
— Tem certeza?! — O rapaz o olhou para a janela, vendo a neve caindo do lado de fora. — Você não ouviu a previsão do tempo?
Pelo que se lembrava da previsão do tempo, havia chances de uma nevasca naquela noite.
— Onde está o rapaz corajoso de minutos atrás? Está com medo de um pouco de neve? — O olhar provocativo de Durand fez o rapaz retirar seu casaco de imediato e seguir em frente para a porta.
Um sorriso de satisfação do pai e muitas ideias em mente para tornar o filho um agente melhor do que um dia ele foi. Para alguém perfeccionista, sua meta era sair dali após alcançar a perfeição. Do lado de fora, Liam pôde sentir de imediato o quanto a noite estava fria, o ar gélido tocando sua pele o fazia arrepiar com facilidade. Não levou muito tempo para que Durand parasse a metros de distância da cabana, a condição se mostrava favorável aos seus olhos, e, se colocando de frente para o rapaz, fechou os punhos, o encarando.
— Agora que está mais velho e mais forte, vamos ver se consegue me derrubar desta vez — comentou o pai, num tom debochado.
— Mamãe não está aqui para me repreender, então, não vou me conter — retrucou ele, com um sorriso de canto, sentindo que era seu dia de descontar todas as derrotas que teve do homem e abrir sua caixa de pandora da raiva que mantinha trancada —, papai.
— Surpreenda-me — instigou Durand, devolvendo o sorriso.
O primeiro soco foi desferido por Liam, que não poupou esforços para mostrar ao padrasto que o adolescente que tinha sido derrotado por ele, já havia se tornado um homem forte e habilidoso. Nem mesmo o frio e a ventania que persistiram ao longo do tempo em que estiveram concentrados em sua luta os fez desistir daquele momento. A cada golpe contra o pai, o rapaz se mostrava ainda mais obstinado a não perder mais uma vez para ele.
— Como conseguimos estar aqui e não sentir frio? — indagou Liam, sentado em um dos degraus da escada da varanda que tinha na cabana, com o olhar no horizonte.
Quando finalmente o cansaço tomou conta e ambos sentiram os limites do seu físico, Durand declarou empate, prometendo ao garoto um segundo round no dia seguinte.
— Mesmo com as baixas temperaturas aqui fora, nosso corpo produziu muita energia, mediante nossa vontade de vencer um ao outro — explicou Durand, respirando o ar puro e gélido da natureza. — Por isso, o frio não nos incomoda por um tempo, mas devemos entrar, não quero ter que explicar à sua mãe como lhe causei um choque térmico.
O homem soltou uma risada boba e, subindo os três degraus da varanda, caminhou até a porta, a abrindo em seguida.
— Venha, quero te ensinar mais coisas — ordenou ele, entrando primeiro.
Liam assentiu e se levantou, dando as costas para a neve que caía. Entrou na cabana segurando o entusiasmo. Ao fechar a porta e se voltar para a direção do padrasto, o rapaz se deparou com uma das malas aberta, cheia de armas dos mais variados modelos.
— Que tal uma pequena aula sobre ferramentas de trabalho? — sugeriu Durand, com seu olhar demonstrando a mesma animação do garoto.
— Já posso segurar em uma dessas? — indagou Liam, mantendo o olhar nas armas.
— Tecnicamente, não, você ainda tem 17 anos e combinamos com a mamãe que apenas lhe treinaria com combate corpo a corpo, para que tivesse disciplina para controlar sua raiva e direcioná-la para algo melhor. — O homem pegou uma pistola Colt 1911 para verificar seu cartucho. — Mas o que acontece em Vegas...
— Fica em Vegas — completou Liam, a segunda frase favorita do pai.
A frase de efeito fez com que o jovem se lembrasse das últimas semanas de suas férias de verão em que saiu para acampar com o pai, com a desculpa que iriam passar o final de semana pescando no Rio Nabão, em Santarém. Pelo menos era o que Amber pensava, até que recebeu uma ligação de Durand informando que o filho estava no hospital com o braço deslocado e um gesso que seria retirado em três meses. Pai e filho nunca mencionaram as coisas que aconteceram naquela pescaria, mas seus olhares continham muitas histórias para contar.
— Por onde começo? — perguntou Liam, se aproximando para pegar uma também.
— Pela teoria. — O pai riu alto e bateu na mão dele, como um reflexo involuntário, porém puramente proposital. — Não se deve tocar naquilo que não conhece, então... Ainda não tem permissão para segurar.
Durand fez um sinal com o olhar em direção a um livro grosso que estava no chão ao lado da mala.
— Pode começar, são setecentas páginas à sua espera — disse ele, agora segurando o riso.
— O quê?! — O olhar confuso e irritado de Liam foi perceptível. — O que aconteceu com o discurso de que só aprendemos na prática?!
O homem respirou fundo, soltando o ar com a máxima calma e tranquilidade, então ergueu seu corpo, colocando a arma em sua mão de volta na mala, e se levantou do chão.
— Para segurar uma arma, tem que estar preparado para usar — revelou ele mais um de seus ensinamentos. — E vendo a forma que ainda controla sua raiva, não está preparado para isso.
— Pai. — Soou como um pedido, porém Liam estava mais desapontado com a avaliação dele.
— Cada uma dessas armas em mãos erradas é como ceifadores, não tiram apenas vidas, mas sonhos e alegrias — completou ele, num tom mais sério. — Por isso, deve ser manuseado com sabedoria... Então comece a ler.
Liam assentiu com o rosto, permanecendo em silêncio, enquanto se abaixava para pegar o livro. Este era o início da mais importante etapa daquele treinamento: seu psicológico. O rapaz odiava ser confrontado pelo padrasto, contudo, sempre se mantinha obediente às ordens dele, e Durand sabia muito bem que teria que trabalhar o lado ansioso e impaciente do filho. Afinal, para ser um agente disfarçado, precisava-se de muita cautela, paciência e foco, qualidades que Liam ainda não possuía.
Na manhã seguinte, Durand acordou um pouco mais tarde. Devido à sua idade, os músculos de seu corpo passaram a noite latejando de dor, atrapalhando seu sono e descanso. Sentindo os fracos raios de sol adentrarem a janela, abriu os olhos e notou que a nevasca havia terminado, permitindo a temperatura se elevar um pouco. Se espreguiçando na cama, ouviu o estalar de alguns ossos de seu corpo.
— Acho que estou ficando velho — disse ele, rindo de si mesmo, ao erguer o corpo e se sentar na cama. — Eu nem me esforcei tanto ontem…
Ele respirou fundo e se levantou da cama, vestiu o casaco e saiu do quarto. Ao chegar à sala, se deparou com o rapaz acordado, com o livro em suas mãos e em total concentração em sua leitura. Era visível que Liam havia passado a noite em claro, estudando, como havia sido aconselhado por ele. Um sentimento de orgulho preencheu o pai por dentro, que precisou se conter para não transparecer suas emoções. Contudo, Durand se sentia afortunado pela oportunidade de tê-lo como filho, ainda que de consideração.
— Devo presumir que não dormiu?! — indagou ele, ao parar em frente ao rapaz.
— Você disse que eu precisava de conhecimento — argumentou Liam, ao fechar o livro e olhá-lo. — E controlar minha ansiedade.
— Passar a noite lendo é controlar a ansiedade? — Durand riu dele, tentando entender a lógica.
— Acredite, eu tentei, tive que me esforçar para não pular para as dez últimas páginas, mas no final achei interessante o desenrolar da história. Nunca imaginei que houvesse um livro contando como a primeira arma foi inventada de forma tão interativa. — explicou ele, deixando o livro ao seu lado no sofá e se levantando. — Quer que eu prepare o café?
— Não vou recusar, preciso confessar que não tenho mais vinte anos e meu corpo não para de dar sinal de latejo pela luta de ontem. — Durand se aproximou da mesa de refeições e sentou sem cerimônias, mantendo a atenção no filho.
— Então está ficando velho, papai?! — brincou Liam, com um ar sarcástico.
O rapaz se pegou impressionado pelas suas próprias palavras e pela cena em si, afinal, quando criança, nunca havia sequer imaginado viver algo do tipo. Ter uma figura paterna tão influente sobre sua vida, que lhe transmitia o desejo de ser um bom filho que orgulhava seus pais.
— Ainda tenho força o bastante para te nocautear — assegurou o homem, rindo baixo. — Mas não vou gastar minhas energias com você, vou guardá-las para sua mãe e nossos momentos de amor selvagem.
— Que nojo… — Liam fez uma careta. enquanto seguia para a área da cozinha. — Já disse, não preciso saber desses detalhes.
Durand soltou uma gargalhada boba e maldosa, segurando o olhar de malícia ao pensar em sua esposa nua diante dele. Um suspiro saudoso surgiu do homem, deixando o rapaz ainda mais enojado, por imaginar sua mãe e ele em seus momentos de intimidade.
— É nojento pensar na minha mãe se fundindo com você — reclamou ainda mais, ao abrir os armários e se deparar apenas com pacotes de macarrão e duas caixas de biscoitos.
— Eu não estou te obrigando a pensar nisso… — retrucou Durand, rindo mais um pouco da careta dele. — O que acontece entre mim e sua mãe é o que acontece com todo casal… Ela é uma mulher atraente, e eu sou um homem sedento.
Liam tentou respirar fundo, relevando as palavras dele, porém acabou engasgando com o próprio fôlego, o que levou a algumas tosses de sua parte.
— Podemos mudar de assunto?! — pediu o rapaz, se esforçando para relevar tudo e desviar seus pensamentos para outra coisa. — Você ainda não me disse o motivo de querer encontrar tanto aquela pessoa.
— Tenho os meus motivos — respondeu Durand, desviando o olhar para a janela. — E o mais importante deles é acabar com a máfia de Toscana… Mas é claro que isso requer tempo, estratégias e um plano muito bem executado.
— E devo imaginar que o senhor já esteja fazendo isso — supôs ele, concentrado em desenvolver um nutritivo café da manhã com o pouco recurso que tinha.
— Estarmos aqui faz parte disso, te treinar faz parte disso — respondeu o pai, certo de suas ações. — Agora ande com este café da manhã, seu pai está com fome.
Liam soltou uma risada boba da cozinha e continuou sua tarefa. Nos dias que seguiram, Durand teve a ideia de testar a resistência física do rapaz ao limite, o levando a realizar uma série de tarefas árduas dentro do perímetro estabelecido em torno da cabana. O rapaz jamais havia imaginado que um verdadeiro treinamento militar pudesse ser tão doloroso e desgastante, a ponto de deixá-lo quase sem forças e com pensamentos de desistir.
Como combinado, ambos retornaram para casa faltando exatamente quatro horas para a ceia de natal, com Liam parcialmente inteiro e várias histórias ensaiadas na ponta da língua para contar a Amber. Assim que a mulher abriu a porta de entrada da casa e se deparou com pai e filho em sua frente, seu sangue ferveu de raiva, porém ela manteve o olhar meigo e o sorriso no rosto. É claro que não iria sacrificar o jantar que havia preparado com tanto carinho em seu dia favorito do ano por uma repreensão que poderia fazer no dia seguinte.
— Chegamos antes da ceia, como prometido — disse Durand, mantendo o olhar cínico de um experiente agente da Interpol.
— Boa noite, mamãe — disse Liam, dando um sorriso fechado, tentando esconder o corte no canto direito de sua boca com o cachecol em seu pescoço.
Amber respirou fundo.
Ela os conhecia muito bem para saber que não seria apenas um passeio de pai e filho, e por mais que achassem que ela não sabia de nada, seu instinto materno já pressentia as ideias insanas do marido.
— Vou fingir que não vi este corte em seus lábios, o hematoma no olho esquerdo e sua perna direita mancando — disse ela diretamente para o filho. — Suba e tome um banho antes do jantar.
— Sim, senhora. — Assentiu ele, ao olhar de relance para o pai e adentrar a casa.
A única coisa que se passava na mente do jovem era: “Mamãe vai nos matar.”
— Querida… — Durand tentou iniciar seu argumento, sendo interrompido pelo levantar do dedo direito dela.
— Eu confio em você, confio a minha vida e a do meu filho… — continuou ela, agora se dirigindo a ele com seriedade. — Não me faça me arrepender da minha escolha.
— Amber… — Ele deu um passo para perto dela, erguendo a mão para tocá-la, porém a mulher se desviou e se afastou, entrando em sua frente.
— Você acha que sou inocente demais para não perceber o que está acontecendo em minha volta?! — Ela finalmente parou ao centro da sala e o olhou novamente.
Durand entrou logo atrás e fechou a porta, mantendo a seriedade no rosto, a olhou nos olhos com segurança.
— Eu lhe dei a minha palavra que a manteria em segurança, e ao Liam também. — As palavras soaram com firmeza dele. — E sabe que sempre cumpro o que digo.
— Assim espero. — Ela cruzou os braços, se fazendo de durona, mas com o coração apertado. — Agora vá tomar banho, vou servir o jantar.
— Como quiser, querida. — Ele sorriu de leve para ela.
Durand se virou para o corredor de acesso aos quartos. Com a casa sendo apenas com o andar térreo e o porão no subsolo, os quartos se encontravam mais aos fundos do terreno, e o acesso ao quintal se dava pela porta na lateral da cozinha. Toda a sua estrutura era contemplada pelo tradicional estilo provençal, que seguia a arquitetura local da região onde moravam.
— Senhor, agradecemos pelo alimento e por nossa família… Por tudo o que passamos e sobrevivemos até aqui — disse Amber, encerrando sua oração à mesa de jantar. — Amém.
— Amém — disseram ambos os homens de sua vida, devidamente banhados e trajados.
Ela suspirou esperançosa e feliz por aquele dia. Mais um natal em família. Mais um natal ao lado do homem que surgiu em sua vida de forma repentina, apenas para lhe mostrar que o amor ainda se importava com ela. Amber estava ainda mais grata pela forma que seu filho havia mudado sob a influência de Louis Durand.
— Pelo cheiro, mais uma vez, minha linda esposa se superou na cozinha — elogiou o homem, ao observá-la cortar o chester, que exalava um aroma convidativo.
— A cara também está bonita. — Concordou Liam, sentindo a boca salivar.
— Não adianta virem com elogios… — disse ela, cortando o clima de ambos, com o tom sério — Você está de castigo, senhor Liam… — E olhando para o marido. — E você, senhor Durand, dormirá no sofá hoje.
— Querida… está mesmo brava conosco? — perguntou Louis, com medo da resposta.
— Vamos cear em paz — sugeriu ela, com ternura no olhar.
Algo que os deixava ainda mais perplexos com ela, a forma doce que tratava ambos, mesmo estando visivelmente zangada. Eles assentiram ao seu pedido e, gratos, saborearam o jantar preparado pela mãe, sempre lançando algumas palavras de elogio para amolecer seu coração. Na alta madrugada, Liam despertou de seu sono e saiu do quarto, a fim de pegar água na cozinha. Ao passar pela sala, encontrou o pai deitado no sofá, com a atenção ao teto.
— Ela realmente te expulsou do quarto?! — perguntou Liam, num tom baixo, rindo de leve.
— Não… — o tom seguro veio como resposta. — Por mais que tente, sua mãe não consegue me expulsar do quarto… E sabemos a razão…
Ele soltou uma risadinha maliciosa.
— Sei… — Liam segurou a risada desta vez. — Então, o que faz aí?!
— Um leve problema de insônia e não quis continuar na cama. Se ficasse, poderia acordá-la — explicou o real motivo.
— Alguma preocupação?! — indagou o filho, curioso pelo assunto.
— Quando retornamos, no aeroporto, vi um rosto conhecido… — Durand respirou fundo, voltando a cena em sua memória. — Apenas isso.
— Amigo ou inimigo? — insistiu Liam.
— Não sei definir, não ainda — respondeu ele, de forma enigmática.
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Algumas horas atrás, em Toscana…
Se o natal de alguns havia sido recheado de bençãos e com a família completa, no menor quarto da mansão Magnus, em Toscana, mãe e filha seguiam dividindo seus sonhos e esperanças por um futuro melhor. Por mais que Lídia soubesse o quão impossível seria se livrar do acordo com Don Francesco Magnus, ela desejava profundamente que sua filha conseguisse ter uma vida melhor quando crescesse. Então, se mantinha dedicada ao seu trabalho e cumprindo todas as tarefas que lhe eram solicitadas.
— Mamãe… — sussurrou a garota, ao se virar em sua cama e vê-la vazia. — Ela ainda não voltou… Por quê? Se a senhora Vernice assegurou que não a deixaria servir o jantar.
Um suspiro frustrado de a fez se descobrir e se levantar da cama. Mesmo relutando contra a preocupação, colocou um casaco de moletom que tinha e saiu do quarto. A linha de limite para ela seria a cozinha e a ala dos empregados, então poderia procurar sua mãe em ambos os lugares sem causar problemas. Assim como os outros, Lídia havia enfrentado um dos dias mais exaustivos para um empregado da mansão, o dia de véspera de natal. Anualmente, os Magnus sempre ofereciam um monumental banquete de natal aos amigos e aliados da máfia de Toscana, e naquele ano seria a primeira vez que Francesco abriria as portas de sua casa para um “inimigo” à parte, Don Rivera, o que fez com que a criadagem dobrasse sua atenção para que nada estivesse fora do lugar. Com isso, a mãe preocupada dobrou seus esforços sob a vigilância da governanta mandona.
— … — O som da voz de Liz soou atrás da menina, fazendo seu corpo gelar no susto, então, a pegando pelo braço, a arrastou para um canto escuro, a fim de escondê-la. — O que faz aqui a esta hora? Deveria estar no quarto. Você não é uma criada, e hoje apenas os criados selecionados pela senhora Vernice podem andar pela mansão para servir os convidados.
— Me desculpe, Liz, mas… — Ela se encolheu, temerosa pela repreensão e pela possibilidade de ser entregue à governanta. — Eu só queria saber onde minha mãe está… Ela não voltou para o quarto e… não está na ala dos criados, então achei que pudesse verificar na cozinha.
— Você não pode ir à cozinha agora, a senhora Vernice está lá e pode ser ruim para você — notificou a criada, se preocupando com a menina.
— Mas eu só queria saber se minha mãe está bem — argumentou ela, em sussurros.
— Sua mãe está bem, não se preocupe — garantiu Liz, olhando para trás, para conferir se havia alguma movimentação de terceiros. — Agora se preocupa consigo mesma e volte para o seu quarto.
— Tudo bem. — Assentiu a menina, frustrada pela resposta evasiva.
Em instantes, o barulho de passos de sapatos de salto soou, gelando o corpo de ambas.
— Finalmente te encontrei. Tenho te procurado por esta casa toda, Liz, você ainda não foi limpar… — Vernice interrompeu a si mesma, ao se aproximar da criada e a encontrar acompanhada da menina. — O que faz fora do quarto? Tentando estragar o jantar de natal? Ou seduzir os herdeiros?
— Senhora Vernice, a já estava retornando para o quarto — disse Liz, se colocando na frente da garota para protegê-la.
A governanta sentiu-se afrontada pela criada, então respirou fundo para manter sua postura impecável. De imediato, seu olhar ficou mais enfurecido.
— Saia da frente e volte para seus afazeres — ordenou a governanta.
— Senhora Ver… — A criada tentou insistir, porém, paralisada pelo medo, apenas acatou com o olhar e se retirou.
A fúria da governanta voltou-se para a menina, que sentia seu coração acelerado pelo medo de causar mais problemas à mãe.
— Senhora Vernice… — em sussurro, abaixou a cabeça, com as pernas trêmulas de medo. — Eu só queria…
Antes mesmo que pudesse formular sua explicação, foi interrompida ao ser esbofeteada pela mulher. Em segundos, a marca da mão se formou no rosto da menina, juntamente à ardência do impacto, causando o lacrimejar de seus olhos.
— Eu não me importo com o motivo, mas agora, irei lhe ensinar a obedecer a uma ordem, quando lhe é dada, já que sua mãe não tem a competência para isso. — Vernice manteve seu olhar superior à menina, enquanto erguia a mão novamente para lhe bater.
se encolheu mais, ela não sabia o que fazer, mas se gritasse, poderia ser pior para sua mãe, então sua única solução seria apanhar em silêncio da mulher. Assim que a governanta deu impulso no braço para lançar mais uma bofetada, seus movimentos foram impedidos por uma mão masculina, que agarrou seu pulso com força e agressividade.
— O que pensa que está fazendo? — A voz áspera e grossa de soou, com ele se mantendo na parte mais escura do corredor.
— Jovem Magnus, eu apenas estou ensinando bons modos a esta menina — disse a mulher, forçando sua voz a sair, sentindo como se tivesse feito algo errado. — Por favor, me perdoe se fiz mal.
Um breve silêncio com ele ainda segurando-a, e com o soar de uma risada vindo dele, apertou um pouco mais seu pulso, a fazendo gemer de dor.
— Jovem Magnus, por favor. — Sua voz agora transmitiu mais traços de um pedido de clemência.
— Em respeito aos seus anos de lealdade à minha família, deixarei passar desta vez… — Ele respirou fundo, controlando sua raiva e consequentemente sua força. — Mas vou dizer apenas uma vez, então ouça com atenção…
— Sim, senhor… — sussurrou a governanta, já em desespero interno.
— Nunca mais ouse pensar em tocar nela novamente — ordenou ele, ainda mais seco e áspero. — Pois se acontecer, vou me esquecer de seus anos nos servindo e farei com que perca todos os membros do seu corpo, um a um, da forma mais dolorosa que existe… A começar por seus dedos. Entendeu?!
— Sim, jovem mestre… Isso jamais se repetirá. — Assentiu ela, sentindo um alívio assim que ele soltou seu pulso bruscamente.
— Agora retorne para seus afazeres — ordenou ele novamente, mantendo o olhar em .
— Sim, jovem Magnus. — Vernice, ainda assustada, apressou-se para se retirar o mais rápido do corredor e retornar à cozinha.
Mais uma onda de silêncio tomou conta do ambiente. , ainda encolhida e com medo, tentava controlar os sons que saíam de sua respiração amedrontada, já Magnus, se manteve na sombra, apenas observando-a imóvel, com o olhar abaixado.
— O que faz fora do quarto? — indagou ele, deixando sua voz mais branda e serena, o que a fez estranhar.
— Estava apenas procurando por minha mãe — respondeu ela, prontamente, ainda que temerosa. — Eu já estava retornando para meu quarto.
— Lídia está bem, se é isso que a preocupa — afirmou , compreensível pela imprudência dela.
— Sabe onde minha mãe está?! — Ela voltou seu olhar exatamente para a direção em que ele se escondia, o deixando impressionado com a precisão dela.
— Sim… — Ele respirou fundo, talvez não devesse dar a resposta completa a ela, para não deixá-la frustrada, porém… — Ela está no mesmo lugar que sempre esteve todos os dias neste mesmo horário.
ficou confusa a primeiro momento pela resposta, até que se lembrou das “faxinas” noturnas de sua mãe no escritório de Magnus. Seus olhos mais uma vez lacrimejaram. Diante do aperto em seu coração, a realidade era cruel com a garota, assim como com sua mãe.
— Eu vou — ela deu um passo para se afastar da parede em que se mantinha encolhida — Voltar ao meu quarto.
Abaixando a cabeça, ela deu mais alguns passos para seguir em frente, sendo parada no caminho por ele.
