Codificada por: Saturno 🪐
Última Atualização: 28/12/2024.O investigador encarou a porta semi-aberta da casa de portão baixo e jardim lânguido, suspirou algumas vezes antes de seguir a responsável pela equipe de perícia.
Conforme se aproximava da porta de madeira, os acordes meio distorcidos da música se aproximavam de seu ouvido, ouviu flashes de câmera, conversa baixa, mas, quanto mais próximo da casa, mais alta a canção ficava. Ao entrar na sala de estar simples, isolada pela polícia, encontrou um corpo feminino tão sem vida quanto o jardim.
A mulher estava jogada de qualquer forma no chão da sala e, ali, seria só mais um dos tantos casos de homicídio que o DHPP tinha que investigar em São Paulo, se não fossem pelas luzes do pisca-pisca — que antes provavelmente adornava a janela próxima à árvore de Natal — agarradas ao pescoço dela com tamanha firmeza que a esganaram, pela parte de seu rosto que era coberta por um gorro de Papai Noel e pela canção, que ele jamais tinha achado aterrorizante mas que, naquela cena, arrepiava os pelos de seus braços.
Noite feliz.
— O que você acha, ? — Rosana, responsável pela equipe de perícia, perguntou, colocando as mãos na cintura ao observar o corpo inerte no chão.
— Um crime desses duas vezes? — ele disse, ele cruzou os braços, acenando com a cabeça para que a equipe dela começasse o trabalho — Impossível ser coincidência.
— Nunca vi algo parecido antes — a perita disse, balançando-se como se um arrepio tomasse seu corpo.
— Infelizmente, Rosa — ele disse, virando-se levemente para observá-la — Eu acho que sei de onde vem.
terminava a torta favorita de seus pais, passando uma camada generosa da geleia de frutas vermelhas que havia feito semana passada por entre as frutas, justamente para quebrar a doçura do recheio antes de finalizar com as tiras de massa cortadas com precisão. Quando se deu por satisfeita, jogou os materiais restantes na pia, lavou as mãos e checou a temperatura do forno antes de levar a forma até o interior dele, ajustando o timer para trinta minutos para, finalmente, tirar o avental que havia ganhado de presente da avó quando criança e voltar para a sala, onde e assistiam a um documentário sobrenatural na televisão.
— Eu fiz a torta, mas vocês lavam a louça, hein? — ela disse, passando por trás do sofá para não atrapalhar a sessão de doc dos dois, tocando a estrela no topo da árvore de Natal que tinha uma foto do primeiro cachorro deles, Bechamel, que havia morrido um ano antes.
— Por essa torta, eu lavo até dez pias de louça, meu bem — seu pai disse, agradecendo aos céus pelo dom da filha.
— E sorrindo! — a mãe completou, observando a filha se jogar na rede rosa pendurada na varanda traseira da casa, onde ela costumava gostar de sentar com o notebook no colo para escrever, os pisca-piscas pendurados no parapeito adornando a visão tranquilizadora de um dia de folga dos três.
sorriu, abrindo o arquivo já iniciado do capítulo quatro de sua última fanfic publicada, relendo o último trecho para relembrar onde havia parado na última vez que escreveu.
Porém, antes que seus dedos tocassem o teclado, a campainha lá embaixo soou, assustando os pais concentrados nas evidências sobrenaturais na TV. Sem hesitar, levantou do sofá, descendo as escadas até encontrar a campainha insistente no portão da casa e, para sua surpresa, , irmão do melhor amigo da filha, estava bem ali, uma expressão séria no rosto ao lado de um outro oficial de justiça igualmente sério.
— , está tudo bem? — o homem perguntou, tirando os óculos de armação fina, notou um barulho nas cortinas da varanda da frente, percebendo que a esposa e a filha tinham se aproximado secretamente
— Perdão pelo incômodo no meio da tarde, — o garoto, chamado assim porque ainda se lembrava dele como uma criança de idade próxima da filha, disse, observando os arredores — Mas tenho ordens para conduzir a até a delegacia.
— Oi? — a mencionada apareceu por trás da cortina, fazendo a cascata de luzes pendurada ali balançar, com uma expressão completamente confusa no rosto — Isso é pegadinha do ?
— Acha que eu traria um oficial comigo só para uma “pegadinha”, ? — perguntou, apontando para o homem ao seu lado, tentando não soar tão ríspido na frente dos pais dela.
— E por qual motivo você precisa dela? — resolveu aparecer pela cortina também, cruzando os braços no parapeito — Você trabalha com homicídios, .
— E a não mata nem uma mosca — brincou, fazendo as mulheres na varanda rirem.
— Ela se tornou uma pessoa de interesse em um caso recente — o oficial disse, meio abismado pelo tom leve com que a família estava levando uma intimação real, o que não surpreendia, , as famílias dos dois eram iguais — Acredito que tenham visto na TV o caso de duas mulheres que foram encontradas mortas em casa em condições similares.
— Ah, eu vi — disse, relembrando a matéria que havia visto no jornal mais cedo — Estava tocando alguma música no lugar, não era?
— Anitta, não era? — completou, olhando para a esposa lá de cima.
segurou o riso ao notar revirar os olhos e o oficial dar uma risadinha nasalada.
— Era Noite Feliz — revelou, o tom de voz ficando mais grave conforme a paciência dele ia embora — Isso te lembra algo, ?
— Natal? — ela provocou, sabia que o irmão de não ia com a cara dela, então, usava toda e qualquer oportunidade que tivesse para irritá-lo mais.
— Quem sabe se eu te disser… — o investigador baixou o tom de voz, ouvindo um barulho na casa da frente — que as pessoas foram encontradas asfixiadas com o pisca-pisca das próprias residências e com os olhos cobertos por um gorro de Papai Noel, você não se lembra de algo?
observou com satisfação a expressão no rosto dela mudar, de reconhecimento pelas palavras dele para horror.
— Mas…. isso é impossível — ela disse, ajustando a própria postura.
— Diga isso para a família daquelas duas mulheres — o investigador rebateu.
— Filha, o que tá acontecendo? — perguntou, percebendo que os batimentos dela estavam mais acelerados que o normal.
— O que é impossível? — complementou, observando a filha.
não respondeu, suspirou, olhou uma última vez para e disse:
— Vou desligar a torta no forno e podemos ir — ela disse, observando brevemente os pais — Eu preciso ir na viatura? Ou eles podem ir comigo?
— É melhor que você venha com a gente — o oficial respondeu, notando o choque e confusão nos rostos dos mais velhos — Mas eles podem nos acompanhar tranquilamente.
assentiu, entrou em casa novamente, desligou o forno e ignorou as perguntas da mãe, não por querer, mas sim porque sua mente rodava com as informações que havia lhe dado.
Era impossível!
trancou a porta, a garota apertou as mãos do pai, que aguardava a chave do carro trazida pela esposa.
— Tá tudo bem, lá eu explico melhor — ela disse, sorrindo para o rosto tomado de preocupação de — Deixa só… Eu preciso entender melhor.
— Confio em você, meu bem — o pai disse, deixando que ela fosse conduzida pelos dois até a viatura completamente desligada e discreta na rua residencial.
Conforme entrava no carro, sentando-se no banco de trás, viu Portuga, o vizinho mega estranho da frente, espiando pela janela com o olhar ansioso.
— Era ele quem deveria ser questionado — ela apontou com a cabeça para a casa totalmente mal iluminada ao lado.
— Por que? — perguntou, do banco do carona, antes de sibilar — Põe o cinto.
— Puta cara esquisito — ele fez careta, colocando o cinto como ele havia mandado — Certeza que tá devendo.
O oficial de justiça a encarou pelo retrovisor interno, observando como ela encostou a cabeça na janela fechada com preocupação. Se estivesse certo, quem estaria devendo — e muito — seria a própria .
Antes que pudesse xingar mentalmente mais uma vez, ele abriu a porta, observou o rosto dela, fechou a porta e jogou uma pasta em cima da mesa na frente dela antes de sentar na outra cadeira disponível.
— Preciso fazer algumas perguntas para você, tudo bem? — ele disse, abrindo a pasta e checando as informações contidas ali.
— Na verdade, eu preciso fazer uma pergunta pra você — ela respondeu, apoiando as mãos nos braços da cadeira.
— Não é assim que funciona, — exclamou, levantando os olhos para observar a garota.
— Como é que você sabe que eu escrevi isso? — ignorou o comentário, perguntando o que realmente queria saber — Jogou as palavras no Google e chegou no site?
— Não — suspirou antes de continuar, sabia que ela não iria colaborar com ele se não desse a resposta que ela queria — Eu ouvi você e o conversando sobre isso em casa uma vez.
— Porra, bem que ele falou que você fica vigiando…
— Não vigio ninguém — ele rebateu, começando a ficar sem paciência de novo — Vocês dois falam alto demais, isso não é culpa minha.
— E ainda lembrou exatamente do que eu disse, hein? — ela continuou provocando, disfarçando um sorriso ao ouvir mais um suspiro resignado dele.
— É meu trabalho lembrar dos detalhes, — finalizou, pegando as fotos da perícia dentro da pasta, expondo-as para a garota — Dois dias atrás, uma aposentada foi morta ao voltar da aula de pilates, essa é a Francisca.
fechou os olhos e afastou-se da mesa ao observar o corpo da mulher idosa e a segunda vítima.
— Ontem à noite, uma garçonete que tinha acabado de chegar do trabalho, o nome dela é Carolina — ele continuou, ajustando as fotos em cima da mesa — Todas enforcadas com a corda do pisca-pisca, os olhos cobertos pelo gorro da fantasia de Papai Noel e, no local do crime, a mesma música estava tocando.
permaneceu em silêncio, tinha aberto os olhos e, mesmo à distância, conseguia ver as imagens horrorosas das cenas de crime.
— Como você explica dois assassinatos terem sido cometidos exatamente como você escreveu nas suas… Fanfics? — perguntou, demorando a dizer a última palavra.
— Não faço a mínima ideia — ela respondeu, cruzando os braços novamente — Pode tirar essas fotos daqui?
— Ah, consegue escrever sobre mas olhar já é demais?
— , pelo amor de deus, escrever é completamente diferente! — exclamou com os olhos fixos nos dele — Eu tô imaginando as coisas, é ficção! Eu não saio procurando fotos de pessoas mortas pra fazer isso!
— E por que escolher alguma coisa assim pra escrever, ?
— O site que eu publico fez um especial de Natal e essa ideia só apareceu na minha cabeça! — ela disse com tom de voz exasperado — Não quer dizer que eu mataria alguém, né? Ou sei lá, você acha que aquela vaca da escritora de Harry Potter é bruxa?
— …
— Eu tô falando sério, — ela continuou, ignorando o que ele iria dizer — Não conheço nenhuma dessas pessoas e, sim, é muito assustador que alguém tenha matado pessoas exatamente do mesmo jeito que o assassino de uma fanfic que eu escrevi, mas, de novo, se eu que sou eu tive essa ideia pra escrever, por que outra pessoa não poderia?
— Ainda que isso fosse possível, sua relação com o modus operandi é provada e muito mais forte que qualquer outra teoria, — o investigador disse, balançando a cabeça — Você é a suspeita principal.
