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Revisada por: Calisto

Última Atualização: 19/07/2024
Allanna

As pinceladas na tela delineavam a figura de um corpo feminino iluminado pelo pôr do sol. Era a quinta pintura que descartava em apenas duas semanas. Eu sabia que estava sendo dura demais comigo mesma. O perfeccionismo, a insegurança e a cobrança sempre se tornavam meus maiores inimigos. E não importava se meus amigos e familiares dissessem que as pinturas estavam ótimas, eu persistia em achar que não, não estavam boas o suficiente.
No outono, até mesmo o sol em Paris era gélido. O frio tomava conta da cidade e, mesmo com as janelas fechadas, o ateliê se tornava frio e melancólico. No entanto, eu adorava dias assim, pois eram inspiradores. Por mais que odiasse admitir isso para mim mesma, gostava dos dias nublados e frios, com pouca saturação, como um sol fraco no final de uma tarde fria. Não, eu não era uma mulher melancólica. Longe disso. Quase todas as minhas obras possuíam algo romântico. O romance sempre esteve presente em mim e no meu trabalho. Mas, por mais que amasse consumir livros, filmes e histórias românticas, nunca me envolvi de forma profunda em um relacionamento amoroso. Nunca me apaixonei. Quando ainda achava o amor lindo e avassalador, busquei me apaixonar, mas todas às vezes me decepcionava com a atitude dos homens. Assim, ao decorrer da minha adolescência, a cada dia acreditava menos na possibilidade de me apaixonar e viver um romance. O amor nunca fora uma real preocupação. Namorar, casar, beijar, tudo isso não passava de uma "baboseira" da qual eu não precisava e nunca precisei.

ㅡ Há quanto tempo está nessa mesma tela? Sinceramente, parece ótima para mim.

ㅡ Esse é o problema, está ótimo para você, Cassie, não para mim. ㅡ Continuei com as pinceladas leves e pesadas sobre a tela.

ㅡ Amiga, você precisa confiar mais no seu potencial, você só não entregou essa tela por causa disso! Eles gostaram do seu trabalho e querem sua exposição na galeria.

ㅡ Eu sei, ok? Mas não consigo terminar essa maldita tela! Sinto que falta algo…

Cassie revirou os olhos e se levantou do pufe vermelho que ficava no cantinho do ateliê, cercado por telas inacabadas, algumas em branco, e outras finalizadas.

ㅡ Me surpreende que você, como artista, tenha essa coisa de sentir, sentir e sentir… Porém, você nunca sentiu nada por alguém real, você consegue inventar histórias românticas e tristes através da sua arte, mas você nunca viveu uma! Como você consegue?!

Qualquer boa feição que antes estivesse estampada no meu rosto, morreu no momento em que Cassie se atreveu a entrar nesse assunto entediante de ‘’Allanna, como você nunca teve relações românticas ou se apaixonou por alguém?’’.

ㅡ Sério que você quer entrar nesse assunto? Histórias de amor só são intensas nos livros, filmes e na arte em geral, a ficção e o irreal são o que tornam esse amor digno de aquecer o coração de uma mulher. A realidade não tem o mesmo efeito em mim.

ㅡ Alanna… Você diz isso porque ainda não encontrou quem faça o seu coração disparar.

Larguei o pincel no cavalete e soltei um riso descrente, me virei para ela e a encarei.

ㅡ Cala a boca, você parece até minha mãe falando desse jeito. Você sabe que tentei umas duas vezes, mas depois que conquisto, eu perco o interesse, é horrível e cruel, mas foi o que aconteceu.

