Codificada por: Lua ☾
Finalizada em: 28/12/24— 08 de Dezembro de 2022
Nem sempre o Natal é a época mais feliz do ano. Às vezes, a proximidade dela só serve para lembrar o fracasso de um ano inteiro.
Foi exatamente o pensamento que tive quando cheguei na rodoviária do Tietê com duas malas — uma real, levando minhas roupas, e outra imaginária, guardando todas as minhas frustrações do ano. Depois de dar tudo errado mais uma vez, eu só queria fugir da minha realidade e terminar o ano numa cidade do interior, onde quase ninguém me conhece.
Quando meu ônibus encostou na plataforma, fui guardar a mala de rodinhas e voltei para a fila. Chegando minha vez, entreguei o documento, a passagem e a costumeira pergunta veio do motorista com um sorriso simpático nos lábios.
— Shuri? Como a irmã do Pantera Negra?
— Exatamente.
Um leve sorriso brotou nos meus lábios, como todas as vezes que associavam meu nome ao da personagem que o inspirou. Era bem melhor do que quando apenas faziam uma careta e ainda diziam ser estranho. Para mim, o filme Pantera Negra é um dos filmes de super heróis que deveria ser obrigatório passar nas escolas.
Mas bem diferente da princesa de Wakanda, eu não vestia um manto importante e nem era a pessoa mais inteligente. Eu mal conseguia lutar nas batalhas que eu mesma entrava. E, de acordo com os avaliadores da Sinfônica de São Paulo, eu não era autêntica também. Talvez se tivesse a genialidade da Shuri da Marvel, saberia o que aquilo queria dizer.
Respirei fundo e coloquei os fones de ouvido no último volume quando o motorista deu a partida e iniciamos a viagem. Cerca de duas horas para eu repensar em tudo que aconteceu ao longo dos últimos onze meses, até chegarmos ao meu destino, Rio Claro.
Acordei com a movimentação dentro do ônibus e só então me dei conta que tínhamos chegado. Olhei em volta, ainda um pouco desnorteada e sonolenta. Alonguei os braços acima da cabeça e prendi os cabelos que com certeza estavam uma completa bagunça. Fiz um coque abacaxi com os volumosos cachos escuros no topo da cabeça e me levantei quando um moço parou no corredor, me dando passagem para sair.
Peguei minha bagagem e parei para observar a pequena e pacata rodoviária da cidade. O chão de pedras não facilitava muito a tarefa de puxar a mala de rodinhas, mas não havia condições de eu levá-la suspensa pela alça. Apenas um casal sentava nas cadeiras azuis na área de espera, assistindo à televisão pequena e sem som. Chegava a ser cômico o contraste com a agitação e correria da rodoviária de São Paulo.
Já ia na direção da rampa, quando meu celular vibrou dentro do bolso da calça jeans. Era uma mensagem de Bruna, minha prima, que me hospedaria até o Natal.
Bruna (18h58): Prima, não vou poder ir te buscar na rodoviária.
Tive um imprevisto, te conto quando chegar aqui.
Vou te mandar o endereço e você pega um uber?
Shuri (19h12): Vish.
Tudo bem. Acabei de chegar.
Em seguida, ela mandou o endereço e eu joguei no aplicativo. A cara era a uns oito minutos dali. Esperei pelo motorista, que também estava bem perto, finalizando outra corrida. Franzi o cenho ao notar que ele se aproximava rapidamente. Nada de trânsito plenas sete horas da noite, numa quinta-feira? Impressionante.
Perguntei-me por um momento, do porquê nunca havia visitado Bruna, depois que ela se mudou há cinco anos. Ainda não conhecia nada da cidade, tudo que vi foi a entrada, simpática até, e a rodoviária sem movimento. Mas já me passava a impressão de ser uma boa cidade para criar filhos — não que eu achasse São Paulo ruim, só não dava para negar que ali era menos caótico.
Um carro parou alguns metros à frente de um táxi e eu confirmei ser meu motorista. O homem de meia idade saiu do carro para me ajudar com a mala e assim que abriu o porta-malas, notei um estojo preto e logo reconheci do que se tratava.
— Toca violino?
— Não, é da minha filha. Ela toca na Sinfônica daqui.
Ele abriu um sorriso cheio de orgulho e eu também ao assentir.
— Não sabia que aqui tinha uma orquestra — comentei ao entrarmos no carro.
— Duas. — Ele levantou o indicador e o dedo do meio. — Temos a Filarmônica também.
Não pude deixar de erguer as sobrancelhas, com uma surpresa genuína. Eu realmente não sabia nada sobre a cidade da minha prima.
Observei o caminho nos quatro quilômetros que percorremos por uma avenida principal com semáforos em excesso. Ao nos aproximarmos de um parque chamado Lago Azul, me lembrei de Bruna já ter mencionado ele. Era bonito e bem grande, achei exagero ela ter se referido a ele como Mini Ibirapuera, mas não dava para negar que parecia um lugar igualmente agradável para ir num final de tarde, caminhar em volta do lago, sentar no gramado para fazer um piquenique ou usar as quadras esportivas. O parquinho com uma grande variedade de brinquedos reforçava meu primeiro pensamento, sobre criar filhos na cidade.
A casa de Bruna ficava a poucos metros do parque, inclusive. Quando cheguei, mandei mensagem avisando e enquanto tirávamos as coisas do carro, ouvi ela se aproximar do portão a passos lentos. A barriga redonda de sete meses era nítida debaixo do roupão.
— Como está minha prima preferida? — Abracei-a quando o portão se abriu.
— Você não fica nem vermelha de falar isso, né? Sou a preferida mas nunca veio me visitar! — Fiz uma careta ao receber um tapa no braço e ri em seguida com Bruna cruzando os braços em cima da barriga.
— Posso usar a pandemia como desculpa?
— Não, porque eu já morava aqui dois anos antes dela acontecer. — Bruna rolou os olhos e Shuri apenas deu de ombros enquanto seguia a prima para dentro da casa.
Depois do jantar, estávamos na sala, com as pernas esticadas no sofá. Eu com uma taça de vinho tinto e Bruna com um copo de suco. Na televisão passava um filme qualquer que não demos atenção.
— O.k., agora me diz, o que aconteceu com você?
A pergunta de Bruna veio de repente, sem enrolação e me pegou desprevenida, então disfarcei levando a taça aos lábios.
— Vamos Shuri, você não me engana. Sempre disse que não suporta cidade pequena, mas do nada decidiu passar o mês aqui.
— Se estiver incomodando, posso ir embora.
Bruna arqueou uma sobrancelha em desafio.
— Não me darei nem o trabalho de responder.
Parei por um momento, olhando para minha taça, passando o polegar pelo vidro num movimento circular. Talvez fosse bom conversar sobre tudo que aconteceu naquele ano.
— Bom, no começo do ano o Luiz terminou comigo, porque disse que eu não dava atenção pro nosso namoro. — Rolei os olhos, como todas as vezes em que me lembro do nosso término. — Eu admito que realmente dei pouca atenção pra ele ou para qualquer outra coisa nos últimos dois anos, porque estava muito focada no teste pra Sinfônica.
— Ele poderia ter te apoiado em vez de se fazer de vítima. — Bruna levantou o indicador, mostrando que aquele era um ponto importante
— De qualquer forma, já não estávamos mais funcionando juntos há um tempo.
— E você tá bem quanto a isso?
— No começo foi complicado, mas passou. — Dei de ombros. — Fiquei até mais leve, pra te falar a verdade.
— Então fico feliz. — Bebeu o restante do suco e completou com a pergunta que eu menos queria responder. — Mas e aí, como foi o teste?
— Não passei. De novo. — Voltei a olhar para o líquido escuro em minha taça.
— Sinto muito, prima.
— Devia estar acostumada, já tentei três vezes. — Virei o restante do vinho — Eu só não sou boa o suficiente para algo tão grande, tenho que aceitar.
— Ei! Você é ótima no que faz, quem tá perdendo são eles.
— O melhor é aposentar o cello, assim não tenho novas frustrações. — Suspirei uma vez e antes que ouvisse minha prima rebater que aquilo era loucura e que eu não podia abandonar meu sonho, como minha mãe fez várias vezes nas últimas semanas, coloquei a taça vazia na mesinha de centro e mudei de assunto. — Agora me fala de você, da gravidez… Conseguindo se cuidar?
— Então, aí está o motivo do porquê não fui te buscar na rodoviária. — Me arrumei melhor no sofá, deixando a taça vazia na mesinha de centro para prestar total atenção no que ela tinha a dizer. — Passei no médico no começo da semana, para saber o resultado de alguns exames. Minha gravidez é de risco.
— E o que aconteceu?
— Minha pressão começou a oscilar demais e eu passei mal várias vezes mês passado. — Bruna respirou fundo e passou a mão na barriga redonda e alta. — Agora é repouso absoluto, durante os próximos dois meses, até o bebê nascer.
— Tudo que eu puder fazer pra ajudar, conta comigo.
Aquilo pareceu acender uma luz na cabeça da minha prima. Ela ficou me olhando por alguns segundos e um sorriso foi se abrindo devagar. Conhecia aquela cara, ela estava tendo uma ideia de que eu não iria gostar nada.
— Na verdade, tem uma coisa muito boa que você pode fazer pra me ajudar.
— Posso repensar a parte do “tudo”? — Fiz uma careta, com medo do que ela teria em mente. Bruna nunca foi uma pessoa conhecida por ter ideias muito sensatas e normais.
— Todo final de ano tem o musical de Natal na escolinha que dou aula. Estou sem saber o que fazer com meus pequenos, não queria decepcionar eles. Estão tão animados e se esforçaram tanto…
Continuei encarando Bruna, sem entender onde ela queria chegar. Franzi a testa e quando vi um sorriso travesso em seus lábios, aquele papo fez todo sentido. Me causando uma enorme vontade de explodir numa gargalhada.
— Você não tá sugerindo que eu…?
— Quem seria melhor pra tarefa do que uma violoncelista incrível?
— Uma professora — respondi como se fosse óbvio.
— Isso é apenas um detalhe. — Balançou a mão no ar. — Você não vai assumir aulas, apenas os ensaios.
— Eu não sei se é uma boa ideia, Bru. — Cocei a testa, me imaginando cercada com quase quarenta crianças.
— Cheguei! — a voz do marido de Bruna, Fábio, preencheu a sala quando ele passou pela porta. Nem mesmo ouvimos o portão automático abrir.
— Pelo menos pense no assunto durante o final de semana.
Bruna abriu um leve sorriso para mim, antes de Fábio se aproximar para complementá-la com um selinho rápido. Me levantei para lhe dar um abraço e trocamos algumas palavras sobre minha viagem e como estavam as coisas na capital. Nunca tive tanta proximidade com Fábio e nos vimos poucas vezes depois que ele e Bruna se casaram, mas era lindo ver os dois juntos. Eles se conheceram no trabalho, quando a Bruna trabalhava no banco, ele era gerente dela e os dois ficaram juntos depois de muito minha prima negar que sentia algo pelo coitado. Aquele era persistente.
— Tá tarde, e eu ainda estou cansada da viagem, então vou deixar a Bruna aos seus cuidados agora, Fábio.
— Boa noite, prima e conto com você na segunda-feira. — Deu uma piscadela antes de eu me virar para sair na direção do quarto.
Aproveitei o horário para mandar mensagem pra minha mãe antes de pegar no sono. Os horários eram meio loucos para me comunicar com ela no último ano, depois que ela se mudou para os Estados Unidos para viver o sonho americano com o novo namorado. Falei sobre a viagem até Rio Claro e que tinha chegado bem. Acabei comentando sobre a proposta da Bruna e a resposta dela foi o que eu menos queria receber.
Mãe (22h25): Talvez o que você precise seja uma experiência totalmente diferente.
Saia da zona de conforto, filha.
Eu não podia sair da zona de conforto indo correr ou comendo escargot? Se bem que, entre ensaiar quarenta crianças de sete a oito anos e comer lesma, quarenta crianças era o paraíso.
“Você não tem autenticidade.”
As palavras do avaliador da Orquestra ecoaram em minha mente. Eu não acho que encontraria essa tal autenticidade na escolinha que Bruna dava aula, mas ter uma experiência nova poderia mesmo ajudar em algo. Porque passei quase três anos tentando um padrão, sem sair da minha rotina. Essa quebra poderia servir de alguma coisa, no final das contas.
Eu estava mesmo cogitando substituir minha prima nos ensaios?
— 12 de Dezembro de 2022
Depois que preparei o banho da Isadora, também fui tomar o meu. Aquilo já tinha se tornado uma rotina nos últimos dois anos. Apesar de ter apenas sete anos, minha pequena já sabia fazer algumas coisas sozinha. E a hora do banho toda noite ao chegar da escola, acompanhada do seu dinossauro de borracha, era quando ela mais afirmava não precisar de ajuda.
Saí do banheiro já vestido com uma bermuda e camiseta regata, o calor estava insuportável. E claro que Isadora ainda tava na banheira, justamente por causa desse calor todo. Parei na porta entreaberta e dei dois toquinhos.
— Baixinha, tá na hora de sair.
— Tô terminando de dar banho no Dino, papai. — Sorri sozinho atrás da porta, mesmo que ela não pudesse me ver.
— Certo, então termine logo. Vou preparar nosso lanche.
