Revisada por Aurora Boreal 💫
Finalizada em: 12/06/2025
Parecia que nada havia mudado, tudo continuava quase suspenso no tempo. As lojinhas com suas placas pintadas à mão, suas vitrines cheias de velas artesanais, potes de geleia caseira, cartões postais com paisagens locais e panos de prato bordados com nomes de família.
O cheiro da cidade era o mesmo — uma mistura terrosa de floresta úmida, madeira fresca e café recém passado vindo da cafeteria da esquina, que ainda tinha a mesma mesa redonda na calçada e o sininho pendurado na porta. Havia algo de eterno naquele lugar. As pessoas caminhavam devagar pelas ruas, com sacolas de mercado ou cães nos braços, como se o tempo fosse um velho amigo que não tivesse pressa de partir.
Os poucos carros que circulavam o faziam sem buzinas ou urgência e até o som das bicicletas parecia mais suave ali. O vento soprava gentil, trazendo consigo a lembrança de verões passados, risadas ecoando pelas trilhas e o tilintar das pedras no riacho que cruzava o bosque.
Yulha era assim — um lugar onde as coisas não pareciam acontecer… até que aconteciam.
sentiu os olhos marejarem brevemente quando o carro parou na casa da avó, olhou para a fachada com atenção quando desceu do mesmo após desligar o motor. A brisa leve da tarde acariciou seu rosto e ela respirou fundo antes de finalmente tirar as malas do bagageiro.
A casa era simples, de um andar só, com o telhado em formato triangular coberto por telhas escuras. A tinta amarelada nas paredes externas estava um pouco desbotada pelo tempo, e havia trepadeiras subindo pelas laterais, com pequenas flores roxas brotando entre as folhas — a avó sempre gostara de manter o jardim vivo. O portão de madeira clara rangia com facilidade, mas continuava firme, assim como a pequena varanda de tábuas envelhecidas, onde ainda repousavam duas cadeiras de balanço que pareciam esperar por alguém.
Um sino de vento pendurado na beirada do telhado tilintou suavemente, trazendo consigo a lembrança de verões antigos e tardes regadas a chá gelado e histórias contadas com paciência.
caminhou até o porta-malas e retirou suas malas uma por uma, colocando-as com cuidado sobre a calçada. Havia algo simbólico naquele gesto — como se, ao abrir o compartimento, abrisse também uma parte de si que havia deixado para trás. Fechou o porta-malas e olhou mais uma vez para a casa, antes de subir os dois degraus da varanda e destrancar a porta com a chave que havia trazido pendurada no pescoço.
O interior da casa a acolheu com um silêncio morno. Um cheiro familiar de madeira antiga e chá de ervas pairava no ar e a luz suave que atravessava as cortinas floridas deixava tudo com um tom dourado, como se o tempo ali passasse mais devagar. Os móveis estavam todos no lugar — a poltrona da avó no canto da sala, com a manta de crochê cuidadosamente dobrada sobre o encosto, e a estante cheia de livros e porta-retratos antigos.
pousou as malas ao lado da porta e caminhou devagar até o centro da sala. Seu peito doía, mas não era exatamente tristeza. Era saudade misturada com alívio, medo com ternura. Um reencontro com partes dela mesma que havia esquecido.
— Oi, halmeoni… — sussurrou, mesmo sabendo que não teria resposta. Ainda assim, sentiu uma presença cálida ali, como se a avó estivesse apenas no outro cômodo, preparando chá e esperando para lhe dar um abraço.
Caminhou pela sala em passos pesados e lentos, os olhos ainda passeando por cada detalhezinho, como se quisesse redecorar na mente todas as coisas que ela já conhecia.
Depois caminhou pelo corredor que dava acesso aos quartos e ao banheiro. O piso rangia levemente sob seus pés, como se sussurrasse boas-vindas, e as paredes estreitas guardavam pequenos quadros com flores secas prensadas, todos feitos pela avó em molduras simples de madeira. O primeiro quarto à esquerda era o dela — ou, pelo menos, costumava ser. Ao empurrar a porta, sentiu o cheiro discreto de lavanda. A colcha bordada à mão ainda cobria a cama de solteiro e o abajur de cerâmica azul permanecia firme no criado-mudo. Havia um ursinho de pelúcia em cima do travesseiro, velho e um pouco desbotado, mas ainda sorridente.
Ela não entrou — apenas observou, com uma pontada de emoção na garganta, antes de continuar.
O segundo quarto era o da avó. A porta estava entreaberta, como sempre ficava quando a velha senhora ia à cozinha e voltava com uma xícara de chá. empurrou com delicadeza, quase com reverência. O ambiente era aconchegante, com tons quentes, uma colcha de retalhos cobrindo a cama e uma penteadeira repleta de pequenos frascos de perfume, pentes de madeira e uma caixinha de joias aberta, revelando alguns brincos simples e um colar de contas vermelhas que a avó sempre usava em dias especiais.