— . — segurou firme em seu braço, porém com cuidado para não a machucar.
— Senhor Magnus, preciso voltar para o meu quarto — sussurrou ela.
— Seu rosto está marcado — disse ele, num tom preocupado.
— Está tudo bem… Não é a primeira vez. — Ao revelar sua realidade, logo a garota lembrou-se do dia em que apanhou da mãe dele, sendo ameaçada logo em seguida.
Aproveitando os tempos de ausência do filho, Marie Magnus sempre que podia, arquitetava uma oportunidade para descontar sua raiva na filha da empregada.
— Já estou acostumada. — ela abaixou seu olhar, tentando esconder a tristeza que se formou em seu rosto.
Ele virou o corpo da garota para ele, e, dando um passo para mais perto, deixando seu corpo ser parcialmente iluminado pela fraca luz do corredor, ergueu a outra mão e tocou em seu rosto, bem na região marcada. Em segundos, permitiu que o sentimento de raiva ficasse sutilmente nítido em seus olhos, o que foi notório para ela, que o encarava estática pelo toque dele.
— Nunca mais isso acontecerá novamente — assegurou ele, com o tom mais sério e sombrio. — Não permitirei que mais ninguém a toque.
Inicialmente, aquelas palavras poderiam soar como um alívio para , entretanto, ela sabia muito bem como as coisas funcionavam naquela casa. Jamais iria se iludir com a possibilidade de nunca mais ser alvo das bofetadas de Marie Magnus.
— … … — Logo uma voz conhecida por ambos soou na ponta do corredor, atraindo suas atenções. A pessoa que gritava parou por um momento e avistou a cena. — ?!
— Vá diretamente para seu quarto — ordenou ele a , soltando seu braço. — Mandarei uma criada para cuidar de você.
A menina assentiu de imediato e se afastou dele, seguindo pelo caminho contrário. Assim que seu olhar a perdeu em seu campo de visão, se voltou para direção da pessoa que o gritava e caminhou até ela. Com o olhar atento à sua aproximação, os braços cruzados e uma afeição de poucos amigos, Tommaso se mantinha em silêncio, aguardando por uma explicação convincente.
— Me procurando?! — disse ele, ao sorrir de canto e lhe dar o braço. — Acabou de me encontrar.
— Posso entender o que fazia com ela?! — indagou , assentindo ao convite e pousando sua mão no braço dele. — Desde quando você fala com a filha da empregada?!
— Não estava falando com ela, a estava repreendendo por ter saído do quarto sem permissão — explicou ele, com naturalidade, dando impulso em seus passos para conduzi-la ao local da recepção de natal.
Por mais que Tommaso quisesse acreditar no amigo, ela sabia que possivelmente havia mais explicações para serem ditas, entretanto, não iria fazer tempestade em um copo de água. Festejar o natal com seus amigos era bem mais importante para ela do que a cena que tinha visto momentos atrás. Contudo, a convidada de honra não havia sido a única a presenciar tal ato, pois, minutos após se juntar ao grupo de amigos para um brinde proposto por Andreas Riina, em comemoração às suas conquistas do ano, foi convidado pela mãe ao escritório da casa.
— Estou curioso por me fazer entrar aqui a esta hora — comentou , ao se colocar ao centro do lugar, mantendo sua atenção voltada para a mesa de trabalho do pai.
Por mais que tentasse, o jovem não conseguiria ignorar a presença de Lídia no local, afinal, a empregada havia sido trancada ali dentro pelo patrão durante toda a noite, permanecendo sentada no sofá ao lado da porta, enquanto esperava as horas passarem e a recepção terminar. Marie não se importou com a presença dela, a ignorando inicialmente, menos ainda com as indagações do filho, apenas fechou a porta em silêncio, e caminhando até , parou na frente do rapaz e, erguendo a mão, lhe deu um forte e preciso tapa na cara, fazendo pequeno um corte devido ao anel em seu dedo.
— O que pensa que está fazendo? — indagou a mãe, com o tom áspero.
— Relembre meus passos, mamãe, e talvez eu consiga entender o que fala — pediu ele, mantendo a serenidade no tom e no olhar, agindo como se nada tivesse acontecido.
— Eu disse para ficar longe da filha dela — esclareceu Marie mais abertamente o assunto.
Logo soltou uma risada sarcástica, voltando o olhar para a criada.
— Está com medo de que me torne como o papai e tranque a filha da empregada em meu quarto?! — perguntou ele, num tom provocativo. — Quanta hipocrisia.
Marie sentiu seus punhos se fecharem automaticamente, controlando sua ira interna. Logo um gosto amargo surgiu em sua boca
— Este foi meu último aviso, Magnus — ordenou a mãe, com ainda mais entonação na voz. — Apenas seja o filho que criei para ser.
O rapaz respirou fundo e assentiu brevemente.
Ele não iria iniciar uma discussão com a mãe, afinal, ele era o primogênito e logo seria o novo Don da família. Seu pai estava perto de se aposentar pela idade, e, com sua ascensão ao trono, ninguém mais ousaria lhe dar ordens sobre o que fazer ou não.
Todos os perdedores no mundo
Chegará um dia em que perderemos
Mas não é hoje
Hoje, nós lutamos!
— Not Today / BTS
Harvard University, primavera de 2015
Os mais sábios dizem que com grandes poderes vem grandes responsabilidades, e para os herdeiros da máfia, esta frase representa o dobro do peso. sabia muito bem o quão árduo era ser o primogênito da casa Magnus, no qual, cada passo e decisões que tomava eram expressamente observados por seus aliados e inimigos. Contudo, mesmo com todas as preocupações do primogênito, seus pensamentos apenas se mantinham em uma pessoa em especial: a filha da empregada.
— Seu olhar não está tão animado para alguém que vai ser coroado este ano. — O comentário de soou com um tom de sarcasmo.
O caçula se remexeu no confortável sofá da cobertura onde moravam, mantendo o olhar no mais velho, que estava próximo à varanda, olhando os carros em movimento na rua. Após a surpreendente admissão de no curso de design, ambos passaram a dividir a cobertura, assim o primogênito poderia continuar mantendo-o por perto e evitando suas confusões.
— Que reação espera de mim, irmão? — O olhar de se manteve distante dele.
— Esperava algo um pouco mais animador, já que, após se formar no verão e completar a maioridade exigida, nosso pai vai finalmente se aposentar e você será o novo Don Magnus — explicou ele, as novidades que o ano lhes reservava. — Estando no poder, não terá problemas em se aproximar da filha da empregada.
O mais velho soltou um suspiro cansado.
As palavras do irmão tinham um fundo de verdade que o atormentava internamente. O primogênito ainda não conseguia definir com exatidão o que sentia por , porém não escondia seus interesses relacionados à garota.
— Já disse para não a mencionar. — O tom rude e agressivo surgiu dele.
— Por quê?! — não escondeu o deboche em sua voz. — Os melhores assuntos que temos são relacionados a ela.
Uma gargalhada maldosa veio do caçula, que se calou de imediato ao sentir o olhar atravessado do irmão em sua direção.
Ele adorava provocá-lo.
— Que sem graça é você — reclamou , voltando o olhar para frente, se atentando ao que passava na televisão. — Sei muito bem que não posso encostar nela, mas… ainda precisa lidar com a fúria da nossa mãe e a distância… Não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo.
— Farei isso após minha coroação — revelou ele seus planos futuros. — Até lá, serei apenas o filho que eles ambicionam que eu seja.
— Não entendo como consegue ser assim — murmurou o caçula.
revirou os olhos e bufou de leve.
— Essa é a nossa diferença, querido irmão. Sou paciente o bastante para esperar o melhor momento para agir — explicou ele, confiante em sua postura. — Não preciso ser o filho perfeito, mas devo fazê-los acreditar nisso.
Por mais que em certos momentos detestasse o irmão, lá no fundo, não queria admitir que admirava sua sagacidade e inteligência. Com seu jeito frio e calculista, sempre conseguia o que queria, ao fingir estar fazendo o que os outros queriam.
— Quanto mais o conheço, mais fico perplexo com sua frieza — comentou o caçula, ao pegar o controle e mudar os canais.
— Em todos esses anos, já deveria estar acostumado. — riu baixo, mantendo a atenção à rua. — Pretende ir comigo para casa este final de semana?
— Para a Itália, sim. Para casa, não — respondeu o caçula, direto e preciso.
— Vai a Roma? — Ele o olhou curioso.
— Sim, o padrinho pretende me apresentar a uma pessoa — respondeu , ao entrar no aplicativo da Netflix. — Não sei ao certo quem é, mas… não me importo também.
— Será que o nosso pai pediu para ele te encontrar uma noiva?! — indagou , pensativo sobre o assunto.
Sempre foi comum para herdeiros da máfia contraírem matrimônio ainda jovens. Na maioria dos casos, eram por arranjos familiares, que continham alianças entre as casas. E se tratando deste mundo, casamentos para selar a paz entre as famílias também eram frequentes.
— Apenas aceitaria se tal noiva fosse a . — Ele soltou uma risada em provocação ao irmão.
O olhar sério e corrosivo de permaneceu nele, enquanto se manteve em silêncio. A jovem Tommaso era sua melhor amiga tanto quanto do irmão, e mantinha a gentileza e carinho por ambos, sem acepção. O caçula segurou o riso e se levantou do sofá, não se importando com a reação do irmão e seguindo para a área da cozinha. A cobertura seguia com a arquitetura moderna como o restante do prédio, mantendo o conceito aberto no espaço e a decoração minimalista. O lugar era totalmente o oposto da mansão Magnus em Toscana, com sua arquitetura tradicional italiana.
— Você não sabe mesmo se divertir. — riu mais um pouco, indo abrir a geladeira. — Ah… Que fome. Vou cozinhar, você quer comer algo?
— Desde quando você sabe cozinhar? — O olhar de ficou curioso para o irmão.
— Meu padrinho me ensinou algumas coisas. — O caçula riu, ao se lembrar da primeira vez, quando quase colocou fogo no apartamento do dr. — De fome, acho que não morro após sua partida.
— Então vai mesmo ficar aqui na América? — questionou o irmão.
— Sim, pretendo me formar em Harvard, assim como meu irmão mais velho. — Ele riu novamente, de forma boba. — Pode não parecer, mas tenho gostado do curso que escolhi, então decidi me dedicar a pelo menos uma coisa em minha vida. Assim, nosso pai terá menos um argumento contra mim.
— Isso me impressiona. — O primogênito se afastou da varanda e adentrou mais o lugar, seguindo até a cozinha. — Magnus sendo um aluno dedicado.
Outra gargalhada veio do caçula.
— Posso te surpreender às vezes, irmão — brincou o mais novo. — E também… Têm sido divertidas as aulas de expressão gráfica.
— Ah, sim… Eu ouvi os rumores de uma professora e um aluno serem encontrados sem roupas na sala de projetos. — A voz de tinha traços de desapontamento.
— Em minha defesa, era uma simples aula de reforço. — O tom descontraído e risonho de fez o irmão revirar os olhos.
— Deveria ser mais discreto — aconselhou ele, em repreensão.
— Deixo isso para você… — Ele riu novamente, ao passar um comentário em sua mente e externando. — Apesar de sabermos que sua exceção à regra se chama… .
O som de bufar fez com que o caçula risse ainda mais alto, o irritando de leve. Contudo, não estava errado, já que o primogênito não se esforçava nem um pouco para esconder a realidade.
--
Os dias se passaram e finalmente o bom filho à casa retornava.
Todos os criados da mansão estavam em pleno movimento, preparando a casa para o retorno do herdeiro. , como sempre, não havia informado com precisão o dia em que desembarcaria no país, o que deixava Marie ainda mais apreensiva e nervosa. Faltavam poucos meses para que finalmente seu primogênito se tornasse o novo Don Magnus, o que a fazia pensar que estava na hora de avançar com os planos de matrimônio para o filho.
Para um herdeiro da máfia de Toscana, perante as leis que regiam o império dos Dons, o primogênito, ao completar 21 anos, se tornava apto o suficiente para tomar o lugar do pai, mesmo este estando em vida. Francesco Magnus já tinha seus planos de aposentadoria traçados, pois já se achava farto o bastante para ocupar seu dia com os assuntos de Toscana. E graças à Lei do Primogênito, o pai orgulhoso poderia finalmente coroar seu sucessor sem receios de algo dar errado.
Distante de todo o alvoroço, mantinha-se concentrada em sua aula de literatura moderna. Após o distanciamento de seus melhores amigos, a filha da empregada aceitou a oferta do senhor Magnus e ingressou seus estudos no ensino médio, em uma escola particular apenas para garotas, a renomada Madame Pency Preparatory High School. Por mais que se sentisse sufocada por sempre estar sendo vigiada por algum segurança enviado pelo primogênito, ela seguia grata por desfrutar da oportunidade e receber um ensino de alta qualidade.
— … ?! — A voz de Nancy a despertou de seus pensamentos.
Por um breve momento, a garota havia se lembrado da última vez que teve contato com o amigo Matteo e o viu jogar em uma partida da sub-16. Vendo-o com seus olhos brilharem enquanto corria atrás da bola, aqueceu seu coração, a fazendo se sentir feliz por tê-lo ajudado a realizar um sonho, ainda que de forma indireta.
— Hum?! — Ela se voltou para a menina, estranhando sua aparente afobação. — Me desculpe, estava distraída.
— Percebi… — Nancy riu baixo, relevando sua falta de atenção. — Eu vou encontrar umas amigas daqui a pouco. Fomos convidadas a uma festa de veteranos que vai rolar hoje à noite, quer vir com a gente?!
— Eu não posso — respondeu a garota, prontamente. — Você sabe que tenho toque de recolher.
— Ah… Verdade, os seguranças. — A menina bufou um pouco.
Mesmo estando em uma escola apenas para garotas e tendo seus passos contados e regrados, isso não impedia de ser vista por outras pessoas. E uma delas era o irmão mais velho de Nancy, chamado August. O rapaz a havia visto nas raras vezes que a garota frequentava sua casa para fazer trabalhos em grupo, e mesmo sendo dois anos mais nova, um sutil interesse havia se despertado dentro dele.
— Tive uma ideia. — Os olhos da garota brilharam, e logo um sorriso maquiavélico surgiu em seu rosto.
— Tenho medo desse seu olhar — retrucou , preocupada com o que ela poderia fazer.
— Pois não tenha. Você é tão travada nos estudos, sua vida precisa de mais emoção — brincou a garota, se afastando um pouco da mesa, enquanto traçava seu plano mental.
— Minha vida não precisa de mais ação — assegurou , sabendo bem sobre sua realidade.
— Pois engano seu… — Ela pegou na mão da menina e a puxou para se levantar. — Que tal uma volta no shopping?
— Não posso… — voltou seu olhar para a porta, mostrando o motivo.
Um homem parado do lado de fora, com traços sérios e a observando atentamente. Assim como todos os outros seguranças dos Magnus recebiam o codinome de cidades, o responsável por ela naquele dia era o senhor Rio.
— Eu tenho um plano — assegurou Nancy, convicta de sua capacidade.
Ainda temerosa do que poderia acontecer, assentiu aos impulsos da amiga, curiosa se realmente funcionaria seu plano. Mesmo sendo perigoso, não seria nada ruim ter um momento de liberdade longe do peso da mansão. Ainda que por um curto espaço de tempo, era nítido em seu olhar o desejo de experimentar a sensação de uma vida normal, sem as correntes da máfia de Toscana. E após uma elaborada explicação de Nancy ao segurança carrancudo, da necessidade de ambas irem à livraria para comprar um livro indicado pelo professor para a próxima prova de literatura, obtiveram a permissão para desviarem o caminho para casa. Como era urgente, por mais que fosse final da tarde, as garotas seguiram para o shopping, sendo acompanhadas pelo homem.
— Como você vai se livrar dele?! — indagou , enquanto alisava as capas dos livros, fingindo estar procurando por um em específico.
— Não se preocupe, apenas aprecie a cena... — Mais uma vez, o sorriso maléfico surgiu no rosto da garota. — Só se vive uma vez!
Aproveitando que o segurança as aguardava na porta da loja, Nancy apenas precisou enviar uma mensagem para seus contatos. Em instantes, uma pequena confusão começou a acontecer dentro do lugar, na qual duas garotas iniciaram uma discussão sobre uma estar saindo com o namorado da outra. O caos se instaurou quando as jovens começaram a brigar com uma puxando o cabelo da outra, e por um pedido de socorro da dona da loja, o senhor Rio foi solicitado para ajudar a apartar a briga.
Este pequeno momento de distração resultou na fuga das garotas.
Quando finalmente o segurança deu falta delas, já era tarde demais e ambas já estavam dentro de um ônibus, aos risos pelo choque de adrenalina. Duas horas depois, ambas desceram do veículo e continuaram andando mais dois quarteirões até o local da tal festa. Seria na casa de um amigo de August, e por um combinado entre os irmãos, Nancy e as outras amigas só poderiam participar se levassem junto.
— Chegamos — disse ela, assim que tocou a campainha, já ouvindo o som de música tocando do lado de dentro da casa.
— Olha só quem chegou… — Marco abriu um largo sorriso para suas convidadas especiais. — Bem-vindas, garotas.
— Não perderíamos essa festa por nada — assegurou Nancy, tentando conter sua empolgação por vê-lo.
— Onde estão as outras duas? — perguntou Marco, confuso em sua contagem superficial.
— Já estão chegando, elas precisaram atrasar um pouco — explicou Nancy, ao se lembrar das amigas encenando a briga na livraria, tentando não o encarar.
Desde pequena, a menina nutria um amor platônico pelo melhor amigo do irmão e não escondia isso dele.
— Venham comigo, a festa já está rolando — anunciou ele, as deixando entrar.
se encolheu um pouco ao ver que a casa estava relativamente cheia de jovens, alguns conversando, dançando, outros se beijando, e a maioria se divertindo como se não houvesse amanhã. Adentrando mais a casa, chegaram à sala de jogos, na qual August estava vencendo mais uma rodada de sinuca.
— Olha só quem veio — anunciou Marco, mostrando as meninas ao amigo.
— — disse o garoto, soltando o taco em sua mão e seguindo até ela. — Quem bom que veio.
A garota apenas sorriu gentilmente, se mantendo em silêncio.
— Boa noite para você também, irmão. — Nancy arqueou a sobrancelha direita, fingindo indignação.
Ela sabia muito bem o interesse dele pela amiga da escola.
— Te vejo todos os dias, Nancy — explicou ele, em sua defesa.
— Vou pegar alguma coisa para tomarmos — disse a irmã, dando de ombros, ao voltar sua atenção para a amiga. — E você, se comporte, irmão. A é tímida.
Ele revirou os olhos, a ignorando, então voltou a atenção para a garota à sua frente. Por um breve momento, August sentiu seu coração acelerar um pouco, pois nunca havia visto alguém com o olhar tão singelo e profundo ao mesmo tempo.
— Que tal irmos para um lugar mais tranquilo? — sugeriu ele, tendo uma resposta positiva vindo dela.
August segurou em sua mão e a guiou até o jardim lateral da casa. Era o único espaço que não tinha ninguém, pois, para ter acesso, precisava passar pela porta da cozinha, da qual apenas o amigo tinha a chave, que agora estava de posse dele.
— É bonito — elogiou , ao ver o quão bem cuidado o espaço era.
— A mãe do Marco é paisagista, ela diz que esse jardim é o portfólio dela — explicou o rapaz, mantendo a atenção nela.
Mais uma pausa para o silêncio com admirando o lugar, até que se deparou com o olhar fixo de August para ela, o que a fez se sentir constrangida.
— Por favor, não fique assim — pediu ele, ao perceber.
— Não estou acostumada com isso… — revelou ela, tímida pelo momento.
— Com isso o quê? — indagou ele, confuso por suas palavras. — Ser admirada?
— Estar sozinha com um garoto que... — Ela parou sua explicação, ao se lembrar que apenas havia estado sozinha com o primogênito Magnus, então seu corpo ficou trêmulo pela sensação de medo. — Eu não deveria estar aqui… Preciso ir para casa.
Sua mente foi rápida ao reviver lembranças das ordens do herdeiro, ao dizer que ela estava proibida de sair sem a permissão dele. Assim que passou pelo rapaz, August parou-a no caminho, tentando entender sua reação.
— Por favor, não vai — pediu ele, ponderando o tom e a puxando para mais perto dele. — Desde que te vi, fazendo trabalho com a minha irmã, não consigo tirá-la da minha cabeça…
— August, não deveria pensar em mim — aconselhou ela, sem coragem de dizer a realidade. — Minha vida é mais complexa do que parece.
— Por que não posso gostar de você? — Ele ergueu a mão e tocou com suavidade no rosto dela. Se inclinando mais um pouco, deixou seus lábios bem próximos para que pudesse sentir sua respiração. — Me dê uma explicação lógica para…
Antes mesmo que ele pudesse finalizar suas ações intencionais, August foi puxado para longe da garota, sendo socado em seguida. O corpo de gelou assim que conseguiu assimilar o que estava acontecendo e reconhecer a terceira pessoa envolvida.
— Não deveria estar aqui. — A voz de soou com aspereza.
Logo, ele a pegou pelo pulso, não dosando sua força, e a arrastou para fora da casa, sendo observados pelos convidados com olhares assustados. Do lado de fora, antes que ele a colocasse no carro, August, sem medir as consequências, tentou impedir, sendo socado novamente e derrubado ao chão.
— Fique longe… — Ainda mais rude, lançou seu olhar de fúria para a garota, permanecendo de costas para a plebe.
se encolheu, sentindo seu coração ainda mais apertado e angustiado. Em sua mente, só conseguia pensar no que poderia acontecer com sua mãe por causa de sua desobediência.
— Deixe-a, está na cara que a não quer te acompanhar — gritou August, ao se levantar, e já sendo segurado pelo amigo para não causar mais confusão.
— August, está louco? Ele é o herdeiro Magnus — disse Marco, conhecendo bem os donos de Toscana. — Não se deve mexer com eles.
— Não me importa quem ele é — retrucou August em alto e bom tom. — não quer ir com você.
— Tentei ignorar sua existência… — manteve seus punhos fechados, sentindo a raiva lhe consumir por dentro, então, se voltou para ele, disposto a enviá-lo ao hospital. — Mas não precisarei de muito para que entenda o meu recado…
No impulso de seu corpo, o primogênito logo foi parado pelo olhar inocente da garota, que se colocou na frente, entre ambos.
— Senhor Magnus, por favor — pediu ela, o conhecendo bem o bastante para saber que o irmão da amiga poderia sair gravemente machucado daquela situação. — A culpa foi minha… Eu quero voltar para casa, com o senhor.
precisou se esforçar muito para que sua voz soasse alta o suficiente, permitindo que August e os outros também ouvissem.
— Entre no carro — ordenou ele, mantendo o olhar de fúria no irmão de Nancy.
— Senhor… — ainda se mantinha temerosa.
— Não quero ter que repetir. — O olhar dele se voltou para ela por segundos, para que entendesse, então retornou ao rival.
apenas assentiu e, em silêncio, entrou no carro. A angústia lhe tomava internamente, pois não queria que ninguém estivesse em risco por sua causa.
— Direi apenas uma vez… Nunca mais ouse desejar tocar nela, nem mesmo ouse pensar nela. — Seu tom de ordem estremeceu a todos os curiosos presentes, até mesmo August, que fingia manter-se inabalável diante da ameaça.