Dei de ombros e voltei minha atenção para a tela. Cassie suspirou e entrelaçou os braços, resignada por perder a discussão. Detestava quando Cassie tentava me convencer a conhecer os belos homens franceses e até mesmo alguns turistas. Para ela, se relacionar era algo natural e simples: sair de casa, beijar homens desconhecidos e às vezes até mesmo transar com eles no primeiro encontro. Para a loira, esse tipo de vida era comum e corriqueiro. Mas não para mim. Beijar estranhos era extremamente desconfortável, e eu odiava ser vista como um mero objeto de desejo pelos homens, especialmente por aqueles que nem conhecia

Um pouco mais tarde, quando a escuridão alcançou todo o céu e o cansaço me abraçou como um velho amigo, com um suspiro e bocejo, fechei e tranquei a porta do apartamento após Cassie ir embora abraçada em seu namorado que era a cópia idêntica do personagem Linguini da animação Ratatouille. Agora meu doce lar estava quieto, mas isso não era incômodo algum, gostava de ficar no silêncio, mas também às vezes gostava de o quebrar colocando uma boa música para tocar.

ㅡ Primeiro, um banho quente, depois, preciso pensar em algo para cozinhar e… Ai!

Monet, meu gato preto, acabara de morder minha panturrilha, seguido por um miado que logo se tornaria incansável até que eu os alimentasse. Enquanto despejava uma pequena xícara de ração no potinho de Monet e Van Gogh, um pensamento tomou conta da minha mente. Relembrando algumas coisas que Cassie havia dito, comecei a ruminar certos pensamentos. Era óbvio que eu precisava sair mais. Como artista, eu... necessitava ver o mundo, pois isso sempre me inspirava e era exatamente o que eu não estava tendo: inspiração.

ㅡ Está decidido, amanhã a mamãe vai sair. Vou tomar café da manhã na minha cafeteria preferida, isso pode me ajudar a terminar a tela, não? ㅡ Ri de mim mesma por estar conversando com meus gatos sobre tal assunto. ㅡ BANHO, ALLANA!
Às vezes, tudo o que uma mulher cansada precisava era de um banho quente de mais de 20 minutos, deixando a água aquecer os músculos doloridos e levar pelo ralo uma parte do cansaço. Estava quase renovada após o banho e agora precisava pensar em algo para cozinhar enquanto meu cabelo secava. Olhei para o reflexo no espelho e dei de ombros, eu estava descabelada, o cabelo castanho-escuro úmido e a franjinha extremamente bagunçada me fazia parecer uma calopsita. Como estávamos no outono, precisei ligar o aquecedor, principalmente porque cabelo molhado e frio não combinavam.

O restante da noite foi tranquilo. Acabei optando por algo rápido como macarrão instantâneo com queijo, dois episódios de Sex and The City e uma soneca no sofá. E o mais importante, tentei não pensar na entrega das telas para a exposição. Mas quando acordei entre 00h58 com Monet arranhando a porta do quarto, voltei instantaneamente a pensar na tela inacabada e em todas as outras que eu havia descartado. Estava passando por uma mistura de bloqueio criativo e autocrítica fortíssimos, e nessa hora da noite, não havia nada que eu pudesse fazer além de me obrigar a voltar a dormir. Por fim, levantei em um pulo rápido e abri a porta para o adorável gatinho preto peludo e gordinho. Monet soltou um miado fraco e pulou na cama para se juntar a mim e Van Gogh.

Não sei ao certo quantas vezes acordei durante a noite, mas quando o despertador tocou às 7h00 da manhã, senti uma enorme vontade de chorar e jogar o celular para longe. No entanto, quebrar o celular não era uma opção, pois minhas economias não cobririam o valor de um novo. Sendo assim, apenas resmunguei alto e esfreguei o rosto no travesseiro, que àquela altura parecia mais confortável. Olhei novamente para o celular e por um momento pensei em desistir, mas me lembrei da promessa que fizera a mim mesma: acordar cedo e visitar minha cafeteria favorita. Sair de casa e ter um leve momento de ócio seria revigorante. Poderia aproveitar para observar as pessoas, objetos e qualquer outra coisa que me chamasse a atenção. Um momento de lazer e descontração logo pela manhã, pois durante o restante do dia eu ficaria "presa" no meu ateliê. Esfreguei os olhos com força e fui para o banho, reunindo todo o esforço que consegui para sair da cama e dar os cinco passos até o banheiro.