O banheiro, ao final do corredor, era pequeno, mas impecavelmente limpo. As toalhas estavam dobradas com perfeição sobre a prateleira e a cortina floral do chuveiro tinha leves manchas de sol, resultado dos anos de uso. Até o sabonete em forma de flor continuava ali, como se tivesse sido colocado ontem.
apoiou a mão na parede por um instante, fechando os olhos.
Tudo ali gritava a presença da avó — e ao mesmo tempo, a ausência dela. Era como caminhar por uma lembrança vívida, que pulsava em cada objeto, em cada aroma, em cada raio de luz filtrado pelas cortinas finas.
Ela respirou fundo, tentando conter as lágrimas que insistiam em vir.
Ali estava de volta. Em casa. Ou, pelo menos… em tudo aquilo que um dia foi lar.
Se sentou no sofá um tanto quanto exaurida, sentindo o corpo começar a reagir à faxina intensa que havia dado na casa. Havia revirado a mesma quase de cabeça para baixo para tirar a sujeira acumulada depois daqueles meses todos sem nenhuma presença humana no local.
Os braços doíam, as pernas começavam a latejar e o peito dela subia e descia descompassado pelo esforço físico colocado na empreitada. O rabo de cavalo estava uma verdadeira bagunça e acabou por refazer o mesmo, com mais firmeza dessa vez.
Encarou a sala outra vez, agora limpa e arrumada e então se permitiu fechar os olhos, enquanto encostava a cabeça no encosto do sofá, se permitindo finalmente relaxar, os músculos e o coração. A respiração ainda estava acelerada, mas ia se acalmando aos poucos. Se permitiu esticar os braços e as pernas, num alongamento longo, e acabou soltando alguns gemidos de dor, com o corpo não totalmente acostumado àquele tipo de “exercício”.
Depois de alguns minutos largada no sofá, esperando autorização do próprio corpo para se levantar, ela resolveu que guardaria as roupas antes mesmo de sair para comer alguma coisa e abastecer a casa.
No quarto que um dia havia sido seu, ela retirou algumas roupas da mala, dobrando-as cuidadosamente, da mesma forma que havia aprendido a fazer com a avó quando ainda era criança.
Ela se lembrava perfeitamente de quando aprendeu a dobrar roupas ali mesmo, sentada no chão, com a avó ao lado, paciente, guiando suas mãos pequenas com voz doce e firmeza gentil.
“Dobra pelas costuras, não pelas pontas… Assim elas não amassam depois.” A voz ecoava na mente dela com uma nitidez quase dolorosa.
sorriu de leve, um sorriso melancólico, enquanto dobrava uma blusa e a colocava com carinho na primeira gaveta do armário. Sentia que estava tentando, de algum modo, preservar o gesto — como se manter o método fosse manter também a avó um pouco mais viva naquele espaço vazio.
Cada dobra era uma lembrança, cada toque no tecido era uma tentativa silenciosa de se reconectar com algo que o tempo havia levado, mas que o coração se recusava a esquecer.
Ela parou por um instante, sentando-se na beirada da cama. Passou a mão devagar sobre a colcha e respirou fundo, sentindo o cheiro discreto de lavanda ainda impregnado no tecido. Fechou os olhos.
Era ali que ela voltava a ser neta. Ali, o mundo desacelerava.
E mesmo que tudo estivesse diferente, mesmo que a presença da avó fosse agora apenas memória, havia um conforto silencioso naquele gesto cotidiano — quase como um abraço invisível, tecido entre as gavetas, os cheiros e o silêncio da casa.
Depois de todas as roupas guardadas, ela seguiu para seu banho com seus itens de higiene em mãos. Deixou a água quente aquecer seus músculos ainda doloridos da intensa faxina na casa, enquanto fechava os olhos. Na mente, as lembranças da infância e adolescência na casa, vinham e voltavam.
Lembrou-se das manhãs preguiçosas de verão, quando acordava com o cheiro de mingau de arroz vindo da cozinha e ouvia o som do rádio antigo tocando baladas coreanas. A avó cantarolava baixinho enquanto cortava frutas para o café da manhã e aparecia na cozinha ainda de pijama, os cabelos bagunçados e os pés descalços no chão frio.
Lembrou-se também das noites em que a chuva batia no telhado de zinco e ela corria para se enfiar na cama da avó, encolhendo-se sob as cobertas enquanto ouvia histórias de um tempo que já parecia lenda. A avó falava com tanto carinho, com tanto calor na voz, que tudo o que era assustador — o trovão, a escola nova, ou até o mundo lá fora — desaparecia por alguns instantes.