Ela balbuciou uma resposta afirmativa e eu segui até a cozinha. Peguei um pacote de pão de fôrma no armário e os frios na geladeira, além de frutas. Sempre que começava a preparar uma refeição para nós, lembrava de como foi no primeiro ano em que tive que cuidar de Isadora sozinho. Uma das épocas mais caóticas da minha vida. Além de lidar com a dor de perder Sara, tinha que aprender como cuidar de uma criança de apenas três anos. Depois de quatro anos e de quase surtar várias vezes, também graças a ajuda do meu irmão e minha mãe, podia dizer que conseguimos encontrar uma sintonia e nosso jeitinho de cuidarmos um do outro.
Terminei de montar nossos sanduíches e coloquei os dois pratos na mesa de madeira, bem no momento que Isadora apareceu na porta usando seu pijama florido.
— Descalça, mocinha? — Apoiei as mãos no encosto da cadeira.
— Sabia que ficar descalço cria anticorpos? — Puxou a cadeira do outro lado da mesa e se sentou.
Arqueei uma sobrancelha, com um sorriso de canto, um pouco chocado por ela saber sobre anticorpos. Se bem que não deveria surpreender, Isadora era esperta como a mãe.
— E onde aprendeu isso?
— Na aula de ciências. Também aprendi que…
E desatou a falar sobre tudo que aprendeu na escolinha, não somente na aula de ciências, mas também separação de sílabas. E eu escutava com atenção cada pequeno detalhe de seu dia, fazendo alguns comentários vez ou outra. Eram aqueles momentos, no final do dia, sentados à mesa jantando, na sala ou no quarto dela, que fazia todo o dia valer a pena. Isadora renovava minhas forças sempre que a via sorrir, ouvia sua risada ou seu falatório incansável sobre absolutamente qualquer assunto.
— E hoje tivemos ensaio do musical — Isadora finalizou, com um sorriso enorme nos lábios, enquanto levava o próprio prato e copo até a pia.
— Verdade, hoje foi dia de ensaio. Como está indo?
Isadora empurrou a escadinha de dois degraus para perto da pia, a fim de me ajudar com a louça, como fazemos toda noite desde que ela tinha seis anos.
— Muito bem! — respondeu empolgada. — Mas outra professora vai ensaiar agora, porque a prô Bruna vai ter bebê.
— A outra professora é legal? — perguntei ao passar um prato para ela secar.
— Sim e muito linda, parece uma princesa e tem até nome de princesa. — Sorri ao observá-la por um momento. — Fiquei a aula toda como ajudante da tia Shuri, papai, e fiz…
Paralisei olhando para o copo cheio de sabão em minha mão. Minha mente viajou por muitos anos atrás. Lembrei do meu último ano na faculdade em São Paulo, quando tanta coisa aconteceu e entre elas, uma pessoa fez parte da minha vida. Faziam tantos anos que não a via, mas ouvir seu nome despertou memórias que eu nunca mais tinha revisitado.
— Papai! — Isadora me chamou impaciente, chacoalhando meu braço.
Voltei minha atenção para ela, percebendo que parei de prestar atenção ao que dizia sobre o ensaio.
— Desculpe, baixinha. — Desliguei a torneira e deixei um último copo e talheres para terminar de lavar depois. — O que disse?
— Que fiz um dos painéis do musical com a tia Shuri e perguntei se posso levar bolo de chocolate no próximo ensaio.
Soltei uma leve risada pela mudança tão repentina de assunto e sequei as mãos no pano de prato sobre a pia.
— Podemos ver isso depois. Agora vai lá escovar os dentes para dormir. — Cutuquei a barriga de Isa e ela saltou da escadinha para correr na direção do banheiro.
Encostei na pia ao ficar sozinho, pensando sobre a coincidência que seria se fosse a mesma pessoa. Passei a mão pelos cabelos e terminei pressionando as pontas dos dedos na nuca, deixando minha mente vaguear mais um pouco pelo passado. Por um momento, fantasiei em como ela estaria agora, dez anos depois. Seus olhos sempre tão brilhantes e escuros feito a noite combinavam perfeitamente com a pele marrom em um tom quente meio acobreado. Inegavelmente uma das bixetes mais lindas do campus de Artes da Universidade, com uma luz única capaz de transformar tudo ao redor. Lembrava perfeitamente que foi isso o que ela fez com meu último ano na faculdade, mudou tudo e iluminou meus dias. Abri um sorriso de canto e logo me senti um bobo com toda aquela nostalgia.
Respirei fundo e joguei o pano no canto da pia, afastando os pensamentos. Fui ao quarto de Isadora, já apagando as luzes no caminho até lá e chegando na porta, encontrei-a subindo na cama.
— Pronta para dormir, baixinha? — Notei que havia um livro perto do travesseiro. — Quer ler antes? — Apontei ao sentar na beirada da cama.
Isadora pegou o livro de capa dura e o mostrou segurando com as duas mãos. Pantera Negra. Sorri abertamente e peguei o livro.
— Fiquei com vontade por causa do nome da tia Shuri.
Assenti e folheei a história em quadrinhos muito colorida e chamativa. Minha filha se arrumou na cama de solteiro, dando um espaço para eu me sentar ao seu lado. Passei um braço por cima de seus ombros e ela se aninhou um pouco em meu peito. Abri o livro na nossa frente e ela começou a leitura, fui apenas ajudando com uma palavra ou outra que ela travava na pronúncia. Já imaginando que como sempre eu pegaria no sono primeiro que ela.
.— 14 de Dezembro de 2022
Depois de passar a noite preparando o bolo de chocolate que Isadora queria tanto levar para a escola no dia do ensaio, deixei-a na casa da minha mãe antes de ir para a oficina.
Usando meus conhecimentos com Administração, adquiridos na primeira faculdade que fiz — antes de Engenharia — eu e meu irmão, Alisson, abrimos o negócio juntos, algum tempo depois que Sara faleceu. E eu que pensei que nunca usaria aquele curso quando meu coração escolheu Engenharia Mecânica. No fim, uni os dois.
Isadora precisava de mim tanto quanto eu precisava dela. Trabalhar por conta me dava a liberdade que trabalhar na indústria não dava, eu podia passar mais tempo com minha baixinha. Às vezes, eu a levava para a oficina na parte da manhã ou em outros dias, como aquele, eu a deixava na minha mãe, para ela levar a Isadora para a escola. Sendo assim, eu só a veria no final da tarde, quando fosse buscá-la na escola.
A semana estava agitada e com muito trabalho na oficina, tinha um monte de orçamento no escritório, esperando para ser enviados e no mínimo uns dez carros com serviço para finalizar. Mas apenas uma coisa não saía da minha cabeça nem por um segundo, que era a incrível coincidência de talvez no final daquele dia reencontrar a Shuri. Poderia muito bem não ser ela, mas a simples possibilidade de ser, estava quase me levando à loucura. Eu só queria que o dia passasse logo e chegasse a hora de ir buscar a Isadora na escola.
— Terra chamando Alexandre.
Alisson estalou os dedos na frente do meu rosto me despertando dos meus pensamentos, só então eu percebi que estava distraído, com as mãos apoiadas na parte de dentro do capô de um carro.
— Já te chamei umas três vezes, cara.
— Foi mal, me distraí. — Cocei a testa ao fazer uma careta, meio sem graça. Notei a sobrancelha arqueada de Alisson, mas decidi ignorar o olhar de desconfiança. — O que você falou, afinal?
— Pedi a máquina de polimento — Me afastei para buscar e quando voltei novamente para ele, percebi um sorrisinho que não teve como ignorar.
— Por que essa cara?
— Aconteceu alguma coisa. — Apontou para o meu rosto. — Você tá estranho desde a hora que chegou, parece ansioso e tá muito distraído.
— Vai trabalhar, Alisson, a gente tem muita coisa para fazer.
Meu irmão levantou as mãos como se rendesse e se afastou depois de pegar a máquina para continuar o serviço.
Não tinha porque falar com ele sobre a Shuri, considerando que eu nem sabia se era ela mesmo, então apenas tentei me concentrar no trabalho durante o restante do dia, para não atrasar nada.
O ensaio era a última aula do dia, então eu ficaria com a turma esperando os pais buscá-los. Assim que o ensaio terminou, ficamos no auditório, na beirada do palco. Algumas crianças estavam sentadas em rodinhas, conversando ou brincando de alguma coisa, enquanto uma das crianças mais simpáticas que eu já conheci decidiu sentar ao meu lado para bater papo enquanto o pai dela não chegava. Era apenas a segunda vez que nos víamos, mas ela parecia me conhecer há um tempão. Inclusive, chegou naquele dia com um potinho recheado de pedaços de bolo de chocolate, que levou especialmente para eu comer na hora do lanche.
— Você gostou do bolo, tia Shuri? — ela perguntou, balançando as pernas depois de darmos tchau para algumas crianças sendo levadas embora pelos pais.
— Sim, estava uma delícia. Você quem fez?
— Com a ajuda do papai. Porque ele não deixa eu mexer no fogão. — Bufou ao fazer uma careta.
— E ele está certo, é perigoso. — Ela apenas concordou com a cabeça ao dar de ombros.
Me despedi de mais duas crianças correndo na direção dos pais e ao olhar em volta, notei que ainda faltavam umas três, além de Isadora.
— Tia, quantos anos você tem?
Voltei minha atenção para a menina, pega um pouco de surpresa pela pergunta repentina, mas acabei sorrindo ao colocar as mãos na cintura e deixando a postura ereta.
— Quantos você acha?
Isadora colocou um dedo no queixo e me analisou dos pés à cabeça, semicerrando os olhos enquanto pensava sobre o assunto com toda seriedade.
— Vinte! — ela finalmente respondeu, com toda a firmeza e um olhar confiante.
Abri um largo sorriso, mas levantei o indicador quando ela abriu a boca para comemorar que acertou.
— Quase. Tenho vinte e oito.
— Cheguei perto. — Ela comemorou, levantando os braços, e riu em seguida. Uma risada gostosa e contagiante, que me fez rir também ao lhe fazer um leve carinho na cabeça de cachinhos volumosos como os meus.
As outras crianças foram embora, ficando somente eu e Isadora no auditório. Olhei em volta, checando se não havia nenhum responsável esperando na porta. Ninguém.
— O papai está atrasado, não é?
A garotinha estava olhando na direção da porta encostada nos fundos do auditório, parecendo um pouco pensativa.
— Ele costuma atrasar?
— Só uns minutinhos, quando tem muito trabalho.
Assenti e peguei o celular no bolso da calça, para olhar as horas.
— Bom, ele está apenas cinco minutos atrasado, vamos esperar mais um pouco, qualquer coisa ligamos pra ele.
Isadora confirmou com a cabeça e tirou a mochila das costas, deixando-a do lado. Ficamos em silêncio por apenas alguns segundos, antes dela engatar um novo assunto.
— Ontem a noite, antes de dormir, eu e o papai lemos o livro do Pantera Negra.
A informação me fez brilhar os olhos e sorri toda boba. Por algum motivo, sentia um orgulho enorme sempre que via alguém dizer que leu ou assistiu a história do Pantera Negra, como se o fato de ter um nome em homenagem ao personagem me fizesse parte daquilo tudo. Era um sentimento bobo e quase infantil, mas satisfatório, como naquele momento.
— E como foi a leitura?
— Bom, o papai pegou no sono primeiro que eu, como sempre. — Ela colocou a mão na lateral da boca, escondendo-a como se fosse me contar um segredo e sussurrou. — Acho que ele está ficando velho.
E nós duas caímos na risada, Isadora agora tampando a boca com as duas mãos.
Nossa risada foi interrompida pela porta se abrindo de repente. Um homem passou por ela afobado, usando um macacão cinza sujo de graxa. Paramos de rir com o pequeno susto que tomamos, mas a alegria tomou conta novamente do semblante de Isadora, e com enorme empolgação ela saltou do palco e correu até ele.
— Papai!
O homem pareceu retomar o fôlego ao se abaixar para receber o abraço da menina, que não se importava dele estar um pouco sujo, ao que tudo indicava, do trabalho.
— Desculpe o atraso, baixinha. — Ele depositou um beijo na testa de Isadora e se levantou, segurando sua mão.
Enquanto isso, peguei a mochila que ela deixou para trás e também desci do palco para me aproximar deles.
— Aqui a mochila dela. — Foi só então que olhei realmente para o homem à minha frente.
Minha garganta secou instantaneamente e eu fui puxada com toda a força para dez anos atrás. Ele parecia compartilhar o mesmo choque, mas seus olhos escuros transmitiam um ar de satisfação tão palpável, que me fez sorrir. Era como se ele esperasse por me encontrar ali, como se de alguma forma já imaginasse que aquele reencontro aconteceria. Nós dois sorrimos antes que eu decidisse quebrar o silêncio ao sair do transe inicial.
— Alexandre? Como isso… Meu Deus.
Eu nem sabia o que dizer. Não só pelo choque de vê-lo de novo, mas também pelo arrepio na espinha por ver como o tempo fez bem a ele. Alexandre já era lindo quando namorávamos, mas agora ele estava uma verdadeira obra prima aperfeiçoada.
— Sabia que seria difícil demais existir outra Shuri, que não fosse você. — Ali estava a confirmação. Ele realmente esperava me encontrar. — O que faz por aqui? Não imaginei que se tornaria professora.
— Na verdade, não sou. — Coloquei as mãos nos bolsos da calça jeans. — A Bruna, professora de artes, é minha prima e eu vim visitar ela, acabei vindo parar aqui pra substituir nos ensaios.
— Muito legal da sua parte, acho que as crianças iam surtar se o musical fosse cancelado.
As crianças.
Claro, as crianças.
Um soco de realidade me atingiu ao lembrar que ele tinha uma filha. Uma filha linda e extremamente querida, que me deu bolo de chocolate. Uma filha que para existir precisava de uma progenitora. O que queria dizer que haviam grandes chances dele ser casado. Cocei a garganta ao processar tudo aquilo rápido demais e olhei para Isadora, que nos olhava com a testa franzida.
