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Revisada por Aurora Boreal 💫
Atualizada em: 12/06/2025

A sala de espera do fórum municipal cheirava a uma mistura de poeira de processos antigos e café requentado. foi a primeira a entrar e, ao notar o espaço vazio, franziu o cenho. Ela não era conhecida por ser a mais pontual dos lugares, não era comum chegar antes dos outros.
A mulher segurava a pasta azul-escura contra o corpo com uma firmeza quase instintiva, como se temesse que alguém pudesse arrancá-la de suas mãos. Seus saltos altos ecoaram no piso de mármore enquanto ela atravessava a sala e escolhia o banco de madeira mais afastado da porta, acomodando-se com a elegância prática de quem sabia que aquele dia seria longo.
Decidiu reler o caso pela enésima vez, embora soubesse cada detalhe de cor. Ela abriu a pasta sobre o colo, os dedos deslizando automaticamente pelas páginas já marcadas de anotações e post-its coloridos, os dedos ágeis folheando as páginas já conhecidas.
O caso era simples... no papel.
A ONG que representava havia acionado a Justiça para exigir, com base na Lei de Acesso à Informação, os relatórios sobre o uso de pesticidas em terrenos próximos a escolas públicas. Um pedido direto, respaldado pela lei, motivado pela preocupação legítima com a saúde das crianças.
Em teoria, era o tipo de causa que deveria ser fácil de ganhar.
Mas, como quase tudo na vida real, havia um porém. Um porém robusto, com influência política e advogados caros: a empresa estatal responsável pelos documentos. Oficialmente pública, mas, na prática, administrada como um feudo pessoal por um dos empresários mais ricos — e perigosamente bem relacionado — da cidade.
Sabia que enfrentaria uma parede de manobras judiciais, argumentos vazios e tentativas de empurrar o caso até que a opinião pública se distraísse com outro escândalo qualquer.
A porta rangeu ao se abrir de novo. surgiu como uma rajada de vento — terno impecável, gravata ligeiramente desalinhada, o rosto parcialmente escondido atrás de uma pilha de papéis que mal conseguia equilibrar. A pressa estava estampada nele, como sempre. Ele empurrou a porta com o cotovelo, distraído, até que seus olhos cruzaram com os dela.
O ar da sala pareceu ficar rarefeito.
não se moveu. Apenas ergueu uma sobrancelha, um gesto pequeno, afiado, que dizia tudo sem uma palavra. Por um instante, congelou. Não mais que uma fração de segundo, mas o bastante para que seus dedos cerrassem a pilha de papéis nas mãos, amassando discretamente as bordas.
. — A voz dele soou leve, quase casual, mas carregava uma tensão difícil de disfarçar. — Que prazer... inesperado.
cruzou a sala com passos firmes, cada movimento medido como se encenasse uma tranquilidade que não sentia. Sentou-se no banco diante dela com a naturalidade de quem não carrega peso algum, mas o silêncio entre eles dizia o contrário.
Recostou-se, cruzando as pernas com um desleixo ensaiado, os ombros relaxados como se estivesse à vontade. Mas , que o conhecia melhor do que gostaria, notou o leve balançar do pé. O mesmo tique de sempre, discreto, mas inconfundível. Um sinal de incômodo, ou de raiva contida. Talvez dos dois.
— respondeu, o nome saindo seco, carregado de ironia mal disfarçada.
Ela segurou a pasta contra o colo, os dedos roçando o couro envelhecido como se o gesto pudesse ancorá-la no presente. Três anos. Era esse o tempo desde que estiveram frente a frente sem a moldura formal de um tribunal entre eles. E, no entanto, bastou um segundo para que o perfume dele a alcançasse — familiar, inconfundível — trazendo de volta lembranças que ela preferia manter trancadas.
Odiava saber disso. Odiava ainda mais que o cheiro trouxesse memórias que deveria ter enterrado.
inclinou a cabeça para trás, os olhos fixos no teto como se encontrasse ali algo mais interessante do que a situação à sua frente. O tédio era claramente teatral.
— Chegou cedo... ou será que eu me atrasei? — perguntou, arrastando as palavras com uma ironia preguiçosa. — Não achei que você fosse abandonar seu charme habitual de chegar depois do horário.
inspirou fundo, devagar, como quem contava silenciosamente até dez. Não lhe daria o prazer de uma resposta impulsiva. Com toda a calma, baixou os olhos para os papéis à sua frente, fingindo reler anotações que já sabia de cor.
— Agora que sei que você representa o outro lado — disse, sem sequer olhá-lo —, faço questão de estar aqui antes.
Ele soltou uma risada curta, abafada. Recostou-se no banco com ares de despreocupação, mas seus olhos seguiam fixos nela. Cada detalhe parecia prender sua atenção: o corte mais moderno do cabelo, o jeito concentrado com que ela franzia a testa, os saltos que acentuavam o movimento preciso de suas pernas.
Não que estivesse interessado, claro. Era apenas observação estratégica. Análise de oponente. Informação útil para a batalha.
— Ainda desconfiada, hein? — murmurou. — Que alívio. – E, de fato, havia algo reconfortante em ver que ela continuava a mesma. — Achei que, com o tempo, você tivesse superado essa mania de me pintar como o vilão da história.
ergueu os olhos com a lentidão de quem mira com precisão. O sorriso que ela lhe ofereceu era doce demais para ser gentil.
— Vilão? Não — respondeu, a voz suave e afiada. — Vilão tem motivações. Você sempre foi só... conivente.
A frase atingiu o alvo com perfeição. Por um segundo, o sorriso de vacilou. Um instante quase imperceptível, mas real. Como sempre, porém, ele se recompôs depressa.
— E você sempre soube usar isso a seu favor, não é, ?
Antes que pudesse retrucar, a porta interna do fórum se abriu com um rangido prolongado, interrompendo-os.
O oficial anunciou o número do processo e ambos se levantaram quase ao mesmo tempo, quase num reflexo automático de anos treinados no embate jurídico. , sempre o cavalheiro estrategicamente irritante, segurou a porta para que ela passasse. passou sem agradecer.
Deu um passo, dois, e então parou. Virou-se ligeiramente e o encarou, soltando uma risada curta, seca.
— Não acredito que estamos em lados opostos de novo. Achei que nossa competição tinha ficado nos TCC's e nos debates sobre jurisprudência.
arqueou uma sobrancelha, o sorriso agora menos cínico e mais... perigoso. Havia algo ali que ela preferia não identificar.
— Desta vez, o prêmio é maior.
Entraram juntos na sala de audiências, lado a lado, porém, separados por um abismo invisível. Um feito de mágoas antigas, orgulho ferido e algo ainda mais instável: tensão não resolvida.
Naquele momento, ninguém ali — nem mesmo eles — sabia que o reencontro reacenderia muito mais do que a rivalidade adormecida. Em poucas noites, estariam dividindo mais do que argumentos e provocações.




Continua...


Nota da autora: Sem nota de autora.

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