— Não se preocupe, senhor Magnus, meu amigo não irá mais causar problemas — garantiu Marco, ainda lutando para segurar o amigo.
— Assim espero. — deu as costas. — Considere-se com sorte por eu ter chegado naquele momento…
Rude e imponente, o primogênito entrou no carro e deu a partida.
Passando todo o caminho em silêncio, estava lutando contra seus pensamentos, não queria imaginar o que teria acontecido se tivesse chegado após a tentativa de beijo. Presenciar o rapaz tocando foi ainda mais incômodo e doloroso quanto apenas imaginar.
O que lhe deixava ainda mais irritado.
Assim que desceram do carro na garagem da mansão, a pegou pelo braço, a conduzindo para o corredor da ala dos empregados.
— Senhor Magnus, está me machucando… — não conseguiu conter as palavras, pois sentiu seu pulso latejar com o aperto dele.
— A culpa é sua — disse ele, controlando seu tom de voz, ao virá-la para ele, a fazendo encostar na parede. — Por que fez isso?! Por que me desobedeceu?!
— Me desculpe… — Sua voz saiu em sussurro, enquanto ela sentia as lágrimas se formarem no canto dos olhos.
— Você não entende, não é?! — sussurrou de volta, ao apoiar a mão direita na parede, na altura do rosto dela.
Internamente, o herdeiro lutava contra si mesmo e os sentimentos que desejava desconhecer. Ele não queria sentir ciúmes da filha da empregada, menos ainda deixá-la tomar seus pensamentos a maior parte do dia, se sentindo atormentado pelo sorriso gentil que lhe causava arrepios involuntários.
— O que está fazendo comigo, ?! — sussurrou ele, mais uma vez, aproximando seus rostos, sentindo sua garganta arder. — Está me fazendo ir contra todos os meus princípios…
— Senhor Magnus… — O coração da garota estava acelerado pela aproximação dele, assim como suas pernas trêmulas ao sentir a mão esquerda do rapaz tocar sua cintura. — Eu não sei do que está falando…
— Por que me faz querer o que não posso ter? — sussurrou ele, mais uma vez, sentindo a respiração dela ainda mais próxima. — Por quê?!
Antes que a garota pudesse assimilar suas palavras, os lábios de tocaram os seus com sutileza e suavidade, de uma forma em que conseguia sentir uma mistura de doçura e desespero. Em meio a uma guerra interna, o primogênito temia não vencer seus próprios desejos proibidos e acabar fazendo algo do qual poderia se arrepender depois.
— Vá para seu quarto… — sussurrou ele, após voltar à sanidade e se dar conta do que tinha feito. — E esqueça o que aconteceu.
Sua razão o fazia constatar que beijá-la havia sido errado, contudo, todo o seu corpo desejava prosseguir com a noite, a mantendo em seus braços. , ainda em choque, apenas assentiu e correu o mais rápido que pôde até chegar ao seu quarto, se deparando com o mesmo vazio.
A noite ainda não havia terminado dentro e fora daquela mansão…
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Roma, horas antes…
Apesar de seu retorno à Itália, os planos de estavam longe de Toscana. Desembarcando no aeroporto internacional da cidade, um carro já o aguardava no estacionamento, com a missão de conduzi-lo ao prédio residencial em que seu padrinho morava. Chegando à cobertura luxuosa, ele entrou com a chave reserva que possuía, fechando a porta logo atrás. Seu olhar passou pelo lugar, causando em sua mente uma sutil chuva de lembranças, das quais a maioria se tratava de sua infância, das muitas vezes que fugia de casa no meio da noite e seguia escondido de trem para a cidade, a fim de se refugiar na casa do padrinho.
Sua aversão ao silêncio o fez ligar o som, deixando em volume alto o suficiente para ouvir a música por toda a cobertura. Arrastando sua única mala até o quarto de hóspedes, ele a deixou aos pés da cama e começou a desabotoar sua camisa, seguindo em direção ao banheiro. Segundo a mensagem que recebeu do doutor Giordano, seu jantar com o padrinho seria às oito em ponto, então ainda lhe restavam algumas horas para o descanso. Com isso, nada melhor que uma ducha quente e demorada para lhe fazer esquecer os pensamentos inoportunos e relaxar o corpo.
— O que meu padrinho está tramando… — sussurrou ele, ao sair do banheiro, com a toalha enrolada em sua cintura.
Não se importando por pensar estar sozinho no lugar, saiu do quarto a passos tranquilos até a área da cozinha. Ao descer os degraus da escada em metalon, o barulho da porta sendo destrancada lhe atraiu o olhar, o fazendo estranhar. Pela hora do dia, Nicolo certamente estaria dando aulas na universidade, ou pelo menos deveria.
— Professor?! Está em casa? — A voz de soou um pouco mais alta, pelo volume da música, fato que a fez estranhar também. — Eu vim buscar os livros…
Em segundos que a jovem fechou a porta e se virou, seu olhar cruzou com o de , a fazendo paralisar. Inicialmente, ela se conteve, porém os olhos desobedientes da jovem se abaixaram para admirar a beleza do rapaz em sua frente. Para dificultar as coisas, o corpo do caçula ainda se encontrava levemente úmido, o que a permitia visualizar algumas gotículas escorrendo por seu abdômen devidamente definido, algo que a fez engolir seco, na medida que forçava sua sanidade a voltar à realidade.
— Você é… Magnus — disse ela, com o nome ecoando em sua mente.
Aquela era a segunda vez que a universitária o encontrava de forma casual, e, diferente da primeira, o olhar do rapaz estava mais sereno e relativamente malicioso.
— E você é a aluna do meu padrinho — retrucou ele, descendo os últimos degraus da escada com a atenção fixa nela.
— Eu não esperava sua presença em Roma. — Ela engoliu seco, lutando contra sua vontade de olhar para o corpo dele. — Não deveria estar em Harvard? Ainda não chegamos às férias de verão.
manteve seu olhar tão sereno quanto o dele, a postura perfeita e segura que despertava a curiosidade do rapaz. Afinal, todas as mulheres que se aproximavam do caçula Magnus sempre demonstravam uma ponta de medo, por seu comportamento visivelmente sádico e parcialmente violento.
— Para uma simples aluna, sabe muito sobre mim. — Ele deu passos lentos e precisos até parar diante dela, o que a fez respirar fundo, bem discretamente. — Acho que me lembro de você. No ano passado, estava aqui à noite… Deixe-me adivinhar, seu bom currículo acadêmico está relacionado com a cama do dr Giordano?!
As palavras de insinuação de foram inesperadas, juntamente ao seu tom malicioso, de tamanho impacto que causou uma forte indignação na jovem, resultando em uma ação impulsiva vinda de . A universitária, em movimentos precisos, ergueu sua mão e bateu no rosto dele, ato que o fez sorrir de canto discretamente. Acostumado com as surras do pai, para o caçula, a ardência provocada em seu rosto era apenas cócegas.
— Interessante… — sussurrou ele, ao voltar seu olhar para ela.
— Eu não me importo com quem você é, mas nunca mais insinue algo sobre mim quando não conhece a minha vida — disse ela, ponderando a voz, porém soando como uma ordem.
Os olhos de brilharam com sutileza, enquanto ele sentia seu corpo estremecer com a entonação da jovem. Tinha algo de diferente nela que o deixava curioso.
— Não veio buscar os livros?! — indagou ele, mudando de assunto com naturalidade.
— Sim. — Ela respirou fundo, enquanto se mantinha o encarando. — Eles estão no escritório.
Ele apontou o caminho, deixando soar uma pitada de sarcasmo.
— Se quiser, posso te ajudar a procurar. — Seu tom debochado estava ali quando ela passou por ele para ir ao espaço indicado.
Logo, se voltou para ele com um olhar atravessado, consequentemente arrancando uma risada dele.
— Calma, só estava oferecendo minha ajuda. — Com um sorriso escondido no rosto, ele cruzou os braços, se mostrando o mais à vontade possível pela situação.
Apenas uma toalha o cobrindo da cintura para baixo e o restante do corpo à mostra, com as gotículas que agora escorriam dos seus cabelos molhados. tentou ignorar tudo aquilo e seguiu em silêncio até a área do escritório. Após abrir algumas gavetas do armário planejado atrás da mesa de trabalho, finalmente encontrou os dois livros que faltavam para as referências bibliográficas de sua monografia.
Faltando menos de um mês para a defesa do seu trabalho de conclusão de curso, a mente da jovem estava cansada e apreensiva para finalmente concluir aquele ciclo escolar e ser a profissional que se preparou para ser.
— Não deveria devolver a chave?! — perguntou , assim que ela se aproximou da porta para sair.
Uma provocação visível.
— Não se preocupe, devolverei ao dono — respondeu ela, direta e prontamente.
saiu de forma brusca, ignorando totalmente o sorriso de sarcasmo no rosto do rapaz. Por mais que tivesse um invejável autocontrole, ela ainda era humana e tinha seus pontos fracos, odiava quando as pessoas a julgavam sem conhecê-la. Contudo, uma leve ponta de arrependimento veio, após chegar ao dormitório e assim sua mente assimilar o que tinha acontecido. Ela não havia esbofeteado qualquer um, mas, sim, o afilhado que seu professor pediu para acompanhar como médica. Se antes ainda tinha dúvidas se aceitaria ou não a missão, agora ela estava mais que certa de sua resposta.
À noite, conforme o pedido do padrinho, se vestiu apropriadamente para a ocasião, um terno azul marinho, com um pequeno brasão da família bordado com linha prateada no bolso direito do paletó. Assim que chegou ao Osteria Fortunato, foi recebido pela recepcionista, que o acompanhou até a mesa, onde Nicolo Giordano já o aguardava.
— Padrinho. — A voz do rapaz despertou o homem de seus pensamentos. — Achei que já estivesse acompanhado.
— Nossa convidada se atrasará um pouco, mas, se sente. — O homem permaneceu com seriedade em sua face. — Devo pedir uma bebida para meu afilhado?
— Aceito um Mon’t Blanc 1985 seco — respondeu ele, dizendo a referência do vinho escolhido.
Prontamente, o garçom anotou o pedido e o serviu com rapidez. Ambos continuaram a conversar com assuntos aleatórios, até que finalmente a convidada especial chegou, lhes atraindo a atenção. Com um discreto vestido preto, sendo coberto por um longo casaco de sarja cinza, combinado a uma bota branca, se colocou em frente à mesa. Para ela, não era uma novidade a presença do caçula, já se mostrou surpreso com sua chegada.
— , quero te apresentar formalmente minha aluna, Segre, minha indicação para sua psicóloga — anunciou Nicolo, o deixando ainda mais surpreso.
— Professor Giordano… — Antes que o rapaz pudesse reagir à informação, ela tomou a palavra. — Agradeço o convite para o jantar e me sinto honrada por sua indicação… Mas minha resposta final é não.
— Como?! — Nicolo a olhou confuso, pois desde o momento em que a convidou, a jovem demonstrava interesse pelo paciente.
Uma risada vinda de os chamou a atenção.
— Nem me conhece e já me rejeita? — disse o caçula, sentindo um tom amargo na boca, porém não ocultando o soar sarcástico. — Quanta hipocrisia, doutora.
— Nem se você fosse o último paciente da terra, senhor Magnus. Eu mudaria de profissão se fosse preciso. — Ela voltou seu olhar para o professor, internamente envergonhada por sua reação inesperada, porém mantendo-se indecifrável em suas expressões. — Mais uma vez, agradeço a oportunidade, contudo, tenho dúvidas sobre o mestrado, por isso, reforço minha recusa sobre sua indicação.
Antes de mais alguma reação vinda dos cavalheiros em sua frente, deu meia volta e se retirou o mais depressa que conseguiu, sem perder a compostura. O olhar repreensivo de Nicolo voltou-se para o afilhado, sabendo que tinha culpa no cartório.
— A senhorita Segre é a minha melhor aluna e sempre agiu com racionalidade e ponderação. Nunca a vi agir dessa forma com algum paciente meu. — Sério, o médico o encarou, demonstrando estar desapontado. — O que você fez, ?!
O rapaz soltou uma de suas gargalhadas maldosas, devolvendo o olhar.
— Primeiro, não sou seu paciente, sou da família. E segundo… — Ele se levantou bruscamente da cadeira. — O que eu teria feito?
— Eu te conheço. Você estava em meu apartamento mais cedo, não estava?! — indagou o homem, elevando um pouco seu tom.
— Não se preocupe, padrinho. Sua preciosa aluna será minha psicóloga — afirmou , seguro de suas palavras. — Se é isso que te fará feliz.
Com o olhar raivoso, o caçula Magnus se afastou da mesa e seguiu em direção à saída, indo atrás da jovem. Ao longe, a avistou parada no ponto, esperando o ônibus que a levaria para o dormitório, pois, graças ao término de sua bolsa de iniciação científica e alguns gastos a mais no orçamento, ela estava passando por alguns problemas financeiros naquele semestre.
— A garota que é contra pré-julgamentos sendo a primeira a me tacar uma adaga de prata. — A voz grossa e alta de chamou a atenção dela.
— O que você quer agora? Insinuar mais coisas sobre mim? — indagou ela, mantendo seu olhar firme para ele.
— Tão nervosa por um mero comentário. — Ele riu baixo, a deixando mais irritada internamente. — Não me importo em ser rejeitado, tenho sido a minha vida toda…, mas o meu padrinho é a única pessoa que acredita em mim, mais do que eu mesmo, então…
— Você não quer desapontá-lo — completou ela, o interrompendo sem intenções.
— Exatamente — concordou ele, voltando seu corpo para rua e olhando os carros.
também se manteve em silêncio. Chateada consigo mesma pela forma que reagiu às palavras iniciais dele, o que a fez desviar sua rota inicial. Como poderia alguém que ela nunca havia tido nenhum contato a deixar em desequilíbrio em um curto espaço de tempo? Logo ela, a pessoa mais racional que existia em seu círculo social acadêmico.
— Tudo bem. — Assentiu ela, voltando atrás em sua decisão. — Farei isso em respeito e consideração ao professor Giordano.
Ela voltou seu olhar para ele, recebendo sua atenção de volta.
— Eu também não quero desapontá-lo — completou ela, deixando clara a causa de sua parcial rendição.
"Someone call the doctor."
— Overdose / EXO
Milão, verão de 2015
A brisa fresca de um amanhecer de verão adentrava a sala de projetos da conceituada Politecnico di Milano, a universidade italiana referência em mobiliário no mundo, na qual a jovem Tommaso havia conquistado uma vaga no curso de Artes e Design, com foco em Design de Produto. Aquela era a paixão da jovem, que fora influenciada pela mãe desde criança a se encantar com o universo dos móveis contemporâneos. Sabendo desde o início qual caminho seguiria academicamente, não foi surpresa quando recebeu a carta de aceitação de sua universidade.Retornar para casa foi sua melhor decisão com relação aos estudos.
— Tommaso. — A voz de um dos monitores soou da porta. — Ainda aqui?
— Andreas. — Ela manteve o olhar na prancha de desenhos ao respondê-lo, demonstrando concentração.
— A caloura do colegial querendo mostrar seu talento ao mundo — brincou ele, se aproximando com cuidado.
era um dos casos raros em que se iniciava a faculdade sem completar a idade certa e finalizando o ensino médio antes do tempo. A jovem era muito inteligente e esperta, conseguindo assim pular o último ano e avançar para o ensino superior.
— O que faz aqui, Riina? — perguntou ela, o chamando pelo sobrenome, ao parar de desenhar e o olhar. — Pelo que sei, está bem longe das salas de T.I.
— Princesa, esqueceu que sou o monitor dos laboratórios e dos ateliês de desenho? — Lembrou ele sua função importante ali. — Estava checando as salas e percebi que não devolveram a chave desta.
— Hum… — Ela deu de ombros e voltou a atenção para a prancheta em sua frente, retornando ao desenho. — Eu tenho autorização para usar a sala durante a madrugada e já estou finalizando isso aqui, então pode ir.
— Que menina doida… — comentou ele, com um tom de piada. — Passar a madrugada estudando, eu jamais faria isso.
— Você passa a noite jogando e eu não te critico — retrucou ela.
— Jogar é diversão — explicou ele, com orgulho de suas palavras.
— Hum… — Ela riu baixo. — Eu funciono melhor à noite, só isso.
— Assim que terminar, feche a sala e devolva as chaves — pediu ele, se afastando novamente e seguindo para a porta.
— Fique tranquilo, querido monitor, não vou te prejudicar — brincou ela, rindo baixo, traçando mais uma linha em seu desenho.
— Ah… antes que me esqueça, você vai à festa do no final da semana? — perguntou ele, curioso.
— Sério que está me perguntando isso? — o olhou, dando a certeza de sua resposta em sua face serena.
Ela jamais faltaria em algum evento da mansão Magnus.
Riina saiu rindo. Mais alguns minutos em silêncio e concentração, até que ela finalizou o desenho em sua frente e, com cuidado, retirou a folha e a guardou no tubo. Recolhendo seus materiais para colocar na bolsa, o celular de tocou, a fazendo atender, enquanto caminhava em direção à recepção para devolver as chaves.
— Giorgia?! — disse Tomasso, ao atender.
— Bongiorno, amiga! — A voz da garota soou com entusiasmo.
— Já chegou a Itália? — indagou ela, surpresa pela ligação naquela hora da manhã. — Achei que seu voo chegasse no almoço.
— Sim, eu consegui adiantar — explicou ela, tentando se conter na empolgação. — Estava ansiosa para te contar as novidades, para colocarmos o assunto em dia e saber como está minha amiga na faculdade.
— Eu estou muito bem, obrigada por se preocupar. — Ela riu um pouco, ajeitando a bolsa no ombro e pegando o tubo em seguida. — E você? Animada para rever todo mundo no final de semana? Nossas férias de verão começam oficialmente com a festa do .
— Mas é claro que estou super animada, com meu coração a mil para vê-lo de novo — contou ela, soltando um suspiro bobo em seguida.
— Você ainda nutre essa paixonite pelo ? — perguntou ela, se preocupando com a amiga.
Ao finalmente chegar à recepção, apenas mostrou as chaves ao atendente e continuou com sua atenção à ligação, enquanto assinava o recibo de devolução.
— Juro que tentei, mas depois que perdi minha virgindade com ele há dois anos, não consigo esquecê-lo — choramingou ela sua realidade sentimental.
— Eu disse para não fazer isso. — soltou um suspiro cansado, ao parar no centro do corredor, se lembrando das muitas vezes que recebeu ligações da amiga com desabafos regados a lágrimas.
Giorgia, para surpresa dos pais, havia escolhido seguir carreira médica para seu futuro acadêmico, por isso agora seguia terminando o ensino médio em um colégio preparatório de Oxford. Morar em uma república se tornou a maior aventura que ela imaginaria viver longe de casa, ainda que soubesse que no próximo ano seu tempo livre seria ocupado pelos estudos intensos que seu curso lhe exigiria.
— Não é tempo de repreensão, já temos dezessete anos e muitos erros para viver — brincou ela, soltando uma gargalhada maliciosa.
— Com quem você tem andado ultimamente? — não estava reconhecendo sua miga pelas palavras que pronunciava.
Dando impulso no corpo, Tommaso voltou a caminhar em direção à saída.
— Fiz algumas amizades com a elite de Oxford, após me mudar para lá — contou ela, voltando à animação. — Minhas colegas de república são bem animadas.
— Deu para sentir… — parou em frente ao seu carro e retirou a chave do bolso da calça pantalona que vestia. — Vou dirigir agora, terei que desligar.
— Nos vemos apenas no sábado, então?! — indagou Giorgia, num tom desanimado.
— Eu passei a noite em claro, desenhando… Preciso dormir agora, mas, se quiser, podemos fazer a noite das garotas — sugeriu ela, pensando em algumas programações noturnas. — Se ainda estiver no aeroporto, pegue um jatinho e venha a Milão.
— Gostei da ideia, te encontro onde? — perguntou a amiga, ao parar diante do táxi que iria pegar.
— Pub Del Fiore — disse convicta de que sua noite com a amiga seria divertida e cheia de aventuras.
— Me aguarde lá, amiga — assentiu ela prontamente.
soltou uma risada boba ao encerrar a ligação, estava mesmo sentindo falta da amiga, que, antes tímida, agora não parecia nenhum pouco a garota medrosa que não queria morar na Inglaterra sozinha. Assim que Tommaso ergueu a mão com a chave e apertou o botão para destravar o carro, uma mão masculina tomou as chaves dela, a deixando surpresa.
— O que pensa que está fazendo?! — indagou ela, ao homem que se colocou em sua frente.
— A senhorita passou a noite em claro, desenhando. Não possui capacidade motora para enfrentar o volante, então não posso permitir que dirija neste estado — respondeu o homem com serenidade, mantendo o olhar fixo nela.
— Não o pago para que me dê sua permissão — reclamou ela, ao tentar retirar as chaves do carro dele, sem sucesso.
— Claro que não, senhorita Tommaso — confirmou ele, calmamente. — Eu sou pago pelo seu pai para garantir sua proteção, principalmente de si mesma.
Ela bufou, ao sentir uma ponta de sarcasmo vindo dele.
— Do que está falando? Eu jamais me colocaria em risco, senhor Salvatore — retrucou ela, deixando sobressair seu olhar empoderado.
— Por isso, a senhorita não se importará em entrar no banco de trás. — Ele abriu a porta de imediato para que ela entrasse.
respirou fundo, controlando sua raiva. Estava cansada demais para discutir com seu novo segurança e precisava de horas de sono para aplacar a dor de cabeça que sentia há horas. Assentindo, ainda contrariada, ela adentrou o carro e ajustou o cinto de segurança. Para a jovem, não havia necessidade de ter um segurança vinte e quatro horas lhe vigiando, porém este havia sido um acordo feito com o pai, em troca de seu direito à escolha pelo curso de graduação.
E, para sua surpresa, o funcionário recém-contratado seguia demonstrando completa eficiência e profissionalismo, principalmente na parte em que entregava um detalhado relatório diário ao chefe Elio Tommaso, de todos os passos da filha. Se o objetivo de Salvatore era irritar a princesinha de Milão e ganhar a confiança do chefe, ele certamente estava no caminho certo.
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nunca teve problemas em escolher uma roupa de acordo com a ocasião, suas noções de moda sempre foram de causar inveja na irmã mais nova, e arrancar elogios da mais velha. Após menos de um minuto se encarando no espelho como se tivesse se imaginando com os possíveis looks do closet, ela escolheu um leve vestido floral para aproveitar a brisa fresca da estação, uma sandália nos pés e a bolsa da Colcci, já equipada com o biquíni que comprou em sua última visita a Paris. Com os óculos de sol nas mãos e o celular na outra, saiu do quarto e seguiu pelo corredor em direção às escadas para chegar ao hall de entrada da mansão.
Uma perfeita princesa da máfia pronta para aproveitar seu primeiro dia de férias de verão com os amigos. No meio do caminho, seu iphone vibrou, indicando uma mensagem de Giorgia. Uma risada boba, por saber o quão ansiosa a amiga estaria naquela manhã, lhe fez lembrar da reunião do grupo para celebrar o aniversário de casamento de Paolo Gasparri e Serena Gasparri, padrasto e mãe das gêmeas Angela e Teresa.
“Você ainda vem me buscar amiga?