— Mas eu não matei ninguém!
— Não é isso que o delegado acha.
— E nem o que você acha, né?
— O que eu acho não importa agora — ele mudou de assunto, retirando as fotos da mesa e guardando-as na pasta de novo, olhando para algo atrás dela, onde só havia um espelho — Onde você estava no dia dezesseis por volta das 20h da noite?
precisou pensar um pouco, isso tinha sido dois dias atrás e ninguém anda por aí checando as horas.
— Acho que eu estava voltando para casa do restaurante — ela respondeu, forçando a mente — Fechamos mais cedo às segundas.
— E você voltou para casa como?
— A pé, às vezes eu vou andando porque não é tão longe de casa e preciso pensar.
— A casa da primeira vítima fica próxima do restaurante — ele revelou, observando-a — Alguém te acompanhou até em casa? Você passou por alguém no caminho que possa provar que você foi direto para lá?
— Não.
— E onde você estava por volta das 23h45 de ontem? — continuou o interrogatório, anotando as informações que ela passava em uma folha meio amassada que estava em seu bolso.
— Como eu não ia trabalhar hoje e já tô de férias, decidi encontrar um pessoal da faculdade em um barzinho depois que o restaurante fechou às 21h30 — respondeu, suspirando e torcendo para que, pelo menos, essa resposta fosse boa — Nesse horário, eu já tinha saído de lá, estava com o carro do meu pai e deixei uma amiga que mora lá perto na casa dela antes de vir para a minha.
— Qual o bar?
— Supra.
— Qual deles?
— O da Chácara Santo Antônio.
— A segunda vítima morava nessa região, — ele disse e imediatamente, ela passou as mãos pelo rosto em descrença — Vou precisar do endereço e do horário que deixou sua amiga em casa, provavelmente vou ter que falar com ela.
apenas assentiu, não sabia mais o que dizer, mesmo sendo leiga em investigação criminal, era claro que a situação não estava nada boa para ela.
estava com a cabeça abaixada, apoiando-a nas próprias mãos e balançando uma das pernas repetidas vezes enquanto a esposa acariciava suas costas, igualmente preocupada com a situação da filha como o marido, porém, era bem menos emotiva em comparação. A médica encarou o melhor amigo da filha, que usava o uniforme do time de futebol da faculdade, ele estava na sua frente, tentava animá-lo com um sorriso já que a conversa que a garota ao seu lado tentava manter não parecia estar funcionando.
estava considerando puxá-lo de lado para tomar um café e livrá-lo daquilo, porém, ouviu passos se aproximando e, assim como o marido, mirou os olhos na direção do corredor que levava às salas de interrogatório, encontrando a expressão contrariada no rosto de ao lado da seriedade profissional no de .
se levantou imediatamente, abraçando a filha assim que ela chegou perto o suficiente, sendo acompanhado por em seguida, os quatro braços envolvendo completamente a garota e tapando sua visão.
— Gente, tá tudo bem — ela exclamou, rindo brevemente da reação exagerada de seus pais para disfarçar a leve preocupação que a sequência de mortes lhe trazia — Foi bem tranquilo.
— Tem certeza? — o pai perguntou, separando-se para olhar bem nos olhos dela — Já entrei em contato com o advogado da empresa, você não precisa se preocupar.
— Você tá mais preocupado que eu, pai — brincou, sorrindo para conforme ele se aproximava para abraçá-la também — Te tirei do jogo, né?
— Jogo universitário nenhum é mais importante que você — ele disse, a garota riu, abraçando-o e observando de braços cruzados do outro lado, foi só por isso que notou Flora, filha do dono do restaurante que ela trabalhava e colega de sala de .
— É… A gente veio correndo — Flora disse, forçando um sorriso ao se aproximar da dupla — Dois a um pra nossa faculdade, não sei como tá agora que o saiu, né…
— Flora — o artilheiro a censurou, revirando levemente os olhos.
— Ela tá certa — exclamou, não era justo que ele perdesse as experiências finais da faculdade, local que, diferentemente das escolas que passaram, tinha lhe feito tão bem por conta de algo ruim que a envolvia — Quem sabe não dá pra chegar no segundo tempo?
— Com certeza! — Flora disse, um sorriso — verdadeiro dessa vez — iluminou seu rosto.
— Até o Uber aceitar e chegar lá, dá não — negou, sua preocupação com a amiga era maior que a vontade de jogar.
— Eu levo vocês — , que estava quieto desde que tinha deixado aos cuidados dos pais, falou, mostrando as chaves em mãos — Já tô saindo mesmo, a gente chega rapidinho.
— Tá vendo? — disse, um sorriso tranquilizador surgiu em seu rosto — Conversamos mais tarde, pode ser?
Ela direcionou o olhar para o investigador de braços cruzados encostado na parede, sabendo que, se estava longe de , estaria feliz.
— Cinco minutinhos — disse, beijando o marido antes de abrir a porta do carro estacionado em frente ao restaurante de bairro que eles mais gostavam, enquanto recebiam algumas instruções de sobre permanecer na cidade etc, ela havia encomendado o jantar deles para viagem.
Assim que a esposa estava longe o suficiente, tirou o cinto e virou para trás, encontrando com o olhar perdido e a cabeça jogada para trás.
— Filha.
— Oi, pai.
— Já sei o que podemos fazer — ele disse, suspirando levemente antes de continuar — Vamos dizer que te encontrei no meio do caminho no dia da primeira morte.
— Pai…
— É simples, passei de carro e te vi, tentei dar uma carona, mas era contramão e aí…
— Pai, não — interrompeu, aproximando-se dele — Ninguém vai acreditar nisso, eu já disse que não encontrei alguém no caminho naquela noite.
— Mas você pode não ter me visto, a gente faz uma ligação anônima, sei lá — ele continuou sugerindo, a filha riu levemente.
— Isso só vai fazer o suspeitar mais de mim — ela respondeu, segurando a mão dele.
— O também, hein? — reclamou, quase bufando — Nem parece que te conhece desde criança, vocês cresceram praticamente juntos.
— Ele nunca gostou muito de mim, você sabe — suspirou — É melhor deixarmos as coisas como estão, pai, não fiz nada além de escrever uma história e postar, daqui a pouco eles descobrem que não fui eu.
— Tem certeza, filha?
— Tenho, pai — ela reafirmou, vendo a mãe se aproximar do carro — Agora fica quieto porque se a mãe descobre que você quer cometer um crime, ela te mata!
Os passos apressados na rua indicavam a pressa dela, já passava da meia-noite e, sendo sincera, nem deveria estar fora de casa naquele horário. Afinal, ainda era quinta-feira e ela tinha que trabalhar pela manhã, precisava, infelizmente, enfrentar as grosserias do chefe e o fardo de ter que ver o ex-namorado todos os dias com a atual bem na sua frente.
No fim, como sempre, sua mãe estava certa: onde se ganha o pão, não se come a carne.
Jennifer finalmente virou a esquina da rua sem saída onde havia estacionado o próprio carro, em ambos os lados, havia apenas as altas paredes de duas fábricas, totalmente vazia se não fossem pelos vários carros de pessoas que, como ela, se recusavam a pagar os altos valores dos estacionamentos próximos às baladas, e bastante escura porque três postes estavam piscando e dois estavam apagados. A loira parou ao lado do HB20 branco estacionado entre um Fox vermelho e um Cruze preto, tirou a bolsa do ombro e começou a procurar pelas chaves do carro, rindo sozinha da versão funk de Jingle Bell que estava tocando quando ela saiu.
Quando achou que tinha encontrado as chaves, Jeniffer foi, subitamente, puxada para trás por algo ao redor do seu pescoço, ela tentou gritar, mas a pressão era muito forte, a bolsa caiu no chão, espalhando todos os itens, incluindo a chave, para debaixo do carro, suas mãos tentaram desesperadamente tirar aquela coisa do seu pescoço e seus joelhos vacilaram em direção ao asfalto gelado.
A loira tentou dizer algo, mas sua voz, quase inaudível, saiu esganiçada conforme a pressão ao redor do seu pescoço aumentava e a quantidade de ar parecia ficar mais rarefeita, as mãos gradualmente não conseguiam mais lutar contra, ela olhou para baixo com a cabeça tombando, franzindo os olhos ao notar que o que estava ali era um pisca-pisca branco, mas nenhum outro pensamento coerente surgiu conforme seu cérebro parecia desligar.
Jennifer deslizou morta no chão, os braços jogados de qualquer jeito, o pisca-pisca foi deixado lá, adornando a nuca dela como um colar. Mãos cobertas por luvas tatearam o asfalto até encontrar as chaves e o celular da loira, em seguida, o carro foi ligado e o celular, desbloqueado, impressionantemente, com o Face ID da mulher, conectado ao car play. Por fim, os olhos arregalados tamanha força do enforcamento foram cobertos por um gorro vermelho
O assassino não parou para observar a cena como tinha feito nas outras vezes, qualquer um poderia sair das festas e baladas mais cedo e buscar o carro na ruazinha sem saída, ele virou as costas e saiu rapidamente pelo lado oposto ao que Jennifer tinha entrado.
A rua, antes vazia, tinha o corpo da loira enfeitando o chão e, antes silenciosa, havia uma canção se juntando ao uivo do vento.
Noite feliz! Noite feliz!
Ó Senhor, Deus de amor,
Pobrezinho nasceu em Belém…
terminou de secar as mãos e ajustou o avental, Sérgio, o chef responsável pela cozinha, batia o cardápio escolhido pelo grupo de investidores que havia fechado o restaurante para uma confraternização de fim de ano com Antoine, o dono do local.
Marina, a sous chef, pedia para a estagiária recém-contratada checar o estoque dos alimentos, , que já estava lá há um ano e meio, ficava responsável pelas sobremesas junto com o pâtissier, e estava bolando estratégias para a noite de hoje junto com ele. Era um restaurante de porte médio, por isso, a cozinha possuía uma equipe de mesmo tamanho, com cerca de dez pessoas, incluindo , trabalhando ali.
Alguns minutos depois, cardápio confirmado e o horário do jantar se aproximando, Eliza, faxineira do restaurante, entrou pela porta dos funcionários.
— Tinha bebê ontem nesse lugar? — ela perguntou, levando alguns sacos de lixo para fora.
— Tinha sim — Marina confirmou, pegando os utensílios que seriam usados para um dos pratos principais.
— Tá explicado porque tava uma nojeira ali fora — ela voltou reclamando, lavando as mãos onde todos se higienizavam antes de iniciar o preparo — Deus me livre, que gastura.
riu levemente, Eliza não passava muito tempo com eles por conta do horário diferenciado — ela entrava quando o restaurante estava fechado para fazer a limpeza geral e saía um pouco antes do restaurante abrir -, porém, quando passava, sempre a fazia rir.
— Beleza, galera — Sérgio exclamou bem alto para chamar a atenção de todos — Responsáveis pelas entradas e pratos principais, podem começar a cortar e picar os ingredientes que forem necessários para o cardápio de hoje.
— Sim, chef — a equipe gritou.