E havia também as tardes no quintal. Os pés sujos de terra, o som das cigarras, a água gelada do tanque onde lavavam roupa juntas, rindo, brigando com as formigas, correndo para pegar a roupa do varal antes da tempestade. Os verões de sua infância estavam todos ali — presos em fragmentos simples, mas eternos.
A espuma do sabonete escorria pelos braços enquanto se apoiava na parede do chuveiro, sentindo as lágrimas se misturarem com a água quente. Talvez fosse o cansaço. Talvez fosse o reencontro com aquele passado que ela tinha deixado tão cuidadosamente guardado. Mas, pela primeira vez em muito tempo, ela se permitiu sentir tudo de uma vez só.
E no meio de tantas lembranças, entre a voz da avó e o cheiro da lavanda, uma imagem específica surgiu:
Um garoto de cabelos escuros, um sorriso tímido e um casaco vermelho que parecia grande demais para ele.
.
Ela abriu os olhos devagar, como se tivesse acordado de um sonho antigo.
Talvez nem tudo tivesse sido esquecido, afinal.
— Ryujin! — parou na porta do supermercado assim que entrou e viu a morena organizando uma prateleira a alguns metros.
Ela virou os olhos na direção do chamado e então arregalou levemente os olhos, depois de um breve instante de surpresa e até espanto, Ryujin sorriu e então caminhou na direção de . Ainda sorrindo, ela abriu os braços, puxando para um abraço caloroso, pegando-a de supetão.
definitivamente não esperava aquela reação e muito menos aquele abraço tão caloroso por parte de Ryujin, afinal de contas, apesar de terem estudado juntas desde o ensino fundamental até o médio, as duas nunca foram melhores amigas.
— Meu Deus, ! — Ryujin afastou-se só o suficiente para olhar o rosto da outra. — Olha só pra você! Quanto tempo!
— Pois é… — sorriu de leve, ainda um pouco surpresa com a recepção. — Desde a formatura, eu acho.
— Nossa, tudo isso? Nem parece. — Ryujin soltou uma risadinha e ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Mas o que tá fazendo aqui? Achei que tinha se mudado de vez pra Seul ou alguma cidade grande dessas.
—Morei em Busan nos últimos anos… mas voltei pra cuidar da casa da minha avó — respondeu, abaixando um pouco o tom na última parte. — Ela faleceu no fim do ano passado e agora a casa ficou comigo.
— Ah… poxa, eu sinto muito. — Ryujin tocou o braço de com leveza, em sinal de solidariedade. — Sua avó era uma fofa. Lembro dela levando você de lancheira na mão pra escola.
— É… ela era tudo. — assentiu com um sorriso triste, antes de mudar de assunto. — E você? Tá trabalhando aqui com sua família?
— Sim! Depois que meu pai e meu tio assumiram de vez, eu e minha prima começamos a ajudar mais. É puxado, mas é bom estar por perto, sabe? Yulha pode ser parada, mas tem seu charme.
— Isso com certeza não mudou — disse, olhando em volta. — O cheiro da padaria ainda é o mesmo.
— O pão de leite continua famoso, se é isso que você quer saber! — Ryujin riu. — Mas vem cá, vai ficar por aqui um tempo ou só tá de passagem?
— Acho que vou ficar… pelo menos por enquanto. Ainda tô decidindo o que fazer com tudo.
Ryujin assentiu, agora mais suave no olhar.
— Bom… se precisar de qualquer coisa, é só aparecer. A gente pode não ter sido super próximas, mas você sabe como Yulha funciona, aqui todo mundo se encontra cedo ou tarde.
sorriu com mais sinceridade dessa vez.
— Sei, sim. Obrigada, Ryujin.
— E aproveita que hoje tem bolinho de arroz recém-feito ali no fundo. Se você não pegar agora, some em dois minutos.
— Bolinho de arroz? Aí sim... — ela respondeu, caminhando para os fundos. — Pelo visto algumas coisas realmente nunca mudam.
já havia enchido uma cestinha com o básico: arroz, legumes, chá, um potinho de kimchi e, claro, os bolinhos de arroz que Ryujin havia recomendado. Caminhava devagar pelos corredores do mercado, redescobrindo os produtos, as marcas locais, e até reconhecendo algumas senhoras que ainda faziam compras por ali, como se o tempo tivesse dado apenas um leve salto, e não um pulo de tantos anos.
No caixa, uma adolescente de uniforme vermelho e coque malfeito passou os itens com pressa, mal erguendo os olhos. pagou, agradeceu e saiu com duas sacolas nas mãos, respirando fundo o ar de fim de tarde, que já começava a esfriar um pouco.
Foi então que ouviu um miado — curto, insistente — vindo de perto das bicicletas encostadas na parede lateral do supermercado.