Estou te esperando…
Ahhh…
Você já acordou?
queen, não esquece de mim.”
Ela esperou mais alguns minutos até começar a digitar a resposta, sabendo muito bem o real motivo da ansiedade de Giorgia.
Já estou a caminho.
Em um sábado ensolarado, havia convidado o grupo de amigos para um banho de piscina regado a diversão e um impecável desjejum preparado por Carmen, a melhor cozinheira do mundo, segundo a família Magnus. Após meses focados em suas respectivas responsabilidades universitárias ou colegiais, precisavam mesmo iniciar as férias de verão em grande estilo. Com todos vivendo a fase pré-adulta de suas vidas e espalhados pelo mundo, mesmo com a aproximação da tecnologia, os dias não eram os mesmos com a elite dos herdeiros da máfia separados.Apenas e Andreas haviam retornado para casa, escolhendo uma universidade italiana para cursar. Giorgia mantinha seu foco em Oxford. Já as gêmeas Gasparri, após finalizarem os estudos no colégio Constance, pretendiam seguir a carreira da moda na Parsons School of Design, em Manhattan. Robert havia optado por seguir o caminho do pai, na área comercial, iniciando o curso de marketing na Yonsei University, uma indicação de sua namorada coreana.
Quanto aos irmãos Magnus…
seguia bem longe dos olhos carrascos de seu pai, sua escolha pelo curso de design na mesma universidade de Giovani havia sido uma surpresa para a família, principalmente para o irmão mais velho. O caçula, como um bom Magnus, tinha seus segredos e talentos escondidos, e desenhar era um deles. Claro que inicialmente o pai se opôs, o que rendeu duas noites de recuperação no hospital, após um grito de clemência por parte do mais velho.
Já , o bom filho, seguia para a conclusão de seu curso de administração, na cidade de Cambridge, em Harvard University, como esperado e sonhado pelos pais. Em seu último ano acadêmico, tinha que dividir suas preocupações entre os estudos, os negócios da família, a especialização que faria em Florença, dentre outras coisas. Todas sempre ficando em segundo plano, quando seus pensamentos eram invadidos pela imagem de e o gosto do beijo proibido.
A filha da empregada, que lhe causava constantes insônias.
— Sobrinha querida! — Marcella deixou seu tom surpreso sobressair, ao ver descendo as escadas. — Acordada tão cedo?
— Bom dia para a senhora também, titia. — forçou um sorriso gentil para ela, por obrigação e aparência. — Impressionada estou eu, por vê-la em casa numa manhã de sábado.
Para a menina, a tia nunca lhe convenceu com aquele jeito falso de se preocupar com os sobrinhos e fingir uma dedicação que nunca existiu. Ela sabia, pelos muitos comentários soltos dos empregados, que Marcella sempre foi apaixonada por seu pai, se sentindo frustrada por ele ter desposado a falecida irmã em seu lugar.
— E onde mais eu estaria? — indagou a tia, curiosa pelas palavras da sobrinha.
— No clube do livro, é claro — respondeu com serenidade, a fazendo se lembrar do nobre compromisso das senhoras da elite.
A Concetto di Libro, como era denominada a associação das mulheres da elite da região da Toscana, promovia todos os sábados de manhã uma reunião com suas membras para discutir e compartilhar ideias para os mais importantes eventos da região. Certo que a maioria das senhoras associadas eram de famílias da máfia, mulheres de políticos ou grandes empresários.
— Pelo que sei, a senhora é a dama que representa nossa família. — O tom de ironia escorreu com suavidade na voz da menina, não negando sua irritação pela permanência da tia naquela casa.
Era difícil para esquecer das muitas vezes que presenciou, escondida, a tia humilhar sua mãe doente, dizendo que tomaria seu lugar após a morte de Franci.
— Ah, sim… Nosso encontro de hoje precisou ser cancelado, já que nossa presidente está em viagem. — Marcella deu um sorriso fraco como forma de descontrair o ambiente. — E você, querida, estava indo aonde?
— Tenho um compromisso, mas diga ao papai que estarei de volta a tempo para o jantar. — ajeitou a bolsa no ombro e se dirigiu até a porta.
Em frente à casa, Vicenzo, já a aguardava prontamente, ao lado de sua moto. Após dar as devidas orientações ao homem, lhe informou que passaria primeiro na casa da amiga, entrou no carro e deu a partida. Foram necessários quinze minutos para que finalmente Giorgia respirasse com mais tranquilidade ao vê-la, já Tommaso, se mantinha serena e tranquila como de costume.
— Me desculpe pela chuva de mensagens, mas você sabe que eu sou mega ansiosa — disse ela, ao entrar no carro, já se defendendo do olhar de Tommaso.
— Eu não disse nada. — segurou o riso, a observando colocar o cinto de segurança.
— Mas seu olhar me condena — reclamou a amiga, ao terminar de se acomodar. — Então… Você não me contou toda a fofoca no nosso encontro no pub.
— Defina qual fofoca? — não entendendo a pergunta.
— Sua irmã… Como estão as coisas? Você disse que a visitou há pouco tempo — indagou ela, que acompanhava a triste novela da vida de Diana. — Sabe que pode compartilhar comigo. Eu pelo menos sei guardar segredo, ao contrário das gêmeas.
soltou uma gargalhada boba.
— Você não gosta mesmo delas, não é?! — perguntou , dando a partida novamente.
— Claro que não, são oferecidas e não possuem classe e nem discrição. — Ela bufou um pouco, ao lhe passar uma lembrança aleatória envolvendo uma das irmãs.
Uma cena devastadora para Giorgia, em que estava em movimentos intensos com Teresa na adega de sua mansão, em pleno dia de ação de graças. Uma cena que causou náuseas na garota apaixonada, que se sentiu com o coração partido.
— Bem, você precisa dar um jeito de se acostumar com elas. — Tomasso se inclinou um pouco mais no banco e voltou o olhar para o retrovisor, observando seu segurança seguindo-as de moto. — Já deveria, para ser honesta.
— Só porque a mãe delas se casou com o encantador Paolo Gasparri — um suspiro surgiu da adolescente, como se contemplasse o homem em sua mente por alguns segundos, então voltando à realidade — não quer dizer que elas tenham o direito de fazer parte do nosso grupo. Elas nem nasceram em berço de ouro.
— Acho que, nessa altura do jogo, não tem importado mais quem nasce ou não. Todos somos peões nesse tabuleiro — sussurrou , de forma enigmática, ao se lembrar da situação da irmã.
— O que você disse? — Giorgia a olhou confusa.
— Nada, Gia, só foram meus devaneios. — riu baixo, ao ver a amiga revirar os olhos, continuando seu monólogo sobre como as gêmeas Gasparri não tinham o direito de serem da elite.
Ao chegarem à mansão Magnus, foram recebidas prontamente pela governanta, senhora Gertrudes Vernice, que as guiou até o jardim, o qual já estava movimentado pelos convidados. Logo que Tommaso entrou no campo de visão do caçula Magnus, se afastou dos inseparáveis amigos e caminhou até ela, com um sorriso largo no rosto.
— Achei que não viesse mais — disse ele, ao parar em sua frente, com um brilho discreto nos olhos —, senhorita atrasada.
— Eu nunca estou atrasada. — Ela se aproximou dele com descontração e o abraçou, beijando seu rosto em seguida. — Simplesmente, sou dona dos meus horários.
— E do meu coração — afirmou , em um tom de brincadeira, mas com um fundo de verdade, ignorando completamente a presença de Giorgia ao lado da amiga.
riu de leve, levando na brincadeira as palavras deles. Entretanto, para a amiga ao lado, era frustrante o homem que entregou seu coração no aniversário de quinze anos nem mesmo lhe dar a atenção de anfitrião. Para , aquela havia sido apenas mais uma noite de prazer, com uma garota inocente, que decidiu, erroneamente, usar sua pureza para conquistá-lo.
— Diz isso para todas com certeza. — brincou , tentando suavizar o ambiente.
— Não para todas, apenas para as que já tem dono. — A voz de soou atrás dela, fazendo o corpo da garota arrepiar de leve com a entonação dele.
Logo ela sentiu as mãos do primogênito tocarem sua cintura, assim como a aproximação de seu corpo.
— Está atrasada — sussurrou , em seu ouvido.
— Eu nunca estou atrasada. — Ela se virou para ele, com um sorriso sutil. — Estou no meu horário.
— Olha o estraga prazeres… — bufou um pouco, revirando os olhos pela presença do irmão.
Já estava irritado o suficiente pelo primogênito ter se intrometido em sua brincadeira com uma das novas empregadas da casa, agora estava ainda mais frustrado por saber que o favorito certamente seria o assunto e centro das atenções da sua festa na piscina, pois já estava em seus preparativos finais para assumir oficialmente o lugar do pai.
— Deveria ser mais educado, , afinal, minha noiva não chegou sozinha. — piscou de leve para , então voltou a atenção para a menina ao seu lado. — Buongiorno, Giorgia.
— Buongiorno, Magnus — disse a garota, ainda estática com toda a cena, tentando esconder sua frustração.
Giorgia Moretti era filha do dono da maior transportadora do país, que prestava serviços terceirizados de envios e entregas para todos os negócios da máfia. Com isso, sua família foi ficando cada vez mais valorizada entre a realeza da Toscana. Mas é claro que alguns ainda não os viam com bons olhos e nem lhes tratavam com o respeito que mereciam, ainda que fossem nobres entre a elite. Entretanto, a jovem, ainda que soubesse do caráter duvidoso de e sendo visivelmente desprezada por ele, mesmo após sua entrega precipitada de dois anos atrás, continuava a persistir em manter sua fascinação pelo caçula Magnus.
— Fiquem à vontade. — deixou seu rosto com a expressão mais séria, não escondendo a insatisfação da presença do irmão, e se afastou, voltando para onde seus amigos estavam.
— Eu vou cumprimentar os outros — disse Giorgia, se apressando para se afastar deles e correr atrás do anfitrião.
Naqueles poucos segundos, manteve sua atenção em , que seguia com serenidade seu olhar para o irmão ao longe.
— Você realmente não facilita para ele — comentou ela, o fazendo olhá-la.
Era aquele olhar misterioso e profundo, que lhe causava devaneios.
— Por que eu deveria facilitar?! — indagou , mantendo seu habitual tom sério, porém o rosto sereno.
— só estava brincando… Para ser honesta, ele gosta de te provocar. — Ela riu baixo, lembrando das muitas vezes que o cunhado se declarou para ela.
— Infelizmente, meu irmão tem um péssimo hábito de sempre querer aquilo que não pode ter — explicou ele o ponto chave.
Contudo, internamente, ele também carregava aquela frase para si sempre que lutava contra seus pensamentos relacionados a .
— Virei um objeto agora?! — Ela deu um passou para trás, o encarando com a sobrancelha direita arqueada.
— Você quer ser um?! — retrucou ele, ainda com as mãos em sua cintura, a puxando de volta, beijou seu pescoço e sussurrou. — Tommaso…
— Pare de me provocar… — ela brincou de dizer a verdade, rindo de nervoso ao empurrá-lo novamente, com mais sutileza. — Vamos esquecer isso e aproveitar o dia? Ansioso pelo seu último ano da faculdade?
— Eu ainda não… — Ele respirou fundo, ao desviar o olhar rapidamente para a empregada Lídia servindo os convidados.
Por um breve momento, seus pensamentos se transportaram para o dia em que a filha da empregada lhe salvou na piscina e seu olhar que lhe causava ainda mais conflitos internos. Um momento de sua vida que não conseguia entender se desejava esquecer ou eternizar.
— Você ainda… — A voz de lhe despertou a atenção. — Está tudo bem?
— Claro que sim… Apenas algumas preocupações bobas — explicou ele, com uma desculpa eventual.
— E meu noivo vai ficar me monopolizando assim? Ou posso cumprimentar nossos amigos? — indagou ela, de forma provocante, ao envolver seus braços em volta do pescoço dele.
— Bem… — Ele lançou um olhar sugestivo, espantando seus pensamentos inoportunos. — O que vou ganhar dividindo sua atenção com os outros?
— Hum… — Ela se aproximou mais um pouco e o beijou de leve.
Por mais que fosse racional e inteligente, ela havia se deixado levar pelos acordos familiares com as circunstâncias da vida, permitindo ao seu coração criar sentimentos por . Ambos estavam prometidos um ao outro antes mesmo da garota nascer, após o anúncio de que seria mais uma menina para a família Tommaso. Afinal, o sonho dos amigos Elio e Francisco sempre foi unir as famílias em um laço forte de matrimônio, e como Diana era mais velha que o primogênito Magnus, havia ficado para a bela a missão de se casar com o favorito.
— Confesso que estou ansiosa para seu retorno definitivo para casa — comentou ela, ao se afastar dele, mordiscando seu lábio inferior. — Assim poderemos começar a planejar o casamento.
— Achei que quisesse esperar até a sua formatura. — Ele manteve a serenidade no olhar.
— Meu pai vem falando muito no assunto, e… além do mais — ela suspirou levemente —, não vá pensando que ficarei atrás de você o tempo todo, te esperando.
Alertou ela, ao segurar sua mão e começar a andar.
— Não se preocupe, querida, sabe que eu sou o ciumento da relação — brincou ele, arrancando algumas risadas dela.
assentiu, ainda rindo, voltando a atenção para o grupo de amigos que conversava mais à frente. Mesmo com o dia ensolarado, a brisa do outono tornou tudo ainda mais leve e descontraído, com conversas aleatórias e mergulhos na piscina. Após desfrutar da farta mesa do desjejum, e Giorgia trocaram suas roupas no quarto de hóspedes em risos e comentários pontuais.
— Giorgia, um conselho de amiga… — voltou para seu reflexo no espelho, observando a vaidade dela. — Qualquer vislumbre de esperança, não alimente… O é bem complexo de entender e mais ainda de se insistir.
— Ele sempre se mostrou bem cavalheiro com você — retrucou ela, tentando criar um argumento e falhando miseravelmente.
— Ele me trata assim porque somos amigos desde criança, crescemos juntos e sou a noiva do irmão dele — explicou Tommaso, para clarear a mente da amiga. — Você já viu a forma com que ele descarta as garotas com quem fica? Você já sofreu isso e, sinceramente, não quero que continue com esse sentimento masoquista.
— Mas eu não consigo ficar longe… Ele é tão fofo, com aqueles olhos de cachorro sem dono. — Giorgia se sentiu internamente derretida. — Como pode alguém assim ser tão frio e grosso?!
— Quanto mais se apanha da vida, mais resistência a sentimentos você cria — disse ela, mais uma vez em sua forma enigmática, sabendo dos muitos ocorridos nos porões daquela mansão.
— O que você quis dizer com isso? — indagou a amiga.
— Nada. — respirou fundo, reunindo mansidão. — Apenas se cuide.
Giorgia assentiu prontamente e se retirou primeiro do quarto. Ela estava parcialmente chateada por ter criado mais proximidade com Angela, a gêmea mais velha, lhe causando um pequeno sentimento de ciúmes. Ainda no quarto, dobrou suas roupas e deixou ao lado da bolsa em cima da cama, então, saindo para o corredor, notou que a porta do quarto de estava entreaberta. Se aproximando mais um pouco, ela o viu um pouco desnorteado com seus próprios pensamentos internos, algo que o fez socar a porta do closet.
— Majestade… — A voz de soou com leveza, enquanto ela adentrava o espaço, com o olhar preocupado para ele. — Algum problema?
— Me deixe sozinho — pediu ele, num tom áspero, sentindo sua garganta arder como se um grito estivesse preso dentro dele.
— Eu não vou. — Ela fechou a porta e caminhou até o banheiro para encontrar a caixa de primeiros socorros.
Assim como , ela também o conhecia muito bem para saber que se ele ficasse sozinho, poderia se machucar ainda mais. Clarisse conhecia cada centímetro daquela casa, desde o sótão até as passagens secretas no escritório e na adega. Sua infância foi em partes na casa dos amigos de seu pai, que o apoiou com muito afinco, principalmente após a morte de sua mãe.
— Me deixe cuidar de você — disse ela, ao tocar em sua mão ensanguentada e o guiar até a cadeira para se sentar.
— Eu estou bem, não deveria… — Ele tentou questionar.
— Pare de me expulsar, . Ainda falta algum tempo, mas já somos noivos — explicou ela, ao abrir a caixa e pegar o algodão. — Um dia serei a sua esposa, então é melhor treinar agora.
— Não entendo como consegue — comentou ele, impressionado com a garota em sua frente.
— Como consigo o quê? — indagou ela, curiosa, mantendo o olhar atento na ferida dele.
— Ser gentil com os herdeiros mais problemáticos da máfia. — deixou sua voz mais suave, num tom descontraído.
— Você e o são as pessoas mais complexas e difíceis de decifrar que eu conheço, o que me leva a não entender o porquê sempre se machucam quando estão com raiva, mas… — declarou ela, abertamente. — Aprendi a gostar de vocês exatamente como são.
— Não acho que deveria gostar do meu irmão — brincou ele, de forma debochada e sarcástica. — Mas, quanto a mim, não deveria me amar? Minha noiva.
— Vou te amar apenas após o casamento — assegurou ela, com confiança. — Não quero sofrer por antecipação.
— Racional como sempre — sussurrou ele, a fazendo rir.
Assim que ela terminou de colocar o curativo, seu olhar singelo se voltou para ele, ao sentir as mãos de deslizarem por sua cintura.
— Não vai mesmo me contar suas preocupações?! — insistiu ela, sabendo que tinha algo mais sério por trás do surto de raiva.
— Não são importantes. — Ele encostou de leve sua cabeça na barriga dela, logo sentindo-a acariciar seus cabelos.
— Então, vai entrar na piscina comigo?! — retrucou ela, tentando sutilmente detectar a causa.
— Não gosto muito dessas programações — brincou ele.
— , não me diga que ainda tem medo da água?! — Ela se mostrou surpresa. — É por isso que está assim?
— Claro que não. — Ele se levantou da cadeira e se afastou dela, não queria dizer o real motivo, mas também não mentiria.
— Então o que é?! O que te fez ficar assim? — ela apontou para a mão dele com o curativo.
sabia muito bem os limites entre a amizade e o compromisso que ambos tinham com suas famílias. Ela sabia que no nível de hierarquia patriarcal da máfia, o papel da mulher era sempre cumprir com seus deveres de boa filha e futuramente dedicada esposa, sem jamais confrontar a autoridade da família. Entretanto, seu gênio forte não lhe permitia abaixar a cabeça para tudo.
— Posso apenas não dizer o que é?! — O olhar de se voltou para ela. Visivelmente segurava suas emoções de raiva e frustração. — Não quero brigar com a minha melhor amiga.
— Não vai. — Ela deixou surgir um sorriso singelo e acolhedor em sua face, então se aproximou dele e o abraçou apertado.
Por mais que não se abrisse para ela tanto quanto o irmão, ela sabia que havia uma grande pressão sobre os ombros do primogênito que nem mesmo conseguiria carregar. Ser o preferido não era exatamente um privilégio que lhe trazia o poder da liberdade, mas, assim como todos, também havia um alto preço a ser pago.
O preço da perfeição.
Deixe-me ser sua soberana (soberana)
Você pode me chamar de abelha-rainha
E, amor, eu vou reinar (vou reinar, vou reinar)
Deixe-me viver essa fantasia.
— Royals / Lorde
Roma, outono de 2015
Todos temos nossas origens, e, para a máfia de Toscana, todas as mais célebres ocasiões necessitam ser realizadas sob a bênção dos anciãos da querida cidade de Roma.Onde tudo começou.
O evento do ano? A tão aguardada coroação do primogênito Magnus, que estava deixando aliados e inimigos tanto ansiosos como apreensivos. E com todas as movimentações externas, todos os conselhos do pai sendo repassados constantemente desde seu breve retorno ao país, e toda pressão de suas últimas horas de falsa liberdade, nada era mais agonizante do que se lembrar do beijo da filha da empregada e sentir o gosto de seus lábios de imediato.
Há pouco mais de doze horas de sua coroação, trancou-se em seu quarto localizado na ala leste da monumental mansão que pertencia aos patriarcas dos Magnus por gerações. Após muito rolar pelos lençóis, sua mente cansada por pensamentos perturbadores rendeu-se ao sono, contudo, algo que inicialmente mostrou ser seu descanso…
Na alta madrugada, o que deveria ser um excitante sonho em que o primogênito se rendia aos beijos e carícias de uma misteriosa mulher sedutora, se tornou o gatilho para mais desejo e uma ponta de sensação de pesadelo quando ele finalmente reconheceu seu olhar. Uma mistura de inocência e malícia que pertencia apenas a uma pessoa: a garota que lhe atormentava os pensamentos.
— ! — Sua voz soou mais alta no susto ao acordar, a respiração ofegante e seu corpo em alerta pela intensidade do sonho, tanto que podia sentir as gotículas de suor escorrendo por suas costas.
Com seu corpo erguido, ele olhou para baixo e soltou um suspiro cansado, não era a primeira vez que acordava naquele estado após um sonho inapropriado com a garota. E mesmo com o quarto sendo apenas iluminado pela luz da lua que adentrava o quarto, ele conseguia ver com clareza o estrago. Cada vez se sentia mais culpado por desejá-la, lutando contra o sentimento que persistia em se manter aflorado. Sentia-se culpado por não revelar seus tormentos a , traindo sua amizade, culpado por não conseguir ter autocontrole o suficiente para acabar com toda a sua agonia.
O que começou apenas com uma fascinação pelo olhar inocente de sua heroína, se transformou em um perigoso vislumbre de overdose pela filha da empregada.
— … Você precisa se controlar — sussurrou ele, ainda com os olhos fixos entre as pernas, respirando fundo mais algumas vezes para voltar à sanidade.
Levantando-se da cama, ligou as luzes, só havia uma direção a percorrer. Nada como uma ducha gelada como o sorvete no verão para abaixar a temperatura e voltar seus pensamentos ao eixo. Minutos em silêncio, apenas olhando para água que escorria pelo seu corpo indo diretamente para o ralo. Havia muitas coisas em jogo, ser o primogênito lhe exigia a perfeição e até estar oficialmente no lugar do pai, tinha o dever de seguir com o plano.
— Hum… — o primogênito murmurou um pouco, ao retornar para seu quarto enrolado na toalha e seguiu em direção à cama.
Em cima da mesa de cabeceira, seu celular estava com a tela acesa, indicando uma mensagem no whatsapp. Ao pegar o aparelho, outro suspiro cansado lhe surgiu, ao ver quem era o dono da mensagem. Jogando o aparelho na cama, deu alguns passos até a porta e a abriu. Seu olhar sério não afugentou o sorriso malicioso do irmão caçula.
— Com insônia, irmão? — segurou o riso e elevou a mão, mostrando a garrafa de Barolo Riserva Monfortino 2007 que segurava. — Que tal uma sessão de terapia com o dr ?!
— O que está fazendo aqui?! — indagou , avaliando as expressões descontraídas dele.
Uma risada boba vinda do caçula.
— Imaginei que meu irmão favorito precisasse de um ombro amigo — explicou , ao adentrar o quarto, mesmo não sendo convidado.
Os olhos atentos do caçula percorreram o lugar, observando cada detalhe até chegar à cama desarrumada. Ele era o único que sabia sobre as noites mal dormidas do irmão e os muitos sonhos vívidos que alimentavam o mau-humor diário do primogênito.