— Drinks, assim que os convidados forem chegando, vocês podem começar — ele continuou, recebendo mais uma confirmação do time das bebidas — E, para sobremesas, iniciem o que demandar mais tempo de cozimento, geladeira ou forno, Joel, fique à vontade para delegar.
— Sim, chef — toda a equipe de confeitaria, menos , gritou, afinal, ela não tinha muito respeito por ele e Sérgio sabia disso.
ouviu as instruções de Joel e assentiu, passando a executar os preparos mais demorados para o cardápio de hoje, eram três tipos de sobremesa no total e eles trabalhariam ao longo de toda a noite para entregá-las ao final da refeição. Ela se preparava para cortar algumas frutas quando Antoine retornou à cozinha, interrompendo o fluxo da equipe ao dizer com seu sotaque francês:
— , hum, a polícia quer falar com você…
— A polícia? — Marina perguntou, tirando os olhos da tábua com o corte de carne principal para observá-la assim como todos os outros.
largou a faca com força, tirou a touca e o avental principal conforme seguia o caminho até as grandes portas de metal que levavam ao salão da casa todo decorado para o Natal, encontrando Dona Benedita, esposa de Antoine e responsável pelo caixa — porque ela era mesquinha demais para deixar nas mãos de outra pessoa -, estava ao lado de , com roupas casuais pretas e jaqueta de couro marrom que o deixavam mais para bad boy do que para policial mau.
— Sério? — ela perguntou, suspirando ao encará-lo — Não podia me chamar outra hora, ? Eu tô trabalhando!
— , acho que você não deveria falar assim com um policial — Benedita a repreendeu, olhos firmes sob os óculos de armação roxa.
— Eu conheço ele — a garota justificou, cruzando os braços, voltando os olhos para o investigador — Eu não posso passar lá depois do trabalho?
— Não — ele afirmou com precisão — Aconteceu de novo, … E dessa vez é o delegado que quer falar com você.
Dona Benedita fez o sinal da cruz antes de falar:
— Aconteceu o que, senhor?
— Tenho certeza que poderá explicar depois, ma belle — Antoine interviu, sorrindo gentilmente para ela — Pode ir tranquila, mon chéri, eu aviso o Sérgio.
agradeceu, pediu um tempo para pegar suas coisas, contemplando as chances de fugir pela porta dos fundos por onde Eliza levava o lixo, mas, sabendo que era a suspeita número um e que mais alguém havia morrido, achou que só se complicaria mais.
Novamente, ela estava sentada naquela sala horrorosa, mas, dessa vez, não tinha sido deixada sozinha nenhum momento. Assim que chegou na delegacia, pediu que ligasse para seu pai e seguiu o delegado Matoso, um homenzinho baixo, com cabeça de ovo e um grande bigode curvado para cima, até o local do interrogatório. Ele segurava a mesma pasta que tinha em mãos na primeira vez, porém, agora, a pasta parecia ter crescido em conteúdo.
Exatamente como antes, Matoso dispôs as fotos do corpo da última vítima na mesa e, novamente, direcionou o olhar para frente assim que as viu sendo colocadas ali.
— Não consegue encarar o que fez? — o delegado questionou, levantando as sobrancelhas para ela.
— Eu não fiz isso — ela respondeu, apoiando as costas na cadeira — Não me agrada ficar vendo foto de gente morta, delegado.
— É bastante estranho você afirmar isso, — ele começou, cruzando os braços e a encarando com certa raiva nos olhos — A terceira vítima era loira, foi morta ao lado de seu carro ao sair de uma balada e também teve o próprio telefone conectado ao carro para que a música pudesse ser tocada… Exatamente como a terceira da sua historiazinha.
— Você não tá falando sério.
— Não brinco em serviço, senhorita, é só olhar aqui — ele exclamou, apontando o indicador para as fotos, ela, finalmente, direcionou um olhar mais longo, sentindo a garganta apertar ao encarar a foto da moça com metade do rosto coberto pelo gorro e querendo vomitar ao ver seus olhos abertos e quase saltados na segunda foto.
— Eu nunca mataria alguém — ela voltou a afirmar, percebeu que a voz soava pouco confiante, mas continuou falando — Vocês confirmaram com a minha amiga, não confirmaram? Eu realmente deixei ela em casa!
— Sim, mas, se os horários afirmados por vocês duas estiverem corretos e considerando a localização da casa dela com o local do crime… — ele disse, dando uma risadinha amarga — Você ainda teria tempo de cometer o homicídio, .
A garota permaneceu em silêncio, não sabia mais o que dizer, Matoso parecia já condená-la com o olhar, ela havia recusado inicialmente a proposta de seu pai de chamar o advogado da empresa dele e não tinha noção alguma de como seguir dali.
— Onde você esteve ontem à noite? — ele perguntou — Mais precisamente, das 23h às 1 da manhã.
— Em casa — ela respondeu, encarando-o sem firmeza — Dormindo.
— Alguém pode provar isso?
— Meus pais estavam dormindo na mesma casa que eu.
— E eles podem afirmar que você não acordou e saiu para cometer o crime? — ele perguntou novamente assim que ela respondeu, sem dar tempo para respirar — Porque a rua em que a vítima foi encontrada não era muito longe da sua casa.
— Um absurdo! — exclamou, batendo as mãos na mesa, sentia as lágrimas começando a acumular em seus olhos — Que motivo eu teria pra fazer isso?
— Eles não podem provar, podem?
tampou o rosto, envergonhada por chorar na frente dele, estava sem saída, quem mais, na visão da polícia, poderia ter cometido esses assassinatos se não ela?
A porta se abriu, , com o impassível semblante profissional, entrou e se dirigiu ao delegado.
— Os pais dela chegaram com um advogado — ele disse — Achei melhor que fosse falar com os três.
— É melhor mesmo, eles já te conhecem e vão tentar passar a perna — Matoso concordou, levantando-se.
Alguns segundos depois, e estavam sozinhos na sala de novo e ela estava ainda mais envergonhada de chorar na frente dele.
— Quer que eu traga uma água? — ele perguntou, um tom delicado e suave que nunca usava com ela.
negou com a cabeça, olhou para as próprias mãos no colo, tentada a puxar a pele ao redor das unhas, segurando-se já que não era benéfico ter dedos calejados na cozinha.
— — ela disse.
— Sim? — respondeu com aquela voz suave mais uma vez.
— Eu sei que você não vai com a minha cara — começou, levantando a cabeça para frente — Mas você precisa descobrir quem é que tá fazendo isso, porque tem alguém tentando me incriminar.
encarava a televisão desligada da sala com desânimo, estava encolhida no sofá, com a mesma manta que sua mãe havia jogado sobre ela antes de sair para o plantão do dia.
O advogado da empresa tinha apresentado argumentos bons o suficiente para tirá-la da delegacia e impedir uma possível prisão alegando falta de provas, porém, quando retornou ao restaurante para explicar a situação a Antoine, o francês, após uma conversa com a esposa, não acreditou que seria bom que ela continuasse ali.
Então, o assassino tinha conseguido, além de quase levá-la presa, fazer com que perdesse o estágio bem quando poderia ser efetivada.
não tinha inclinação nenhuma para investigação, a única coisa que tinha feito era abrir a fanfic e olhar os comentários recentes, todos de pessoas animadas com a releitura ou chocadas por terem visto que um crime exatamente igual tinha sido cometido no jornal, alegando animadamente que a autora tinha “previsto o futuro”.
Apesar da boa intenção, ela se sentiu pior e decidiu não abrir mais a página da história, não abrir mais o instagram de autora e sair dos grupos do site, por mais que amasse a comunidade, escrever ou ter qualquer contato com isso causava ansiedade. Estava há poucos passos de retirar todas as histórias publicadas na internet, porém, sabia que muita gente voltava para reler e se sentia bem ou se entretinha com elas, por isso, mudou de ideia, ainda que o fato de alguém estar realmente cometendo os crimes que ela tinha imaginado no ano passado a assustasse muito.
levantou, precisava ir até a cozinha e checar se tinha todos os ingredientes para fazer o milk shake com sorvete caseiro de blueberry que havia prometido para . Enquanto dava uma olhada na geladeira, ouviu a notificação de mensagem no celular deixado no sofá da sala, pensando que era o amigo perguntando o que ela queria da lanchonete que ficava no caminho entre a casa dele e a dela.
Ela fechou a porta da geladeira e foi até a sala, pegando o celular virado de cabeça para baixo, porém, não era uma mensagem de , mas sim de um número anônimo. desbloqueou o celular, abriu o app e, antes de clicar na conversa, percebeu que tinha recebido um vídeo, o que era ainda mais estranho, a fez abrir a mensagem de uma vez e clicar no vídeo.
A mídia iniciava com uma tela escura, como se algo tapasse a lente da câmera, por alguns segundos, viu apenas a escuridão, até que a cobertura foi retirada, revelando um cenário que ela conhecia bem.
Era o jardim da casa do melhor amigo, a casa que dividia com os pais e com a cachorrinha Golden Tieta, adotada depois que foi morar sozinho. chegou muito perto de derrubar o celular no chão, conforme a pessoa avançava pela casa, seguindo pela parte externa nos cantos, ela conseguia ouvir os suspiros cansados de Tieta enquanto a cadela seguia cada passo. O coração de acelerou ao ver a câmera se aproximar da janela da cozinha, onde, de costas, estava com os fones de ouvido visíveis por cima do cabelo, ele mexia a cabeça de um lado para o outro enquanto olhava algo na bancada, provavelmente, a tela do próprio celular.
As mãos de só começaram a tremer quando a pessoa por trás colocou um pisca-pisca na frente da janela.
Ela não pensou muito, a casa deles não era muito longe, se corresse como os dois corriam nas aulas de educação física na escola, chegaria lá em dez minutos…
Evitou pensar que, em dez minutos, quem quer que fosse conseguiria fazer o que vinha fazendo há dias muito facilmente.
desceu as escadas com pressa, trancou as portas sem prestar muita atenção (possivelmente, alguma poderia ter ficado aberta, mas ela não se importou) e saiu da rua em que morava pelo lado direito, enquanto corria, apertava o nome do amigo para discar seu telefone, porém, após dois minutos passando na maior velocidade que seu corpo permitia por uma avenida, ele não atendia.
sentiu que começaria a chorar a qualquer momento, continuou tentando e não parou de correr, quase esbarrou em duas senhoras com roupa de ginástica, o que a lembrou da primeira vítima, tropeçou de leve em um buraco ao lado de um restaurante quando uma garçonete passava uma enorme sacola de papel pardo para um entregador, a profissão da segunda vítima, virou a esquina, um ônibus parado na rua permitiu que ela visse uma jovem loira correndo para entrar no veículo que, de qualquer forma, não parecia que ia partir a qualquer momento, e lembrou da terceira vítima.
sentiu os pulmões e as pernas queimando, parou brevemente para procurar o número de nos contatos, voltando a correr assim que a tela informou que discava para o número escolhido.
Ela correu mais rápido para compensar os segundos passados, torcia para que gritasse, que ele conseguisse se defender, que alguém ouvisse ou chegasse antes dela, apertou o viva-voz e, alguns segundos depois, ouviu a voz dele.
— ? — disse do outro lado da linha, cheio de estranhamento, ela só tinha ligado para ele duas outras vezes na vida.