Ela virou o rosto por instinto, curiosa, e seus olhos se detiveram na silhueta agachada de um homem, vestindo um moletom cinza claro e jeans escuros. Os cabelos castanhos estavam um pouco bagunçados, e ele estendia a mão com calma na direção de um pequeno gato malhado, que se escondia sob uma das bicicletas.
— Ei, tá tudo bem… — ele dizia, num tom baixo e gentil. — Não precisa fugir de novo.
O coração de parou por um segundo. Ela reconheceria aquela voz em qualquer lugar.
Era .
Ele se virou um pouco ao sentir o olhar dela, e os olhos dos dois se encontraram. O tempo pareceu vacilar, tropeçar. O casaco vermelho não estava ali, mas era como se estivesse.
Ele franziu os olhos por um instante, como se o cérebro tentasse confirmar o que os olhos já sabiam. E então o sorriso nasceu, leve, pequeno, mas real.
— ?
Ela ainda segurava as sacolas, os dedos levemente trêmulos.
— Oi, .
Ele se levantou devagar, dando uma última olhada no gatinho, que agora lambia a própria pata, mais calmo. Limpou as mãos na calça e se aproximou com passos tranquilos.
— Uau… quanto tempo.
— Muito — ela respondeu, ainda um pouco atordoada. — Eu... não esperava te ver aqui.
— Eu podia dizer o mesmo. — Ele sorriu, e o olhar dele era tão gentil quanto ela lembrava. — Mas, pensando bem… acho que era só uma questão de tempo até a gente se esbarrar de novo. Essa cidade tem o péssimo hábito de juntar as pessoas na hora certa. Eu posso… — apontou com o queixo para as sacolas nas mãos dela. — Levar isso até o seu carro. Se não for incômodo, claro.
hesitou por um segundo, mas assentiu, entregando uma das sacolas.
— Obrigada. Fica no estacionamento de trás.
Eles começaram a andar lado a lado, sem muita pressa, os passos sincronizados por um silêncio confortável, embora carregado de pensamentos.
— Então… — ele começou, olhando de relance para ela. — Tá de volta por um tempo ou…?
— Talvez por mais que isso. Minha avó faleceu no fim do ano passado. Eu voltei pra cuidar da casa, organizar as coisas…
— Sinto muito. Ela era uma mulher incrível — disse, com sinceridade, e ela notou a leve mudança no tom de voz. — A última vez que a vi, ela ainda estava distribuindo doces pras crianças na frente da escola, como sempre fazia.
sorriu com os lábios, sem mostrar os dentes, e olhou para o chão por um segundo.
— Ela nunca mudou, né?
— Nem um pouco. Algumas pessoas parecem não envelhecer de verdade, só se tornam ainda mais elas mesmas.
Ela soltou uma risadinha baixa e depois olhou para ele com uma curiosidade inevitável.
— E você? Tá morando aqui mesmo?
— Desde que terminei a faculdade. Voltei pra trabalhar na clínica veterinária do meu pai. Agora ela é minha, na verdade. — Ele ajeitou a alça da sacola no ombro. — Não é uma vida agitada, mas... gosto da rotina aqui.
— Você sempre gostou de cuidar dos bichos — ela comentou, com um brilho leve no olhar. — Lembro de você escondendo aquele filhote de cachorro dentro da sua mochila, na sexta série.
riu, balançando a cabeça.
— O Jjangu! Nossa… você lembra disso?
— Como esquecer? Você chorou quando a professora descobriu.
— Ei! — Ele fingiu indignação. — Eu era sensível, ok?
riu de verdade agora e, por um instante, os dois pararam de andar, bem ao lado do carro dela.
— Aqui. — Ela apontou, destrancando o carro com o controle.
colocou a sacola no banco de trás com cuidado, e então se virou para ela, as mãos nos bolsos agora.
— É bom te ver, . De verdade. Acho que a cidade ficou um pouco mais interessante com você de volta.
Ela sentiu o rosto esquentar, não sabia bem se pelo elogio ou pelo jeito casual com que ele disse aquilo — como se fosse a coisa mais natural do mundo.
— Obrigada… e foi bom te ver também. De verdade.
Por um momento, ficaram apenas ali, parados, como se não soubessem ao certo se deveriam dizer mais alguma coisa ou deixar o tempo falar por eles.
— Você ainda gosta de chá de jujuba? — ele perguntou, quebrando o silêncio com um meio sorriso nostálgico.
— Gosto… — ela respondeu, surpresa pela lembrança. — Por quê?
— A cafeteria da praça ainda serve o mesmo de sempre. Se quiser… posso te pagar uma xícara qualquer dia desses.
olhou para ele por um momento, o coração batendo um pouco mais forte do que deveria.
— Eu gostaria disso.
— Então é um plano.