— Então, nos vemos no próximo ensaio, Isa.
— Tchau, tia Shuri. — Ela saiu correndo, deixando o pai para trás.
— Me espera no portão — Alexandre pediu alto, antes da menina passar pela porta. E logo se voltou para mim. — Tem planos pra sexta-feira à noite? Podíamos ir comer alguma coisa, colocar o papo em dia.
Ali estava o Alexandre que eu conheci na faculdade, não perdendo tempo algum. Mesmo que eu já não o conhecesse mais como antes, iria confiar que ele não me chamaria para sair se tivesse alguém. Confiaria que seu bom caráter também não mudou com o passar dos anos. Mas seria uma boa ideia? Por um momento, senti medo, um receio de ir por um caminho que poderia me arrepender ou me machucar. Revisitar algo que estava no passado, era tão imprevisível quanto se arriscar em algo totalmente novo.
— Bom, pode me dizer depois. — Ele tirou um cartão de visitas do bolso e estendeu para mim. — Se não mandar nada, vou considerar um não.
— Certo… — Dei uma leve risada da situação um tanto quanto inusitada, que nem nos meus melhores sonhos imaginei acontecer e olhei para o cartão conforme ele se afastou.
Alexandre deu um parada da porta e olhou para trás bem quando levantei a cabeça na sua direção. Nossos olhares se encontraram por breves segundos. Depois de um sorriso de canto, ele sumiu de vista e a porta se fechou.
— Certas coisas nunca mudam, não importa o tempo.
— 10 anos atrás.
Março de 2012
Março de 2012
Como toda jovem de dezoito anos que acabava de entrar na faculdade, havia uma grande expectativa para a festa de boas vindas no campus. E eu estava completamente deslumbrada com tudo, o campus imenso, todas as luzes enfeitando o lugar... Havia algumas tendas com sofás e puffs, além de mesas e bancos de madeira espalhados pelo gramado. Tudo era organizado pela própria faculdade, como forma de recepcionar os novos alunos, e também se despedir dos veteranos.
Eu estava com duas amigas que estudaram comigo no Ensino Médio, sentadas em uma das mesas de madeira, tomando refrigerante e comendo uma porção de batatas fritas. Já completamente exaustas de dançar perto do pequeno palco montado para o grupo de pagode que tocava.
— Alerta de gato se aproximando — uma das meninas avisou meio cantarolando ao abaixar a cabeça para disfarçar.
— Já cansaram? O show que estavam dando na frente do palco estava tão lindo de assistir.
Nós três nos voltamos para o homem de barba rala e bem desenhada, emoldurando o rosto de maxilar marcado. A camisa azul clara contrastava lindamente com a pele marrom, também exposta na região do peito largo, por causa dos primeiros botões abertos. Em conjunto com a bermuda jeans, deixando ele com um ar despojado que combinou muito bem com o sorriso que ele direcionava a mim, apesar de ter chegado fazendo um comentário no plural.
— Precisamos recarregar as energias. Mas se a apresentação tava tão boa, deveríamos cobrar ingresso meninas.
— Para ter a honra de te assistir apenas existindo, eu já pagaria o preço que for. Só dizer quanto.
Notei, pelo canto dos olhos, minhas duas amigas trocando olhares e sorrisos antes de darem uma desculpa esfarrapada e nos deixar sozinhos depois daquela cantada certeira. E foi ali que nossa história começou, com um Alexandre hipnotizante e irradiando uma luz linda que envolve todos ao redor. Foi tão natural nossa aproximação e amizade, tornou-se um amor calmo e acalentador, simplesmente impossível de não rolar. Ele conseguiu tornar o meu primeiro ano na faculdade, um dos melhores anos que já tive. Nós transbordamos e nos conectamos de uma forma que nunca achei ser possível.
Mas como a vida ama nos dar uns tapas para acordar. Nosso namoro durou apenas um ano. Ao terminar a faculdade de Engenharia Mecânica, ele voltou para a cidade dos pais. Tentamos continuar o namoro por cerca de dois meses, mas não deu certo. Eu precisava focar na faculdade e ele tinha muito trabalho. E acho que eu também não tinha emocional suficiente para estar em um relacionamento à distância. Vimos que a melhor escolha era terminar e seguirmos nossas vidas. Nos distanciamos aos poucos, até não nos falarmos mais.
A vida, o trabalho, enfim: crescer, fez com que a nossa história ficasse esquecida no passado. Talvez não totalmente esquecida pelo jeito, levando em consideração como o ar pesou ao nosso redor dentro do auditório. Me peguei rindo sozinha enquanto caminhava pelas ruas calmas de Rio Claro, lembrando de momentos do nosso namoro, até ele me entregar o cartão de visitas.
— Quem entrega um cartão de visitas ao chamar alguém pra sair? — Balancei a cabeça e suspirei. Estava parecendo uma adolescente que foi chamada pra sair pelo carinha mais cobiçado do colégio.
Eu, Bruna e Fábio estávamos na sala jogando UNO depois de comermos pizza no jantar.
— Esse é um jogo muito arriscado para uma grávida. — Fábio comentou comprando quatro cartas no monte.
— Diz isso porque já te fiz comprar umas dezesseis cartas, bonitão. — Mandou um beijo no ar e eu apenas ri da careta de desgosto que Fábio fez.
— Você já chegou a conhecer os pais da Isadora Gomes, do segundo ano — perguntei casualmente para Bruna.
Ela parou para pensar por alguns segundos e ao se lembrar deu risada.
— O pai bonitão, conheço. — Fábio a olhou com a sobrancelha arqueada. — É o que as outras professoras dizem, meu bem. Você é o único papai bonitão que eu conheço. — Piscou para ele ao passar a mão em seu rosto, num rápido carinho. — E é só o pai, Alexandre, a mãe faleceu quando a Isa tinha uns três aninhos.
— Ah! O Ale, nosso mecânico? Ele eu tenho que concordar, realmente ele é um gostoso. — Fábio deu de ombros e eu caí na gargalhada junto com minha prima depois de um breve choque pelo comentário.
Saber sobre a mãe de Isadora me deu um leve aperto no peito. Eu sabia bem como era crescer sem a presença de um dos pais, era um vazio que sempre existiria de alguma forma. Por mais que no caso dela, talvez mal se lembrasse da mãe, visto que era muito nova.
— Mas por que a pergunta de repente? Algum problema com a Isa? — Bruna perguntou ao descartar uma carta, concentrada no jogo.
— Não, ela está bem e é uma criança incrível, inclusive. — Sorri ao me lembrar da garotinha contagiante e vi Bruna assentir com um sorriso suave nos lábios. — É que… Bom, é uma história engraçada e uma coincidência muito louca, mas eu e o Alexandre namoramos no passado. — Continuei olhando para minhas cartas na mão, sabendo que o casal à minha frente me encarava boquiaberto.
— Como é que é? Me conta isso! Vocês se viram? Como foi? O que conversaram? Vai ter um revival? — Minha prima atropelou uma pergunta na outra, empolgadíssima com o babado, e dando um tom de malícia à última.
— Nos vimos na escola hoje, quando ele buscou a Isadora. Foi estranho e muito doido, não dá pra explicar. Faz dez anos que não nos vemos. — Cocei a testa, organizando o pequeno turbilhão de sentimentos que surgiram quando nos encontramos. — E ele me chamou pra sair na sexta à noite. Mas ainda tô em dúvida se aceito.
— Por quê? Vocês dois são solteiros. E pelo pouco que conhecemos dele, é um partidão, super gente boa.
— Não vim pra cá procurando um relacionamento, Bru. Acabei de sair de um.
— É Natal, Shuri, aproveita o clima nostálgico da época para relembrar um pouco o passado. A não ser que ele tenha sido um babaca no término de vocês.
— Não, foi um término tranquilo. Só estávamos em momentos diferentes da vida. Eu era muito nova, ele já sabia bem o que queria, enfim… — Um breve silêncio recaiu sobre a sala e percebi Fábio se levantar e nos deixar sozinhas, quando desviei o olhar para as mãos sobre a mesinha de centro.
— Não tenta seu auto sabotar, prima. Não to dizendo para casar com ele, mas se arrisca, dá uma chance para o inesperado. Para de pensar tanto, você precisa disso um pouco. — Ela se aproximou e colocou a mão levemente em meu braço. — Às vezes nossa felicidade e realização está onde menos imaginamos. E encontramos quando não estamos realmente procurando.
Nos olhamos por um segundo e eu acabei sorrindo. Cheguei em Rio Claro desiludida com tudo, ainda mais com relacionamentos amorosos, considerando que meu último namoro terminou de um jeito tão chato. Dar uma chance de me abrir para algo de novo, ainda mais algo que eu já vivi uma vez… Era um pouco assustador. Mas acho que é aí que estava a adrenalina de se arriscar de vez em quando.
Shuri (21h35): Estarei livre às 20h.
Enviei a mensagem para o número que tinha no cartão de visitas assim que me deitei, antes que a coragem vacilasse. E a resposta veio mais rápido do que imaginei que viria.
Alexandre (21h37): Combinado, te busco às 20h, então.
Você tá ficando na casa da Bruna e do Fábio?
Shuri (21h54): Isso mesmo. Estarei te esperando. Boa noite.
Alexandre (21h55): Boa noite, princesa Shuri.
Eu poderia rebater, achar que ele estava sendo apressado demais por me chamar daquela forma. Mas a única coisa que consegui fazer foi sorrir, com um carinho gigantesco tomando conta do meu peito. Ele me chamou de princesa Shuri pela primeira vez, no final daquela festa em que nos conhecemos, depois que falei meu nome e ele disse ser fã dos filmes da Marvel. Tanto que um dos nossos primeiros encontros foi no cinema, na estreia de Vingadores.
Não sei onde aquilo nos levaria, talvez a lugar nenhum. Mas estava decidida a não pensar nisso enquanto dava uma chance para aquele reencontro.
— Sexta-feira. 16 de Dezembro de 2022
Desde a quarta-feira à noite, quando Shuri me mandou mensagem aceitando meu convite para sair, eu não paro de pensar nisso. Nem eu mesmo conseguia entender muito bem o que estava acontecendo, eu só queria me aproximar dela, conhecê-la novamente. Saber se ainda gostava de misturar doce com salgado, se sua comida preferida ainda era macarronada quatro queijos e se ainda tocava cello tão lindamente.
Reencontrá-la na escola de Isadora, na segunda-feira, me causou uma grande confusão de sentimentos. Era conflitante, porque eu não sentia o interesse de conhecer alguém desde que Sara faleceu. Ela foi um grande amor da minha vida, não tenho dúvida alguma disso. Mas rever Shuri reacendeu uma pequena chama dentro do meu peito que eu apaguei há quase dez anos.
Entrar naquele auditório e dar de cara com ela, dando aquela risada gostosa que eu ainda me lembrava tão bem, me levou de volta ao passado, me fez sentir como naquela noite, no campus da faculdade. Vivo.
Terminei de abotoar a camisa social e passei o perfume em frente ao espelho.
— Tá bonito, grandão — Isadora comentou entrando no meu quarto e parou no meio do cômodo, fechou os olhos e inspirou uma vez —, e cheiroso também.
— Obrigado, baixinha. — Abri um largo sorriso e me virei para ela, que pulava para cima da cama, já pronta para ficar na casa da avó.
— Você tem uma namorada? — perguntou num tom casual, tombando a cabeça para o lado.
— Não, meu amor. — Fui até a cômoda, a pergunta ainda ecoando em minha cabeça, peguei o relógio e decidi aproveitar para fazer uma pergunta que ainda não tinha feito nenhuma vez para minha filha — Mas seria um problema, caso eu tivesse?
Isadora ficou em silêncio por um tempo e eu a deixei pensar sobre o assunto, enquanto vestia as meias e calçava os coturnos.
— Se você estiver feliz, não é problema nenhum. — Trocamos um olhar cúmplice e cheio de carinho, então me aproximei dela e ajoelhei na sua frente.
— Você é muito especial, sabia? — Segurei seu rosto entre minhas mãos e a puxei um pouco para depositar um beijo em sua testa.
— Mas me promete uma coisa?
— O quê?
— Quando tiver uma namorada, ela tem que ser muito muito muito legal e gostar de ler… — ela fez uma pausa e completou com grande empolgação — igual a tia Shuri.
Quase engasguei com minha própria saliva. Mas disfarcei e apenas dei uma leve risada, apertando levemente a bochecha direita de Isadora antes de me levantar.
— Eu prometo, baixinha. Agora vamos lá, senão vamos atrasar. Pega suas coisas.
Isadora saiu correndo e passando a mão pelos cabelos, cocei a nuca, ainda sorrindo com o que minha filha disse.
Estacionei em frente a casa de Bruna e mandei uma mensagem para Shuri, avisando que tinha chegado. Estava apenas cinco minutos atrasado. Saí do carro e fiquei encostado no capô, esperando por Shuri, e a espera não durou mais que um minuto, quando ela apareceu na porta e fez o curto percurso no corredor até o portão.
Mesmo com a pouca iluminação do poste da rua, dava para ver o quanto ela estava linda. Usava sandálias com um salto não muito alto e o vestido um pouco acima do joelho, deixando boa parte das pernas longas que compunham seus quase 1,80m de altura, lindamente à mostra. Ela estava realmente estonteante.
— Nossa, você tá maravilhosa.
— Você também tá muito bonito, Xande de Muretas.