— Vai pra casa! — , com dificuldade, gritou, passando no meio de garotos que saíam do parque, todos vestindo coletes e alguns com bolas de futebol nas mãos… e ela lembrou de .
— Minha casa? — perguntou, não entendendo porque ela pediu para ele sair da delegacia e ir ao próprio apartamento.
— Não, idiota! — gritou, sabia que não tinha revelado nada, mas o nervosismo falou mais alto — Eu recebi um vídeo do assassino, ele tá na casa com o !
— … — o investigador suspirou, tentando acreditar nela mas, ao mesmo tempo… Ela era uma suspeita.
— Não tô mentindo — ela sentiu a voz vacilar, só mais duas ruas, a voz dela ficou mais ofegante, conseguia notar do outro lado da linha — Tô indo pra lá, mas é melhor vocês também estarem aqui caso…
não conseguiu terminar a frase, a voz embargou e ela começou a chorar de verdade, o caminho ficando meio embaçado pelas lágrimas, as ruas vazias não permitiam que ela pedisse ajuda para mais ninguém conforme avançava para perto da casa amarela em que eles moravam.
— Por favor, — ela disse com tom falhado.
— Estou a caminho — ele respondeu com a firmeza que ela precisava, fazendo um sinal para o delegado e outros policiais ali perto antes de pegar as chaves do carro — Seja o que for que você encontrar, tenha cuidado, ele ainda pode estar lá.
concordou, desligou o celular e alcançou a última esquina que a deixaria na rua final, seu coração batia forte e rápido, as pernas só começaram a vacilar quando ela encontrou o portão pintado de marrom semi aberto, Tieta não veio correndo até ela como costumava fazer quando qualquer visita — principalmente ela — chegava.
Dividida entre gritar o nome dele ou seguir silenciosamente até a cozinha, onde tinha o visto por último no vídeo, escolheu a última opção, mas, antes de seguir, procurou pelo jardim algo que pudesse usar como arma caso o assassino estivesse lá ou se aproximasse.
Encontrou uma pá de jardinagem, usada pela mãe dos meninos para plantar as bonitas flores que adornavam o jardim, caída perto de um dos canteiros. , vagarosamente, guardou o celular no bolso e pegou a pá do chão antes de fazer o mesmo caminho que o assassino tinha feito no vídeo, caminhou pelos cantos da casa e, ao chegar da janela, não sabia se sentia alívio ao não ver alguém na cozinha ou se deveria se desesperar mais.
passou para os fundos da casa, o quintal grande contendo a piscina e o gazebo com a churrasqueira estavam vazios, ela firmou a pá nas mãos antes de arrastar uma das portas de correr dos fundos e entrar na casa, o local estava extremamente silencioso.
Era um bom sinal, não era? Se algo ruim tivesse acontecido, deveria escutar Noite Feliz vindo da sala de estar, mas, ao chegar lá, tudo estava em silêncio.
E, novamente, não tinha ninguém.
suspirou, o coração ainda batia forte, olhou para as escadas que levavam ao segundo andar e engoliu em seco antes de subir.
Bem de longe, ela ouviu soar uma sirene de polícia, estava a caminho, ia ficar tudo bem, ela disse a si mesma quando chegou ao segundo andar, todas as cinco portas estavam fechadas, eram quatro quartos e o banheiro que costumava dividir com antes dele se mudar.
Ela abriu a do quarto dele, o primeiro à esquerda, com pá firme na mão, encontrando Tieta dormindo esparramada na cama dele, a Golden acordou imediatamente, aproximando-se com o rabinho balançando, a acariciou brevemente antes de abrir o primeiro à direita, o antigo quarto de , o som da sirene foi ficando mais alto, o local estava exatamente do jeito que ela se lembrava das poucas vezes que tinha visto (ele nunca deixava os dois entrarem lá), mas, assim como todos os outros cômodos, estava vazio.
encontrou o mesmo no quarto de hóspedes e na suíte dos pais dele, Tieta agora a seguia de um lado para o outro, a sirene mais próxima do que nunca, enquanto uma segunda parecia seguir mais adiante.
Duas? Será que a polícia tinha encontrado alguém?
encarou a última porta faltando, o banheiro, ela não conseguia ouvir nada de lá, mas não esperava diferente, os chuveiros da casa não faziam barulho e a sirene ocupava o resto do espaço sonoro.
Lembrou da sua própria história.
Havia uma morte no banheiro, acontecia no capítulo quatro, só que o perfil não era nem um pouco parecido com o do melhor amigo.
resolveu abrir de uma vez.
E se arrependeu logo depois.
— Porra, que susto — ela ouviu , que estava saindo do banho, gritar e correr para se cobrir antes que ela fechasse a porta.
— Puta que pariu — gritou de volta, derrubando a pá no chão enquanto Tieta lambia suas pernas — Caralho, por que você não atende o celular, hein?
— O que você tá fazendo aqui, mano? — ele gritou, trocando-se o mais rápido possível dentro do banheiro — Eu não ia te encontrar na sua casa?
— Por que você deixou o portão aberto? — ela disse, nenhum dos dois realmente respondeu às perguntas do outro — A gente mora em São Paulo!
saiu do banheiro vestido, as roupas meio tortas pela pressa, o cabelo estava molhado do banho e Tieta se jogou nas pernas dele.
— Por que você tá com a pá da mamãe? — ele disse, apontando para o objeto jogado no chão.
Antes que pudesse fazer outra pergunta e não responder o que o amigo tinha dito, os dois ouviram uma voz lá embaixo.
— ? — exclamou, abrindo a porta da frente — ?
— O que meu irmão tá fazendo aqui? — ele perguntou quando os dois (e Tieta) começaram a descer as escadas.
— Eu liguei pra ele.
— Você?
— Sim — respondeu, encontraram e o outro investigador que tinha a buscado na primeira vez em que foi chamada à delegacia, o segundo começou a caminhar pelo local com a arma em mãos.
— Gente, alguém se importa de me explicar que porra tá acontecendo?— perguntou, estranhando toda aquela movimentação conjunta na sua casa, Tieta começou a cheirar as pernas do investigador, silenciosamente pedindo carinho.
— O assassino me enviou um vídeo aqui de dentro — conseguiu dizer, sentando-se no sofá pelo cansaço que tomava seu corpo depois da adrenalina baixar, ela tirou o celular do bolso, desbloqueou e entregou a para que os dois assistissem.
— Puta merda — os irmãos disseram ao mesmo tempo.
— Como ele entrou aqui? — perguntou, o oficial voltava da pequena ronda que tinha feito e assistia o vídeo ao lado do colega de trabalho, se aproximou dela, sentando-se ao seu lado e abraçando seus ombros.
— O portão tá com problema, a gente acha que fechou e não tá fechando mesmo — o amigo respondeu, acariciando seu ombro, ele podia imaginar o desespero de ao vê-lo ali, tão perto da morte, se fosse ela, ele teria saído correndo também.
— E vocês não mandaram alguém arrumar? — exclamou, entregando o celular de para o oficial, as mãos na cintura denunciavam sua repreensão — A gente mora em São Paulo!
— Acho engraçado como vocês dois dizem a mesma coisa — murmurou, olhando para e .
— , vamos ter que ficar com seu celular e investigar essa mensagem — o oficial disse, apontando para o aparelho em mãos, somente assentiu, lembrando-se da segunda sirene.
— Para onde a outra viatura foi? — ela perguntou, observando os policiais — Vocês acharam alguma outra pista dele?
Nenhum dos dois respondeu de imediato, percebeu o súbito nervosismo do irmão, as mãos saíram da cintura e passaram pelo cabelo bem cortado.
— Acharam outro corpo — responde, vendo cobrir os olhos com uma das mãos — Duas ruas atrás daqui, recebemos o chamado no meio do caminho.
— Quem foi? — pergunta, porém, ficou sem resposta ao notar o irmão direcionar o olhar para o lado de fora, os amigos se levantam, duas viaturas silenciosas e uma van cinza se aproximavam.
O delegado Matoso e mais três policiais saíram dos carros oficiais, nota as armas em punho nas mãos de dois deles pela janela, o delegado entra na casa, apoiando as mais próximas às algemas do cinto.
— Senhorita — ele diz, aproximando-se, ignorando os protestos de ao seu lado — Você está presa em flagrante pelo assassinato do Sr. Migliano.
— Que? — diz, olhando para todos e para ninguém ao mesmo tempo, afastando-se involuntariamente das algemas — Isso não faz sentido, eu saí de casa e corri até aqui! Tem provas no meu celular!
— É a quarta vez que a senhorita se encontra no horário e com proximidade ao local dos crimes e temos registros disso pela ligação ao investigador — o delegado continua a afirmar, aproximando-se — Dessa vez, não tem como escapar.
— Ela veio direto até mim! — protestou, controlando a voz para não considerarem sua reclamação um desacato, apontou para o celular nas mãos do oficial — Tem um vídeo que o assassino mandou, vocês não podem prender ela!
— pode muito bem ter ela mesma produzido esse vídeo, matado o Sr. Migliano a poucos metros, feito cena ao investigador e entrado aqui para que essa historiazinha pudesse corroborar com a versão dela — ele continuou dizendo, olhava em súplica para , mas o segundo sabia que nada poderia ser feito agora — A senhorita vai vir comigo ou terei que algemá-la?
deixou os ombros caírem, estava exausta, não só da corrida mas de tentar provar a própria inocência quando o principal responsável pelo caso não acreditava nela.
— Liga pros meus pais, — ela disse, um desânimo que os dois que a conheciam há mais tempo nunca tinham visto.
— … — começou a protestar.
— Só fala com eles, vai ficar tudo bem — ela o cortou, aproximando-se do grupo do delegado, sorrindo brevemente para o amigo — Fico feliz que nada aconteceu com você.
O delegado assentiu para e os dois seguiram lado a lado, rodeado pelos policiais, com e parceiro sempre logo atrás.
— Fica na casa da dona Salete até alguém voltar e liga pros pais dela — sussurrou para o irmão.
Assim que deixou a propriedade deles, percebeu que a van cinza não fazia parte do conjunto da polícia, mas, na verdade, pertencia a uma emissora de TV, quando um microfone e uma câmera foram enfiados bem na sua frente, perguntas foram feitas para o delegado e para ela, mal conseguiu desviar da equipe e da repórter, quase caiu ao entrar na viatura que Matoso tinha aberto a porta traseira, ela desconfiava que só não tinha sido presa no porta-malas porque conhecia alguém da polícia
— e Paulo, preciso de vocês dois na cena do crime, a Rosa deve chegar lá em breve — Matoso delegou após fechar a porta do carro — Vocês dois, rondem a área por segurança e você vem comigo para a delegacia.
— Bom… — Matoso disse, observando o oficial Paulo cumprimentar o motorista de ônibus na sala de interrogatório através do espelho que escondia a visualização para outra sala — Não tem como ter sido ela.
— Foi o que eu te disse ontem — respondeu, suspirando brevemente de alívio.
— O que te fez mudar de ideia? — o delegado questionou, cruzando os braços ao observar o colega de profissão com olhos atentos — Você nunca pareceu ser muito fã dela.