— Não estou de bom humor — anunciou , fechando a porta e se atentando ao irmão. — Ao meio dia de amanhã, serei coroado e…
— Está sentindo o peso?! — insinuou , com os olhos brilhando.
Ser o único a saber que o ponto fraco do irmão era uma simples e insignificante garota lhe deixava em êxtase e ao mesmo tempo preocupado.
— Sabe que não é pela coroação. — respirou fundo e se moveu até parar em frente a ele, pegando a garrafa de vinho em sua mão e uma das taças.
— Claro que eu sei. — riu de leve, o observando despejar o líquido na taça. — Seus segredos têm segredos e eu sei de cada um deles.
Um tom presunçoso soou, atraindo o olhar atravessado do primogênito.
— Calma, novo Don, estamos do mesmo lado… — ergueu as mãos em rendição. — Somos irmãos, pode confiar em mim.
— Você já tentou me afogar uma vez — retrucou ele, com um forte argumento.
— Por isso mesmo. — A sinceridade no seu olhar exalava de uma forma segura. — Jamais faria algo que levasse a terceiros te prejudicarem. Eu sou o único que pode te ferir, irmãozinho.
— Família — sussurrou , ao primeiro gole.
— Família — concordou o caçula, ao esticar o copo e ser servido por ele.
Ambos passaram alguns minutos em silêncio, enquanto se embriagavam com a garrafa que a cada taça se esvaziava, sentados ao chão, encostados na parede da janela, sentindo a brisa da madrugada refrescar o ambiente.
— Já sabe o que vai acontecer após se tornar o Don… — iniciou , quebrando o silêncio.
— Sim — assentiu ele, tomando o último gole em sua taça. — Não serei mais controlado por eles.
— Não é disso que estou falando — retrucou o caçula.
— Do que é, então?! — o olhou por um momento, confuso por sua colocação.
— Do seu noivado, da nossa melhor amiga, da filha da empregada — disse o caçula, lhe refrescando a memória. — não merece viver o mesmo que a mamãe.
— Não diga algo que já sei, ela sempre foi importante para mim — afirmou ele, respirando fundo, enquanto enfrentava a realidade das palavras de seu irmão. — Não é minha intenção magoá-la.
— Já a está magoando. — tomou seu gole final e levantou do chão. Era raro, mas seu olhar estava sério. — Pode não admitir para ela, mas nossa amiga é esperta o suficiente para saber o que está rolando entre você e a .
— Eu não farei como o papai. — levantou-se do chão, ainda estava com a toalha molhada em sua cintura, nem um pouco preocupado pelas poucas roupas. — Tem a minha palavra.
— Você deve a sua palavra a ela, não a mim. — O caçula se dirigiu para a porta e saiu tranquilamente.
Por dentro, estava com raiva por mais uma vez sentir que seu irmão não era merecedor de mais aquele amor que recebia. Desde crianças, mesmo a princesa Tommaso não demonstrando favoritismos entre ambos e lhes tratando de igual como seus melhores amigos, o caçula sabia que a delicada já tinha um futuro traçado pela família: a de futura senhora Magnus, esposa do primogênito.
Longe daquele ambiente de reflexões e preparos, estava , saboreando o que certamente seria sua última noite de falsa liberdade. Com a mansão de Toscana vazia e os empregados recolhidos em seus quartos, a adolescente, rendida à insônia, se deu o privilégio de caminhar pelo jardim sob a luz das estrelas. Aquele ano estava sendo pesado para ela, principalmente após o beijo proibido, e por mais que sua mãe notasse o aumento de seu silêncio e a forma que se mantinha ainda mais retraída, a pequena apenas mantinha-se concentrada em um pensamento: Fugir.
— Por que não me responde… — sussurrou ela, ao olhar para seu celular.
havia encontrado uma luz no fim do túnel, o que a fazia se sentir esperançosa e grata a Deus pelo vislumbre de recomeço que lhe apareceu pela frente. Contudo, o silêncio não era apenas de sua parte, pois a voz que em algumas vezes lhe trouxe refrigério por dez segundos havia se calado por semanas.
— Eu não quero continuar aqui… — Ela respirou fundo e se sentou na grama, voltando o olhar para a lua.
Das suas poucas lembranças de quando criança, a mais vívida em sua mente era das madrugadas que passava vendo as estrelas com o pai. De como ria de suas histórias de infância e sentia gratidão pela família que tinha. Seu desejo mais profundo era voltar àquele tempo e ser feliz novamente.
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Na manhã seguinte, o café na mansão Magnus de Roma, foi servido pontualmente para a família. Uma das surpresas que a manhã lhes reservou foi a presença de logo pela manhã, um convite irrecusável de Marie. A senhora Magnus tinha esperanças de que a presença de Tommaso traria mais foco ao filho, afinal, era sua noiva e precisava se acostumar com as obrigações que vinham juntamente ao cargo.
— Mais uma vez, agradeço pelo convite, senhora Magnus — disse , com seu habitual tom doce e gentil.
Quebrando o gelo e frieza que se estabeleceu mediante o silêncio da família anfitriã.
— Por gentileza, querida, pode me chamar de Marie agora. Estamos em família praticamente, a vi crescer e és noiva do meu filho — pediu a mulher, sentindo orgulho por tudo estar de acordo com o plano inicial.
— Ainda não me acostumei, mas prometo que até ser desposada, serei menos formal — assentiu Tommaso, demonstrando um pouco de timidez e desconforto pelas palavras dela.
As afirmações de na madrugada eram mais do que certas referente aos pensamentos da amiga. Há anos, vinha se sentindo incomodada com os muitos esbarros que presenciou entre o primogênito e a filha da empregada. O silêncio de também contribuiu com suas desconfianças, porém a jovem se esforçava para não levar mais peso ao seu futuro marido.
— Cunhada, estou surpreso que tenha conseguido uma folga nos estudos — comentou , tentando fazê-la se sentir mais à vontade. — Sei que sentiu minha falta, mas não precisava vir pessoalmente para matar a saudade.
Brincou ele, arrancando uma risada boba dela e sendo de imediato repreendido pelo olhar do pai. O caçula já não se importava mais com o que sua família pensava dele, mas sua missão ali era tornar aquele dia mais leve e tolerável para sua amiga. Pelo peso que o irmão passaria a carregar oficialmente, sabia que também se sentiria pressionada a não falhar. Aquele, era o arranjo de família mais promissor entre a máfia italiana e o mais aguardado por todos.
A aliança entre Tommaso e Magnus.
— Mas é claro que estava com saudades dos meus dois melhores amigos — assentiu ela, mantendo a sutileza do comentário.
Seu olhar se voltou a , que permanecia em silêncio desde sua chegada no dia anterior. O primogênito, que sempre fora silencioso, estava ainda mais pensativo e observador que o habitual.
— Após a coroação, pretendem retornar para Toscana quando? — perguntou ela, ao voltar seu olhar para o patriarca Francesco.
— Ficaremos mais alguns dias em Roma até que todos estejam cientes que, a partir de hoje, estará à frente dos negócios — respondeu ele, com serenidade e uma pitada de orgulho no olhar. — Mesmo não tendo se graduado ainda, estou satisfeito que as universidades americanas sejam flexíveis quanto aos imprevistos dos alunos.
— Hum… — Ela assentiu com o olhar à resposta recebida e deixou sua discreta atenção ao noivo.
detestava se sentir daquela forma. Insegura e impotente. Sem saber o que fazer ou o que realmente acontecia com o homem em sua frente, apenas ambicionando ter acesso a pelo menos 1% dos pensamentos de . O restante do café foi com os muitos comentários de Marie sobre o casamento de ambos, previsto para ser realizado em dois anos. Assim, poderia se manter focada em seus estudos, enquanto o novo Don se estabelecia como o sucessor do pai.
— Seu olhar não condiz com o de uma noiva apaixonada. — O comentário de quebrou o silêncio estabelecido no jardim lateral da mansão.
Após o desjejum, havia seguido para sala de estar com sua sogra, a fim de folhear alguns books de noiva. Entretanto, não demorou minutos para que a princesa Tommaso se retirasse com sutileza e encontrasse o silêncio do jardim de inverno, a única parte da mansão que parecia não estar em alvoroço pela coroação.
— Como você sempre sabe onde me encontrar? — comentou ela, deixando escapar um sorriso singelo no canto do rosto.
— Porque eu te conheço muito bem — respondeu ele, com serenidade.
deu alguns passos até se posicionar ao seu lado e se sentar na grama também.
— O que faz uma noiva feliz sentada na grama com este tecido tão delicado? — indagou ele, num tom de brincadeira para descontrair. — Se a Prada soubesse que está castigando sua última coleção nessa grama.
— Ela não diria nada. — riu de leve, voltando o olhar do lago para ele. — E não acho que deva considerar esta noiva tão feliz assim.
— Está arrependida? Podemos fugir juntos e casar em Vegas — brincou novamente, a fazendo gargalhar de leve, então mantendo a seriedade no rosto. — Me preocupa não ver mais aquele brilho em seus olhos.
— Eu sei, isso me preocupa também. — Ela respirou fundo. — Talvez seja pelo fato de a garota inocente ter crescido e descoberto o verdadeiro mundo em que vive.
— Nem tudo que queremos é o que temos? — indagou ele, uma das muitas filosofias da amiga.
— Não. — Ela voltou o olhar para o lago. — A vida é feita de aparências.
engoliu seco, já entendendo o que ela queria dizer.
— Posso ter minhas brigas com o , mas tenho certeza de que ele não faria nada que te magoasse ou te desonrasse. — Das raras vezes que acontecia, havia, sim, momentos em que defendia o caráter do irmão.
— Eu sei… — ela assentiu em sussurro, ao sentir o toque suave do amigo em seu ombro, a puxando para lhe aninhar um pouco.
— Que tal falarmos de coisa boa… Como estão os estudos? — perguntou ele, num tom mais animado.
— Desde quando os estudos se tornaram um assunto bom para você?! — indagou ela, surpresa.
— Desde nunca, mas sei que para você é um assunto muito motivador — respondeu ele, tranquilamente, demonstrando seu cuidado para com ela. — Vamos, me conte.
soltou uma risada gostosa e boba, assentindo ao pedido dele.
— Por onde eu começo… — Ela pensou por alguns instantes, sentindo seus olhos brilhando um pouco. — Acho que já defini o nome da minha marca de mobiliário. Sei que está muito cedo para pensar nisso, mas já me decidi.
— E qual será? — perguntou ele, se mostrando interessado no assunto.
— Franci — respondeu ela, prontamente, erguendo o corpo de leve. — Quero honrar a memória da minha mãe, já que mobiliário é algo que sempre tivemos em comum.
— Fico feliz com isso. — Ele sorriu de leve com carinho para ela. — E acho que te invejo um pouco.
Tommaso apenas sorriu com sutileza e se impulsionou para abraçá-lo com carinho. Ela sabia muito bem que as poucas demonstrações de carinho e afeto que ele havia recebido eram dela e de seu padrinho, Giordano.
--
No relógio, marcava nove horas da noite, e o jantar de coroação estava seguindo com seu curso planejado. Os olhares de todos estavam em uma só pessoa: Magnus. Com isso, a ausência do caçula jamais seria notada, como de fato aconteceu, exceto por seu irmão, é claro. Em tudo a família Magnus tinha seus segredos, por isso, nem todos sabiam que tinha problemas com aglomerações de pessoas.
Sua fobia havia se desenvolvido desde criança, uma das muitas explicações para suas ausências nas recepções da família. Claro que, para os pais, era mais uma de suas formas de chamar a atenção de todos para si, atrapalhando os planos da família. Entretanto, apenas três pessoas levavam a sério o que lhe acontecia, e um deles era o primogênito. E este era o ponto do desconforto de , após notar a discreta ausência do irmão, minutos depois de sua coroação.
— Senhor . — O tom de surpresa foi notório na voz de Liz, assim que adentrou a adega da mansão de Toscana e se deparou com o caçula assentado ao chão.
A criada jamais iria imaginar tal cena, afinal, um acontecimento importante estava sendo celebrado em Roma.
— Finja que não estou aqui — disse ele, num tom baixo, porém firme.
Assim, ela assentiu, permanecendo em silêncio e seguindo para finalizar sua tarefa do dia de separar os vinhos que seriam servidos no retorno do novo Don. Assim que ela se retirou, o caçula voltou o olhar para a garrafa de vinho ao seu lado, ainda não a tinha aberto e já se contava mais de duas horas encarando-a no silêncio. Não que estivesse triste pela conquista do irmão, pelo contrário, estava mesmo preocupado pelo que poderia vir a seguir.
— Dra. Segre…, acho que uma hora não será o bastante. — Ao respirar fundo, ele se levantou do chão e se deslocou até a escada.
Chegando próximo à ala dos empregados, ouviu de longe uma pequena discussão, as duas vozes femininas pareciam alteradas demais para serem ignoradas. Porém, mesmo reconhecendo-as, com sua atenção em outro lugar, suas pernas o conduziram para a garagem com serenidade. As chaves do seu Porsche ainda no bolso dianteiro da calça e um endereço registrado em sua mente. Foi quando uma movimentação externa e repentina lhe chamou atenção, o fazendo recuar um pouco, se encostando em uma das pilastras, na parte menos iluminada, apenas observando.
Logo a silhueta de uma garota surgiu na pouca luz, visível o suficiente para que suas lágrimas fossem notadas.
— Eu não quero ser como ela. — A voz de então ecoou sobre o lugar, ao referir-se sobre sua mãe.
E os olhares observadores já imaginavam de quem ela falava, enquanto via mais lágrimas serem derramadas. nunca se viu como uma pessoa empática, mas, naquele momento, ele, mais do que ninguém, entendia a filha da empregada. Entendia como era desejar ser livre e não ter nenhuma possibilidade.
— Eu sempre imaginei como seria a minha vida se algum dia eu fugisse daqui — disse ele, num tom alto, despertando a atenção dela.
— Hum?! — logo sentiu um calafrio passando por seu corpo, então voltou-se para a direção da voz, e sussurrando: — Senhor .
— Se hipoteticamente eu fugisse daqui, não sairia correndo pelo jardim até a entrada dos empregados, seguiria pela lateral leste da casa, onde tem mais pontos cegos das câmeras, pelas partes sem iluminação até chegar ao pergolado de trepadeiras — iniciou ele sua descrição de uma fuga perfeita. — Atrás daquela colcha de folhas verdes, tem uma porta enferrujada que só pode ser aberta pelo lado de dentro, é uma passagem secreta que meu pai acha que seus filhos desconhecem. — Ele soltou um suspiro cansado. — Então, ao sair, eu seguiria em direção ao sul, pois não tem alcance das câmeras, e seguiria para a estação de Santa Mônica. Além de ser a menos procurada, é a única que estaria aberta até este horário… Jamais iria para casa de algum amigo, pois seria muito fácil me encontrar, e passaria em sete cidades aleatórias da Europa antes de chegar ao meu destino final.
manteve seu olhar para ele, parecia estar refletindo e ao mesmo tempo memorizando cada uma delas.
— Por que está me ajudando? — indagou ela, entendendo o significado das palavras dele.
— Eu não estou te ajudando, apenas estou dizendo o que eu faria se fosse fugir daqui… — Ele riu baixo. — Mas nós dois sabemos que não se pode fugir quando se é um Magnus.
entendeu o recado, ela não era um Magnus. E se sua mãe, mesmo cansada da vida que viviam, estava cauterizada pelo medo a ponto de não ter mais esperanças por um futuro melhor, a garota estava mais do que decidida a dar um fim em sua agonia.
Foram segundos em que fechou seus olhos, respirando fundo. Aos abri-los, suas pupilas dilatadas se direcionaram para uma só direção: sua liberdade.
Sonhando com o que minha vida poderia ser
E se eu seria feliz
Eu rezava.
— Breakaway / Kelly Clarkson
Roma, primavera de 2016
Cada pessoa no mundo tem uma habilidade ou dom que o define, o de Segre era ouvir. Desde criança, ela se encantava por ouvir as inúmeras histórias de seus avós e tios, principalmente da parte italiana da família, sempre formulando em sua mente comentários pontuais diante dos conflitos passados e indagando dos mais velhos o que os levaram a tomar suas respectivas decisões. Agora, diante de uma pré banca avaliadora, ela estava em um delicado momento de sua carreira acadêmica, defendendo o tema escolhido da dissertação de mestrado sobre anomalias comportamentais. Após quase dois anos formada, com sua inexperiência de uma recém-graduada, ela ainda não havia progredido muito em suas pesquisas, porém precisava mostrar os poucos resultados obtidos, a fim de manter a bolsa de estudos na Universidade de Florença.— Então, senhores, de acordo com minhas pesquisas e os testes de observação com os indivíduos selecionados, pode-se compreender um pouco mais as motivações e influências causadas pelo ambiente inserido e sua realidade carregada da infância — concluiu ela sua apresentação.
Seu olhar voltou-se discretamente para o professor Giordano, que mantinha uma ponta de preocupação. Após anos de estudo acompanhando o desenvolvimento de Segre como sua melhor aluna, ali estava a jovem, dando seu passo principal para a carreira profissional. E mesmo sabendo do comprometimento dela, ainda havia lacunas a serem preenchidas diante de seus estudos.
— Senhorita Segre, confesso que li suas anotações três vezes, além de me dar a liberdade de ler sua monografia da graduação. Confesso que me impressionei com a profundidade dos seus estudos, apesar de ainda estarem em andamento — se pronunciou o mestre em psicologia criminal, professor Jean Françoise. — O que me deixa ainda mais curioso para o que virá na conclusão de sua dissertação de mestrado.
— Seu trabalho vem impressionando todo o corpo docente deste curso — concordou o professor Grimaldi, doutor em psicopedagogia clínica. — Mas sinto uma certa preocupação, pois a senhorita possui apenas mais seis meses de pesquisa e sua dissertação parece não ter chegado à metade.
— Agradeço as palavras dos senhores — disse ela, se sentindo realizada como estudante. — E tenho muito a agradecer às orientações do professor Giordano. Sei que ainda tenho muito a estudar e complementar em minha dissertação…
— O tema estudado por minha orientanda é vasto e repleto de possíveis experimentos, por isso a sensação de um trabalho incompleto. — O professor Giordano entrou em sua defesa. — E mesmo após o final do mestrado, ela continuará seus estudos.
— É uma pena que seu primeiro objeto de estudo não tenha dado certo, e improvisos não são o melhor caminho na ciência — comentou a professora londrina, Allison Voith, doutora e especialista em neuropsicologia. — Acha que será possível ter uma conclusão satisfatória em seis meses?
— Eu pretendo… — Antes mesmo que pudesse finalizar sua resposta, foi interrompida por seu orientador.
— Não se preocupe, dra Allison, todos sabemos da capacidade de minha orientanda — disse Giordano, mantendo o mistério no ar.
Mais algumas perguntas da pré banca sobre as comparações e análises entre a pesquisa e os testes de observação mostraram a os pontos que poderiam melhorar em sua dissertação e alternativas possíveis para a solução final. Após passar toda a sua manhã de quinta-feira na apresentação, a jovem aceitou o convite do professor Giordano para o almoço. O interesse do homem era nítido sobre as consultas de seu afilhado.
— Agradeço por me convidar para o almoço — disse ela, ao voltar seu olhar para o cardápio e avaliar as opções. — Por mais que eu saiba o real motivo de estarmos aqui.
— Não imagina o quanto estou grato por ter aceitado esta missão — disse ele, acenando para o garçom. — Por mais que não esteja servindo ao propósito de seus estudos.
— Para ser honesta, eu não sei se será possível continuar com as consultas. Não progredimos nenhum pouco, preciso focar na minha dissertação, além dos reais pacientes que são meu objeto de estudo — explicou ela, ainda com receio de sua aceitação. — E ainda sou uma residente.
Contava pouco mais de um ano de consultas semanais, em que se encontrava com seu paciente problema. Sendo uma médica graduada, ela dividia seu tempo entre seu estágio de residente no University Hospital Meyer, um hospital infantil, com os momentos de observação em seu estudo de caso da dissertação de mestrado no orfanato da cidade e as consultas com o Magnus caçula. Inicialmente, todas as quintas, no escritório do professor Giordano, ambos se encontravam para as sessões de uma hora. Na maioria das vezes, os comentários sarcásticos e maliciosos de se misturavam a longos minutos de silêncio. A necessidade de acrescentar mais um dia para tentar algo mais assertivo, fora do ambiente de aspecto familiar, se deu após um breve devaneio do garoto em um comentário sobre as noites mal dormidas do irmão e sua obsessão pela filha da empregada desaparecida.
— Bem, sei que a falta de interesse de meu afilhado atrapalhou nossos planos de usá-lo em seus estudos — assentiu ele, com serenidade no olhar, voltando a atenção para o garçom ao lado. — Eu vou querer um fettuccine ao molho branco 4 queijos e champignon, acompanhado de vinho tinto Mont Blanc Fogaça 14 anos — disse o professor, sua escolha habitual de refeição.
— E a senhorita? — perguntou o homem.
— O mesmo, mas troque o vinho por néctar de maçã com hortelã — respondeu ela, prontamente.
Assim que o garçom se afastou, a atenção de Giordano voltou para ela. Seus sentimentos eram um misto de preocupação e ansiedade, no fundo, ele apenas desejava trazer leveza para a dolorosa vida de seu afilhado, muitas vezes sentindo-se de mãos atadas, o que lhe angustiava mais ainda.
— Sei que na teoria não posso saber sobre o que conversam nas consultas, por questões éticas, mas… — Ele deu uma pausa, respirando fundo, tentando formular sua justificativa.
— Ele é meu paciente e o senhor é meu professor e orientador — argumentou ela, finalizando sua frase. — Adoraria muito relatar nossas conversas se elas existissem da forma que esperamos.
— Como assim? — O olhar confuso dele era visível.
— Por mais que tenha aceitado participar das consultas, ele não se abre comigo — explicou ela, quase em desabafo. — Isso me deixa frustrada… Passamos uma hora com seus devaneios estranhos e momentos de silêncio total, na verdade duas, já que agora temos nossa sessão às terças.
— Era isso que eu temia. Achei que talvez com alguém diferente de mim, ele pudesse se abrir. — Giordano soltou um suspiro fraco e cansado.
— O senhor conhece muitos doutores na área, bem mais experientes que eu, talvez… — Ela iniciou sua sugestão.
— Não confio neles tanto quanto confio na minha melhor aluna. — Ele a interrompeu. — Sei que tem sido complicado para você, mas… Se tem alguém que eu acredito que consiga, é a dra Segre.
Ela assentiu, dando um suspiro fraco e voltando o olhar para o garçom que se aproximava da mesa com uma garrafa de vinho na mão. A própria não acreditava que poderia conquistar a confiança de , menos ainda elaborar uma estratégia para isso. Após o almoço, a jovem retornou para o albergue que morava atualmente. Com sua formatura, e deixando o dormitório da universidade, ela não teve muita escolha a não ser partir para a opção mais barata.
— Cate?! O que faz aqui? — indagou , ao adentrar seu quarto e ver a amiga sentada na cama, rodeada de livros.
— Estudando para uma prova — respondeu ela, concentrada em sua leitura. — A biblioteca estava cheia e não estou de bom humor.
— Final de semestre letivo — disse a jovem, fechando a porta e adentrando mais. — Vai me dizer que brigou com o Santoro novamente?!