Ele se afastou com um aceno leve, voltando em direção à lateral do supermercado, onde o gatinho ainda o esperava.
Ela ficou observando por alguns segundos, antes de entrar no carro com o coração batendo mais devagar… e mais fundo.
Como se uma parte esquecida de si mesma estivesse finalmente encontrando o caminho de volta.
Depois de guardar as compras dentro dos armários e da geladeira, resolveu preparar um almoço bem rápido, apenas para não cair morta de fome no chão, caso sua pressão baixasse ainda mais.
O cheiro de ramen instantâneo que ela preparou invadiu a casa, fazendo com que seu estômago roncasse em resposta, depois de alguns minutos, ela pegou a vasilha de plástico com sua preciosa refeição e se sentou no sofá, afundando o corpo nas almofadas com um suspiro satisfeito. Dobrou uma das pernas sobre o assento e deixou a outra esticada no chão, apoiando o potinho quente no colo. Com os hashis em mãos, ela se curvou levemente para frente, soprando o caldo fumegante antes de levar a primeira garfada à boca. O conforto da comida quente contrastava com o cansaço nos músculos — e por alguns minutos, era como se nada mais importasse além daquele sabor simples e familiar.
foi em direção ao quintal, quase como se estivesse sendo guiada pelo miado frágil que lhe invadia os ouvidos. Quando chegou por lá, embaixo da grande árvore de magnólia, cujas folhas amareladas começavam a se acumular no chão, mesmo fora da estação das flores…
Estreitou os olhos para tentar enxergar melhor o felino e ao observar a pelagem malhada do bichano, se deu conta que provavelmente era o mesmo gato que estava cuidando no estacionamento perto do supermercado da família de Ryujin.
— O que você está fazendo por aqui? — Ela balançou a cabeça em negativa, antes de se aproximar lentamente do gato, com cuidado para não assustá-lo ou afastá-lo.
O gatinho, acanhado, acabou se enrolando ainda mais em volta do próprio corpo enquanto miava, parecendo assustado e com muito medo.
se aproximou com passos lentos, quase silenciosos, o corpo levemente inclinado para frente, como se cada movimento seu precisasse pedir permissão àquele pequeno ser assustado. As folhas secas da magnólia estalavam sob seus pés, mas ela manteve o tom de voz calmo, sussurrando palavras suaves que nem ela sabia direito de onde vinham.
— Ei, tá tudo bem... eu só quero ajudar, tá?
O gato a observava com olhos arregalados, as orelhas levemente abaixadas, pronto para fugir a qualquer sinal brusco. Mas havia algo na voz dela, no jeito contido de se mover, que parecia convencer o bichinho a ficar. Ele soltou um miado mais curto, rouco, quase como se estivesse cansado até de pedir socorro.
se agachou lentamente, estendendo uma das mãos, mas sem tocá-lo de imediato. Esperou alguns segundos, permitindo que ele sentisse sua presença. Só então, com muito cuidado, aproximou os dedos da cabeça dele, e para sua surpresa, o gatinho não recuou. Apenas tremeu levemente, como se estivesse dividido entre o medo e o alívio.
— Isso... você é corajoso, hein? — murmurou, mais para acalmá-lo do que por esperar resposta.
Quando finalmente conseguiu tocá-lo, percebeu que o corpo do gato estava gelado e um pouco úmido, como se tivesse passado muito tempo ali fora. Foi só então, ao deslizar a mão com gentileza pelas laterais dele, que notou a pata traseira direita encolhida, diferente das outras. Havia um pequeno ferimento, já envolto em sujeira e folhas grudadas, e um pouco de sangue seco endurecia a pelagem em volta.
prendeu a respiração por um instante, sentindo o peito apertar.
— Ah, pobrezinho... você se machucou mesmo, não foi?
O bichano miou de novo, como se respondesse, e se encolheu ainda mais quando ela passou os dedos ao redor da área ferida.
Com cuidado, ela o recolheu nos braços, mantendo-o firme e protegido contra o peito. O corpinho tremia, mas ele não tentou escapar.
— Tudo bem. Eu sei quem pode te ajudar.
Com o coração acelerado e o olhar firme, ela se levantou devagar e caminhou de volta para dentro da casa, já com um nome girando em sua mente. .
Ela ainda se lembrava onde a clínica ficava e era muito provável que ainda estivesse no mesmo lugar de sempre. sempre adorara animais, desde os mais pequenos e dóceis, até os maiores e mais selvagens, provavelmente impulsionado pela presença do pai, já que sempre que possível, ele ficava algumas tardes na clínica — que hoje é dele, acompanhando os atendimentos do senhor .
sorriu ao se lembrar de quando percebeu que realmente estava apaixonada por ele: Foi num dia nublado de outono, na época em que ainda estavam no ensino fundamental. Ela tinha encontrado um passarinho caído no caminho de volta da escola — pequeno, tremendo, com uma das asas dobrada de um jeito estranho. As outras crianças olharam, fizeram careta, e seguiram adiante.