— É complicado, Matoso — o investigador respondeu, cruzando os braços também, um risinho nasalado precedeu sua fala — Acho que você vai achar meio idiota, mas o motivo da minha marra com ela é o mesmo que me fez acreditar imediatamente que não era culpa da ontem: meu irmão.
O delegado permaneceu calado, ajustando o bigode e esperando que ele continuasse, não fazia muito parte da rotina dos homens na divisão conversarem sobre seus sentimentos, isso era quase lenda urbana para muitos deles, porém, estavam lidando com uma ex-suspeita que agora, muito provavelmente, era o real alvo do assassino.
Matoso preferiu pensar que estava fazendo aquilo porque ajudaria na vitimologia, não porque gostava do jovem que tinha entrado mais cedo do que muitos no meio da investigação criminal.
— Nunca falei muito disso, mas meu irmão é um homem-trans — continuou, levantando os olhos do chão para estudar a reação do delegado, como fazia com qualquer outra pessoa que recebia aquela informação (era um filtro valioso de quem manter por perto e quem não) e o viu assentindo — E antes da chegar éramos inseparáveis, não temos uma grande diferença de idade e eu era o super-irmão, com quem ele contava para tudo… Mas, quando ela chegou, foi perto da fase onde ele entendeu quem realmente era e foi a quem acompanhou tudo, foi a primeira a saber, a primeira a acolher e também quem estava do lado dele quando o resolveu conversar com a gente.
— Imagino que tenha doído um pouco não ser mais a pessoa favorita dele — o delegado disse, um sorrisinho compreensivo tomou conta de seu rosto.
— Eu sabia que tinha algo acontecendo e ele não me falava e a ficava no meio e dizia pra eu não me meter e não me preocupar… — concordou, passando as mãos pelo cabelo — Mas como não me preocupar quando meu irmão estava prestes a se tornar uma pessoa non-grata pro mundo só porque ele queria ser quem era? E tudo isso sem mim? Sem nossos pais?
— Ele ficou com medo da reação de vocês, .
— Sim, sim, nunca fiquei bravo com ele — deu outra risadinha antes de prosseguir — Joguei tudo pra ela, na verdade, criei uma barreira tão grande que sempre a vi como irresponsável, achava que a qualquer momento ela trataria o mal porque todo mundo seria desse jeito, não faz sentido nenhum, óbvio, ela nunca demonstrou nada além de um amor profundo por ele.
O delegado escolheu o silêncio novamente, queria entender as razões do colega.
— Então quando o foi envolvido diretamente nisso, eu soube que não era ela, porque, desde o dia um, a não é só amiga dele… — ele decidiu concluir, sorrindo brevemente — Ela é uma irmã.
Matoso se aproximou, batendo com a mão no ombro do garoto com carinho, uma máxima de afeto para ele.
— Minha filha é psicóloga e costuma dizer que a infância é um chão que a gente pisa a vida toda — ele disse, encarando o investigador com respeito — E que temos como resolver algumas coisas pra ficar mais fácil de caminhar nele… Quem sabe essa não é sua chance com ela?
foi conduzida até a sala de interrogatório que já estava familiarizada, durante a tarde e a noite de ontem, sentiu-se muito boba ao perceber que não estava sendo presa presa. Poderia ficar alguns dias ali na delegacia antes de ser conduzida a um presídio porque… Aí, era tanta coisa chata de lei e etc que ela nem queria pensar, só sabia que seu advogado tinha pedido o habeas corpus e que, pelo perfeito histórico, escondendo aquela pequena coisinha no segundo ano do ensino médio, ela deveria sair muito em breve.
A cela não era a melhor coisa do mundo, mas ela tinha uma visão bem pior, a comida era terrível, se tivesse que comer aquilo por anos todos os dias, ela provavelmente sairia de lá pior. Tinha dividido o local com mais duas mulheres, uma que tinha sido presa por jogar água quente no marido quando ele tentou agredi-la (nem deveria estar lá) e uma outra jovem recém-saída do ensino médio, presa por dar golpes na internet.
Ela esperava que somente assassinos(as) estivessem ali.
Ao chegar lá, encontrou , sem o olhar mortal que normalmente destinava a ela, e Matoso, que, na opinião dela, era uma figura dúbia, porém, suas opiniões ficariam guardadinhas, ela não estava numa situação lá muito boa para incluir desacato na sua ficha.
— Boa tarde, — Matoso a cumprimentou quando sentou e a porta foi fechada — Espero que não tenha tido uma noite muito ruim.
— Foi só péssima mesmo — ela zombou levemente, sentindo que ele parecia mais receptivo que nas outras vezes — O que aconteceu agora?
— Recebemos um depoimento voluntário essa manhã — respondeu, os olhos treinados nela, não do jeito que ela estava acostumada — Um motorista de ônibus relatou coisas favoráveis a você.
— Segundo ele — Matoso consultou um bloquinho tirado do bolso — você estava na rua por volta das duas e meia da tarde, ele te viu encostando em uma árvore para ver algo no celular.
— Nossa, como ele lembrou disso? — perguntou, grata e muito curiosa — E como ele sabia que eu tinha sido presa?
— Ele tem que tomar um antibiótico todo dia no mesmo horário desde que ficou doente e parou o ônibus em um dos pontos para fazer isso porque a viagem atrasou — explicou, ele passou a noite construindo bases de argumento para justificar como não poderia ter cometido os outros crimes e, no fim, a garota tinha sido salva por uma série de coincidências.
— E a Record, obviamente, divulgou todas as imagens que gravaram ontem — o delegado disse, um tom culpado por trás de suas palavras — Em breve, vamos pedir uma matéria-retratação.
— Então vocês acreditam que não fui eu?
— Sim, o provável horário da morte aconteceu um pouco antes das duas e meia, acredita-se que o assassino não calculou bem esse tempo entre as casas e o horário do homicídio, investigamos as mensagens e vem de um número que não existe mais e de um telefone descartável, o rastro some ali — Matoso prosseguiu — Por isso, não tem como você ter matado o Sr. Migliano e, por consequência, a conclusão só pode ser uma.
— Tem alguém tentando te incriminar — completou.
deu uma risada, riu por um tempo até sentir uma lágrima escorrer pelo canto externo do olho, percebeu que controlava a própria vontade de rir com ela.
— Desculpem — ela falou, sentia o corpo pesado de alívio — É que eu disse isso dois dias atrás, né, achei que nunca fossem chegar nessa conclusão.
— Bom, eu não ficaria muito animado — Matoso, contrariado com a intenção por trás das palavras dela, disse — Isso quer dizer que a vítima é você, , se não puder te fazer pagar pelos crimes no lugar dele, ele vai querer te matar.
— Não sei se é um pensamento a se levar pra terapia, mas acho justo que a única perseguida seja eu — ela disse, fazendo uma careta — Eu que escrevi aquilo, não queria que nenhum desconhecido sofresse por algo que eu fiz.
— A culpa não é sua, — a cortou, suspirando — Você não tem responsabilidade por uma mente não sadia ler aquilo e pensar que tá tudo bem em reproduzir.
— E isso tem um tom de vingança, — o delegado concordou — Alguém sabe que você escreveu e decidiu te punir usando algo tão íntimo seu.
— Quem, gente? — exclamou, batendo as mãos na mesa — Eu não sou nenhuma santa, né, só que nunca fiz nada tão grave pra alguém matar pessoas pra me punir!
— Precisamos saber quem do seu convívio sabe que você escreve — disse, são pessoas mais próximas, a gente acha que é alguém próximo da sua idade ou um pouco mais velho.
— Meus pais sabem, o , na faculdade, ninguém, só se um deles lê sem saber que é algo meu — pensou, torcendo os lábios — No restaurante, a Flora, que é filha dos donos de lá, foi brincar sobre isso uma vez e o meu chefe perguntou o que era, aí quem tava lá acabou ouvindo, era mais de noite, então só tinha a equipe da cozinha e os garçons, ah, a esposa do Antoine também.
— Certo… — Matoso disse, anotando um resumo do que ela disse no bloquinho.
— A gente precisa que você descreva seus últimos contatos que mais te chamaram a atenção com essas pessoas — pediu, pensativo.
— Você já viu a Flora antes — começou, falando mais diretamente com , revirando os olhos — Ela não gosta de mim porque é apaixonada pelo e acha que eu também sou, todas as nossas interações têm alguma ironia ou coisa parecida, não sei se é muito digno de matar alguém.
— Melhor não descartar nada — o delegado sugeriu, pedindo para ela prosseguir.
— A Dona Benedita é mãe dela e cuida do caixa do restaurante, acha que a filha é a reencarnação de algum deus ou sei lá o que — explicou, rindo — Então, automaticamente, ela não vai com a minha cara também… E, ah, flagrei ela pegando dinheiro escondido do marido outro dia lá no caixa, só faltou me ameaçar de morte.
— E o marido?
— Ah, o seu Antoine é um querido, trata os funcionários bem e tal, mas é pau mandado da esposa — ela respondeu, suspirando — Tudo bem que homem bom é homem assim mesmo, mas quando a mulher é uma megera de graça, fica meio difícil.
— Alguém mais no restaurante? — Matoso perguntou, rindo baixinho dela.
— Tem o Sérgio, que é o chef da cozinha, e a Marina, a sous chef, os dois têm um caso escondido do Antoine e, bem… adivinhem quem viu eles se pegando na cozinha? — ela disse, uma leve expressão de nojo — Espero que eles limpem bem a bancada depois porque puta merda, hein?
— Você tem mais inimigos do que parece, — disse, segurando a risada, disfarçando muito mal que achava o jeito dela engraçado pelo sorrisinho de canto que exibia contra a própria vontade no rosto.
— E nenhum deles parece que mataria alguém em troca das coisas que eu sei — refletiu, frustrada ao pensar nas motivações vazias — Inclusive eu deveria ter saído daquele lugar jogando todas essas bombas lá, né? Fui tonta demais.
— Mais alguém relevante?
— Ah, me dou bem com os outros cozinheiros e com a estagiária nova, ela é meio tímida e não nos falamos muito ainda — ela explicou, pensando — Os garçons mal vejo, porém, uns queridos, o meu “chefe” oficial, que é o confeiteiro, se dá super bem comigo, só falamos de comida e reality de culinária, e a Eliza da limpeza, vejo pouquíssimo e tudo certo também, nossa última conversa foi sobre animais, eu acho, nada demais.
Os dois ficaram em silêncio, Matoso observou as anotações no bloquinho, levantando o rosto para observar a ex-suspeita e dizer:
— Parece que isso aqui vai dar trabalho.
3 dias para o Natal.
tinha conseguido se jogar na cama de casal confortável do próprio apartamento há algumas horas depois de escoltarem secretamente da delegacia para a própria casa, a intenção é que o assassino pensasse que ela ainda estava presa e cometesse algum deslize de outra forma.
Porém, ele não estava nada orgulhoso em dizer o que ficou fazendo no tempo livre que tinha para não pensar nem em trabalho, nem em ou em qualquer coisa relacionada a um homicida solto pela cidade.
Tinha passado as últimas três horas lendo as fanfics dela, mesmo as que tinham um tema que ele não conhecia nada sobre e, infelizmente, todas eram ótimas, escrevia muito bem e ele conseguia entender porque as histórias tinham alguns bons comentários.