Ao se graduar, a amiga também precisou encontrar um novo lugar para ficar, acarretando no convite do professor.
— Não quero falar do assunto. Como foi sua pré banca? — perguntou ela, fechando o livro e a olhando.
— Pesada, cheia de críticas e perguntas… Mas foi interessante — respondeu Segre, com uma feição singela. — Agora só falta escrever o resto para entregar em seis meses.
— E torcer para não surtar com seus pacientes improvisados — brincou a amiga, caindo na gargalhada.
— Que maldade, não será assim — retrucou , rindo junto. — E foi um alívio a ajuda da professora Margareth.
— Posso dormir aqui hoje? — Caterina fez um olhar de piedade. — Não quero voltar pra casa.
— Eu disse pra você não confiar nele. — Segre estava boquiaberta com a coragem da amiga. — Você mesmo não disse que tinham terminado?
— A necessidade faz a ocasião amiga, então… Uma moradia de graça, não pude recusar. — Ela soltou um suspiro. — A casa dele tem uma vista linda e é espaçosa, deveria aceitar também.
— Não, agradeço. — A jovem fez uma careta estranha. — Vou esperar minha dissertação terminar e me mudar do albergue. Consegui até algumas indicações com o Italo.
— Este é outro que é louco por você. Poderia morar com ele, de graça — sugeriu ela.
— Jamais. Ele é apenas um amigo, e não estou aqui para viver a fic de dividir a cama com um desconhecido — alegou ela.
— Você acabou de dizer que ele é um amigo, então corta esse desconhecido — Caterina retrucou, com a mão na cintura.
— Você entendeu o que eu quis dizer — argumentou . — Vou tomar um banho, tenho compromisso daqui a pouco.
— Seu paciente problema?! — Ea soltou outra gargalhada, lembrando das muitas reclamações da amiga sobre o Magnus e seus comentários impróprios.
a ignorou e continuou seguindo para o banheiro. Um banho quente, minutos de reflexão e muitos pensamentos que precisava organizar. precisava melhorar sua estratégia de abordagem, seu interesse por mais comentários sobre o primogênito Magnus poderia ser a porta de entrada para a mente de . Pontualmente, ela estava em frente ao lago que compunha o Jardim de Boboli.
— Sempre pontual — comentou , mantendo seu olhar na jovem. — Tem certeza de que é uma mulher?
Brincou ele, soltando uma gargalhada.
— Esta pergunta é apenas por minha pontualidade? — indagou ela. — Jovem Magnus.
— Não é uma característica comum feminina — retrucou ele.
— Não se deve generalizar tudo — disse ela, num tom suave, porém soando a repreensão.
Ele apenas assentiu com um sorriso de canto e mantendo as mãos nos bolsos da calça, voltou seu corpo em direção ao lago.
— Pronta para mais uma sessão? — indagou ele, num tom presunçoso.
— Pronto para me contar mais sobre a filha da empregada? — instigou ela.
— Não tenho nada para falar. — Ele abaixou seu tom, o mantendo firme e pouco rude. — Não deveria seguir por uma trilha que não te levará a lugar algum.
— Você disse que iria se esforçar — reforçou ela suas palavras. — Mas não vejo isso, estamos há quase dois anos e não progredimos em nada…
— Talvez o problema seja você. — Ele a olhou.
Um olhar frio que a fez paralisar por instantes.
— Como assim? — indagou ela, com perplexidade no olhar.
— Não me inspira confiança. — explicou objetivamente.
— Por que sou aluna do seu padrinho? — perguntou, não se deixando intimidar. — Ou por que sou uma mulher?
— Nenhum dos dois. — Ele respirou fundo, mantendo o olhar nela. — Apenas por não ter convivência com o mundo ao qual eu pertenço.
— Então pessoas de fora da máfia não são confiáveis? — constatou ela.
— Entenda como quiser. — Ele deu um passo para se afastar. — Está certa quando disse que não estamos progredindo… Por isso, está demitida.
— O quê? — A expressão no rosto de demonstrava confusão e surpresa.
— Isso mesmo que ouviu, está demitida. — Antes mesmo que ela pudesse reagir contra, ele se afastou e seguiu para longe.
Pega totalmente de surpresa, Segre soltou um suspiro cansado e pegando o celular no bolso, mandou uma mensagem ao professor Giordano com um breve relato do ocorrido e dizendo que agradecia pela oportunidade, mas que não faria nada para reverter a decisão do rapaz. E lá no fundo, estava sentindo-se aliviada por não ser mais a médica dele.
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— Eu não sei você, mas achei incrível esse livro… — A voz de Italo soou bem distante, enquanto relatava sua experiência de leitura. — Te recomendo ler dessa vez até o final, assim vai entender melhor o que estou falando.
Ele olhou-a intrigado, após perceber seu silêncio.
— ?! — chamou-a num tom mais elevado. — , está me ouvindo?
— Ah?! — Ela finalmente voltou à realidade e o olhou. — O que disse?
— Estava me ouvindo? — perguntou ele, sabendo a resposta.
— Me desculpe, é que estou com um assunto em minha mente que não consigo esquecer — explicou ela, soltando um suspiro fraco, ao voltar seu olhar para a vidraça da cafeteria.
Por mais que fossem apenas amigos, ambos construíram uma singela tradição de degustar dos cafés especiais da cafeteria Coffee Prince toda sexta-feira, enquanto comentavam dos livros que leram ao longo da semana. Desta vez, Ungaretti estava lhe encorajando a finalizar a leitura do livro A arte da Guerra.
— Seu paciente problema? — perguntou ele, com um olhar curioso.
— É. — Ela soltou um suspiro cansado. — Fui demitida e até agora não consegui lidar com a informação.
— Bem, deveria estar aliviada, menos uma responsabilidade em sua apertada agenda — brincou ele, rindo baixo. — Não fique assim, a culpa certamente não é sua.
— Tem razão, e muito obrigada pela indicação do apartamento, eu pensei que pudesse esperar o final do mestrado, mas acho que me mudar agora seria bem melhor e eu teria mais privacidade para estudar — explicou ela, analisando sua situação habitacional.
— Fico feliz em ajudar, apesar de ainda disponibilizar o quarto sobrando da minha casa — disse ele, num tom sugestivo.
Por muitas vezes, Italo demonstrou abertamente seu interesse por ela, mesmo sabendo seu posicionamento de não se envolver emocionalmente com ninguém até o final de seus estudos. Porém, para ele, os preciosos momentos que passavam juntos era como um investimento que fazia a longo prazo.
— Não quero tirar sua privacidade e estou em busca da minha — retrucou ela, num tom bem humorado. — Vou fazer a mudança amanhã pela manhã. Se quiser me ajudar, vou agradecer muito.
— Mas é claro que vou te ajudar — concordou ele, relutante pela recusa dela. — Então, me conta mais sobre sua pré banca, o que acharam?
— Além das críticas e falhas em alguns tópicos de estudos, eles estão gostando do que estou escrevendo — respondeu ela, ao bebericar seu cappuccino. — Trabalhar com estudo de caso é um pouco mais complexo do que apenas uma referência bibliográfica.
— Por isso eu não quis ir para universidade — brincou ele, rindo baixo. — Sou um empreendedor hiperativo.
— Isso eu concordo, é mesmo. — Ela riu junto. — Eu sempre gostei de estudar, então… É divertido para mim.
— O que me preocupa são seus pacientes malucos — comentou ele, atento a ela.
— Por ter que improvisar, eu mudei um pouco minha linha de pesquisa, mas continuo focada na mudança comportamental, agora trabalhando em âmbito infantil hospitalar — explicou ela, demonstrando a delicadeza de sua dissertação. — Não imaginava que trabalhar com crianças fosse mais complexo do que com adultos.
— E por quê? Parece ser mais fácil, porque crianças são mais sinceras e honestas — retrucou Italo, curioso pelo comentário dela.
— Crianças estão em sua formação de carácter. Uma palavra ou frase dita errada pode ser algo negativo em sua formação, por isso, preciso ter mais cuidado com minhas palavras e formas de abordagem — respondeu ela, detalhando seu argumento.
— Interessante — disse ele, ao levar sua xícara de café à boca.
Mais longas horas de conversa e risadas, finalmente conseguiu esquecer seus problemas e responsabilidades, na companhia de seu amigo. Um amigo com segundas intenções, mas um amigo. Na manhã seguinte, como planejado, Italo e Caterina, na companhia do professor Lucca Santoro, ajudaram a esperada mudança de Segre. A jovem havia encontrado um loft em formato de estúdio, modesto e barato, no bairro Lungarno, com vista para o rio Arno, uma localização privilegiada que a deixou em choque quando o visitou pela primeira vez.
— Amiga, realmente você fez um bom negócio, a vista aqui também é linda — comentou Caterina, ao deixar a caixa que carregava ao chão e se aproximar dela, na varanda.
— Sim, nem eu acreditei no valor do aluguel quando o locatário me falou — concordou , ao se debruçar no guarda-corpo de vidro. — Graças a Deus, consegui uma boa localização por um valor acessível.
— Bom saber que meu refúgio tem uma vista assim — brincou ela, soltando uma gargalhada boba do olhar sério da amiga. — , sabe que tenho meus momentos.
— Você deveria encontrar um lugar para chamar de seu também — aconselhou a jovem.
— Eu já tenho o quarto do Santoro. — Ela lançou um olhar malicioso para a amiga, a fazendo balançar a cabeça negativamente.
— As duas donzelas vão continuar conversando aí? Tem muitas caixas lá embaixo — disse Italo, as chamando à realidade.
— Você disse que era um cavalheiro, deveria trazê-las todas sozinho — retrucou Caterina, em provocação.
— Já estamos indo. — riu de leve da careta dele. — Só paramos para respirar.
— Sei. — Ele deu um suspiro e deixou as caixas em sua mão no canto próximo às outras. — Acho que agora falta pouco.
— Pelo menos os móveis essenciais você já tem — comentou Caterina a sorte da amiga.
— É, o antigo locatário deixou como parte do pagamento dos meses que devia o dono — explicou ela. — Felizmente, não vou precisar comprar fogão, geladeira, cama e sofá.
— Já é um começo — disse Caterina, seguindo para a porta. — Vamos terminar isso aqui, pois já estou ficando com fome.
— Olha só, que milagre. — Italo olhou para ela, impressionado. — Você não vive de dieta, como pode estar com fome?
— Me deixa. — Ela deu de ombros e saiu pela porta.
riu discretamente, os seguindo até a portaria. Não faltava muito para que finalizasse, e, após terminarem, ambos seguiram para a lanchonete mais próxima da região. Logo mais à noite, após se despedir dos amigos, Segre retornou ao seu loft para um belo e merecido descanso, afinal, depois de um dia cansativo de mudança, sua primeira noite seria regada à praticidade do lámen, acompanhada de uma boa série da Netflix em seu aplicativo de celular.
— Hum… Que cheirinho gostoso — disse ela, ao sentir o aroma exalado da panela, enquanto desligava o fogo. — Que bom que ainda tinha três pacotes de miojo guardados na mochila… Zero condições para fazer compra nas próximas vinte e quatro horas.
Prática, ela apenas queria passar seu domingo em sono profundo e descanso.
— Agora só falta escolher qual série vou ver… — ela cantarolou um pouco ao despejar o lámen da panela na tigela.
Em um piscar de olhos, levou a primeira colherada à boca para experimentar seu jantar. O som de batidas em sua porta lhe assustou ao ponto de acelerar seu coração. Quem seria uma hora daquelas? Um vizinho? Pois se fosse alguma visita, teria tocado o interfone da portaria.
— Estou indo… — disse ela, ao deixar a tigela em cima da bancada da pia e seguir até a porta. — Não precisa de desespero.
As batidas pareciam fortes e impacientes.
Assim que abriu a porta, seu corpo gelou de imediato ao se deparar com a única pessoa que jamais imaginou ver ali.
estava com suas expressões confusas e apáticas, provavelmente tentando entender o motivo pelo qual seu corpo o levou de forma inconsciente para aquele lugar. Mas de alguma forma, mesmo assustado, o olhar de lhe trazia certo conforto que nunca havia sentido antes. Não queria admitir, mas mesmo a jovem não sendo de seu círculo social mafioso, ela conseguia despertar a curiosidade do caçula a ponto de guiá-lo até ali.
— Magnus… — sussurrou ela, descendo seu olhar discretamente até o corte em sua boca.
Mais uma vez, o rapaz havia sobrevivido à fúria de seu pai.
Francesco, mesmo não sendo mais o chefe da família, ainda mantinha sua falta de empatia para com o caçula. E desta vez, pela oposição de em relação a ideia de um casamento arranjado para ele, o levou a ganhar mais alguns hematomas em seu corpo.
— Posso entrar?! — pediu ele, com a voz falha, quase em sussurro.
Antes mesmo que pudesse assentir, ele deu um passo para adentrar o lugar, sentindo seu corpo desabar logo em seguida. A jovem o amparou nos braços, num misto de susto e preocupação, não podendo se permitir ficar estática com a situação, pois já se encontrava desacordado em seus braços.
"Existe uma difícil estrada em nossa frente,
Com obstáculos e um futuro que não pode ser sabido,
Mesmo assim, eu não vou mudar, eu não posso desistir."
— Into The New World / Girls' Generation
Toscana, outono de 2016
O olhar de , mesmo direcionado para o homem deitado no sofá de seu loft, parecia distante assim como seus pensamentos. A imagem do rosto machucado de na primeira vez que o rapaz se abrigou ali não saía de sua mente, assim como as inúmeras perguntas sobre o assunto. Realmente, a jovem não tinha nenhuma ideia de como funcionava o mundo da máfia italiana, menos ainda como seria o relacionamento das famílias que integravam o meio.— Está gostando da vista? — disse ele, num tom presunçoso, a despertando de seus pensamentos.
manteve o silêncio, não dando importância ao comentário dele. Logo, levantou-se do sofá e caminhou até ela, que estava ao lado da porta de passagem para varanda.
— Se está falando de você… Inicialmente, nem deveria estar aqui — comentou ela, o encarando com seriedade. — Você me demitiu, se lembra?
— Que garota rancorosa. — Ele sorriu de canto, com malícia.
— Não sou rancorosa… Não vai vestir uma camisa?! — Ela o olhou discretamente, de cima para baixo.
— Gosta do que vê? — Ele segurou o riso. — Está com medo de se apaixonar?
Ela desviou o olhar, ignorando seu comentário.
— Ainda não me disse como descobriu meu endereço. — Ela cruzou os braços, o encarando.
— Minha família é dona dessa cidade, quer mesmo que eu diga? — retrucou ele, com um soar óbvio.
Seu olhar ficou enigmático por um momento.
Das muitas noites conturbadas que havia se passado, naqueles meses de visitas inesperadas do Magnus caçula nas altas horas da noite, aquela havia sido a mais perturbadora de todas. Não apenas pelos machucados em pontos aleatórios do corpo de , mas pelos delírios que o rapaz demonstrou enquanto se encontrava desacordado. Seus gemidos dor que se misturavam aos gritos dos pesadelos que lhe assombravam. Quanto mais se permitia acolhê-lo em suas batidas aflitas à sua porta, mais ela sentia que estava adentrando um perigoso caminho sem volta.
— Tudo bem, não precisa dizer, mas… Quando teremos nossa conversa?! — indagou ela, o forçando a baixar a guarda. — Você me prometeu falar de sua infância na última vez que esteve aqui.
— Na última vez, foi há quatro noites e eu estava bêbado — relatou ele, com precisão a ocasião. — Não deveria acreditar nas promessas de um bêbado.
— Tenho que admitir, você é bem mais falante e honesto quando não está sóbrio — brincou ela, arrancando uma risada rápida dele. — E como está seu irmão?
— Por que a pergunta?! — indagou ele, se aproximando mais um pouco dela. — Saiba que você não faz o tipo dele, não é filha de empregada.
Ele riu mais um pouco de seu comentário, então voltou a ficar sério.
— Você já contou a ele seu segredo?! — ela foi direto ao ponto.
— Sabe que não posso — retrucou ele, se desviando e aproximando do guarda-corpo, se debruçando nele. — O que acha que aconteceria se descobrisse que sua preciosa fugiu devido à minha ajuda?
permaneceu em silêncio.
Após todo esse tempo de convivência, ela já tinha pesquisado sobre a família Magnus, assim como cada membro integrante. Sabia que não se tratavam de quaisquer pessoas e que a palavra vingança estava no topo do vocabulário da máfia de Toscana.
— Não consegue dizer, não é?! — Ele a olhou com seriedade, um toque de amargura lhe invadiu por dentro. — Tenho inveja de , conseguiu sua liberdade… Sem Magnus, sem preocupações...
— Se pudesse começar uma nova vida longe de tudo, da máfia, da Itália… Você o faria? — indagou ela, num tom sugestivo e curioso.
— Talvez… — Ele deixou seu olhar mais malicioso. — Você viria junto no pacote?
respirou fundo e se afastou dele, ouvindo suas gargalhadas enquanto seguia para a cozinha.
— Está com fome? — perguntou ela, mudando o assunto.
Mesmo com sua pouca experiência como psicóloga, Segre já estava pouco mais habituada com sua residência e os casos que acompanhava começaram a lhe dar mais confiança em sua profissão. Para cada paciente, um método diferente de aproximação e conquista de confiança, e com o caçula Magnus ela ainda estava construindo suas estratégias.
— O que teremos para o almoço?! — perguntou ele, a seguindo até a área da cozinha.
— Quem disse que vamos almoçar agora? — Ela riu. — Não se pode pular uma refeição.
— Mas já são onze da manhã — retrucou ele.
— A culpa não é minha se acordou tarde. E, como disse, nem deveria estar aqui — argumentou ela, ao abrir a geladeira. — Seu desjejum será um singelo brunch inglês, no improviso.
— Hum… — Ele encostou na parede e cruzou os braços, a observando se locomover pelo curto espaço que delimitava o ambiente. — Dra Segre também é uma masterchef…
Seu comentário soou um toque de malícia.
Após um breve momento de silêncio entre eles…
— Se eu lhe perguntasse uma lembrança comestível de sua infância, o que me responderia? — perguntou , enquanto se mantinha concentrada no manuseio dos alimentos.
— Tiramisu… — soltou um suspiro regado a saudade, que acabou atraindo a atenção dela. — Quando eu era criança, minha nonna sempre aparecia com uma travessa de vidro na manhã do meu aniversário… Ela dizia que era o melhor presente que eu poderia receber, pois vinha com uma pitada de amor…
Um sorriso singelo e saudoso se formou no rosto do rapaz, causando uma inesperada sensação de fascínio de sua parte, que a fez contemplá-lo por um momento.
— Já está se apaixonando, dra.? — brincou ele, com um sorriso de canto.
— Deixe de besteiras, Magnus. — Ela deu de ombros, voltando sua atenção ao brunch que preparava.
Não demorou para que ela finalizasse, lhe servindo o alimento na bancada da pia, puxando duas banquetas para que assentasse. se aproximou, observando o capricho da jovem enquanto organizava os pratos e copos com delicadeza.
— Impressionante — disse ele, num tom baixo, ao se sentar ao lado dela. — Pelo que sei, você é brasileira, o que sabe sobre culinária inglesa?
Ele conhecia bem sobre o assunto, já que havia passado anos estudando em Londres na adolescência, e vendo a forma impecável que a mesa estava posta
à sua frente, lhe intrigava ainda mais a respeito dela.
— Existe youtube hoje em dia. — Ela soltou uma gargalhada. — Temos omelete, waffle, torradas e geleia de morango… Aproveita que eu fiz compra ontem.
— O que é isso na xícara?! — indagou ele, fazendo uma careta estranha.
— Chá — respondeu ela, com tranquilidade.
— Sou italiano, não gosto de chá — retrucou ele.
— É um brunch inglês e você vai tomar — disse ela, de forma despreocupada, com um sorriso singelo no final.
segurou o riso de si mesmo, não entendendo o que ele fazia ali e como no fundo não queria se afastar da doutora que lhe instigava a cada dia. E, pegando a xícara, tomou um gole do chá de camomila com limão que ela havia preparado. Após a degustação, teve uma ideia para desenvolver outra rodada de conversa com ele.
— Como eu te alimentei, agora terá que me pagar… — Ela se levantou da banqueta e, pegando o pano de prato, jogou nele. — A louça suja é sua.
— Que mercenária… — Ele pegou o pano quase no ar, a olhando de forma descontraída. — É assim que trata seus hóspedes? Que má anfitriã.
— Nem era para estar aqui — retrucou ela, seu argumento favorito. — Você me demitiu, lembra?
— Depois diz que não tem um coração rancoroso — reclamou ele, se levantando da banqueta e seguindo para a pia levando os pratos sujos.
— Não, não… Espera aí — disse ela, lhe repreendendo de leve e abrindo uma gaveta do armário. Pegou um avental e seguiu até ele. — Para não dizer que sou uma má anfitriã.
Ela riu baixo ao colocar o avental nele, ajustando um pouco e em seguida amarrando a liga nas costas dele.
— Agora entendi o porquê do avental — brincou ele, de forma sinuosa.
— Entendeu o quê? — perguntou ela, ainda ajeitando o tecido nele.
— Você queria um motivo para se aproximar… — ele continuou, até que foi parado por um tapa dela em seu braço.
— Você realmente é um bobo. — Ela suspirou e se afastou dele. — Quero essa louça extremamente limpa.
— Hum… — Ele se virou para ela com malícia. — Que mulher mandona, assim eu é que apaixono.
— ... — Ela tentou repreendê-lo, mas foi interrompida pelo toque do telefone dele.
Mais alguns instantes de silêncio, até que ele encerrou a ligação e, retirando o avental, entregou a ela, com o olhar sério.
— Prometo que da próxima vez eu pago pela refeição. — Ele tentou brincar, mas não conseguia deixar seu olhar sério de lado.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou ela, segurando sua preocupação.
apenas permaneceu em silêncio e, se afastando, se retirou do loft, seguindo em direção ao seu compromisso, o que deixou estática, confusa, e principalmente frustrada por não poder saber o motivo de sua partida.
— Justo agora… — sussurrou ela, dando um suspiro de chateação.
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Uma semana depois…
A conceituada Politecnico di Milano era considerada o lar dos grandes designers italianos da atualidade, o berço do mobiliário mais aclamado do mundo, no qual seguia tendo a oportunidade de vivenciar de perto. Concentrada em seu novo projeto semestral da disciplina de criação, pelo quarto dia consecutivo, encarando a folha em branco de seu sketchbook, a garota lutava contra a pressão de orgulhar sua família, não somente com sua futura carreira profissional, como o majestoso casamento que as famílias ambicionavam.— Sempre disse a mim mesma que sofrer de bloqueio criativo era para os fracos, porém agora… — Ela soltou mais um suspiro profundo. — Não tenho me sentido tão forte atualmente.
se espreguiçou mais uma vez, sentindo dores nos músculos das costas. Logo percebeu uma movimentação no ateliê de desenho criativo, era seu motorista com um pacote de papel pardo em sua mão, seguindo em sua direção.
— O que faz aqui? — indagou ela, com o olhar sério e repreensivo. — Já disse que não tem permissão para entrar no ateliê.
— Já disse que fui contratado para cuidar da senhorita. — Ele se colocou em sua frente, colocando o pacote em cima da mesa. — Não jantou ontem à noite quando veio para cá e nem tomou café da manhã, após amanhecer.