Mas não.
Ele parou ao lado dela, abaixou-se na calçada e observou o passarinho com um olhar sério, mas cheio de cuidado. Não hesitou. Tirou a própria blusa do uniforme — mesmo que ficasse com a camiseta branca manchada por baixo — e usou o tecido como um ninho improvisado. Depois, olhou para ela com aquele jeito calmo e certo de quem sempre soube o que estava fazendo.
— Se a gente correr, ainda dá tempo de levar pra clínica do meu pai — disse ele, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.
E correram. Com os tênis sujos, as mochilas balançando nas costas e o coração disparado por motivos diferentes. Ele segurava o passarinho com tanto cuidado, como se fosse de vidro. E quando chegaram lá, ofegantes e suados, o senhor os recebeu com um sorriso, e juntos, improvisaram uma pequena caixa com algodão e soro.
ficou ali, quieta no canto da sala, observando acompanhar tudo com olhos atentos e mãos firmes. Ele não desviava o olhar nem por um segundo, como se aquele passarinho tivesse sido confiado a ele pelo universo.
Foi naquele momento, escondida atrás do avental do pai dele e do cheiro forte de desinfetante, que ela soube. Não era só admiração. Era amor, ainda que ela não tivesse palavras para aquilo na época.
Agora, tantos anos depois, com um gato machucado no banco de trás do carro e o coração inquieto no peito, ela se perguntava se aquele garoto cuidadoso de então ainda morava por trás do homem que ela acabara de reencontrar.
E de alguma forma, sabia que sim.
Desceu do mesmo e em poucos passos alcançou a porta do banco de trás, e com cuidado e até certo medo, segurou o gato nos braços, apesar dos protestos fracos do bichinho.
segurava o gato com firmeza contra o peito, o tecido do moletom dela agora levemente úmido da respiração fraca do animal. Empurrou a porta com o ombro e o sino tilintou suavemente. Lá dentro, o ambiente era limpo, tranquilo e aquecido, com cheiro de antisséptico e chá de hortelã.
— Já estou indo! — Ouviu a voz vinda do fundo da clínica. Era ele.
Poucos segundos depois, surgiu no corredor, tirando as luvas descartáveis das mãos. Quando a viu, parou por um instante — como se estivesse tentando entender se aquilo estava mesmo acontecendo.
— ?
— Oi de novo — ela disse, o tom um pouco hesitante, mas carregado de urgência nos olhos. — Eu… acho que é o mesmo gatinho do supermercado. Ele apareceu no meu quintal, embaixo da magnólia. Tá machucado. Na pata.
não precisou de mais que um segundo para se recompor. Aproximou-se rapidamente, os olhos passando do rosto dela para o gato.
— Deixa eu ver.
Ela entregou o animal com delicadeza, observando a forma como ele o acolheu nos braços, com o mesmo cuidado de anos atrás. O olhar dele suavizou ao perceber o estado do bichinho — havia dor, mas também segurança ali.
— Ele confiou em você. Isso é raro. Ele é arisco — disse , enquanto começava a examiná-lo com leveza.
— Ele parecia cansado demais pra fugir. E com medo também.
— Pode sentar, se quiser. — Ele apontou para uma cadeira perto da bancada. — Eu vou limpar aqui e dar uma olhada mais a fundo.
assentiu, sentando-se devagar. Ficou observando enquanto lavava a patinha do gato com uma solução clara, murmurando palavras baixas que pareciam tanto para o animal quanto para si mesmo. O ambiente ficou em silêncio, exceto pelos estalos dos frascos sendo abertos e o som da respiração sutil entre eles.
— Você nunca mudou — ela falou, sem pensar muito.
ergueu os olhos.
— Como assim?
— Esse jeito seu… calmo. Cuidadoso. Quando éramos crianças, eu já sabia que você ia fazer isso da vida.
Um sorriso pequeno surgiu nos lábios dele.
— Engraçado… eu nunca soube ao certo. Mas no fundo, acho que foi o único caminho que sempre fez sentido.
Eles se encararam por alguns segundos — não havia pressa, nem explicações urgentes. Apenas uma conexão silenciosa sendo reconstruída aos poucos.
— Ele vai ficar bem? — ela perguntou, quase num sussurro.
— Vai, sim. Nada grave, só um machucado superficial. Um pouco de antibiótico, descanso e carinho… ele vai se recuperar logo.
se virou, pegando uma caixa acolchoada com um cobertor dobrado dentro.
— Eu posso cuidar dele aqui, se quiser. Mas… se preferir levar pra casa, posso te mostrar como cuidar também.
olhou para o bichinho deitado, agora mais tranquilo.