Comentários.
digitou o tão conhecido link onde a fanfic “Noite Feliz” estava armazenada, clicando rápido para passar as perguntas interativas e abrir logo a página da história, rolou até o final, aquela era a história mais comentada dela, tinham cerca de 60 comentários quando ele buscou da primeira vez e, após a repercussão do crime nas redes, o número tinha dobrado. Sinceramente, ele não sabia porque a história não tinha sido deletada do site ainda.
O investigador começou a pensar que a risadinha de ao perceber que eles demoravam tanto para chegar à conclusão de coisas que eram óbvias para ela era certeira, não tinha pensado que o provável assassino poderia ter comentado alguma coisa, dado um prenúncio de que cometeria os crimes descritos ali.
Ele passou alguns minutos lendo até chegar em um comentário que, apesar de parecer totalmente normal à primeira vista, chamou a atenção.
O perfil tinha uma foto de um cantor de boyband e era denominado “pi in ficland”, totalmente comum, se não fosse pelo que tinha sido publicado, fazendo as contas pelo número de meses que o site indicava, em janeiro.
Era esquisito demais comparado com o tom de outros comentários de lá.
Eles não poderiam deixar isso para trás.
— Então eu realmente fui promovida, né? — brincou, trazendo uma bandeja com três pratos com fatias generosas do bolo de churros que tinha feito mais cedo até a sala, onde Matoso, e estavam — Tenho policiais disfarçados como meus seguranças e agora dou depoimento da sala de casa.
— Achamos mais seguro assim — Matoso respondeu, aceitando o prato que ela tinha oferecido — Inclusive, todos os policiais estão bem felizes com um doce diferente todo dia.
— Ela é meio obcecada, né, mano? — disse, cortando um pedaço da própria fatia — Cozinha quando tá feliz, faz quatro bandejas de brownies quando tá triste e vários doces quando tá nervosa.
— Me acalma — respondeu, dando de ombros e se sentando na poltrona vaga de frente para os três — E o que traz vocês aqui hoje?
— Ontem à noite, decidi dar uma olhada nos comentários da fanfic — respondeu, tinha pegado o prato que ela ofereceu, porém, não tocou no garfo — E achei um muito estranho.
O investigador indicou com a cabeça o papel dobrado em cima da mesa de centro, se esticou e pegou o papel, abrindo e encontrando um print da tela de computador.
— Queria ter coragem de me vingar assim, adorei a história — leu, levantando os olhos do print para os três — Eu lembro dessa leitora, ela sempre comenta nas coisas que escrevo.
— E você não achou estranho? — Matoso perguntou, colocando mais um pedaço do bolo na boca em seguida.
— Olha… — ela deu uma risadinha, dobrando o papel de volta — Vocês não estão acostumados com esse mundo, mas é totalmente normal a gente “entrar no clima” da história na hora de comentar…
— Acho que pensando que esses crimes realmente se concretizaram, fica mais difícil enxergar desse jeito — rebateu, rindo sozinho ao pensar nos diversos comentários elogiando o par da principal em uma das outras histórias dela no site.
— Sim, eu entendo — concordou, suspirando — Mas pela nossa conversa anteontem, parece que vocês acham que é alguém presente na minha vida, a leitora comenta há bastante tempo, mesmo antes dessa de Natal, acham que alguém investiria tanto tempo assim nisso?
— Depende muito — Matoso respondeu, colocando o prato vazio em cima da bandeja na mesa de centro — A maior parte das pessoas que você listou tem de trinta anos para cima e não parecem ter perfis que se conectam atualmente com esse universo… Eu diria que a mais provável seria a Flora, só porque ela tem a mesma idade que você e, por consequência, pode ter alguma relação atual com as fanfics.
— Ah, não sei — disse, dando de ombros — Isso não tem muita idade, sabe? Conseguiria imaginar tranquilamente a sous chef do restaurante colocando o nome dela e do Sérgio numa fic, qualquer pessoa pode ler.
Enquanto eles debatiam, havia deixado o prato intocado na bandeja e tirado o celular do bolso, novamente entrando na página da história e rolando até os comentários.
— Você disse que reconhece a leitora, não é? — perguntou, rolando um pouco mais para baixo depois do comentário que chamou sua atenção, tinha escolhido começar pelos mais recentes acreditando que o assassino poderia ter se inserido na investigação depois dos crimes e, assim que encontrou aquele, tinha interrompido o trabalho para dormir ao menos algumas horas, mas, quem sabe…
— Sim, ela comenta no mesmo dia que sai ou uns dias depois, é uma excelente leitora.
— E quando esse especial saiu?
— Dia vinte e oito de dezembro do ano passado — ela respondeu, sem entender muito bem onde ele queria chegar.
— O comentário que eu te mostrei foi publicado só em janeiro — ele disse, sem tirar os olhos da tela — E me faz pensar que…. Achei.
— Achou o que? — Matoso perguntou, completamente perdido na abordagem do investigador.
— A real primeira reação da “pi in ficland” — mostrou o celular para ele, levantou e se aproximou para ler também, o investigador apontou para o papel na mesa — Aquele não foi o primeiro comentário dela, foi esse aqui.
deu uma olhada para a tela, lá, sua leitora tinha escrito “pqp q fic boa, ñ sou mt de crimes e terror etc mas essa me conquistou <3”.
— Totalmente diferente — o delegado concordou, franzindo a testa, já tinham pedido para a equipe mais tech da polícia investigar o IP do comentário e sabiam que demandaria um tempinho para isso e que precisariam de mais do que só uma localização geral.
— Alguns dias separam um do outro, né? — , que estava em silêncio até aquele momento, resolveu dizer — Se ela comentou até no máximo dia trinta e um de dezembro, o segundo não passa da metade de janeiro.
— O que mudou nela de um dia para o outro? — perguntou, meneando a cabeça pro lado — Ela continuou comentando nas fics que publiquei depois, inclusive, todos parecem bem mais com esse segundo.
— Puta coisa estranha — acrescentou.
— Melhor a gente voltar pra delegacia e ver se elas conseguiram algo — disse ao delegado, ele concordou e os dois levantaram, prontos para saírem — Qualquer coisa, avisa a gente.
— Ah, você espera aí — disse, apontando o indicador para , ela pegou o prato dele e voltou para a cozinha — , você pode até não gostar de mim, mas é impossível não gostar da minha comida.
Os dois chegaram à delegacia cerca de quinze minutos depois, carregava um pote de plástico com o bolo que não tinha comido e Matoso tinha um sorrisinho no rosto depois de zoar com ele o caminho todo.
— Eu já ia ligar pra vocês — Paulo, o investigador parceiro, se aproximou, tinha ficado com o restante da equipe — As meninas conseguiram identificar o IP do comentário e ele veio de Ourinhos, aqui no interior.
— Tem uma localização exata? — o delegado perguntou enquanto os três andavam com pressa até a sala onde as meninas da tech estavam checando as informações.
— Ainda não, elas vão entrar em contato com a operadora de internet e pedir a quebra do sigilo de endereço — ele respondeu, suspirando — Talvez demore um pouco, ninguém tá muito a fim de trabalhar na semana do Natal, né.
Véspera de Natal.
estava sentada na cama abraçando as próprias pernas, encarando o notebook ligado em um vídeo no Youtube que comentava o caso chamado de “assassino natalino”.
Desde o dia que havia sido presa, nenhuma outra morte aconteceu, o que a tranquilizava muito, ela estava sempre fazendo brincadeiras e piadas quando conversava para disfarçar, mas sentia um peso tão grande desde o dia que entendeu que aqueles quatro assassinatos tinham a ver com ela que tinha se tornado sufocante só pensar em escrever de novo, algo que sempre acalentou sua mente que pensava demais o tempo todo.
Parecia injusto reclamar sobre qualquer mudança na própria vida quando quatro pessoas tinham perdido as delas, só que, a cada dia, ela perdia mais. Primeiro o emprego, depois algumas amizades na faculdade, a segurança, a tranquilidade, a vontade de escrever e, por muito pouco, não tinha perdido a vaga na faculdade.
Eles queriam a expulsar por ser uma assassina, então, o delegado teve que vir a público no dia anterior e mudar a estratégia de esconder que ela já havia sido inocentada.
— Sou eu, filha — ouvi o pai dizer lá de baixo quando o barulho da porta abrindo a assustou, , que estava dormindo para ficar disposta para o plantão surpresa que enfrentaria mais tarde, e sabiam que ela estava com medo desde de ontem, suspirou aliviada, abaixou a tela do notebook e desceu para encontrar o pai lá embaixo — Vou deixar os ingredientes aqui na cozinha.
— Meu Deus, pai — ela disse, notando que ele tinha tirado os presentes de Natal do esconderijo (que tanto ela quanto a mãe sabiam onde era e fingiam que não) e colocado embaixo da árvore com os outros — Nem tem tudo isso de gente pra tanto presente.
— Comprei alguns a mais pra você — o homem respondeu, saindo da cozinha para abraçar a filha e deixar um beijo no topo de sua cabeça — Você não merece passar por isso.
sentiu os olhos lacrimejarem, abraçando o pai com mais força porque ele passava um pouco da segurança que tinha perdido.
— O me avisou que eles conseguiram identificar de onde é o comentário esquisito e um dos investigadores está indo lá interrogar essa pessoa pra ver se realmente tem algo a ver porque eles conversaram com o pessoal do restaurante e não conseguiram nada — ela disse, as lágrimas molhando a camisa polo dele — Só queria que acabasse logo.
— Tá perto, meu bem — ele disse, acariciando o cabelo da filha, fechando os olhos e pedindo para quem quer que fosse que a dor dela se tornasse sua — Que tal a gente fazer a sobremesa juntos, hein?
— Só se você prometer que vai ajudar mesmo e não ficar comendo tudo — disse, olhando de cima para o pai, rindo.
— A senhorita me autoriza a gravar essa conversa? — Paulo perguntou, encarando a jovem com simpatia, desde que ele e o delegado da cidade de Ourinhos tinham batido na porta dela bem cedo pela manhã, a garota tinha um olhar assustado no rosto e, naquele momento, era importante que ela estivesse o mais tranquila possível, faziam tudo na sala aberta do delegado, com a presença de uma oficial para que tudo ficasse mais confortável — Como informei a você antes, preciso que meus colegas sejam informados com a maior rapidez possível apesar da distância e também para ter todas as suas respostas registradas, garantindo sua segurança jurídica.
— Tudo bem, não vejo problema — a jovem concordou, vendo-o apertar o botão de gravação no celular.
— Pode começar dizendo seu nome, idade e o que você faz atualmente? — Paulo pediu, assentindo para ela.
— Meu nome é Pietra Franco, tenho 18 anos, faço cursinho e trabalho meio período em um pet shop aqui da cidade — ela respondeu.
— Pietra, gostaria de agradecer por dar seu depoimento e queria te perguntar se você reconhece essas histórias, por favor — Paulo disse, dispondo na mesa os prints contendo a página inicial das fanfics publicadas por , todas contendo a capa, o título e o apelido que ela usava para publicar.