— Vai me obrigar a comer agora? — retrucou ela.
— Se for necessário, tentarei persuadi-la. — sorriu de canto, um pouco debochado.
— Meu pai não está mais entre nós. Seja qual for a promessa que fez a ele, pode se considerar livre — reforçou , demonstrando chateação pela presença dele.
— Prometi ao vosso pai que a protegeria até seu casamento, não voltarei atrás em minha palavra — confirmou ele sua missão.
Ela soltou um suspiro cansado.
A garota estava mesmo se sentindo cansada, emocionalmente e fisicamente. estava enfrentando uma chuva de emoções e reviravoltas. Após a coroação de Magnus, veio a descoberta de uma doença rara que o pai havia contraído, causando assim seu falecimento repentino. Agora, a família Tommaso era regida por seu irmão, Marco, e sua total forma imprudente de tomar decisões. Seu fio de esperança de um futuro razoavelmente tranquilo era o casamento de milhões entre as famílias. Casamento este que lhe tirou o sono e também a criatividade.
— Tudo bem — assentiu ela, não se dando o trabalho de brigar, puxando o pacote para perto e o abrindo. — Já pode ir agora.
— Bom apetite — disse ele, dando meia volta para se retirar. — Trouxe torta de amora, sei que é a sua favorita.
voltou seu olhar para ele por um momento, intrigada por sua percepção de seus gostos, afinal, poucas pessoas sabiam de sua preferência por amoras. Após 1 ano lhe servindo de motorista e segurança, já havia observado muitos dos costumes e hábitos da garota, além de suas inúmeras mudanças de humor, a ponto de saber quando estava chateada ou feliz apenas pelo olhar dela, o que lhe deixava ainda mais admirada.
— Não consigo rejeitar amoras — sussurrou ela, ao dar a primeira garfada. — Como esse motorista descobriu meu ponto fraco?
Ela riu baixo e continuou comendo, se lembrando das vezes em que comeu a torta com seu pai, nos aniversários de infância. Por mais que Elio Tommaso fosse um homem rígido e, em alguns momentos, frio com os filhos, houveram momentos de ternura de sua parte que lhe fizeram parecer o melhor pai do mundo. Após alguns minutos, seu celular tocou, era uma videochamada de sua irmã, Diana.
— Diana?! — ela atendeu, um pouco preocupada pela ligação da irmã.
— ! — Diana sorriu para ela, parecia alegre aos olhos da irmã. — Que bom que atendeu.
— O que houve? Não é de me ligar pela manhã — indagou ela, voltando o olhar para o último pedaço de torta no pote.
— Estou te ligando para lembrá-la do aniversário de sua sobrinha — explicou a irmã, virando a câmera do celular para a criança que estava brincando em cima do tapete da sala. — Te quero aqui amanhã à noite, sem falta.
— Eu não me esqueci — assegurou ela, com peso na consciência, pois tinha planos de apenas enviar um presente. — Estarei aí antes, vou para Florença ao final da tarde.
— Não acha perigoso viajar à noite? — alertou a irmã, preocupada. — Por mais que tenha um segurança, nossa Itália tem andado mais violenta que o normal.
— Está sabendo de algo que eu não sei? — indagou .
Ela sabia que seu irmão Marco jamais compartilharia informações sérias e sigilosas com ela, mesmo sendo noiva do dono da Toscana, entretanto, Diana sempre tinha algumas informações para compartilhar. Afinal, após seis anos de casada, ela já havia conquistado a confiança do marido e criado um parcial sentimento de afeto por ele, principalmente por ainda tratar Jullie como sua filha de sangue, mesmo depois de anos.
— Não, não estou sabendo de nada — garantiu Diana, com o olhar sereno para ela. — Só me preocupo sempre.
— Hum… Além do lembrete de aniversário, mais alguma novidade? — indagou ela, apoiando os cotovelos em cima da prancheta.
— Paris continua a mesma de todos os outonos — brincou ela, em resposta. — E como estão os preparativos para o casamento? Marco me disse que pretendem fazer a cerimônia antes do inverno.
— É, parece que a senhora Marie pediu para anteciparmos. Agora que é o chefe da família, será mais respeitado se tiver em matrimônio — explicou ela os motivos.
— Ah, sim, a máfia e sua tradicionalidade a respeito de casamentos — concordou Diana, ao se lembrar das regras. — Um homem honrado é um homem bem casado.
A irmã ficou encarando-a como se estivesse lhe analisando.
— Seu olhar não é de uma noiva feliz e ansiosa — constatou ela em seu comentário. — Acaso não deseja isso?
— Não… É claro que desejo, desde que soube. é o meu melhor amigo, é perfeito a nossa união, eu só…
sabia bem o ponto central de seu olhar triste, mas não queria compartilhar com sua irmã. Apenas conseguia se sentir confortável falando do assunto com o Magnus caçula, a única pessoa além dela que sabia lidar com o enigmático primogênito Magnus.
— Você só?! — insistiu ela.
— Não me sinto preparada para um casamento aos 18 anos. Pensei que demoraria mais, e logo terei mais responsabilidades, isso me assusta um pouco — explicou ela, escolhendo bem as palavras.
— Um casamento não é uma faculdade, e lidar com pessoas sempre foi difícil, mas, como disse, ambos são amigos e estar com alguém que gostamos torna mais fácil e leve.
Será?! Por que estou sentindo isso tão pesado? — Pensou , enquanto forçava um sorriso convincente.
— Tomara que sim — concordou ela. — Mudando de assunto, como foi a viagem de férias com o Mancini?
— Foi inesperada e um pouco surpreendente, eu acho. — Diana riu baixo, como se lembrasse dos acontecimentos naquele momento. — Ainda me sinto estranha quando estamos sozinhos, talvez por ele não ser nada romântico e eu ainda ter a maturidade de uma adolescente cheia de sonhos da Disney.
— Vocês estão indo para o sétimo ano de casamento… Nem imagino como seja para você — comentou , se lembrando do dia em que a irmã foi pega fugindo com Pietro. — É mais fácil quando se tem sentimentos.
— Eu aprendi a respeitá-lo e admirá-lo como pai da Jullie… — Diana parou por um momento e olhou para frente. — Preciso desligar agora, Alfredo chegou para o almoço.
— Tudo bem, depois conversamos mais. — sorriu de leve e encerrou a chamada.
Se sua vida estava confusa e incerta, a de sua irmã conseguia ser bem pior. Guardando o celular na bolsa, ela recolheu seus materiais e os guardou no escaninho que havia alugado no ateliê, então seguiu para a entrada da universidade. a aguardava prontamente para seguirem para seu apartamento na cidade. Prezando privacidade, Tommaso decidiu que seria melhor um lugar apenas seu para que pudesse ter tranquilidade para seus estudos, além da constante presença de seu segurança.
— Não precisa ficar parado aí o dia todo, pode me esperar no estacionamento — disse ela, após entrarem, ao jogar sua bolsa em cima do sofá e seguir até as escadas.
Seu apartamento era uma cobertura de dois andares, na região central da cidade, bem próximo à galeria Vittorio Emanuele II.
— Quantas vezes terei que dizer que não sairei de perto da senhorita?! — retrucou ele, permanecendo onde estava.
— Acho que mais algumas. — Seu tom foi sério, porém arrancou uma discreta risada dele.
adentrou seu quarto e seguiu para o banheiro. Antes da viagem para Florença para jantar com seus sogros, ela precisava de um banho de sais para colocar seu corpo no lugar. E foram longos minutos de olhos fechados, apenas relaxando, até que recebeu uma mensagem inesperada de seu então noivo.
— ?! — sussurrou ela, ao ver o endereço que ele havia enviado para lhe encontrar. — O que houve dessa vez? Será algo com o ?
Ela se levantou apressadamente da banheira e, se enrolando na toalha, seguiu para o closet. Uma rápida olhada nas roupas penduradas, acabou por vestir um macacão pantalona alfaiataria azul marinho que tinha comprado da coleção passada da Gucci. Sua bolsa a aguardava no sofá, assim como o segurança que estranhou a mudança de roteiro quando recebeu o endereço que eles iriam. O destino era uma filial do luxuoso Hotel Pivani, um dos mais antigos de família tradicional da máfia da Sicília, que havia sido construído na década de 20. Em seu estilo arquitetônico clássico, com grandes arcos e colunas monumentais, se destacava por sua proximidade com a colina e ser pouco distante da cidade de Milão, com acesso pela rodovia principal.
— Magnus?! — disse ela, ao se aproximar dele.
Havia sido conduzida pela recepcionista até a área privativa premium, na qual o homem a aguardava. Ele estava de costas, observando a pequena fonte do jardim que compunha aquele espaço.
— Deixe-nos à sós — ordenou ele, num tom sério e firme, estendendo a frase à , que havia entrado juntamente a elas.
Logo a recepcionista assentiu, estendeu a mão para o segurança e o conduziu até o saguão da entrada. sentiu seu coração apertar um pouco, com uma sensação estranha lhe passando pelo corpo, a fazendo temer aquele encontro.
— Por que estamos aqui? — indagou ela, permanecendo parada onde estava.
— Precisamos ter a nossa conversa como noivos, sem interrupções e sem participações externas — explicou ele, ainda de costas.
sabia que deveria seguir até o final em seu propósito para aquela conversa, mas se sentia frustrado pela situação, pois estava diante de uma pessoa especial para ele.
— E o que deseja falar? — indagou ela.
— Nossa união foi um acordo entre nossas famílias, uma aliança firmada por nossos pais e avós, a união que eles sonharam por anos. Nunca fomos desconhecidos um para o outro, somos amigos desde criança e nos conhecemos, o que faz tudo ser ainda mais intenso e profundo para nós dois… — iniciou ele, tentando encontrar as melhores palavras para formular seu discurso.
— Pare de rodeios, esse não é o que conheço. — Interrompeu ela, já ficando agoniada com aquela dissertação.
Um breve minuto de silêncio, então ele se virou para olhá-la nos olhos.
— A partir de hoje, não estaremos mais noivos — disse ele, direto e preciso.
sentiu aquelas palavras como uma adaga em seu coração, a deixando estática primeiramente.
— É por causa dela?! — indagou Tommaso, se referindo à filha da empregada.
— Eu não quero magoá-la — continuou ele, tentando fugir da resposta.
sempre encarou de frente suas responsabilidades e desafios, mas diante de alguém tão importante para ele, pela primeira vez não sabia como agir naquela situação.
Era em sua frente.
— , por favor, apenas diga a verdade — pediu ela, controlando sua raiva interna e frustração, pois sabia que esse assunto um dia chegaria para eles. — Você gosta da ?
A pergunta foi como um choque de realidade que o Magnus não queria admitir. Gostar de iria contra seus planos de infância, iria contra os acordos das famílias, iria contra os sentimentos de sua melhor amiga.
— Você é minha melhor amiga… — se pronunciou ele, após mais silêncio.
— E serei apenas isso, não é?! — perguntou ela, mantendo a firmeza no olhar, impedindo as lágrimas de surgirem. — Apenas amiga… Por que será que eu já imaginava isso…? A forma como reagiu quando ela desapareceu.
— Não farei com você o que meu pai faz com a minha mãe — argumentou ele o ponto chave de sua decisão. — Eu não sei o que de fato sinto por ela, mas sabe dos meus princípios, não posso lhe entregar meu coração estando com ela em meus pensamentos.
— Seu coração jamais seria meu, . — respirou fundo. — Me deixe sozinha.
— Falarei com seu irmão. Mesmo sem casamento, vou assegurar a aliança entre as famílias — garantiu ele, ao se aproximar dela.
— Me deixe sozinha — pediu ela, mais uma vez, dando um passo para trás, se afastando.
— … — Ele assentiu com o olhar, sabia que aconteceria. — Me perdoará um dia?
— Somos melhores amigos, não somos? — Ela o olhou, enquanto controlava suas emoções. Sentia sua garganta arder.
, mantendo o olhar mais sereno, se aproximou dela e deu-lhe um beijo no alto da cabeça. Aquela havia sido a decisão mais sensata sobre o assunto, desde que o anúncio do casamento saiu.
Após ouvir o barulho da porta se fechando, permitiu a primeira lágrima escorrer por seu rosto.
"I'm Miss American Dream since I was 17,
Don't matter if I step on the scene"
— Piece Of Me / Britney Spears
Toscana, outono de 2016
Dizem que não há nada melhor que um pote de sorvete de creme para curar um coração ferido. Passar horas fazendo maratonas de filmes românticos, enquanto sua mente processa inúmeras lembranças de momentos felizes antes do término.Claro que isso funciona apenas com mulheres normais.
Para as nascidas da máfia, algo mais forte e eficaz fazia-se necessário. E na concepção de , mesmo tentando proteger seu coração por anos dosando seus sentimentos e não se entregando totalmente, ainda doía na mesma proporção de como se estivesse mergulhado nas ondas da paixão. Foram longos minutos parada no centro do espaço premium, olhando a fonte em sua frente, processando sua nova realidade, permitindo as lágrimas escorrerem por seu rosto.
E, honestamente, a frase que mais lhe sobrevinha era:
“Estando com ela em meus pensamentos”.
Finalmente a jovem havia descoberto o que se passava na mente do Magnus após anos de amizade, entretanto, não era exatamente o que esperava. Involuntariamente, seu corpo começou a se mover para fora da sala, seguindo em direção à entrada do saguão. Sua atenção estava distante das pessoas que passavam por ela, tanto que nem percebeu a aproximação de . Sua mente, ainda confusa e perplexa pela situação, apenas consentiu que seu corpo continuasse a caminhar até o bar do hotel.
— Quero aquela garrafa — pediu ela, ao barman que lhe atendeu.
Prontamente, o homem pegou a garrafa de Martini e colocou em sua frente, acompanhada de um copo. Assim que ela se moveu para pegar e abrir, o fez primeiro.
— O que está fazendo? — perguntou ele, não entendendo o seu estado.
Para o segurança, estava agindo de forma imprudente e automática, como se estivesse fora de órbita.
— Não se intrometa. — Ela tocou na garrafa, a segurando com segurança, lançando um olhar frio e ameaçador para ele.
O homem assustou com seu gesto, pois nunca a havia visto daquela forma, contudo, mesmo contra sua vontade, retirou a mão da garrafa e assentiu. Permanecendo em silêncio, ele apenas a observou despejando o líquido no copo e tomando em uma única golada. Quanto mais ela repetia os gestos, como se tivesse em um looping, mais as lágrimas escorriam em seu rosto, a fazendo sentir ainda mais dor juntamente às suas memórias felizes.
— Eu não sei o que está acontecendo, mas se continuar assim, resultará em um coma alcoólico — comentou , ao segurar novamente na garrafa, que se encontrava bem abaixo da metade.
— Já disse para não se intrometer. — Ela o olhou novamente, porém, desta vez, sua voz soou num tom visível de embriaguez.
O segurança manteve sua seriedade, observando os olhos inchados e avermelhados da jovem pelas lágrimas. Seu silêncio seguinte a fez entender que ele não lhe deixaria tomar mais nenhum gole de Martini.
— Fique com sua garrafa, eu não preciso dela. — voltou-se para o barman e apontou para outra garrafa, de algo um pouco mais forte. — Quero aquela, por favor.
— Se fizer isso, vai desejar não existir — disse Vincente ao homem, permanecendo com seu olhar fixo em .
O barman, engolindo seco, permaneceu imóvel.
— Vamos para casa — disse , ao afastar a garrafa dela com precisão e segurá-la pelo pulso. — Não vou permitir que se machuque.
— Esqueça a sua promessa, me deixe em paz. — Ela se debateu para se afastar dele, se soltando e, no impulso da raiva, batendo em seu tórax com alguns socos levemente fracos pela fraqueza devido ao álcool. — Está demitido.
— Elizabeth Tommaso. — Ele segurou mais firme em seus pulsos, a fazendo parar. — Já disse, não deixarei que se machuque.
A firmeza em sua voz fez com que a jovem sentisse um breve arrepio no corpo. Mesmo não estando mais sóbria, ela conseguia sentir a entonação e intensidade que emanava dele. Em instantes, voltou a chorar, desabando em seus braços. , por sua vez, a amparou no susto, a envolvendo de leve com um abraço reconfortante que se manteve por longos minutos, até que ela desmaiou.
— O senhor quer ajuda? — perguntou o barman, com o olhar em choque pela cena que presenciava.
— Não. — a pegou no colo e se moveu para sair do hotel.
Colocando-a com destreza no carro, deu a partida, seguindo de volta ao centro de Milão. Ao chegarem ao estacionamento da cobertura, novamente o segurança pegou-a ainda desacordada e seguiu de elevador até o andar desejado. Por mais que soubesse de todos os passos da garota, havia assuntos restritos dos quais não conseguia participar, e a conversa com Magnus havia sido um. O que lhe fazia pensar que o estado de fora resultado de alguma notícia perturbadora referente a ambos.
— Nem mesmo a morte de seu pai lhe causou tantas lágrimas… — comentou ele, ao ajeitar o corpo dela sobre a cama, a cobrindo em seguida com uma manta. — O que foi que conversaram?
Ele suspirou fraco e se retirou do quarto, deixando a porta entreaberta. Descendo as escadas, caminhou até a cozinha. Em sua mente, algumas receitas se passavam, pois já tinha a ideia de forçar a jovem a comer algo assim que acordasse. Mesmo que fosse apenas pelo trabalho, após mais de um ano de convivência diária, havia se habituado a preocupar-se com a Tommaso.
— O que fazer??? — sussurrou ele, ao retirar o celular do bolso e vasculhar no Google maneiras de se curar a ressaca. — Café…
Ele sabia que não gostava de tomar café puro, e ela não estaria apenas de ressaca ao acordar, seu coração também estava ferido e precisava de tratamento. Lembrou-se de vários conselhos sobre mulheres de sua mãe quando era adolescente.
— Tiramisù é a pedida certa… — concluiu ele prontamente ao abrir o link da receita. — Temos café e chocolate, além de ser seu doce favorito.
E nada como chocolate para um coração triste, com promessas de liberar a endorfina e acalmar os ânimos. Assim, separou os ingredientes e iniciou o preparo da sobremesa, com máxima atenção e um toque de descontração para que ficasse bem leve o resultado final. Após minutos de silêncio total, seu celular tocou, o forçando a atender, por ser importante.
— Não deveria me ligar a esta hora do dia — disse ele, num tom sério e preocupado.
— Precisamos nos encontrar, há semanas que não envia seu relatório. — Uma voz feminina soou do outro lado da linha. — Com Tommaso sendo carregada em seus braços em plena luz do dia, não me diga que não há novidades.
— Se está me vigiando, não precisa que eu lhe reporte — retrucou ele, demonstrando irritação pelo contato da mulher.
— Descubra o assunto da conversa do casal de Toscana — ordenou ela, em seu tom firme. — E reporte até o final da semana.
— Mais alguma ordem, senhorita? — perguntou ele, segurando os nervos.
— Se for para ela se afundar em seu drama, apenas observe e consinta, será um Tommaso a menos para nos preocupar. — O tom de ordem continuou. — E um apoio a menos a Magnus.
engoliu seco a ordem, que certamente ele não acataria. Apesar de ser uma Tommaso, já o havia mostrado que não tinha nenhuma semelhança de frieza e maldade do pai, menos ainda o caráter duvidoso como o irmão. Um suspiro cansado veio dele, que direcionou sua atenção para a geladeira, que ainda estava aberta, após ele encaixar a travessa de vidro em uma das prateleiras. O segurança permaneceu ali, encostado à bancada, após limpar as vasilhas que sujou e organizar a cozinha. Com o olhar distante e os pensamentos em como seguiria com sua missão extra sem quebrar a promessa feita ao falecido Tommaso.
Horas depois…
— Hum… — O som de murmúrio soou de , após finalmente seu corpo despertar do desmaio.Uma sensação de peso tomou conta de sua cabeça, a fazendo sentir dolorida. Aquilo tinha nome: ressaca. A última vez que havia exagerado nas doses de Martini e Tequila, foi em sua despedida do colégio de Londres. Uma noitada entre amigas regada ao jogo de verdade e consequência, com muitos desafios a pagar. Abrindo os olhos, percebeu estar em seu quarto, o que lhe intrigou sobre qual fora a forma em que chegou ali.
— O que foi que eu fiz???? — sussurrou para si, ao erguer seu corpo, tentando lembrar seus últimos passos, até que a frase de término de lhe invadiu a mente.
A dor que sentiu no momento retornou de imediato, fazendo seus olhos lacrimejarem.
— Eu me recuso a chorar novamente por causa desse bastardo — disse, em alto e bom tom, para si mesma, respirando fundo.
Levantando da cama, sentiu uma breve tontura, que passou assim que firmou os pés. A passos lentos, saiu do quarto e seguiu para o andar debaixo, encontrando seu segurança na área da cozinha, as mãos nos bolsos da calça, encostado na bancada. estava em um misto de confusão e vergonha, pois alguns flashes vieram à sua mente, como a cena dela batendo nele.
Quem deveria ter levado os socos era o . — Pensou ela.
— O que faz aqui?! — indagou ela, seguindo em direção à cozinha. — Seus serviços não se estendem ao meu apartamento.
Ele permaneceu em silêncio, apenas observando-a direcionar o corpo para a geladeira.
— Não ouviu o que eu disse? — Ela colocou a mão na porta da geladeira e o olhou.
Suas vistas ainda estavam doloridas pelas muitas lágrimas. Seu rosto inchado e os cabelos desgrenhados o fizeram segurar o riso.
— Não vou deixá-la sozinha — respondeu ele, com precisão. — E não haverá conversa sobre isso.
Ela bufou de leve, abrindo a porta e se deparando com a sobremesa.
— O que é isso?! — indagou ela, parcialmente estática.
— O que está vendo, mas precisa esperar mais alguns minutos para comer — disse ele, num tom descontraído.
— Você que fez?! — Ela fechou a geladeira e o olhou admirada.
— Não sou bom apenas em ser segurança. — Ele sorriu de canto, com um olhar presunçoso.
Aquela havia sido a primeira vez que o via sorrir, mesmo que discretamente, o que a deixou boquiaberta internamente.
— Não vou te dar a placa de funcionário do ano — retrucou ela, ao se afastar da geladeira. — E não acho que uma simples sobremesa vá me ajudar.
— É mais saudável e menos perigoso que uma garrafa de Martini — assegurou ele.
Ela deu de ombros, seguindo para a sala, então parou e o olhou novamente.
— Por que fez isso…? E não me diga que foi por uma simples promessa — perguntou ela, de forma séria.
— Não importa o motivo, vou protegê-la até de si mesma se for necessário — respondeu ele, em sua forma enigmática de sempre, o que causou um breve e inesperado arrepio no corpo da jovem, ocasionando em uma acelerada batida no coração.
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Se café e chocolate curam a ressaca de um coração partido…
O que fazer para aplacar a raiva que um chefe da máfia sentia de si mesmo?
Uma das coisas que jamais imaginou ver fora seu irmão perdendo o controle sobre si. E lá estava o caçula Magnus, adentrando o que havia sobrado da tradicional residência da família. Em um surto de destruição, após expulsar todos os empregados da propriedade, o furacão iniciou seu ataque a cada metro quadrado que via pela frente, desde os luxuosos carros na garagem até os vidros dos espelhos nos banheiros.