— Acho que ele já escolheu onde quer ficar — disse, com um sorriso discreto.
— Então é oficial — sorriu de volta, colocando o gato com cuidado na caixa. — Temos um hóspede em comum.
E foi ali, naquela pequena sala de azulejos brancos, entre o cheiro de lavanda e desinfetante, que o primeiro convite não dito aconteceu. Não foi pra um chá. Nem pra um passeio.
Foi o convite silencioso de alguém que dizia, com o olhar: Fica. Mesmo que só um pouco mais.
Depois de algum tempo, as pernas dela começaram a balançar involuntariamente, um pouco agoniada pela demora e por não ter o que fazer ali parada dentro da clínica.
“Será que o gatinho estava bem mesmo e o corte era superficial?”
“Ou será que está demorando de propósito, para me evitar ou algo assim?”
Os olhos saltaram automáticamente com esse último pensamento e ela resolveu se levantar um pouco, beber um copo de água e esticar as pernas que ainda doíam da faxina.
Quando ainda estava de pé ao lado do bebedouro com o copo de plástico cheio de água nas mãos, ela ouviu a porta do consultório de ser aberta. Os olhos dela foram direto para o rosto dele. O gatinho não estava em seus braços — e aquilo apertou algo em seu peito, rápido e fundo, como um susto silencioso. Por um instante, o coração dela perdeu o compasso, tomado por um medo irracional que subiu feito um arrepio pela espinha.
A mente correu, pintando cenários que ela não queria ver: “Será que ele piorou? Será que cheguei tarde demais?”
apertou o copo de plástico entre os dedos, o som quase imperceptível do plástico cedendo sob a tensão refletia a súbita onda de ansiedade que a atingia. Tentou encontrar alguma pista na expressão de — mas ele estava sério, contido, e isso só aumentou o peso que se acumulava dentro dela.
— Cadê ele? — Seus olhos foram direto para a porta do consultório aberta atrás de .
Um sorriso leve começou a surgir aos poucos no rosto dele, que passou a mão pela nuca.
— Está na área de internação. Estou aplicando um soro nele para que ele possa ficar mais forte e se recuperar mais depressa. Mas já já acaba e eu libero ele para você. Você pode ir para casa se quiser, , eu levo ele lá depois.
Por um segundo, o coração de bateu mais alto — não de alívio, mas de dúvida.
“Será que ele está dizendo isso só pra ter uma desculpa pra ir até a minha casa?”
“Será que… ele quer ficar sozinho comigo de novo?”
O pensamento veio rápido, atravessando sua mente como uma faísca inesperada, e ela sentiu as bochechas esquentarem sem motivo aparente.
Logo depois, balançou a cabeça discretamente, tentando afastar aquela ideia tola. “Não é sobre você, . Ele só está sendo gentil. É o . Sempre foi assim.”
— Tudo bem, então — disse por fim, com um sorriso leve. — Obrigada por cuidar dele.
assentiu, ainda com aquele mesmo sorriso tranquilo que ela lembrava tão bem.
— Pode deixar que em breve ele tá de volta com você. Vou bater na porta com ele no colo como nos velhos tempos — brincou, dando de ombros.
Ela riu, ainda um pouco sem jeito, mas genuinamente.
— Espero que ele não estranhe o sofá novo.
— Se estranhar, ele me conta. Eu sou bom com reclamações de felinos exigentes.
apenas sorriu de novo, e então, com o copo de água vazio nas mãos e o coração estranhamente leve, se despediu com um aceno antes de sair da clínica.
Não queria admitir, mas parte de si… estava esperando por aquela batida na porta. E não era só pelo gato.
O cheiro do bulgogi estava tão estranhamente gostoso que fechou os olhos inspirando o mesmo ainda mais para dentro, como se quisesse guardar aquele aroma dentro de si.
Ela nunca havia sido boa com as panelas, por mais que a avó e a mãe sempre fizessem questão de ensiná-la os pratos, os temperos, as receitas de família e tudo mais. Ela sempre havia sido básica na cozinha, sabia cozinhar para sobreviver e até então aquilo era o suficiente.
Mas aquele bulgogi, cheirava diferente… era como se ela estivesse inspirada! Pelo quê? Bom… talvez pelo prelúdio de uma possível visita de ? Quem sabe ele não aceitava ficar para o jantar? Então ela precisaria cozinhar pelo menos o básico, muito bem, não é?
Depois de tudo pronto ela pensou em tomar um banho, mas acabou sendo interrompida pelo som de batidas na porta.