— Sim, reconheço, eu já li todas as que estão aqui — a jovem, após dar uma olhada nas folhas em cima da mesa que os separava, respondeu, sorrindo brevemente — Gosto muito de todas.
— Falando mais especificamente dessa aqui — Paulo disse, batendo a ponta do dedo indicador na folha contendo a página de “Noite Feliz” — O que tem a dizer sobre ela?
— Ah, entendi — Pietra suspirou baixinho, relembrando o que tinha visto nos últimos dias — Tão falando que uns crimes que aconteceram em São Paulo tem a ver com ela, não é? Eu vi no jornal.
— Exatamente, Pietra — ele concordou, evitaria muita explicação o fato dela estar inteirada nas notícias, por mais fantasiosas que algumas fossem, Paulo tirou alguns outros papéis da pasta no colo e os dispôs na mesa novamente — Encontramos o seguintes comentários feitos por você, você os reconhece?
Pietra se aproximou, lendo o primeiro e assentindo, sorrindo com a memória, porém, ao se aproximar para ler o segundo, Paulo percebeu imediatamente que havia algo errado.
— Eu nunca comentei isso.
terminava de se arrumar com certo desânimo, a mãe já tinha saído para o plantão com dor no coração por deixar a filha sozinha no dia que elas adoravam e agora, ela teria que esperar o pai voltar para casa para irem até a de , onde fariam a ceia e a troca de presentes como sempre costumavam fazer. Além disso, não tinha recebido mais nenhuma informação de , não tinha nem como saber se ele iria à casa dos pais para o Natal e contaria tudo lá.
Basicamente, alguns momentos antes de celebrar, estava uma pilha de nervos, preocupada com o pai que teve que correr até a empresa após o alarme soar no meio da noite, sem saber se estavam perto de prender o assassino ou não e sozinha ali porque tinha pedido que liberassem sua escolta para a o Natal já que ela não ficaria mais sozinha por pelo menos um dia inteiro.
E também porque, se o assassino tinha como objetivo vir até ela, esse era o melhor jeito, não era?
Não se sentia muito confiante agora.
Na delegacia, e Matoso faziam hora extra, estavam sentados nas cadeiras da sala do delegado com grandes copos de café nas mãos enquanto ouviam a gravação enviada há poucos minutos por Paulo.
Parece que uma chuva inesperada tinha caído na cidade, então, o sinal estava ruim, as ligações telefônicas estavam meio entrecortadas e o investigador optou por usar o que tinha para enviar o bendito áudio.
— Não foi você quem escreveu? — Paulo perguntou.
— Não mesmo, eu nem escrevo na internet desse jeito — Pietra respondeu, afastando-se do papel — E jamais comentaria isso.
— Então podemos presumir que alguém comentou isso usando seu perfil — o investigador deu andamento, um barulho de papéis indicou que ele tirava as folhas da mesa — Quem poderia ter feito?
A gravação ficou totalmente em silêncio, nenhuma das partes disse nada por uns dois minutos, até que a jovem exclamou:
— Ai meu Deus!
terminou de ajustar as tiras do salto alto, encarando o próprio reflexo no espelho com o vestido vermelho bem ajustado, nem a maquiagem tinha conseguido disfarçar as olheiras, ela chegou perto do espelho para passar um pouquinho de blush quando, de repente, tudo ficou escuro.
E a porta lá embaixo abriu devagarinho…
— Antes de tudo, você precisa entender que as coisas não estavam fáceis — Pietra disse com a voz embargada — Mostrei as histórias como uma distração, pra tirar um pouco da própria cabeça.
deixou o pincel cair da mão esquerda conforme a porta fechava devagarinho de novo.
Puta que pariu.
e Matoso se aproximaram do gravador.
— Pietra, eu preciso que você me diga o que tá acontecendo — Paulo pediu, o tom mais firme do que antes — Pra quem foi que você mostrou as fanfics?
respirou fundo, conseguia ver pouco com as luzes apagadas, apenas o que entrava pelas janelas e portas abertas a permitia enxergar a própria cara de terror no espelho.
Era isso, tinha chegado a vez dela.
saiu do quarto devagar, o barulho dos saltos denunciava sua chegada de qualquer forma, porém, queria ganhar tempo até chegar ali embaixo, precisava pensar, mesmo que não conseguisse pensar em nada direito.
O único som que ouvia eram dos próprios sapatos batendo nos degraus, ela já podia ver o contorno dos móveis da sala, as pontas da árvore de natal apagada e também via alguém de costas usando roupas pretas, ela conseguia ouvir o próprio coração batendo.
— Para minha irmã — Pietra respondeu — A Elizabete.
Assim que chegou à sala, a outra lá embaixo se virou e, sob a pouca luz dos postes e dos pisca-piscas das casas ao redor que entravam pela janela, ela viu o contorno de um sorriso maníaco que jamais pensou que fosse ver nela.
— Caralho — Matoso exclamou, levantando-se com igual força — Como a gente deixou essa passar?
— No dia que a gente foi falar com o pessoal do restaurante, ela já tinha ido embora — respondeu, achando um papel impresso com as informações que ele queria — Pelo menos o dono de lá passou o contato e endereço de cada um.
— Reúne quem tá aqui, manda a localização e a gente termina de ouvir no caminho — Matoso disse, colocando a arma no coldre.
— Eliza? — disse, mantendo o tom baixo e controlado ao ver que ela segurava algo nas mãos que estavam atrás do corpo.
— — a voz dela saiu meio esquisita, pouquíssimo parecida com o que estava acostumada.
— O que você tá fazendo aqui? — ela perguntou, decidida a manter a linha meio “sonsa”, ela parecia calma até agora, era muito melhor lidar com isso do que com a raiva.
Eliza olhou para todos os lados, novamente admirada com a casa mesmo na penumbra.
— Você gosta do Natal, ? — ela perguntou, voltando a olhar para a figura há alguns metros de distância dela.
— Sim — a garota respondeu, disfarçadamente tentando lembrar o que poderia usar para se defender ali embaixo — E você?
Eliza deu uma risada que fez os pelos dela se arrepiarem, gradualmente, o riso cruel se transformou em uma voz chorosa quando ela começou a cantar:
— Noite feliz… Noite feliz — ela fez uma pausa para rir de novo, olhando para o nada e apertando o objeto nas mãos — Ó senhor, Deus de amor… Pobrezinho, nasceu em Belém.
— É uma música bonita — disse, engolindo em seco e respirando fundo para tentar acalmar o coração, não poderia demonstrar medo.
— Ele cantava pra mim toda noite — ela disse, balançando a cabeça para todos os lados, era quase como se visse algo ali que não poderia ver.
— Ele quem, Eliza?
— Ele cantava toda véspera de Natal — Eliza continuou, ignorando a pergunta, presa demais na própria cabeça, o sorriso maníaco voltou ao seu rosto — Até no dia em que ele foi embora, ele cantou.
— De quem você tá falando? — insistiu, forçando os olhos para achar aquela estátua meio pesada que tinha em algum lugar na sala.
— Do meu pai, — Eliza respondeu, dando alguns passos em sua direção — Ou será que eu deveria dizer do nosso?
observou a casa meio revirada, o apartamento dela era bem pequeno e estava vazio. Enquanto chegavam ao endereço, ouviram Pietra, irmã por parte de mãe de Elizabete, dizer que, desde que o pai havia abandonado a família quando ela tinha dez anos, tudo mudou, Pietra nasceu do segundo casamento da mãe das duas e, desde sempre, tanto seu pai, quanto ela tentaram fazer da casa um lar para Elizabete, mas ela nunca esqueceu.
Quando chegaram lá, encontraram a fanfic impressa em cima da mesa, uma caixa de papelão com alguns gorros de Papai Noel meio aberta no chão. O notebook desbloqueado em cima da mesa continha o histórico, nele havia inúmeros acessos ao site Ficsverse, onde publicava, acessos ao instagram de autora dela, que era aberto e… tinha um vídeo de divulgação com o pai.
O depoimento da irmã de Elizabete e as coisas encontradas ali só apontavam para uma coisa: ela queria vingança.
estacionou o carro no meio-fio bem em frente a casa de , abaixou o volume do som e estava pronto para descer, chamar e ajudar a levar os presentes e sobremesas para sua própria casa quando olhou uma segunda vez para o sobrado em que eles moravam.
Tudo escuro, completamente diferente das outras casas da rua, excluindo a do esquisito do Portuga, o vizinho da frente.
ligou para , aguardando no carro.
— Fala, querido — o homem atendeu no segundo toque, parecia bem mais animado do que antes.
— E aí? — exclamou, observando a casa de dentro do carro de novo — Cê já passou aqui e pegou a ?
— Não — respondeu, um pouco confuso — Tô saindo aqui da empresa agora, foi um alarme falso, por que?
— Cheguei aqui e tá tudo apagado, achei meio estranho… — respondeu, desligando o carro.
— Esses dias, quando fica só ela em casa, a desliga as luzes pra parecer que não tem ninguém — tentou acalmá-lo, mas também achou a situação meio contrariada — Eu chego em breve, vou dar uma acelerada aqui, entra e fala com ela.
desligou o telefone em seguida e digitou o nome de e ligou para ela umas duas vezes, mas ela não atendeu. Discando o telefone do irmão, ele saiu do carro, observando a entrada pela terceira vez.
— Oi, — atendeu no primeiro toque, a voz parecia um pouco abafada — Tá tudo bem?
— Mano, não tem nenhum policial aqui na casa da , tá tudo apagado — disse, seguindo o caminho do portão até perceber o que, além da falta de luz, estava diferente — E a porra do pisca-pisca da frente da casa dela sumiu.
— Puta merda, eu tô indo pra aí — exclamou, dizendo algumas coisas inaudíveis para alguém fora do telefone — Não entra na casa, a gente já chega!
O telefone foi desligado no momento em que ouviu a sirene alta sendo acionada era óbvio que ele não iria ficar esperando ali.
— Nosso pai? — pergunta, a ideia de achar algo para se defender completamente esquecida — C-como assim, Eliza?
— Não vai me dizer que você não sabia! — Eliza exclama e, pela primeira vez, consegue perceber ódio por trás de suas palavras — Ainda fez aquela história de merda pra me provocar!
— Eliza, eu não tô entendendo nada do que você tá falando! — se estressa subitamente, não tinha como tentar atrasar qualquer embate se não entendesse onde estava pisando.
— Você sabe do que eu tô falando! — ela gritou de volta, o rosto tremia de raiva — Do jeito que ele achou legal me abandonar há 28 anos e construir uma vida inteira com outras pessoas!
fica em silêncio, processando todas as coisas que ela disse, seu pai tinha abandonado uma criança? Teve uma filha antes dela?
— Então não vem me dizer que você não sabe de porra nenhuma quando pegou minha última memória boa e transformou em uma históriazinha de adolescente!
— Eliza, eu juro pra você que não faço ideia do que você tá dizendo — respondeu, usando as mãos em um gesto para que ela se acalmasse — Ele nunca me disse nada.
Eliza congelou no lugar, observando e tentando identificar se ela estava mesmo falando a verdade.
— Ele nunca falou de mim?
— Não.