O apelido da época da faculdade me fez rir automaticamente e ela me acompanhou, já tornando o ar ainda mais suave e leve.
— Meu Deus, você ainda se lembra disso.
— Como poderia esquecer desse ícone da música popular brasileira de boteco.
Então, como se nós dois ansiassemos por aquele toque que ficou no ar na segunda-feira, por causa do choque inicial do reencontro, nos abraçamos. De forma natural, sem desconfortos ou estranheza. Com o frio na barriga de quando a vida se encarrega de afastar alguém e em seguida a coloca em seus braços de novo, mesmo com toda a bagagem que ambos agora carregam. De alguma forma, era como se meu lugar naquele abraço tivesse reservado esse tempo todo.
Eu nunca acreditei em almas gêmeas, até sentir o coração de Shuri batendo novamente pertinho do meu.
Separamos o abraço e eu tinha um sorriso bobo no rosto que não podia evitar. O que era aquilo que eu estava sentindo, meu Deus? Que espécie de feitiço Shuri jogou em mim no momento que nos reencontramos?
Cocei a garganta e me afastei um pouco, para não parecer um doido, e abri a porta do carro para ela entrar. Notei um leve sorriso em seus lábios assim que fechei a porta, então respirei fundo e dei a volta para entrar no lado do motorista.
— Para onde vamos? — Shuri perguntou assim que dei partida no carro.
— Pensei num barzinho, tem uns drinks ótimos e porções. O que acha? — ela assentiu em resposta e virou um pouco o corpo no banco, ficando de frente para mim.
— Agora me diz, o que você faz hoje em dia, além de ser pai de uma menina adorável?
Um brilho tomou conta dos meus olhos com a forma que ela se referiu a Isadora e eu sorri todo orgulhoso da minha pequena, antes de pensar no que responder.
— Bom, não tenho uma vida das mais emocionantes. — Dei de ombros, sem tirar os olhos da direção. — Acabei saindo da empresa que trabalhava como engenheiro quando a mãe da Isa faleceu, eu precisava me dedicar a ela e os meus horários eram muito doidos. Foi quando eu e o meu irmão abrimos uma oficina mecânica.
— E você pensando que nunca usaria a faculdade de Administração. — Soltei uma leve risada com o comentário, então ela completou com algo que me encheu por dentro — sempre soube que você seria um ótimo pai. A Isa tem muita sorte.
— Ela é tudo pra mim. Às vezes nem parece que ela tem só sete anos. — Me lembrei do que minha filha disse antes de eu sair naquela noite e dei uma leve risada. — E você, ainda toca?
— Nossa, você se lembra?
— Claro, você era a melhor violoncelista que eu já conheci.
— Eu era a única violoncelista que você conhecia, Alexandre! — ela rebateu em meio a uma risada, me dando um leve tapa no braço.
— Apenas um detalhe, seu talento sempre foi único.
Ela balançou a cabeça e desviou o olhar para a janela ao notar que eu estava estacionando o carro. Shuri conferiu a fachada no barzinho do outro lado da rua, todo de tijolinhos, num estilo rústico e com luzinhas no teto o iluminando por completo. Algumas do lado de fora tornavam o lugar perfeito para uma noite quente como aquela.
— Que lugar gostosinho, já ganhou um ponto pela escolha. Tô louca pra tomar uma saquerinha de kiwi.
— Eles têm e é deliciosa. — Comentei ao sair do carro logo depois dela.
Percebi que Shuri usou o fato de termos chegado para fugir da pergunta que tinha feito, e eu respeitei seu espaço, decidindo por não tocar mais no assunto pelo restante da noite. Se algo aconteceu e ela se sentir à vontade para compartilhar, serei todo ouvidos. No momento dela.
Pegamos uma mesinha do lado de fora, que tinha banquinhos altos e espaço para duas pessoas. O lugar não estava cheio, mas isso se devia provavelmente pelo horário, visto que ali sempre enchia conforme ficava mais tarde.
— Chegamos super rápido, né? E estamos tipo, do outro lado da cidade.
— Aqui, em 15 minutos atravessamos a cidade de carro.
— Sem trânsito? Como vocês aguentam? — Ela levou a mão ao coração, fingindo choque e nós dois rimos.
O garçom se aproximou com dois cardápios e colocou na nossa frente. Shuri logo abriu o dela e procurou pela bebida, e eu fui para a parte de porções.
— Vai querer porção mesmo ou um lanche? — perguntei sem tirar os olhos do cardápio.
— Uma porção. Frango e batata frita? — Ela abriu um sorriso enorme ao sugerir e eu a acompanhei. Era exatamente o que sempre pedíamos quando saíamos juntos depois da faculdade.
— Meio a meio? — confirmei e ela assentiu, fechando o cardápio.
Chamei o garçom com um sinal e fiz nosso pedido, uma saquerinha de kiwi, uma porção meio a meio e uma cerveja pra mim.
— Fiquei surpreso de saber que a Bruna é sua prima. Não me lembro de você falar dela, naquela época.
— Não éramos muito próximas. — Ela cruzou os braços sobre a mesa. — Nos aproximamos depois que meu pai faleceu, há oito anos atrás.
— Nossa, eu sinto muito.
Fiz as contas mentalmente e me senti mal ao me dar conta de que se ainda estivéssemos namorando na época, eu poderia ter ficado ao seu lado. Nem imagino o quão difícil foi passar por aquilo e ainda ter de lidar com a faculdade.
— Por que ficou com essa cara? — Ela esticou um braço na mesa, como se fosse me tocar, mas não tocou.
— Queria ter estado ao seu lado quando isso aconteceu.
— As coisas foram como tinham que ser, Ale.
Nossos olhares se encontraram e haviam tantas palavras não ditas ali. Como se não tivéssemos colocado um ponto final de verdade nos nossos sentimentos. E meu coração acelerado, como um adolescente, mostrava isso claramente.
— As bebidas de vocês.
O garçom parou ao nosso lado com uma bandeja e colocou as bebidas na nossa frente. Cortando a pequena tensão instalada entre nós. Observei Shuri saborear o sabor doce da saquerinha e dei um gole na minha cerveja também.
— O que fez depois da faculdade? — perguntei casualmente.
— Comecei a dar aulas de música por um tempo e… — ela parou, com os olhos fixos no drink enquanto brincava com o canudo.
Por que ela parecia não conseguir falar sobre o cello? Ou sobre ela tocar… Sempre foi a coisa que ela mais amou, o sonho de Shuri sempre foi tocar as pessoas com sua música. E eu sempre sonhei em vê-la se realizando com isso. O que mudou?
— Ainda sou um bom ouvinte, se quiser dizer o que aconteceu.
Aquela segurança que eu sentia há dez anos atrás, transpareceu nos olhos de Alexandre com uma intensidade que foi como um abraço. Ele sempre me apoiou em cada pequena coisa que eu fazia, sonhou comigo por um ano, me incentivou e eu nunca, em todo aquele tempo, tive um ouvido tão atento como o dele. Tanto para ouvir meus desabafos e crises existenciais de uma garota de dezoito anos que mal começou a vida. Como as músicas inacabadas que eu tentava compor no cello. Alexandre foi minha plateia preferida por meses… Uma plateia como nunca encontrei igual.
— O sonho do meu pai era me ver tocando na Sinfônica, desde que eu era bem nova e comecei a ter aulas de violoncelo. — Alexandre assentiu, havia comentado aquilo com ele na época — com o tempo, o sonho dele se tornou meu também. Quando ele faleceu, senti uma necessidade extrema de realizar isso. Eu precisava fazer isso por ele.
— Você conseguiu?
Soltei uma risada baixa e respirei fundo.
— Não, acho que é um sonho alto demais pra mim.
Nossa porção chegou e um breve silêncio recaiu sobre nós, não que fosse desconfortável, mas Alexandre parecia ainda estar pensando sobre a última coisa que eu disse.
— Lembro como te fazia bem tocar. Não deixe as coisas que dão errado apagar o brilho daquilo que você ama.
— Tinha esquecido como você é bom com as palavras. Deveria ter escolhido Letras em vez de Engenharia.
A risada que ele soltou me causou um arrepio na espinha, que mesmo ele não vendo, me senti envergonhada. Então tentei afastar a sensação, me concentrando na comida, por dar uma mordida num pedaço de frango empanado. Que estava divido, inclusive. Rio Claro estava me surpreendendo em pequenos detalhes. Acho que eu tinha visão bem errada da cidade, como se fosse um lugar esquecido por Deus.
Continuamos comendo e os assuntos que se seguiram foram mais bobos e menos profundos. Não tocamos mais no assunto da música ou dos sonhos. Eu estava na cidade para fugir das coisas, e falar delas com uma das pessoas que mais me apoiou no começo, não facilitava em nada a ideia de abandonar a música de vez.
Falamos de tudo, de coisas corriqueiras, música, filmes, últimos livros que li. Inclusive indicamos livros um para o outro, notando que o tempo nos fez mudar nossos gostos para muitas coisas e para outras nem tanto. Eu acabei mudando bem mais que ele, o que era compreensível, já que naquela época eu tinha apenas dezoito e ele trinta.
Talvez isso tenha influenciado um pouco no nosso término. Não a diferença em si, mas a fase da vida em que estávamos. Se tivéssemos nos conhecido uns cinco anos depois, tudo poderia ter sido diferente.
Notar um pequeno brilho nos olhos dele, toda vez que no meio da conversa ele descobria algo novo sobre mim, me fazia sorrir sozinha diversas vezes. Na verdade, perdi as contas de quantas vezes eu sorri aquela noite, nem me lembrava a última vez que aquilo aconteceu.
Depois de quase perdermos a noção das horas, decidimos ir embora. Ao chegarmos no carro, na hora de abrir a porta pra mim, ficamos perto demais e eu acabei apoiando uma mão em seu peito. Ele colocou a mão na curva da minha coluna e fitou meus olhos por alguns segundos. A baixa iluminação da rua não o favorecia tanto quanto deveria. A respiração de Alexandre ficou mais pesada. Ou foi a minha que ficou mais acelerada.
— Se você não me impedir, vou te beijar agora…
Ele levou uma mão ao meu rosto e com o polegar, passou levemente por meu lábio inferior. Eu abri os lábios levemente e meus olhos se fecharam. A resposta não precisava de palavras, estava bem ali, em como todo meu corpo estava reagindo ao toque e proximidade dele. Apertei os dedos em sua camisa, envolvendo o tecido, me amparando ali.
O espaço, já quase inexistente, se desfez e os lábios de Alexandre cobriram os meus. Um beijo com sabor de saudade, um toque de carinho e temperado com desejo. Minha mão subiu para sua nuca no momento em que ele me pressionou um pouco mais na lateral do carro.
Mas então o celular dele tocou dentro do bolso e mesmo relutando para se afastar, acabou o fazendo. Eu abaixei o olhar, tentando recuperar a respiração acelerada. Alexandre levou o celular ao ouvido sem olhar quem era e deixou a outra mão apoiada em minha cintura, num carinho suave, sem se afastar totalmente.
O olhar dele mudou ao ouvir o que a pessoa do outro lado dizia. Algo sério aconteceu e o trouxe totalmente de volta à realidade, afastando qualquer vestígio de desejo, excitação ou álcool.
— Onde vocês estão? — perguntou preocupado ao telefone, também me deixando em alerta. — Estou indo.
— O que houve?
— A Isa passou mal. Minha mãe levou ela no pronto socorro. — Ele coçou a testa e respirou fundo. — Te levo em casa e depois vou lá.
— Não, eu vou com você. — Interrompi, tocando seu braço.
Nem pensar que o deixaria sozinho naquele estado de preocupação.
— Então vamos. — Ele deu um beijo rápido em minha testa e correu para o outro lado do carro.
Chegando no hospital, encontramos com a mãe de Alexandre, que me recebeu com um olhar levemente atravessado, mas tentou disfarçar com um cumprimento rápido e voltou a atenção para o filho.
— O que aconteceu, mãe?
— Ela começou a vomitar e sentir muita dor no estômago. Mas já está sendo atendida e o Alison está lá dentro com ela.
— Vocês saíram pra comer? — Alexandre já parecia estar mais calmo ao questionar. O olhar preocupado ainda era presente, o que me fazia querer segurar em sua mão, mas achei melhor não, em respeito a mãe dele. Então me afastei e fui pegar um pouco de água no bebedouro do outro lado da sala de espera.
Quando me aproximei deles novamente, entreguei um copo d’água para Alexandre, que me agradeceu com um sorriso de canto e segurou em minha mão. Percebi a mãe dele observar o contato, mas não demonstrou nenhuma reação até ele me apresentar.
— Essa é a Shuri, mãe.
— Esse nome não me é estranho… — Ela tombou a cabeça para o lado, me observando com mais atenção.
— Nós nos conhecemos na faculdade, em São Paulo.
A mulher arregalou um pouco os olhos, formando várias ruguinhas em seu rosto de mesmo tom de pele que Alexandre.
— Que mundo pequeno, não é mesmo? — Passou o olhar entre mim e o filho, dedicando a ele um olhar de repreensão.
Notei que Alexandre devolveu o olhar, ninguém disse uma só palavra, mas o ar pesou tanto que pareciam estar gritando.
— Sr. Alexandre? — Um médico apareceu segurando uma prancheta e eu agradeci aos céus por ele chegar naquele momento.
— Sua filha já está na observação, vai precisar passar a noite aqui. Ela teve uma intoxicação alimentar.
Alexandre soltou o ar com força e coçou a barba ao assentir para o médico.
— Mas não se preocupe, ela foi medicada e ficará bem. — Apertou levemente o braço de Alexandre, que agradeceu com um leve sorriso de alívio.