🎨
Allanna

— Um Whisky, por favor. — A voz rouca e grave ecoou pela cafeteria.
Franzi a testa e me questionei: "Quem pede bebida alcoólica em uma cafeteria?". Revirei os olhos enquanto degustava meu cappuccino com avelã. A noite anterior havia sido torturante, mas eu havia prometido a mim mesma que viria tomar café da manhã aqui e... Um estalar de língua vindo do homem que pedira álcool às oito da manhã me tirou dos meus pensamentos.


ㅡ Primeira vez que captura um homem bebendo whisky pela manhã? ㅡ Ele riu enquanto o atendente servia a ele um pequeno copo com Whisky Bastille.

Puxei o ar para meus pulmões. Merda! Será que reclamei alto assim? Bati o copo vazio na bancada de pedra que separava o balcão de atendimento do restante do espaço, onde havia diversas mesinhas na cor marrom escuro. O que eu faria agora? "Apenas responda logo e vá embora daí, Allanna!", pensei rapidamente, apertando os dedos na bolsa que estava sobre minhas coxas.


ㅡ Sim?! Quem pede por álcool numa cafeteria? V-Você já leu o cardápio?

Minha voz soou como a de uma garotinha patética com péssima dicção. Eu não costumava discutir com estranhos, em 99% das vezes fugia de situações assim. E me senti ainda mais ridícula quando ele se voltou completamente para mim. Pude ver o quão bem esculpido o seu rosto era, quase certeza de que a proporção áurea se encaixava de modo majestoso em sua face tão… Cretina e esplêndida!

ㅡ Não, não li e não preciso ler, o atendente sabe o meu pedido de sempre, meu bem.

Meu bem? Eu poderia ter me mantido quieta, calada como uma porta, mas já havia aberto a boca o suficiente para começar essa discussão. Já estava em uma manhã péssima, não havia dormido bem e a ansiedade me corroía.

ㅡ De sempre?! Nunca vi você nessa cafeteria!

O homem do copo de Whisky não desmanchava seu sorriso cretino enquanto me assistia atentamente, achando toda a situação divertida, em certo momento esqueceu até mesmo de seu copo de Whisky intocado.

ㅡ Falando assim, parece até a dona do estabelecimento.

De fato, havia sido uma péssima escolha ter saído de casa tão cedo. Eu deveria ter escolhido ficar mais tempo na cama e comido cereal com leite no café da manhã. Com certeza, isso me pouparia dessa situação. Contudo, agora só havia duas opções: continuar dando corda para esse deus grego com seu belo rosto desenhável ou ignorá-lo.

ㅡ Eu sou o dono do estabelecimento, por isso posso beber Whisky às oito da manhã ou qualquer outro horário que desejar, meu bem.

E assim, a tentativa de ignorar o cretino bonito evaporou como água fervente. Como ele podia ser o dono da minha cafeteria favorita? Bom, podia ser mentira, talvez ele ainda estivesse se divertindo com a situação. Mas ser o dono explicaria a garrafa de Whisky Bastille que o atendente serviu a ele. Merda.

ㅡ Realmente é uma grande lástima que você seja o dono desta linda cafeteria, agora vou precisar encontrar outra para chamar de favorita.

ㅡ Oh, assim fico ofendido! Na verdade, eu…

Me agarrei à minha bolsa e dei as costas para o cretino dos olhos delineados e cor de mel como os de um gato. Sabia que não aguentaria ficar mais um segundo perdendo tempo discutindo com um idiota sobre Whisky em uma cafeteria sem perder toda a minha reserva de paciência e autocontrole.



Continua...


Nota da autora: Sem nota.

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