— Do primeiro casamento dele? De que eu queria ser veterinária? — Eliza disparou a falar, aproximando-se mais de a cada frase, percebendo todas as vezes que ela balançava a cabeça negativamente — Dos nossos passeios no parque ecológico? Da minha cor favorita?
— Ele nunca disse nada — afirmou, a luz vinda da janela iluminando os olhos marejados de Eliza, ela viu que o pisca-pisca que tinham colocado no portão estava enrolado nas mãos dela.
Por um momento, achou que ela fosse cair desconsolada no chão, tamanha decepção nos próprios olhos, porém, Eliza partiu para cima dela, tentando agarrar o pescoço, as luzinhas se enrolaram no meio das duas quando brigou de volta, afastando-a sem tentar machucar de verdade.
— Eliza, você não precisa fazer isso — ela gritou, puxando os braços dela para longe de si, sentindo as unhas grandes arranhando sua pele descoberta pelo vestido.
A mulher a ignorou, puxando o cabelo, queria enrolar o pisca-pisca no pescoço de de qualquer jeito. a afastava, as duas bateram na árvore de natal, que tombou para o lado e derrubou os quadros com fotos dela criança, brincando com os pais, divertindo-se, sendo feliz, tudo que não tinha acontecido com Eliza.
De repente, as luzes se acenderam de novo, Eliza virou o corpo para trás com a distração e aproveitou o momento para derrubá-la no chão bem no momento em que entrava na casa, ele estava pronto para correr até ela quando Eliza rapidamente puxou-a pelo sapato, o salto fez cair com a cara direto no chão.
A dor forte no meio do rosto e o líquido quente que sentiu sair pelo nariz fizeram com que ela não se recuperasse tão rápido, Eliza virou seu corpo para cima, o sorriso maníaco enquanto se aproximava com parte do pisca-pisca em mãos. largou o celular de qualquer jeito no tapete da entrada, correu em direção às duas.
— Sai de perto dela — ele gritou para a mulher, reconhecendo-a do restaurante, aproximou-se, puxando-a pelo braço para afastar Eliza de , que também empurrava a mulher para longe.
achou que conseguiria tirá-la de cima da amiga para que pudessem se defender juntos, mas não contava com o momento em que Eliza puxou a estátua que tinha procurado no escuro há alguns segundos de cima da mesa, atingindo-o na cabeça.
gritou ao perceber o que ela iria fazer, enfraquecida pelo peso do corpo da mulher em cima dela, não conseguiu avisar o melhor amigo a tempo, seu corpo se sobressaltou ao vê-lo cair desfalecido no chão da sala.
Eliza largou a estátua no chão, voltando-se para a garota abaixo dela no chão, o sangue manchava parte do seu rosto, ela pegou o pisca-pisca novamente, esticando a corda em frente aos olhos da irmã enquanto ela tentava desesperadamente sair de baixo dela.
A mulher não hesitou ao enrolar o pisca-pisca ao redor do pescoço de , puxando a cabeça dela para cima com força, o grito da garota saiu engasgado, as mãos de foram parar ao redor do cordão, exatamente como as outras quatro vítimas fizeram.
Ela tentou gritar, mas a voz não saía, as mãos puxavam e arranharam o próprio pescoço em uma tentativa falha de tirar as mãos de Eliza dela, seu corpo de debatia, tremia, os pontos pretos começavam a dançar no seu campo de visão, os olhos de Eliza estavam firmes no pescoço dela, apertando com o máximo de força que conseguia.
passou a se debater mais fracamente, o ar parecia não entrar mais em seus pulmões, o coração, que ela podia escutar sem sequer tocar o peito há alguns minutos, gradualmente perdia sua força, a visão ficava mais e mais escura, ela só conseguia ver flashes.
Seu pai a ensinando a andar de bicicleta, a falecida vó ensinando a receita do bolo que comia em todos os aniversários, a primeira vez que brincou com , quando tinham 7 anos, a mãe e ela fazendo um dia de garotas, uma lágrima escorreu pelo rosto dela, misturando-se ao sangue, os pais abraçados no sofá assistindo e ela apresentarem um número de High School Musical.
tirando Eliza de cima dela… sentiu a cabeça bater no chão, o pulmão parecia ganhar fôlego aos poucos, ouviu vozes ao longe, ela tossiu, tentou erguer os braços, mas ainda estava fraca demais.
Ali, Eliza encarava o homem que a deixou, o rosto que não saía da sua mente nunca desde o dia que ele foi embora na véspera do Natal, deixando-a apenas com um último presente de Natal e nenhuma despedida.
— Eu vou ligar para a polícia — gritou, pegando o celular do bolso e esticando o dedo em riste para a mulher — E é melhor você ficar onde está, não quero machucar ninguém!
sentiu a visão em foco de novo, tossia tanto que achou que fosse vomitar, arrastou-se até , segurando seu corpo e tentando fazê-lo acordar.
— Você não se lembra de mim? — Eliza perguntou, interrompeu o movimento para olhar melhor, a expressão torcida pelo choro que já iniciava, os olhos dela.
sentiu os braços vacilarem, um turbilhão de memórias o atingindo ao ver, no rosto maduro, a expressão de dor que enxergava em Elizabete quando ela ficava doente ou se machucava.
— Você nem me reconheceu! — a mulher gritou, batendo o pé no chão e quase atingiu a perna de — Todos esses anos me sentindo miserável pra você nem lembrar de mim? Pra nunca nem ter me mencionado pra sua família perfeita?
— Liz, calma — disse, tentando parecer tranquilo, usando o apelido pelo qual costumava chamar a filha, notou de longe que começava a acordar, se abraçava a ele com força, ouvindo os dois mais claramente — Você não precisa fazer isso, a não tem nada a ver com essa situação, é de mim que você tem raiva, por favor, fique calma.
Eliza se sentiu tonta ao escutar as palavras de , o cuidado com a segunda filha tão evidente, as lágrimas desceram sem aviso e ela largou o pisca-pisca no chão, ouviu as sirenes se aproximando.
— O que ela tem que eu não tenho? — Eliza perguntou, encarando-o derrotada — O que faz dela digna do seu amor? Por que ela sim e eu não?
chorava também, nunca na vida teve medo que o pai fosse embora, que ele não estivesse lá em suas apresentações ou não conseguisse buscá-la de noite em uma festa porque ela ainda não tinha sido aprovada no exame prático de direção, nunca na vida duvidou do amor que sentia por ela.
E agora, teria que conviver com um lado dele que era totalmente diferente, que tinha abandonado uma filha e uma esposa e construído uma nova família como se o passado fosse apagado no momento em que as deixou.
A porta semi-aberta foi rapidamente escancarada por , Matoso e outros policiais, Eliza ergueu as mãos para cima, balançava a cabeça negativamente repetidas vezes, dois oficiais se aproximaram dela e deram voz de prisão, virando-a de frente para .
— Desculpa — ela murmurou para a garota no chão, fechando os olhos brevemente para controlar as lágrimas — Só queria muito ser você.
, diferente dela, não tentou controlar a própria emoção, a abraçou o mais firme que conseguiu com a concussão na cabeça ainda o tonteando, se aproximou dos dois, agachando para ficar da mesma altura deles enquanto Matoso indicava as instruções para o policiais que conduziam Eliza para fora, continuava parado no lugar.
— Eu te disse pra não entrar — suspirou, abraçando não só o irmão, mas também.
— Era a minha irmãzinha que tava em jogo — disse fracamente, feliz pelo carinho que o irmão demonstrou não só a ela, mas com também — Pena que fui o amigo inútil, né.
— É, melhor isso do que o policial que chega tarde, né? — brincou, vendo quase engasgar ao tentar segurar uma risadinha, o investigador acariciou as costas dela, ajudando-a a se recuperar.
sorriu para ele, voltou a observar o pai, mas, mesmo estando fisicamente ali, a cabeça dele estava em outro lugar.
Véspera do Ano Novo.
encostou no batente da sacada de casa, observando a lua no céu e nas casas cheias ao redor, várias pessoas reunidas para o ano novo.
Lá dentro, , Carla, mãe dos meninos, Marcos, pai deles, e , se dividiam jogando alguns jogos de tabuleiro que tinham trazido de casa. Era o que sempre estava acostumada, variando às vezes na praia, às vezes na casa de , mas sempre eram eles ali. Desta vez, seu pai não estava lá.
Depois que tudo tinha acontecido, e ficaram completamente divididas entre o amor de uma vida que nutriram por e a decepção ao saber que ele não era um homem tão incrível como pensavam. As duas precisavam de um tempo e ele entendia completamente, por isso, estava morando em um dos apartamentos que costumava alugar por um tempo, pensando nos erros do passado e tentando encontrar formas de consertar o presente não só com aquela família, mas com Eliza também e, por mais que ela tivesse recusado todas as suas visitas, insistiu que aceitasse o advogado para defesa pago por ele, mesmo que o caso dela fosse bem difícil.
sorriu ao sentir o pelo macio de Tieta envolver suas pernas e olhou para baixo para acariciar o pelo da Golden, ouvindo os passos de alguém se aproximando e parando bem ao seu lado.
— Tá tudo bem? — perguntou, observando-a, antes sempre tão leve e alegre e agora marcada, não só pelos hematomas que ainda não tinham se curado no pescoço dela, mas por uma dor que nunca tinha sentido antes.
— Não sei — foi sincera, suspirando levemente ao gesticular — São tantos pensamentos juntos, sabe? Parece que não consigo colocar uma ideia no lugar.
— Nem mesmo cozinhando? — ele perguntou, sorrindo ao vê-la rir.
— Eu fiz metade dos pratos de hoje sozinha e não adiantou muito — ela respondeu, rindo um pouquinho mais — Não sei muito como lidar com isso, têm coisas voltando pro lugar de novo e outras eu sei que nunca mais vão ser como antes…
— Já pensou em escrever? — ele sugeriu, prestando atenção em cada detalhe do rosto dela como nunca tinha feito antes.
— Logo você, inimigo da criatividade, me dizendo isso? — exclamou, estreitando os olhos na direção dele.
— Oi? — fingiu estar ofendido, colocando uma das mãos sob a camisa de algodão branca que tinha escolhido para a virada — Eu li cada uma das suas fanfics, tá bom?
— E o que você achou delas? — perguntou, achando graça.
— Achei que tem uma que o policial lembra muito alguém, sabe? — provocou, vendo as bochechas dela ficarem levemente avermelhadas.
— Ah, não — ela conseguiu responder, mal segurando o sorriso no rosto — É impressão sua.
— Tem certeza, ? — ele disse, chegando mais perto — Porque eu posso jurar que tem umas coisas lá que eu já disse antes?
o encarou por um tempo, sem conseguir negar uma segunda vez. Ela era só mais uma vítima do amor por enemies to lovers, fazer o que?
— Gente — ouviram gritar lá de dentro, Tieta correu de volta para a sala — A mãe ganhou de novo, vamos trocar esse jogo, sério, virou passeio já.
e sorriram um para o outro, o investigador fez um gesto indicando que ela entrasse primeiro e os dois voltaram para a sala, o barulho da briga divertida pelo jogo misturado aos latidos da Golden imediatamente acalentando seu coração, pelo menos, aquilo ali ela sempre teria.