Assim que o médico se afastou, um homem passou pela porta dupla que levava para dentro do hospital. Ele tinha exatamente os mesmos traços de Alexandre, porém alguns anos mais novo. E eu me lembrava muito bem dele visitar o irmão algumas vezes, quando namoramos.
— Meu Deus! Shuri? — Alison abriu os braços para me abraçar e eu soltei a mão de Alexandre, um pouco sem graça, e fui recebida em seu abraço com uma empolgação enorme, que me fez sorrir. — Caraca, quanto tempo! O que faz aqui?
— Eu e o Ale nos reencontramos por acaso. Tô passando o mês na casa da minha prima que mora aqui — respondi ao separarmos o abraço. Percebi uma troca de olhares entre ele e o irmão mais velho, acompanhado de uma leve risada.
— Então tá explicado porque ele tava tão distraído no trabalho essa semana — Alison brincou e Alexandre coçou a garganta, levando uma mão à nuca, nitidamente sem graça.
— Ah, é mesmo? — Dei um sorrisinho convencido ao cruzar os braços, também entrando na brincadeira.
— Bom, eu preciso ver minha filha, você não quer ir embora não, Alison? Leva a mamãe pra descansar, tá tarde — desconversou, focando na mãe deles que apenas observava, nada feliz, aquela interação entre nós três.
Lembrava bem como foi o primeiro final de semana que Alison passou na casa de Alexandre, quando nós dois namoravamos. Nossa idade era bem próxima, tínhamos muitos gostos em comum e nos demos muito bem de primeira. Na época, ele chegou a ficar com uma amiga minha da faculdade, mas nem mesmo se tornou namoro, porque nenhum dos dois tinha a intenção de se amarrar. Foi mais uma amizade colorida que Alexandre nunca concordou que acontecesse.
— Vamos filho, estou exausta. — A mulher segurou no braço do filho caçula e se voltou para Alexandre antes de se afastar — Mande noticias da minha neta.
Então se virou e puxou Alison consigo, como se tudo que precisava na vida fosse sair dali. Me senti bem desconfortável com a situação, principalmente porque nunca nem mesmo nos conhecemos. Seria por isso?
— Acho melhor ir ver a Isa, antes que ela acorde e fique assustada. — Assim que ficamos sozinhos, Alexandre segurou novamente em minha mão. — Se quiser, posso pedir um uber pra você não ficar o restante da noite aqui.
— Eu tô exatamente onde quero estar, Ale.
Ao lado dele. Por mais louca que fosse aquela sensação. Não podia imaginar a possibilidade de deixá-lo ali, sozinho.
Ele levou minha mão aos lábios e depositou um beijo suave, com um olhar agradecido que me fez sorrir. Então entramos no hospital e seguimos a orientação de uma enfermeira que mostrou onde era o quarto que Isadora estava.
Alexandre Gomes
Acordei de um cochilo na madrugada, com uma enfermeira entrando no quarto. Cumprimentei-a com um aceno e observei ela checar o soro que pingava lentamente, enquanto Isadora dormia tranquila. Agradeci com um sussurro e esperei a mulher encostar a porta para olhar ao meu lado, na outra poltrona azul, Shuri dormia serenamente.
Arrumei a coberta fina do hospital cobrindo-a e me permiti observá-la por algum tempo, admirando seus traços tão bem feitos. Nem nos meus melhores sonhos, imaginei que poderia vê-la dormindo de novo. Antes de Sara aparecer na minha vida, quis entrar em contato, ver como ela estava, pedir mais uma chance para fazer aquilo dar certo. Mas fui deixando, até ela se tornar apenas uma lembrança linda. Algumas vezes, mesmo quando já estava em outro relacionamento, imaginei como ela estaria, o que fazia da vida, se realizou o tanto de sonhos que tinha. Shuri nunca deixou de ser uma das pessoas mais especiais que passou por minha vida.
Pensando em tudo isso, num movimento quase automático, como se o rosto dela tivesse um imã, aproximei a mão de sua bochecha. Mesmo hesitante, para não acordá-la.
Mas fui pego no flagra com os dedos ainda na metade do caminho. Os olhos de Shuri se abriram devagar, sonolenta. E eu paralisei com a mão no ar, prestes a tocá-la. Então ela sorriu levemente e voltou a fechar os olhos.
— Pode continuar, não quis atrapalhar.
O comentário me fez rir baixinho, admirado com o quão meiga e apaixonante ela podia ser sem qualquer esforço. Minha mão terminou o percurso e as pontas dos meus dedos tocaram suavemente sua bochecha. Passei o polegar perto de seu nariz levemente empinado. As costas dos dedos desenhando o maxilar, até descansar a mão no ombro descoberto pelo vestido sem mangas.
— Papai Noel foi generoso com o presente de Natal deste ano — comentei com a voz quase num sussurro.
Shuri abriu os olhos novamente e eles pareceram um céu estrelado, tamanha a intensidade do brilho presente neles. Não sei se era pelo sono ou pelo que eu disse.
— Ah é? Qual presente?
— Uma segunda chance.
Eu não sabia o quão disposta ela estava de me dar aquela segunda chance. Mas se ela escolheu estar bem ali comigo, naquela noite, eu acreditaria que não nos reencontramos por acaso. Nem da primeira vez e nem agora.
— Sua mãe não parecia achar uma boa ideia, nós dois. — Percebi o desconforto de Shuri com a forma que minha mãe a tratou e agora ao tocar no assunto, parecia receosa.
Desci a mão pelo braço dela até encontrar sua mão apoiada no braço da poltrona. Então voltei a olhar em seus olhos, me lembrando de algumas discussões que tive com minha mãe dez anos atrás.
— Ela nunca concordou com nós dois, na verdade.
— Por que nunca me disse nada? — Ela franziu a testa, confusa e se arrumou um pouco na poltrona.
— Não queria te magoar. — Dei de ombros. — Eu não concordava com ela antes e não concordo agora. Por isso nem falei nada sobre termos nos reencontrado.
— É por causa da nossa idade, não é?
Não tinha porque mentir, apenas assenti em resposta e fiz um carinho suave em sua mão, em movimentos circulares com o polegar. Ficamos em silêncio por um tempo considerável, apenas ouvindo a movimentação do lado de fora do quarto, na rotina da madrugada no hospital.
— O que estamos fazendo aqui, Ale? — Shuri quebrou nosso silêncio com uma pergunta que eu gostaria muito de ter uma resposta concreta. Mas as palavras simplesmente sumiram.
— Papai? — Isadora chamou com a voz entrecortada e sonolenta.
— Ei baixinha. Estou aqui. — Me levantei meio rápido e me aproximei da cama, apoiei uma mão na cabeça da minha filha e tentei transmitir segurança com um leve sorriso.
— Quero ir pra casa…
— Oh meu amor, nós vamos já já. Só mais alguns minutinhos. — Fiz carinho nos cabelinhos cacheados de Isadora presos num coque no topo da cabeça e depositei um beijo em sua testa
Ela fechou os olhos devagar e voltou a dormir. Cheguei o soro que ainda pingava, mas estava bem no final, o refil de plástico já bem amassado nem mostrava mais o líquido transparente dentro.
— Vou pegar um café na lanchonete.
Virei para Shuri, que parou ao meu lado, prendendo os cabelos num rabo de cavalo baixo. Ela passou a mão por meu braço antes de se afastar e saiu do quarto.
Voltei a observar minha filha dormindo, velando seu sono como todas as noites em que ela se sentia mal ou ficava triste por algum motivo. Ou mesmo quando não tinha nenhum problema e eu só queria garantir que ela estava respirando. A enfermeira de algumas horas atrás entrou novamente no quarto e depois de conferir o soro, disse que já tinha terminado e Isadora estava liberada. Então começou a fazer o procedimento de tirá-la do soro.
Meu celular vibrou dentro do bolso e ao ligar a tela me deparei com o nome de Shuri na notificação.
Shuri (6h32): “Pedi um uber. Está tudo bem, não se preocupe.
Mande notícias da Isa, depois.”
Fiquei alguns segundos encarando a tela do celular, sem entender a necessidade dela ir embora assim, de repente. Pensei se foi algo que eu disse ou algo que eu deveria ter dito. Mas então ouvi Isadora reclamar um pouco ao acordar com a enfermeira mexendo em seu braço e voltei minha atenção para ela, guardando o celular no bolso.
— Terça-feira. 20 de Dezembro de 2022
Durante o café da manhã, Bruna não para de me encarar a cada dois minutos, enquanto o único barulho que escutamos é de nossas xícaras sendo repousadas na mesa de madeira e de mastigadas.
— O.k., vamos lá, o que quer falar, Bruna? — Coloco o pedaço final de torrada no prato e a olho.
— O que aconteceu entre você e o Ale?
— Por que teria acontecido algo? — Franzi o cenho, me fazendo de desentendida ao voltar a comer.
— Fala sério, Shuri. Vejo você ignorando as mensagens e ligações dele desde sábado. — Ela fez uma pausa, tomando cuidado com as próximas palavras que usaria — E percebi que seus olhos estavam vermelhos… Estava esperando me dizer o que houve.
Suspirei e desisti de vez da torrada. Eu era ótima em desistir das coisas, pelo jeito. Dei um gole no café, usando o tempo para organizar meus pensamentos bagunçados desde aquela manhã que saí do hospital. Tava tudo uma zona e a minha razão não estava fazendo um bom trabalho em organizar o que o meu coração bagunçou.
— Nos beijamos quando saímos sexta-feira. — Notei a empolgação contida da minha prima, ela queria gritar e dar pulinhos, mas se conteve em apenas sorrir. Passei as mãos no rosto, fugindo de seus olhos animados pelo restante da história. — Mas aí a Isa passou mal e fomos para o hospital. Por isso cheguei no outro dia de manhã. Ele mexe comigo, Bru, muito. É como se voltássemos no tempo quando estamos juntos, ao mesmo tempo que… É diferente.
— Vocês estão mais maduros, claro que é diferente.
— Talvez seja isso mesmo. Mas tenho medo, não consigo não pensar em tudo que nos levou a terminar dez anos atrás. — Apoio o cabeça na mão, brincando com a toalha de mesa. — Tem a distância, e bom… mesmo que tenhamos amadurecido, a diferença de doze anos ainda existe. Ele tem uma filha.
— Não ouvi na lista de motivos coisas como “não sentimos nada um pelo outro”. — Olhei-a nos olhos, sabia bem o que ela queria dizer. — Não esquece de pensar na sua felicidade ao decidir que caminho seguir. Transborda, prima. Você não precisa do que te limita, na vida a gente precisa transbordar. Se arriscar, viver. Não focar no que deu errado, mas se concentrar no que pode dar certo.
Lembrei da mensagem que recebi no dia anterior. Mais um dos motivos para eu estar uma bagunça por dentro.
O melhor era resolver uma coisa de cada vez. Então peguei o celular e digitei a mensagem.
Alexandre Gomes
Shuri (7h42): Hoje vão chegar as coisas do cenário para o musical.
Acho que vou precisar de ajuda na montagem.
E ali estava o jeito dela de dizer que queria conversar, sem dizer.
Alexandre (8h05): Quanto vou ganhar pelo trabalho de montador? hahaha
Te encontro no auditório quando levar a Isa pra aula.
Com um sorriso no rosto, guardei o celular no bolso do macacão de trabalho e fui ver se Isadora estava pronta para irmos. Agora com os planos da tarde, teria que acelerar qualquer serviço que tivesse para fazer na oficina antes de levá-la para a escola.
— O que acha de ficar na oficina comigo até a hora da escola, baixinha? — Parei na porta do quarto e encostei no batente, observando ela terminar de amarrar os tênis.
— Pode ser. Vou levar um livro então.
Abri um sorriso orgulhoso e assenti ao vê-la ir até a pequena estante de livros no canto do quarto para pegar um exemplar. Lembrei do que ela disse na semana anterior, sobre eu arrumar uma namorada que gostasse de ler. Dava para entender porque ela achava isso importante. Talvez ela sentisse que assim teria uma ligação com a pessoa.
No caminho de casa até a oficina, liguei para minha mãe pelo viva-voz e avisei que não levaria Isadora para a casa dela de manhã.
— Mas ela está bem, filho?
— Sim, vou precisar ir na escola dela à tarde, então ela fica comigo na oficina e depois eu levo. — Pelo retrovisor, notei que Isa me olhou com o cenho franzido, tombando a cabeça para o lado.
— Certo. Beijo da vó, minha pequena. — Ela despediu, já que a ligação estava saindo no auto falante do carro.
— Beijo, vovó. Te amo.
Desliguei a ligação e a música voltou a tocar baixinho no rádio. Até uma pergunta de Isadora me pegar muito desprevenido.
— A tia Shuri é sua namorada?
Olhei pelo retrovisor mais uma vez, sem entender muito bem o porquê da pergunta de repente. Já que ela nem tinha me visto com a Shuri.
— Por que a pergunta, baixinha?
— Vi você segurando a mão dela no hospital.
Precisei de apenas alguns segundos para me lembrar do carinho que trocamos no hospital, Isadora deve ter acordado quando estávamos conversando e não vimos. Logo depois Shuri foi embora e não nos falamos mais, sem nenhum motivo aparente para o afastamento.
— Não, ela não é minha namorada. Apenas uma amiga do passado, que por coincidência reencontrei aquele dia na escola. — Dei um sorriso de canto.
Isadora assentiu e olhou para a janela, mas logo voltou para frente com outra pergunta desconcertante.
— Você gosta dela?