Não houve uma mobília que tivesse saído inteira.
— Reza a lenda que exercícios físicos são bons para acalmar as pessoas, mas andou exagerando, irmão — brincou , ao parar em frente a ele.
, que estava sentado ao chão do escritório, um lugar que por muito tempo havia sido o local de brigas e discussões de seus pais, com as mãos ensanguentadas apoiadas nos joelhos, ergueu seu olhar para ele, demonstrando um misto de desolação e impotência visivelmente detectada pelo caçula.
— Vai embora — pediu , num tom fraco e baixo.
— Já entendi que não está bem, mas trate de melhorar — disse o caçula, com o olhar preocupado. — Me assusta te ver assim.
— Já disse para ir embora. — se levantou do chão e, pegando a garrafa pela metade ao seu lado, deu um gole, enquanto seguia para a sala.
— Eu não vou embora, sou seu irmão. — o parou no caminho, voltando o olhar para a garrafa, estranhando as atitudes do irmão. — Bourbon?! Somos italianos, não tinha algo melhor?
tentou segurar o riso, porém não obteve sucesso.
— Me deixe em paz. — Ele se soltou do irmão e continuou seguindo até chegar à sala.
— O que aconteceu para te deixar assim? — indagou , ao segui-lo. — Nem a empregadinha sumindo do mapa te deixou nesse estado.
permaneceu em silêncio por alguns instantes, se sentando no sofá.
— Eu rompi o noivado — finalmente respondeu ele, ao fechar seus olhos, sentindo sua cabeça doer com toda a situação.
— E como está a ? — indagou , ao perceber a seriedade do assunto.
Por mais que soubesse da preferência da jovem, ele sempre a teve como uma boa amiga que sempre ajudava nas horas difíceis.
— Se eu estou assim… — Ele suspirou fraco, o fazendo refletir em sua condição atual. — Como você acha que ela está?!
O silêncio vindo do caçula o perturbou.
— Vai me odiar também? — indagou .
— não vai te odiar, muito menos eu — assegurou , certo de suas palavras. — Se não tivesse sido honesto com ela, aí sim, poderia pensar dessa forma.
— Eu me desprezo por ter feito isso com ela. — manteve-se com os olhos fechados, tentando controlar seus sentimentos. — é minha melhor amiga, nunca quis magoá-la.
— Por que magoaria uma pessoa sendo sincero com ela? — indagou . O caçula cruzou os braços ao se encostar na parede, olhando o irmão imóvel. — Uma verdade dolorosa vale mais que uma vida de mentiras e aparências.
riu de leve, então abriu os olhos e o olhou.
— Quem é você e o que fez com o meu irmão?! — Seu tom soou descontraído, arrancando uma risada de .
— Ir ao psicólogo tem suas qualidades — brincou o caçula. — Agradeça à doutora Segre por isso.
— Pelo que sei, demitiu ela — comentou o primogênito.
— Não vamos focar em minha vida — disse ele, desviando o assunto. — O que fará agora? Ainda não tivemos nenhum sinal da , isso se ela ainda estiver…
— Nem ouse insinuar isso. — O olhar do primogênito ficou mais sério e inexpressivo.
não se permitia pensar em tal situação.
— Eu não sei o que farei quanto a isso…, mas sei que não conseguiria dar a , a vida em matrimônio que ela merece — continuou , certo de sua decisão. — E jamais a faria passar pelo que nossa mãe passa até hoje.
entendeu que as palavras do irmão se referiam mais ao sentimento que tinha de lealdade e amizade pela jovem Tommaso.
— Ainda não consegue admitir que gosta da filha da empregada? — indagou o caçula.
— Eu não sei o que sinto, mas sei que não é bom… Machuca. — Em segundos, a lembrança do dia em que foi salvo por tomou sua mente, sendo desviado para a noite em que a beijou pela primeira vez.
Ambas memórias resultaram num misto de sentimentos, que levou os olhos de a lacrimejarem.
— Lamento dizer, irmão, que, em nosso caso, tais sentimentos podem se transformar em uma intensa onda de amor — informou , sendo empático com ele quanto à sua condição. — E isso é claramente um vício perigoso.
Agora eu não posso voltar atrás
Isto é claramente um vício perigoso.
— Overdose / EXO
Milão, inverno de 2020
Para os comerciantes dedicados, nada como o clima de natal para aquecer a economia e impulsionar as vendas. Entretanto, com o passar das festividades, a primeira semana do ano sempre carregava um gostinho de nostalgia e ansiedade pela próxima data comemorativa. Em meio a este novo universo sazonal em que pesquisa de público, marketing e planejamento comercial se faz necessário, a recém-formada estava tentando se adaptar ao mundo dos negócios. Se preparando para lançar sua marca de mobiliário regada a um design italiano contemporâneo, atemporal e clean.Após anos de estudo, muitos esboços e ideias de como seguiria sua carreira profissional, ela já havia encantado algumas pessoas da elite com seus projetos acadêmicos. Dois deles haviam lhe rendido prêmios em concursos de jovens talentos e exposições da categoria iniciantes da última edição da feira de Milão, voltando a atenção de futuros clientes em potencial, como também da mídia nacional, para a nova promessa no ramo de móveis. Com isso, para aproveitar o momento, Tommaso iniciou sua estratégia de lançamento, criando um instagram totalmente voltado para sua marca de mobiliário, em que diariamente gravava vídeos de seu dia a dia no ateliê que montou na cobertura de seu apartamento.
— E, com isso, encerramos mais um dia de trabalho — disse ela para a câmera do celular em sua mão, enquanto encerrava a gravação.
Assim que finalizou, fez algumas edições rápidas e logo postou no reels. Mesmo não gostando de tanta exposição, aquele que parecia mais um passatempo que um trabalho havia sido sua válvula de escape para não pensar nos problemas de família e menos ainda no casamento que não aconteceu. Certo que a comoção diante do anúncio de sobre o rompimento causou muitas perturbações à garota, principalmente de seu irmão Marco. Na teoria, sua palavra era sempre de apoio incondicional, porém, na prática, o novo chefe Tommaso nunca perdia a oportunidade de tentar usá-la como moeda de troca para algumas de suas transações.
Uma vez que sua vida profissional estivesse em foco, sua mente teria muito do que se ocupar. Contudo, naquela fria tarde de janeiro, o novo inesperado compromisso de seria no restaurante Chanti. Um jantar casual com Noah Evans, um agente duplo americano, conhecido por ser facilmente comprado, e, neste caso, seu interesse pela bela Tommaso renderia ao irmão algumas informações preciosas sobre o agente Louis Durand.
— Vai mesmo ir a este jantar? — indagou , ao se colocar na porta de seu quarto, a olhando com atenção.
— Desde quando os encontros às cegas que meu irmão me promove são da sua conta? — Ela, que estava em frente ao espelho, olhou para seu reflexo.
— Todos terminam da mesma forma — respondeu ele, do seu habitual jeito enigmático. — Comigo socando a cara de alguém.
tentou segurar o riso, sem sucesso. Era uma realidade que seus encontros arranjados por seu irmão jamais seriam considerados encontros saudáveis, e a desculpa de que queria lhe arranjar um marido já não se sustentava mais.
— Devo agradecer por não deixar o posto de funcionário do ano? — brincou ela, ao se virar para ele.
— Não precisa ir se não quiser — continuou ele, mantendo sua opinião a respeito do assunto.
— O que foi, Salvatore?! — Ela deu o primeiro passo, seguindo em sua direção. — Está com ciúmes?
— Só quero privá-la de mais uma armadilha de seu irmão — respondeu ele, mantendo a frieza no olhar.
— Não acho que seja apenas isso. — Ela abriu um sorriso confiante. — Além do mais, sou uma Tommaso, jamais fujo de uma batalha.
— Você já fugiu de uma — retrucou ele, se referindo ao Magnus.
— Aquela guerra nunca foi minha — explicou ela, sentindo seu coração um pouco mais conformado. — Eu vou ao jantar apenas para ver você socando a cara do agente.
Ela se afastou dele, deu alguns passos até a cama para pegar sua bolsa, ajeitando o casaco no corpo, e seguiu com o segurança até o estacionamento. Pontualidade nunca foi o forte da jovem, pois fazia seu próprio horário, chegando exatamente quinze minutos após o combinado. O agente já a aguardava sentado em uma das mesas da área vip, trajando uma roupa mais casual do que de costume dos cavalheiros que frequentavam o lugar.
— Senhorita Tommaso — disse ele, ao se levantar para cumprimentá-la.
— Senhor Evans. — Ela retribuiu com um sorriso, o observando arredar a cadeira para que sentasse.
A atenção do agente voltou-se para por um momento, lhe causando estranheza pela presença dele. Entretanto, sendo um bom camaleão, manteve a naturalidade de sempre, com um sorriso carismático no canto do rosto.
— Me sinto honrado por ter aceitado o convite — comentou ele, ao se ajeitar na cadeira que estava de frente para ela.
— Meu irmão sabe ser convincente. — Mesmo com a sutileza no olhar do homem, percebeu-o encarando seu funcionário. — Espero que não se sinta intimidado por meu segurança.
— Já vivi muitas coisas para me sentir intimidado por um mero segurança — brincou ele, descontraindo o ambiente. — Vamos falar de nós.
— Nós?! — Ela manteve a serenidade no olhar, imaginando o que o irmão teria prometido ao homem.
— Vosso irmão me disse que está à procura de um matrimônio — relatou ele.
— Estou?! — Ela riu internamente.
— Sei que talvez possa pensar que nenhum homem estará à altura de um Magnus, mas… — Ele iniciou seus argumentos.
— Acha que pode me cortejar? — indagou ela, o interrompendo. — O que meu irmão lhe prometeu?
— Nada — respondeu o homem, se fazendo o ofendido.
— E o que prometeu a ele? — reforçou ela suas indagações, chegando ao ponto central do acordo. — Sei que é um agente duplo, ainda não entendo o que faz vivo e como consegue esse feito, mas se acha que serei a moeda de troca do Marco…
— , não é isso que está pensando. — Noah segurou em sua mão para que ela ponderasse suas desconfianças.
— Não me toque — disse ela, num tom de ordenança, ao se soltar dele. — Eu vim apenas para lhe dizer que, assim como os outros, você não vai ter de mim o que quer que Marco tenha prometido.
Ela levantou-se da cadeira para se retirar, porém, antes que pudesse se afastar, Noah segurou em seu braço.
— O que acha que seu irmão me prometeu? — perguntou ele, apertando o pulso dela.
— Solte-a. — A voz de surgiu entre eles, com o segurança também segurando o braço do homem.
— A conversa ainda não chegou à plebe — disse Noah, não se importando.
sabia muito bem que o agente não perdia a oportunidade de se mostrar superior a ele quando a tinha, então, no impulso da raiva, socou a cara do homem, o derrubando ao chão.
— Ela disse para não a tocar — reforçou o segurança, com firmeza em sua voz.
— Diga ao meu irmão que essa é a última vez que ele faz promessas em meu nome — anunciou , com seriedade e uma pitada de deboche. — Eu sou um brinquedo caro, e vocês são uma criança pobre.
Em risos de sarcasmo, ela se retirou, seguindo para a saída. Antes de se retirar, olhou de forma inexpressiva para ele.
— Uma palavra sobre mim a qualquer pessoa e vai desejar não existir. — Soou como uma sutil ameaça, que gerou calafrios no homem ainda caído ao chão.
— Acha que sou ganancioso o suficiente para me colocar em risco? — retrucou Noah, engolindo seco. — Sei muito bem quem você é, Salvatore…, mas ela vai gostar de saber?
— Isso é um problema meu. — deu as costas para ele e se retirou.
Chegando ao carro, deu a partida e direcionou para um caminho aleatório, diferente do habitual. No fundo, se sentia aliviado por aparentemente as ondas de encontro finalizarem. Sem casamento, sua presença na vida de se faria necessário, e este era seu objetivo.
— Está silencioso — comentou ela, do banco de trás.
— Estou concentrado — explicou ele.
— Não gostou do que eu disse? — indagou novamente.
— Não a vejo como um objeto. — Aquela expressão o havia incomodado.
— Foi só uma brincadeira, apesar de saber que tudo na máfia se torna uma moeda de troca — disse ela com naturalidade, já estava acostumada com o mundo em que nasceu.
— Vai mesmo ir contra as imposições de seu irmão? — perguntou, ao estacionar o carro em uma rua pouco movimentada.
— Apesar de ser divertido te ver socando-os, meu irmão precisa de limites — respondeu ela, voltando seu olhar para a janela. — Onde estamos?
— Vai descobrir. — Ele sorriu de canto e desceu do carro.
Tommaso desceu também, curiosa para saber onde estavam. Seguindo em silêncio, foi observando os detalhes da rua que pertencia à parte mais modesta e simples da cidade. Não chegava à periferia, entretanto, estava longe da parte mais luxuosa de Milão, e, juntamente ao frio do inverno, se encontrava pouco movimentada.
— Você me trouxe a uma cafeteria do outro lado da cidade? — perguntou ela, ao parar diante da fachada e ler o nome.
— Não é qualquer cafeteria. — Ele riu discretamente e, pegando na maçaneta da porta de entrada, a abriu. — Pare de julgar o livro pela capa.
— Não estou julgando. — Ela fez uma careta e o acompanhou ao entrar.
De fato, o lugar não era apenas uma cafeteria, e sim um pequeno espaço o qual também continha algumas peças de móveis clássicos em exposição.
— Não se compara ao Museo del Design Italiano no térreo do Triennale di Milano, mas o dono do lugar é um exímio colecionador — contou , ao perceber que a deixou sem reação. — Em vez de apenas guardar essas relíquias, ele montou a cafeteria para as pessoas terem a experiência de sentar em uma cadeira do século passado.
— Incrível. Posso dizer a primeiro momento que metade dessas cadeiras possuem a assinatura da Bauhaus. — Ela voltou seu olhar para ele. — Como encontrou esse lugar?
— Meus segredos têm segredos — brincou ele, com um sorriso de canto. — Você disse que precisava de um pouco de inspiração para sua primeira coleção oficial.
— Eu não vou aumentar seu salário — brincou ela, mantendo o olhar nele.
— Quem disse que estou pedindo?! — Ele a olhou também.
A cada ano na companhia do segurança, conseguia se sentir ainda mais confortável e segura. Além de se surpreender com frequência devido aos lugares misteriosos que ele a levava. As horas se passaram com ambos degustando dos cafés especiais da cafeteria de nome Casella Caffè. Infelizmente, o dono não estava presente para que a jovem pudesse conhecer sua história.
— Ficar encarando a folha não vai funcionar — comentou , assim que adentrou o ateliê.
Se contava duas horas que ela estava confinada na cobertura, tentando esboçar algum croqui. Enquanto estava na cafeteria, sua mente fervilhava de ideias, que foram se perdendo ao longo do caminho de retorno, o que lhe bateu a frustração.
— O que você sabe sobre bloqueio criativo?! — indagou ela, ao se voltar para ele.
— Sei que se forçar demais, só vai piorar as coisas — respondeu ele, com serenidade no olhar.
— Tenho até março para produzir algo — explicou ela, dando um suspiro fraco. — Se quero lançar minha marca na feira de Milão, preciso desenhar algo que valha a pena para iniciar o protótipo.
— Hum… — Ele deu alguns passos até ela, direcionando seu olhar para a folha branca em cima da prancheta. — O que lhe motiva a desenhar?
— Minhas memórias com a minha mãe, filmes clássicos de Hollywood, romances da Jane Austen — respondeu ela, refletindo a pergunta. — Geralmente me concentro mais no cenário e no mobiliário.
Um momento de silêncio entre ambos, com ele a encarando, analisando suas expressões.
— Quando foi que nos tornamos tão próximos a ponto de você me fazer essa pergunta? — indagou ela, ao constatar a realidade de sua indagação.
— Reza a lenda que cinco anos são bodas de ferro, ou seria madeira?! — Seu comentário soou descontraído, a fazendo rir.
— Se estivéssemos mesmo casados, eu já teria pedido o divórcio — afirmou ela, sem receio de magoá-lo.
— Se estivéssemos casados… — Ele parou e pensou com mais clareza no que ia dizer. — Apenas queria ajudar, não posso perder meu posto de funcionário do ano.
Ele deu um passo para se afastar.
— Por que não termina o que ia dizer? — Ela segurou em seu braço.
— Não vale a pena. — Ele se soltou dela com facilidade e saiu do ateliê.
soltou um suspiro cansado.
Ela já havia notado os muitos olhares profundos do homem para ela.
Em cinco anos de convivência, ela também já havia se habituado com os olhares e mudanças no humor dele, apesar da vida de ser uma perfeita incógnita. Não sabia quem eram seus pais, apenas que havia nascido no norte da Espanha e criado em diversos lares adotivos na infância. No entanto, se havia alguém que confiasse mais do que a própria família, era ele, a pessoa que ficou ao seu lado no momento em que se sentiu mais indefesa: o rompimento do noivado. Mesmo com o apoio de , o Magnus caçula também tinha seus dramas familiares.
— O que não vale a pena?! — deixou o lápis em sua mão em cima da mesa e saiu atrás dele.
Sentindo-se cansada de tantas respostas evasivas, diante da forma que o homem a tratava, com tanto zelo e cuidado, ela se via irritada por seu emocional carente imaginar coisas que poderiam machucá-la outra vez. No passado, mesmo sendo cautelosa a respeito dos seus sentimentos por e desconfiada do que poderia estar acontecendo, terminou em lágrimas por várias semanas.
— Por que você evita tanto me responder com clareza? — perguntou ela, em um visível tom irritado.
— O que quer que eu responda?! — Ele, que estava encostado na porta de passagem para varanda, a olhou tranquilamente.
— Não sei… — Ela bufou de leve. — A forma como se preocupa comigo, como cuida de mim, como me olha… Não acha que eu percebo isso? E tem me deixado louca.
— Estou apenas fazendo o meu trabalho — disse ele, friamente.
— Mentira — disse ela, impulsionando seu corpo para se aproximar dele.
Em um piscar de olhos de sua aproximação, , no estímulo do desespero interno, o beijou. Pego de surpresa, inicialmente deixou-se levar pelo momento e doçura dos lábios da jovem, envolvendo seus braços em sua cintura de forma despreocupada. Talvez, no fundo, ele também desejasse aquele momento, que levou anos para se realizar.
Uma intensidade fora do comum, que nem mesmo com Magnus ela havia sentido.
— Me diga que não sentiu nada… — sussurrou ela, puxando o ar para retomar o fôlego.
— Eu realmente não senti nada. — Deslizando suas mãos pelo corpo dela, até as retirar, Salvatore precisou reunir muita força para dizer aquelas palavras.
Internamente, seu desejo era prolongar aquele beijo e elevar o nível das coisas, contudo, indiferente da promessa que havia feito ao pai da garota, ele tinha uma segunda missão a cumprir.
— Bastardo! — o empurrou com raiva e se afastou, tomando impulso para sair correndo do apartamento.
O mesmo sentimento de rejeição que havia sentido há quatro anos com o término do noivado retornou ainda mais doloroso e profundo. Desta vez, não havia nenhuma promessa de ambas as partes, nenhum acordo arranjado entre famílias, era apenas seu desejo de ser amada por alguém que se propunha cuidar dela com tanto zelo. E isso a deixava ainda mais furiosa consigo mesma, sendo imprudente a ponto de atropelar seu lado racional para se permitir gostar do funcionário do ano.
E, sim, definitivamente ela estava apaixonada por ele.
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— Achei que já tinha superado… — A voz de soou ao lado, a despertando de seu devaneio momentâneo. — Depois de anos…
O caçula tocou na garrafa de Martini recém-aberta, faltava uma dose para chegar à metade.
— Por que acha que o mundo gira em torno dos Magnus? — perguntou ela, soltando uma risada fraca.
O tom de embriaguez já tinha lhe tomado conta.
— Qual o motivo então? Bloqueio criativo? — indagou ele, puxando uma banqueta para sentar ao seu lado. — Gosto de vinhos, mas Martini sempre foi meu favorito para afogar as mágoas, e não acho que álcool vá ajudar nesse caso.
despejou a dose no copo e tomou um gole.
— Ei! Isso é meu — reclamou ela, ao olhá-lo. — Pegue sua própria garrafa.
— Dos amigos é mais prazeroso — brincou ele, a observando. — Se queria não ser encontrada, deveria ter escolhido outro lugar.
Já se contava horas que havia se abrigado do frio em um bar da máfia chamado Vitrola, que curiosamente pertencia à família Riina, sendo um lugar aconchegante e muito conhecido entre seu grupo de amigos. Na alta madrugada, o estabelecimento já havia fechado ao público, entretanto, quem em sã consciência expulsaria uma Tommaso de seu bar?
— O que está fazendo aqui? — perguntou ela, não entendendo a presença dele em Milão.
— Tive alguns negócios pessoais para tratar na cidade e desejei ver minha melhor amiga — respondeu ele, despejando outro gole e tomando em seu lugar.
— Vai mesmo continuar tomando a bebida dos outros?! — indagou ela, não dando importância para sua resposta.
— Você não é qualquer pessoa. — Ele sorriu de canto. — O que a trouxe aqui?
— Nada que valha a pena falar — resmungou ela, tomando a garrafa dele e jogando o líquido no copo.
Antes que pudesse tomar, foi mais rápido e tomou o gole.
— Ei! — reclamou ela, o fazendo rir.
— Está na hora de ir para casa. — Assim que levantou-se da banqueta, a silhueta de apareceu no campo de visão da jovem.
— O que ele faz aqui?! — indagou ela, se irritando.
— Pelo que sei, ele esteve aqui desde o momento que entrou no Vitrola, na rua, te esperando sair. Foi ele quem me ligou — explicou ele, suspeitando o motivo. — Te vejo na minha festa de aniversário?
— Claro que sim — assentiu ela, fazendo bico.
Tommaso nunca foi de se comportar como uma garota mimada, seu senso de responsabilidade e maturidade causava admiração até mesmo da mais velha, Diana, contudo, diante do turbilhão de emoções pelo qual estava passando, conseguia notar que em sua mente lhe faltava um pouco mais de razão.
— Leve-a para casa com discrição — disse o Magnus, num tom de ordem.
— Eu sei fazer o meu trabalho — retrucou , se irritando com aquele olhar.
— É… Eu estou vendo. — riu baixo e continuou seus passos até a saída.
Uma onda de silêncio pairou pelo lugar com mantendo sua atenção na garrafa. Seu amigo havia bebido mais do que deveria, e a garrafa já estava quase no fim.
— Vou te levar para casa — disse , assim que o caçula Magnus se retirou do lugar.
— Eu não quero ir com você — disse ela, demonstrando sua chateação.
— O que você quer? — perguntou ele, reunindo sua paciência para lidar com a situação.
Precisava ter empatia pelos sentimentos dela.
— Você! — respondeu ela, direta e precisa.
Sem pensar nas consequências…
cedeu aos desejos de ambos e a beijou de forma surpreendente e intensa, a fazendo perceber que não ficaria apenas em um único beijo.
O restante da madrugada renderia.
Minha resposta é você
Eu já abri o meu coração para você há muito tempo
Você é tudo para mim, esse é o meu jeito de confirmar
Eu deveria ser cuidadoso e me amar mais,
desse jeito eu nunca irei me machucar.
— My Answer / EXO