Meu sorriso se alargou, porque a pergunta trouxe à tona cada minuto que passei com ela naquela semana, mesmo que fosse tão pouco. Lembrei de seus olhos se fechando ao dar o primeiro gole na saquerinha de kiwi. Como sua risada ecoava pelo bar, se destacando como uma deliciosa melodia, a qual eu poderia passar o dia inteiro ouvindo. Senti meu coração se aquecer novamente, ao lembrar de seus olhos preocupados e atentos quando disse que Isa estava no hospital, quando ela nem ao menos pestanejou ao dizer que passaria a noite lá comigo. Então, um arrepio percorreu minha espinha, quase podendo sentir de novo sua mão alcançando minha nuca ao nos beijarmos.
Em pouquíssimos dias, Shuri me fez acreditar numa segunda chance com o passado, para renovar meu futuro. Eu só precisava saber se ela queria o mesmo. Mas eu queria, nossa, como eu queria.
— Gosto. Muito. — Nos entreolhamos pelo retrovisor antes de eu estacionar o carro em frente à oficina.
— Devia namorar com ela. Gosto da tia Shuri.
Simples assim, exatamente como uma criança enxerga as decisões da vida. Assim que falou, não esperou que eu dissesse nada, abriu a porta do carro e correu para dentro da oficina, me deixando sozinho com sua sugestão e o coração levemente acelerado.
Shuri de Almeida
Assim que cheguei na escola, fui direto para o auditório ao ser informada que o cenário foi entregue naquela manhã. Tinha muita coisa para organizar e eu nem sabia direito por onde começar. Teríamos o último ensaio antes da apresentação e eu queria que o cenário já estivesse montado, para as crianças sentirem a energia do dia do show no ensaio geral.
Comecei a abrir algumas caixas de acessórios que seriam usados na decoração e fui deixando no meio do palco. Alexandre chegaria em alguns instantes, assim esperava, para abrirmos as placas de madeira que seriam colocadas no fundo do palco, então nem mexi nelas.
Fui na coxia, pegar uma escada para já deixar a postos, para usarmos na hora de pendurar os enfeites.
— Aqui que precisam de mais duas mãos para montar um espetáculo?
Me virei para Alexandre entrando no auditório, usando o macacão do trabalho como calça, uma regata branca e a parte de cima do macacão cinza pendurado na cintura. Ele estava especialmente bonito, com os braços totalmente à mostra e as calças largas do macacão dando um charme diferente.
— Espero que não tenha te atrapalhado.
— Tá tranquilo, final de ano é sempre movimentado na oficina, mas conseguimos adiantar bem o serviço para poder respirar essa semana. — Ele parou ao meu lado, colocando as mãos na cintura para olhar em volta, o amontoado de coisas. — Por onde começamos?
— Aqui, vem comigo. — Indiquei o fundo do palco com a cabeça e esperei que subisse no palco pela lateral.
Observei-o correr até as escadas para subir e logo indiquei os painéis de madeira encostados num canto.
Expliquei como seria montada aquela parte do cenário, que precisaríamos abrir as placas de madeira e aproveitei para dar um parâmetro geral de como ficaria toda a decoração. Alexandre me ouvia com total atenção, como se fosse a montagem do musical da Broadway, fazendo perguntas e até dando dicas sobre os melhores lugares para colocar alguns enfeites.
Levantamos primeiro os painéis, ele pegando de um lado e eu do outro, eram cinco ao total, e juntos formavam uma paisagem lúdica, a Terra do Acontece, onde as crianças iam na noite de natal e todos seus desejos eram realizados. O musical contava a história dessa Terra. Era uma história bonita e trazia a ideia de que tudo pode acontecer quando se acredita de verdade naquilo que sonhamos.
As coisas seriam mais fáceis se tivéssemos a pureza das crianças em acreditar que os sonhos se realizam assim, basta querer de verdade. Mas quando o medo de tentar de novo nos bloqueia, vemos que a vida está longe de ser como na Terra do Acontece.
— Temos uma tarefa desafiadora aqui. — Alexandre me tirou de meus pensamentos.
Ele tinha dois bolos de fio embolados nas mãos.
— Meu Deus! — Soltei uma risada de nervoso e me aproximei dele, de joelhos na frente da caixa de papelão onde estavam as luzinhas.
Iniciamos a luta contra os metros e mais metros de fios enrolados, deixando um breve silêncio tomar conta do ambiente. Desde que começamos a montagem do cenário, havia um clima leve, em que apenas falamos sobre o musical em si e onde seria colocado cada adereço da decoração. Como se não houvesse muito a ser dito. Eu só não sabia como entrar no assunto.
— O que faria se pudesse ir para a Terra do Acontece? — Ele perguntou casualmente, sem tirar os olhos dos fios.
Era uma pergunta boba, mas Alexandre sabia exatamente como entrar num assunto difícil, sem precisar falar diretamente, e eu agradeci mentalmente por isso.
— Me encontraria na música de novo e deixaria de ter medo de recomeçar e me arriscar.
— Por que acha que a música se perdeu de você?
Dei um leve sorriso de canto, ele poderia ter perguntado primeiro sobre a segunda parte da minha resposta, mas escolheu entender o que eu sentia a respeito de algo que envolvia unicamente a mim. Uma das qualidades mais lindas de Alexandre era aquela capacidade de colocar meus sonhos e sentimentos à frente de seus próprios interesses. Como eu poderia negar a mim mesma que em uma semana ele fez eu me apaixonar novamente por cada qualidade e traço que me fez apaixonar há dez anos atrás?
— Quando comecei a tocar, o cello era meu refúgio, eu me escondia do mundo quando entrava no quarto e passava horas e horas tocando. Então surgiu o sonho de tocar na orquestra e eu passei a perseguir isso com total empenho. — Parei para pensar por um segundo, lembrando de como foram os últimos anos. — Acho que deixou de ser um refúgio, para ser uma obrigação, porque tive que me moldar a um estilo de tocar, só para me encaixar num meio para alcançar um objetivo. O cello perdeu o brilho que tinha depois que me frustrei tanto.
— Lembro que você dizia que seu maior sonho era tocar o coração das pessoas com a música.
— Sim, mas não acho que conseguirei isso um dia. Mesmo tendo recebido uma segunda chance com o teste.
Ele arqueou as sobrancelhas com um olhar surpreso.
— Eles te chamaram para um novo teste?
— Recebi a mensagem ontem. Mas eu já tentei tantas vezes, sabe, por que seria diferente dessa vez? Tenho medo de tentar de novo e me machucar mais uma vez.
Percebi que o que disse não valia somente para a música. Alexandre também percebeu e eu senti o ar pesar vários quilos. Nos encaramos por alguns segundos, que pareceram longas horas, até ele corta-lo como quem corta a carne com uma faca afiada. Certeiro e sem rodeios.
— Por isso foi embora aquele dia e parou de me responder?
— Por que seria diferente dessa vez, Ale?
Alexandre abriu um sorriso suave, quase imperceptível e soltou as luzinhas na caixa para segurar em minha mão.
— Não somos os mesmos de dez anos atrás, Shuri. A vida tá me dando uma segunda chance de acreditar em nós, de me apaixonar de novo pela mesma pessoa e não quero desperdiçar isso, não tenho mais idade para perder segundas chances. Quero conhecer cada detalhe seu novamente, me encantar pela sua determinação e segurar na sua mão quando pensar em desistir do que te faz feliz. Seria diferente, porque se você quiser tanto quanto eu quero, não pretendo ir embora novamente. Nunca mais.
Senti meus olhos marejados e as palavras simplesmente sumiram.
— Precisamos terminar isso antes das crianças chegarem para o ensaio. — Me desprendi de seus olhos intensos e levantei. Fugindo como a boa covarde que sou.
Fui terminar de pendurar os enfeites nas árvores de papelão na lateral do palco, perto das coxias, que foram pintadas pelas crianças. Alexandre não falou mais nada e apenas terminou de desenrolar os fios de luzinhas, para pendurar de uma ponta a outra no palco. Pelo canto dos olhos, notei ele se levantar e ir até a escada de abre e fecha. Me aproximei e segurei a escada, por uma medida de segurança irrisória que temos por pensar que vamos realmente conseguir segurar se a pessoa for cair. Observei Alexandre prender as luzinhas e o ajudei do outro lado também. Em completo silêncio.
Assim que terminamos, paramos um ao lado do outro e olhamos em volta, todo o palco montado. Mas faltavam os festões que iriam na borda do palco. Teria que pegar nas caixas guardadas na sala de figurinos e tralhas de outros anos, que a diretora me informou ser nos fundos do palco, subindo as escadas.
— Preciso pegar umas coisas lá em cima. Volto já.
Ele apenas assentiu, colocando as mãos nos bolsos. Corri até os fundos do palco e me deparei com um completo breu, parei e acendi a lanterna do celular antes de continuar. Encontrei as escadas de ferro e subi devagar, já enxergando a porta no topo.
Girei a chave na fechadura e a ouvi destrancar, mas ao empurrar, ela não abriu. Forcei mais um pouco e nada. Tentei forçar mais uma vez, sem sucesso.
— Merda. — Apoiando as mãos no corrimão da escada, debrucei um pouco o corpo, para Alexandre me ouvir chamar. — Ale! Vem aqui, por favor. No fundo do palco, só seguir até o final do corredor atrás dele.
— Tô indo.
Segundos depois que gritou a resposta, ele apareceu no pé da escada.
— A porta tá emperrada. — Apontei para trás, quando ele já estava no meio das escadas.
O espaço era ínfimo e para ele poder se aproximar da porta, encostei na grade de proteção. Observei o braço de Alexandre ficar com os músculos realçados quando ele segurou a porta com certa força para empurrar. Subi o olhar até seu rosto, admirando cada traço bem definido, seu maxilar marcado e a barba aparada. O cabelo mais baixo nas laterais que em cima, alguns fios brancos começando aparecer, que eu só estava vendo por causa da luz da lanterna do meu celular, ainda nos iluminando. O nariz um pouquinho largo para os lados, que de perfil combinava ainda mais com o formato de todos os outros traços. Era um belíssimo conjunto, cada centímetro que compunha Alexandre. O tempo fez muito bem a ele, e eu imaginando que não era possível ele ficar ainda mais bonito que na época da faculdade.
E quem dera ele fosse apenas um rostinho bonito e um quarentão gostoso. Seria um pouco mais fácil ignorar os sentimentos que voltaram a florescer nas últimas duas semanas.
“Se você quiser tanto quanto eu quero”, a voz dele ecoou em minha mente.
— Shuri…
Ele me chamou com um sussurro. Fitei seus olhos, ansiosos por uma resposta. Aquela resposta que eu fugi minutos antes. Não sei quem deu um passo primeiro, mas nossos corpos estavam tão próximos que quase se tocavam. Eu não fui capaz de desviar de seu olhar. A porta da sala tinha sido aberta, mas nenhum de nós parecia conseguir dar um só passo que não fosse na direção um do outro.
— Eu quero tanto quanto você. Mais do que eu imaginei ser possível.
Então acabei com o minúsculo espaço que separava minha boca da dele. Enlacei seu pescoço com os braços, ainda segurando o celular em uma das mãos, sentindo nossos corpos se unirem quando a mão de Alexandre puxou minha cintura para mais perto. Apesar de ansiosos, nossos lábios se moviam como se tivéssemos todo o tempo do mundo.
Dando um passo para o lado, Alexandre me levou consigo para dentro da sala escura e com um leve cheiro de coisa velha. Não partimos o beijo até tropeçarmos numa caixa e ouvirmos coisas caindo. Eu quase fui ao chão também, mas Alexandre me segurou, quase se desequilibrando também. Começamos a rir abraçados ao nos afastar da bagunça. Ele escondeu o rosto na curva de meu pescoço e depositou um beijo no local.
Ao me olhar novamente, deu um selinho demorado e fez um carinho em meu rosto, brincando com um cacho solto. Eu nunca acreditei na tal magia do natal, mas abriria uma exceção depois do Natal me presentear com aquele par de olhos apaixonados me encarando como se fosse a última mulher do mundo. Se aquele brilho não era pura magia, eu não sabia o que podia ser.
— Vamos pegar as coisas e colocar algo para segurar essa porta. Não estou a fim de protagonizar uma comédia romântica de natal, em que o casal fica preso numa sala e acabam se pegando.
— Não que a ideia de nos pegarmos seja ruim. — Alexandre respondeu provocativo ao se afastar para fazer o que falei, colocando uma caixa para segurar a porta aberta.
— Só não precisa ser aqui, né? — Dei uma risada sem graça e apontei a lanterna do celular para frente, procurando pelas caixas de festão e guirlandas.
— O que estamos procurando mesmo?
No momento que ele perguntou, encontrei a caixa com uma ponta de festão grosso caindo para fora.
— Aquilo.
Apontei para uma pilha de caixas no canto da sala e Alexandre foi na frente para pegar. Mas assim que as puxou, ele parou, olhando para algo que estava atrás, encostado na parede. De onde eu estava não podia ver o que era, então me aproximei com o cenho franzido.
— Tenho saudades de ver você tocar. Quando você tocava só pra mim. — Ele confessou, com a voz suave feito veludo.
E eu quase estendi o braço para pegar o violoncelo empoeirado. Mas de repente um receio enorme tomou conta de mim, como se eu não fosse capaz de tocar de novo. Nem mesmo a mensagem para um novo teste me deixou tão apreensiva.
— Ainda temos um tempo até o ensaio. — Ele disse, olhando as horas no relógio de pulso. — Estamos só nós dois aqui, pode ser bom sentir de novo o prazer de tocar apenas… Porque sim. — Deu de ombros, com um sorriso divertido nos lábios, e então arqueou uma sobrancelha, de forma sugestiva.
Voltei a olhar para o instrumento. Fazia meses que eu não pegava num cello, meses que me recusava a sequer chegar perto de um. Então respirei fundo e o peguei pelo braço.
Alexandre deixou as caixas de festão de lado e tirou um teclado velho, com teclas quebradas de cima de um banquinho preto, e o puxou para perto de mim. Me sentei na ponta do banco ao entregar meu celular para ele, que ficou me iluminando com a lanterna.
Dei uma afinada rápida e depois de olhar mais uma vez para Alexandre, que aguardava eu começar, com os olhos ansiosos e um enorme sorriso de incentivo nos lábios, posicionei os dedos no braço e descansei a crina do arco sobre as cordas por um segundo, antes de iniciar a música que mais toquei nos últimos dois anos, sentindo a mão extremamente trêmula e o cello parecendo duas vezes mais pesado apoiado em minha perna. Todas as recusas e palavras dos avaliadores caíram feito a queda d'água de uma cachoeira em minha cabeça.
— Não, essa não. — Parei nos primeiros acordes de uma sonata de Beethoven e o olhei sem entender. — Quero te ouvir tocar com o coração, como você fazia antes.
— Faz anos que não componho no cello, Ale.
Ele apoiou o celular numa caixa perto de nós e passou uma perna por cima do banco, sentando atrás de mim. O olhei por cima do ombro, rindo um pouco, sem entender o que ele estava fazendo. Alexandre apoiou as mãos na minha cintura e deu um sorriso que fez eu sentir como se meus ossos fossem de gelo e estávamos perto de uma fogueira.
— Confia em mim… — ele sussurrou e me deu um beijo no rosto.
Endireitei a coluna novamente e voltei a olhar para o cello, mas antes de começar a tocar, fechei os olhos e tentei buscar em algum lugar a conexão que tinha no passado, com o instrumento. Deslizei o arco devagar, sem emitir qualquer som.
— Esquece todas as obrigações e regras que colocou sobre seus ombros e em seus dedos, nos últimos anos.
Ele subiu as mãos pelo meu tronco com suavidade, e aos chegar em meus ombros, os apertou com as pontas dos dedos, como uma massagem. Aquilo me fez sorrir e tombar a cabeça para um lado e para o outro uma vez. Logo as mãos dele desceram pelo mesmo caminho e encontraram novamente minha cintura.
— Transforma em música o que você está sentindo agora. O arrepio na pele, enquanto ela queima com minha proximidade. — As palavras em meu ouvido vieram acompanhadas de um beijo em meu pescoço, me fazendo morder o lábio inferior. — O que você tá sentindo, princesa?
E como se minhas mãos tivessem vida própria, pressionei a crina nas cordas com a mesma intensidade que meu coração acelerou. Segui por aquele caminho e fiz das batidas aceleradas do meu coração os acordes da introdução de We Found Love, da Rihanna. Quando senti os lábios de Alexandre tocarem meu ombro, fiz uma variação no meio da música, que não fazia parte dela originalmente, com uma interpretação minha. Exatamente como eu fazia quando tocava pra ele, transformando as músicas em algo meu, fossem as interpretações mais loucas e diferentes possíveis.
Então eu voltava para a música, sentindo-a em cada partícula do meu corpo. Aquele turbilhão de coisas que eu senti em uma única semana em uma trilha sonora, acelerada e dançante, mas também intensa e cheia de nuances em alguns pontos.
Eu e o violoncelo éramos como um só novamente. A vibração das cordas parecia entrar pelos meus dedos e reverberar dentro de mim. E mesmo que não pudesse ver, eu sabia que Alexandre sorria quando senti suas mãos descansarem sobre minhas coxas. Seus olhos estavam sobre mim, me admirando com adoração enquanto tocava, como se eu fosse a mulher mais linda do universo, foi quando virei o rosto para ele ao diminuir a intensidade da música.
No começo, iniciei os primeiros acordes com a explosão do meu coração, desesperado ao senti-lo tão perto. Finalizei com acordes longos, puxando o arco até o final, ressoando até sumir feito um eco, como a calmaria de estar em seus braços. Nós éramos música. Um conjunto de acordes que combinava tanto, que nada mais justo que pedirmos bis.
— Você é incrível. — Alexandre encostou o rosto na lateral do meu, roçando o nariz levemente em minha bochecha.
Pensei em responder, dizer qualquer coisa que pudesse descrever o que tinha acabado de acontecer. Mas mesmo que eu fosse capaz, não foi possível. Ouvimos o sinal da escola ecoar por todo o prédio, nos avisando que o período de aulas comuns acabou e se iniciaria as aulas complementares.
— Precisamos ir.
Nos levantamos ainda um pouco desnorteados com a intensidade daquilo tudo. Coloquei o cello de volta no lugar que estava e peguei meu celular. Alexandre pegou as duas caixas de festão, o verdadeiro motivo de estarmos ali, mas antes de sairmos da sala, toquei seu braço para que me olhasse. Colei meus lábios nos dele em um beijo carinhoso, cheio de gratidão.
— Obrigada.
— O mérito é seu, mas de nada. — O sorriso dele iluminou seu rosto e a mim.
Alexandre foi na frente e assim que descemos as escadas, peguei as caixas de suas mãos. Nos despedimos com um selinho rápido e ele achou melhor ir embora pelos fundos do palco, para não serem vistos ali sozinhos por alguma professora que estivesse com as crianças ao entrarem no auditório.
— 23 de Dezembro de 2022
A apresentação do musical foi um sucesso. Isadora era sem dúvidas a criança mais linda e carismática em cima do palco. E talvez isso seja apenas meu lado pai coruja falando, mas é incontestável que era a criança mais bem preparada e focada de todo o musical.
E além da minha baixinha, quem também roubou a cena e um pouquinho mais do meu coração, foi a Shuri. Que quase sofreu um ataque nervoso, minutos antes da apresentação começar, quando o tecladista do musical ligou avisando que teve uma emergência médica e não poderia ir. Havia um pequeno intervalo no meio do musical, um solo do tecladista, tocando What a Wonderful World, antes de entrar no ato final.
Para minha completa surpresa e orgulho que mal cabia no peito, vi Shuri subir no palco no início do musical, acompanhando toda a apresentação com o cello que encontramos na sala de figurinos. Ela olhou para mim e trocamos um sorriso antes dela iniciar o solo. E claro que não foi uma versão comum da música, não havia nada de comum em Shuri, porque ela é extraordinária. Dando um toque todo especial à música, fez algumas variações no começo e transformou uma música já tão conhecida em algo totalmente dela. Foi impossível não se deslumbrar, eu e todo o auditório, explodimos em palmas e vibrações quando ela finalizou com toda elegância e paixão transbordando nas cordas.
Quando todas as crianças desceram no palco, foram de encontro com os pais e eu esperei Isadora na lateral do auditório, junto com Alison e minha mãe.
— Nossa menina estava tão linda — minha mãe comentou e disse mais alguma coisa que não prestei atenção enquanto olhava por cima das pessoas, na direção da lateral do palco.
— Procurando alguém, Alexandre? — Alison perguntou ao meu lado, com um tom malicioso, assim como seu sorriso quando me virei para ele.
— Deve ser a menina. — Minha mãe rolou os olhos.
— Mulher, mãe. Ela não é uma adolescente e ficarmos juntos não é nenhum crime e diz respeito somente a nós dois. Foi assim há dez anos atrás e continua sendo. Amo a senhora, mas espero que respeite minha escolha, mesmo que não concorde. — Disse sério e com toda calma que havia em mim.
De estranhos, se houvesse, eu não me importava e estava pouco me lixando, mas dela, eu não aceitaria passar por aquele julgamento sem sentido de novo.
— Me preocupo com minha neta também…
Bem no momento que ouvi minha mãe falar sobre Isadora, encontrei Shuri se despedindo de homem que a cumprimentou com um aperto de mão. E ao lado dela, Isadora segurava em sua mão, logo a puxando na nossa direção.
— Não acho que para a Isa seja um problema. — Alison comentou com um sorriso e não pude deixar de sorrir também. Minha mãe apenas respirou fundo e relaxou os ombros, vencida.
— Papai, a tia Shuri pode ir na Ceia lá em casa? — Isadora pediu afobada e pelo olhar de Shuri, nem ela tinha recebido o convite ainda.
Nós dois rimos e eu me voltei para minha filha.
— Mas você perguntou se a tia Shuri já tem planos?
Isadora franziu a testa, como se realmente nem tivesse cogitado a possibilidade.
— Você tem? — perguntou, olhando para Shuri, que de braços cruzados, sorriu carinhosa e negou com a cabeça. — Então você vai? — Isa abriu um sorriso enorme, com os olhos ansiosos, unindo as mãos na frente do rosto.
Shuri olhou para mim, como se perguntasse se o convite realmente era válido e eu assenti levemente, com um sorriso de canto. Ela olhou novamente para Isadora para responder.
— Vou sim, pipoquinha.
Isadora deu um pulinho de empolgação e abraçou a cintura de Shuri, que retribuiu o abraço. Uma cena que fez meu coração transbordar.
— Agora vai dar um beijo no seu tio ou só a tia Shuri recebe essa atenção toda? — Alison reclamou e Isadora riu ao se virar para dar um abraço nele e na avó ao mesmo tempo. E ao afastar o abraço, fez o toque de mãos que tinha com o tio, que incluía palma com palma, costas com costas da mão, soquinho duas vezes, continência. E apesar de ter decorado, não tinha autorização para reproduzir, era algo só dos dois.
Apoiei a mão na curva da coluna de Shuri ao meu lado, quando minha mãe a cumprimentou da forma mais simpática que conseguia. Alison sugeriu levar Isadora para tomar sorvete.
— Podem ir na frente, encontro vocês lá.
— Certo, até amanhã, Shuri. — Alison se despediu e antes de irem, Isadora se aproximou novamente e Shuri abaixou para abraçá-la e dar um beijo em sua bochecha.
— Até amanhã, pipoquinha.
Observamos os três sumirem no meio de algumas pessoas até saírem pela porta e eu voltei a apoiar a mão nas costas de Shuri, agora fazendo-a ficar de frente para mim.
— Pipoquinha? — Soltei uma leve risada, franzindo o cenho.
— Dei esse apelido pra ela no ensaio geral, porque ela tava tão ansiosa e eufórica que não parava um minuto.
— É justo, o apelido combina com ela. — Rimos juntos e eu não resisti ao quão especialmente linda Shuri estava, roubei um selinho em meio a seu sorriso. — Você estava linda no palco… — aproximei a boca do ouvido dela — e extremamente sexy. Passei todo o seu solo com vontade de tirar esse seu vestido. — Beijei levemente seu ombro nu, notando a pele dela arrepiada e quando nossos olhos se encontraram novamente, havia um desejo neles que me fez ter vontade de pegá-la no colo e sair dali naquele segundo.
— Quase todo mundo já foi embora… — Ela olhou em volta rapidamente, o auditório já quase todo vazio, então mordeu o lábio com um sorriso travesso. — Vamos realizar sua vontade.
Ela me puxou pela mão e eu a segui sem hesitar. Fomos pra minha casa e eu apenas digitei uma mensagem rápida para Alison, no caminho até o carro.
Alexandre (20h40): Não vou aí.
Podem demorar.
Alison (20h53): 😏
— 24 de Dezembro de 2022
Uma ceia resumida em: a mãe do Alexandre me investigando 90% da noite e nos outros 10% relutando para não ser legal demais comigo, porque percebeu que sou um amorzinho e não tem porque não me querer por perto.
Mas além disso, tivemos uma ceia incrível e realmente deliciosa. Foi ótimo ter esse momento especial com mais pessoas à mesa. Não somente eu e minha mãe num restaurante cheio de pessoas com famílias pequenas demais para fazer uma ceia em casa. Ou quando tinha o Luiz e era somente nós dois, porque ele não se dava bem com o pai e a mãe já tinha falecido. Nos últimos anos minha mãe dificilmente ia para São Paulo no Natal, porque estava sempre passando em algum lugar diferente com o namoado. Sorte a dela ter encontrado o amor, mesmo depois dos cinquenta.
E sorte a minha, que me reencontrei comigo mesma e com o amor, da forma mais lindamente inusitada possível.
Foi uma noite divertida, como fazia tempo que não eram os meus natais. Rindo de coisas bobas, conversando, fofocando sobre vidas alheias — mesmo que, no caso, a maioria eu nem conhecia, mas amei escutar sobre. Tivemos piada do “é pavê ou pacumê” a cargo do tio Alison, e mais um longo arsenal de piadas do mesmo nível para pior. Recebi de Isadora uma atenção e carinho tão especiais que eu nem sentia merecer. Ela me levou para conhecer o quarto dela e suas bonecas, carrinhos e robôs. E ainda pediu para o pai tirar uma foto nossa com a câmera instax, porque queria colocar no mural. Depois brincou por horas com Alison, até pegar no sono, deitada no sofá, enquanto na televisão reprisava o Especial de Final de Ano do Roberto Carlos.
Eu me senti em casa durante toda a noite, me senti acolhida. Foi o natal mais surpreendente e aconchegante que tive em muito tempo.
— Talvez, apenas talvez, eu tenha tido uma ideia errada de você — a mãe de Alexandre confessou o óbvio e eu apenas sorri quando ela segurou com minhas mãos, quando foi se despedir. — Mas ele gosta mesmo de você e meu filho é um homem maravilhoso, não se interessaria por alguém que não valesse a pena. Foi bom ter a chance de te conhecer um pouco melhor, Shuri.
— Foi bom te conhecer também. — Após um abraço breve, ela se despediu do filho com um beijo no rosto, antes de passar pela porta.
— Já posso te chamar de cunhada? — Alison perguntou ao separar o abraço que me deu e eu apenas dei risada ao notar o olhar de repreensão de Alexandre. Por mais que eu soubesse com toda certeza que por ele, a resposta era sim. — Então vou te chamar de cu, assim não fica tão sério. — Alison deu de ombros, rindo com aquele jeito maroto inconfundível dele.
— Boa noite, cu. — Dei um tapinha em suas costas, o empurrando para fora.
— Ela já tá até me expulsando. — Levou a mão ao coração e abriu a boca, com uma careta de ofendido.
— Tchau, Alison. — Alexandre acenou e fechou a porta rapidamente.
— Feliz Natal, pra nós. — Passei os braços em volta da cintura de Alexandre e depositei dois selinhos demorados em seus lábios, que ele emendou num beijo.
— Quer terminar de matar a garrafa de vinho? — Alexandre perguntou com um sorriso travesso.
— Vamos.
— Vou só colocar a Isa na cama e depois sou todo seu. — Deu uma piscadinha ao se afastar. E em meio a uma leve risada, dei um tapa na bunda e Alexandre apenas se virou para mim rapidamente, dando dois passos de costas para advertir. — Espero que saiba, que irei retribuir.
— Fico no aguardo. — Mandei um beijo no ar e fui para a cozinha.
No caminho até a cozinha, passei na mesa de jantar ainda com algumas coisas da ceia e peguei algumas uvas. Então encostei no batente do portal que ligava ao hall de entrada e a sala. Observei Alexandre com Isadora nos braços, os bracinhos dela envolvendo seu pescoço. Deitei a cabeça na madeira polida ao levar uma uva à boca e sorri admirada quando ele sumiu pela porta do quarto de Isadora.
Fui para a cozinha e peguei duas taças no armário. Enchi as duas com vinho tinto e dei um gole na minha, assim que o fiz, senti a presença de Alexandre atrás de mim. Ele enlaçou minha cintura com os braços, me fazendo rir ao roçar a barba em meu pescoço, depositando um beijo no local.
— Tenho uma coisa pra você.
Me virei para ele entregando sua taça e depois de dar um bom gole, pegou uma caixinha no bolso de trás das costas.
— Não comprei nada pra você, Ale. Assim vou ficar sem graça. — Olhei para a caixinha de veludo em minhas mãos.
— Deixa de bobagem, você já me deu o melhor presente possível.
— É mesmo?
— Sim, uma segunda chance. — O sorriso largo iluminou o rosto dele e agradeci com um selinho demorado em seus lábios.
— Vamos, abre. Quero saber se vai gostar.
Alexandre estava ansioso e sua animação me fez rir um pouco. Então abri a tampa e me deparei com um colar prateado, com o pingente da máscara do Pantera Negra. Bem sugestivo e muito, muito lindo.
— Muito brega? É né? Devia ter escolhido algo diferente.
— Ale, calma! Eu amei. — Espalmei a mão em seu peito, o interrompendo antes que tive um ataque cardíaco de ansiedade.
Tirei o colar do repouso em veludo e deixando a caixinha de lado, olhei os detalhes mais de perto. Virei o pingente e encontrei algo gravado bem pequeno com letras cursivas.
— A”
— É lindo, Ale. Obrigada.
— Pra você não esquecer de mim, quando voltar pra casa. — Ele segurou um cacho que caía na lateral do meu rosto, enrolando-o no dedo.
Era o momento perfeito para contar a novidade.
— Talvez eu não precise.
Alexandre me fitou confuso.
— Vou me mudar pra Rio Claro. — A expressão de confusão mudou para surpresa. — O pai de uma aluna que estava no musical, me convidou para um projeto que tem aqui, envolvendo música clássica em diferentes interpretações, eles trabalham em conjunto com o coletivo de cinema da cidade.
— Nossa! Eu nem sei o que dizer. — O sorriso empolgado de Alexandre enfeitou seu rosto e o iluminou mais que as luzinhas de árvore de natal.
— E outra coisa, eu gostei de trabalhar com as crianças nos ensaios. Fiz Licenciatura em Música — dei de ombros — a Bruna ainda vai precisar de uma substituta depois que o bebê nascer.
— E o teste da Sinfônica?
— Uma pessoa me fez relembrar como era tocar com o coração e não por obrigação. — Alexandre deu um sorrisinho de canto — eu foquei tanto em realizar o sonho do meu pai que deixei de lado o que eu realmente amo no cello. Sempre gostei de fazer coisas fora da caixa e parece que nos últimos anos eu me perdi disso. Quando a avaliadora da orquestra disse que eu não era autêntica, ela tinha razão… porque aquela não era eu. Não tinha autenticidade nenhuma naquela Shuri tocando sonatas e padrões difíceis. — Nós dois rimos e Alexandre me puxou para um abraço.
— Estou tão orgulhoso de você, por estar se arriscando e tentando algo novo. — Depois de um beijo em meu rosto, me olhou novamente — Eu tenho certeza que você vai se sair muito bem, e eu vou estar aqui, pra te dar todo apoio que precisar.
— Sabe, ser professora é exaustivo, talvez eu precise do seu apoio com uma massagem sempre no final do dia.
— Acho que vou precisar treinar então… — Levou as mãos aos meus olhos e os apertou suavemente com as pontas dos dedos.
Quando fechei os olhos senti Alexandre se aproximar um pouco mais do meu corpo. Deixei o colar na pia, perto da caixinha e assim que ele desceu as mãos pelo meu troco, as mãos suaves feito duas plumas, enlacei os braços em seu pescoço. Ao alcançar meus lábios com os dele, suspendeu meu corpo pela cintura, me sentando na beirada da pia. O tecido do vestido subiu, revelando mais das minhas pernas, um incentivo para as mãos dele passearem pela região.
Travei as pernas em volta da cintura de Alexandre, sentindo cada parte do meu corpo em contato com o dele. O clima quente que envolvia a cidade, queimava dentro da cozinha e ardeu em nossos corpos ao intensificarmos o beijo.
Então Alexandre deu um passo para trás e me levou consigo na direção do quarto. Por sorte não trombamos em nada, para não correr o risco de Isadora acordar. Chegando na última porta do corredor, ele entrou no cômodo e fechou a porta com cuidado para não bater. Partimos o beijo por um segundo, para recuperar um pouco do fôlego e foi impossível não sorrir ao sentir a respiração acelerada dele tão próxima. Ele estalou um tapa em minha bunda e mordeu meu lábio, o puxando devagar.
— Minha princesa — sussurrou com os lábios roçando nos meus e voltou a andar na direção da cama de casal.
— 25 de Dezembro de 2022
Acordei sentindo a perna de Shuri sobre minhas pernas e o braço abraçando meu peitoral. Tomava todo o espaço da cama, deixando apenas alguns centímetros para mim. Inclusive, seus cabelos volumosos, uma verdadeira coroa, tinha alguns cachos em meu rosto. Afastei-os com a mão antes embaixo da minha cabeça. Sorri com o contato delicioso do corpo dela tão emaranhado no meu. Cheirei os cabelos dela e fiz ali um cafuné lento e preguiçoso.
Poderia facilmente passar o dia inteiro naquela posição, apenas sentindo as batidas calmas de seu coração, o calor de sua pele e seu cheiro floral levemente adocicado. Respirei fundo e fechei os olhos novamente, só por mais alguns minutinhos. Continuei fazendo cafuné na cabeça dela, relembrando cada momento que tivemos juntos até chegarmos ali. A vida é louca demais.
— Tá acordado? — Shuri perguntou baixinho, para que eu ouvisse apenas se não estivesse dormindo.
Respondi um "uhum" e levei a mão livre até o braço dela que ainda descansava em meu peito.
— Não acha melhor eu ir antes da Isa acordar?
— Por quê?
— Tenho medo de ficar estranho. Ela achar estranho. Talvez seja bom ir com calma nessa parte.
Me ajeitei na cama, mudando de posição para olhá-la e fiz um leve carinho em seu rosto.
— Sabe qual foi a pergunta que ela me fez no dia que fui te ajudar na montagem do cenário? Se você era minha namorada.
Shuri arregalou um pouco os olhos, com uma risadinha envergonhada, que causou um tom avermelhado em suas bochechas, sendo realçado por sua pele marrom. Uma reação que me fez rir quando ela tentou esconder o rosto com as mãos, logo caindo na risada também.
— Mas ela nunca tinha nos visto juntos. Tinha?
— No hospital, ela acordou e nos viu de mãos dadas.
— Bom… E ela disse que gosta muito de você e que deveríamos namorar. — Fixei nos olhos dela, tentando conter um sorriso ansioso, sem sucesso.
— A Isa é especial demais, também gosto demais dela e é bom saber que ela acha isso.
— Então, estamos namorando?
Assim que a pergunta saiu, me arrependi. Faziam apenas duas semanas que nos reencontramos, mas ela estava ali, pegando na minha cama o mesmo espaço que ocupava no meu coração. Talvez, uma pequena parte do meu coração nunca deixou de ser dela, essas duas semanas só serviram para acordar o sentimento. E não era surpresa alguma para Shuri que eu não era o maior fã de perder tempo. As coisas acontecem em tempos diferentes para cada casal. Dez anos já foram o suficiente.
Aquele brilho em seus olhos enquanto me encarava em silêncio, precisavam significar que ela sentia o mesmo. E que assim como eu, só queria passar o restante dos nossos dias juntos, sendo aquele apenas o primeiro dos muitos natais ao seu lado.
— Não tô disposta a perder mais nenhum minuto com você. Então sim, acho que sim, estamos namorando — Shuri respondeu sorridente.
Puxei-a para junto de mim e rolei na cama, cobrindo seu corpo com o meu em meio a algumas risadas.
Ao sairmos do quarto, Shuri usando uma calça moletom minha e a menor camiseta que encontramos no meu armário, demos de cara com uma Isadora esparramada no sofá, assistindo Shrek Especial de Natal.
— Tia Shuri? — Ela tombou a cabeça pro lado, com um careta — Você dormiu aqui?
— Dormi sim. — Shuri se aproximou do sofá e apoiou as mãos no encosto, quando Isadora ficou de joelhos no sofá. Eu encostei no batente da porta do corredor, apenas observando a cena de longe.
— E você vai dormir de novo, outro dia?
— Se não for um problema pra você, pipoquinha, eu vou sim, de vez em quando. — Minha filha batucou algumas vezes o indicador na bochecha, com uma expressão pensativa.
Essa menina é uma figura. Dei uma risada baixa.
— Você sabe fazer panquecas igual a do pica-pau?
— Sei sim.
— Então por mim, tudo bem. — Ela cobriu a boca com a mão em concha e se inclinou um pouco para mais preto de Shuri, que se aproximou mais também. — A que meu pai faz não fica muito boa.
— Eu ouvi isso, mocinha. — Arqueei uma sobrancelha ao caminhar até o sofá.
— Papai, já posso entregar o presente da tia Shuri?
— Claro, pega lá.
Isadora pulou do sofá e saiu correndo, enquanto Shuri me olhou com um sorriso confuso ao nos sentarmos no sofá.
— Ela tava tão ansiosa pra te dar… Ou melhor, pra nos dar. — A confusão nos olhar de Shuri só ficou maior, mas até eu estava ansioso para ver a reação dela com o presente que a Isadora escolheu.
Minha filha surgiu na sala correndo e com um sorriso gigante nos lábios, segurando três saquinhos de presente. Um verde, que ela entregou para Shuri, um vermelho que ela entregou pra mim e um prata, que ela continuou segurando.
— Vamos abrir os três juntos. — Isadora sugeriu e se sentou no chão, na nossa frente.
Abrimos o laço e contamos até três em coral, para tirar o presente de dentro dos saquinhos. Quando puxamos ao mesmo tempo, cada um tinha em mãos uma camiseta vermelha, com detalhes em verde e a estampa de um boneco de neve na frente. Shuri abriu a boca, embasbacada, alternando o olhar entre as três camisetas.
— Eu queria casacos iguais, igual nos filmes da Netflix, mas o papai explicou que nos filmes é o Natal dos Estados Unidos, e lá é muito frio. Então, como aqui tá calor pra dedéu, escolhemos camisetas. — Ela deu de ombros e se levantou num salto, para pular no sofá, ao lado de Shuri. — Você gostou?
— Eu amei, pipoquinha! — Shuri respondeu, olhando novamente para a camiseta aberta em cima das pernas. Então voltou-se para Isadora e a puxou para um abraço apertado, que foi logo correspondido.
Meus olhos brilharam. Aquela era uma cena que nem nos melhores dos meus sonhos eu imaginava presenciar. Foi o Natal mais improvável que poderia acontecer.
— Que tal irmos ao Lago Azul fazer um piquenique de café da manhã, com nossas camisetas novas? — Shuri deu a ideia e Isadora só faltou explodir em animação. As duas olharam pra mim e eu apenas assenti, com um largo sorriso.
Ficamos sozinhos em questão de segundos, quando Isadora correu de volta para o quarto com sua camiseta. Soltei uma risada e beijei a bochecha de Shuri, que me olhou com um sorriso iluminando seu rosto. Ela brilhava, sua beleza era incandescente, mais que toda a Times Square iluminada ou o Natal Luz de Gramado. Shuri era luz pura e era bom demais saber que ela aceitou iluminar minha vida um pouquinho mais.
Estavamos só começando o novo capítulo do nosso recomeço.