O coração deu um pequeno salto — quase imperceptível, mas real. O tipo de reação que ela não tinha há muito tempo. “Será que é ele?” A pergunta veio antes mesmo da razão. E mesmo sem saber a resposta, ela já sabia que esperava que fosse.
ficou imóvel por um instante, o pano de prato ainda nas mãos, os pés descalços no chão frio da cozinha. Sentiu a pele do rosto aquecer e um friozinho bobo se espalhar por dentro, começando no estômago e subindo devagar.
Seu olhar correu pela sala, como se tentasse verificar se estava tudo minimamente apresentável. O cheiro do bulgogi ainda pairava no ar, aconchegante, convidativo. “Bom… pelo menos já está pronto”, pensou, ajeitando instintivamente os fios soltos do cabelo.
Respirou fundo, tentando parecer natural — mesmo que por dentro tudo nela estivesse acelerado demais para isso.
Então, caminhou até a porta, sentindo cada passo ecoar uma expectativa que ela nem queria admitir em voz alta.
Quando abriu a porta, lá estava , com o gatinho nos braços, uma caminha acolchoada na outra mão e uma sacola com ração provavelmente…
acabou se antecipando:
— Eu também comprei um pacote de rações assim que saí da clínica, acredita? — Ela sorriu de forma espontânea e logo o sorriso se transformou numa risada.
soltou uma risada nasalada ao observar ela levando uma das mãos pequenas até o rosto, para cobri-lo enquanto ria, e então ele teve que desviar o olhar, abaixando a cabeça. Aquele gesto e o som da risada dela, fizeram seu coração acelerar tanto dentro do peito que ele achou que infantaria ali, na frente dela.
— Me desculpe, eu nem sabia se você podia ou queria cuidar mesmo dele…Só subentendi pela forma como você demonstrou preocupação quando apareceu com ele na clínica. Se você quiser eu mesmo levo ele para a minha casa… caramba, que cheiro gostoso!
mordeu o lábio, como se estivesse se repreendendo pelo comentário e com aquela mordida estivesse parando a si mesmo, ou se contendo. Pelo menos tentando…
piscou algumas vezes, um pouco surpresa com a sinceridade repentina dele — e ainda mais com o jeito atrapalhado como ele tentou se corrigir. O tom da voz dele, o jeito como mordeu o lábio e desviou o olhar... tudo aquilo mexia com ela de um jeito silencioso e descompassado.
Ela sorriu, ainda com a mão parcialmente sobre o rosto, e depois a abaixou devagar, olhando para ele com mais clareza. — Eu quero cuidar dele, sim — respondeu com firmeza, mas suavidade. — E não só por ele… mas porque acho que… é bom ter alguma companhia por aqui.
ergueu os olhos para ela devagar, e os dois se encararam por alguns segundos a mais do que seria necessário. Um silêncio breve, mas carregado de algo que nem um dos dois conseguia — ou queria — nomear.
— E… — ela continuou, agora rindo mais discretamente — já que você sentiu o cheiro do bulgogi, não seria muito justo te mandar embora agora, né?
Ele riu, relaxando os ombros, e sacudiu levemente a sacola com a ração.
— Então é isso. Jantar e posse compartilhada de um gato. Parece um bom acordo.
— Entra logo antes que esfrie — ela disse, abrindo mais a porta com um gesto acolhedor.
Ele entrou com cuidado, ainda segurando a caminha e o gato, que se aninhava tranquilo, como se já reconhecesse aquele lugar como casa.
fechou a porta atrás dele, sentindo o coração bater firme e quente no peito.
Era só um jantar. Só um gato.
Mas nada ali parecia só.
observou a casa depois de colocar a caminha do bichano no chão, perto da poltrona que havia ao lado do sofá, e com o gatinho ainda aninhado nos braços ele se lembrou das vezes em que estivera ali com , para os trabalhos escolares, para brincarem e etc…
Ele se sentou devagar no tapete, ainda com o gato nos braços, e por um instante ficou em silêncio, como se algo dentro dele estivesse voltando no tempo.
— É estranho — disse, com a voz baixa, quase num pensamento alto. — Eu já estive tantas vezes aqui… e mesmo assim, parece tudo novo agora.
, que ajeitava os talheres na pequena mesa de apoio da sala, ergueu os olhos para ele, curiosa:
— Novo como?
— Como se fosse a primeira vez que eu realmente estivesse prestando atenção. — Ele sorriu de lado, olhando para a parede onde ainda pendia uma moldura com bordado antigo, feito pela avó dela. — Lembro da gente sentados nesse mesmo tapete fazendo cartazes de ciências… e da vez que você colou purpurina na minha calça sem querer.
Ela riu, colocando uma das mãos na cintura.
— Aquilo foi totalmente sua culpa. Você virou o tubo em cima do cartaz!
— Mas fui glitterizado por semanas por sua causa.
— Ah, e você sobreviveu.
— Sobrevivi — ele confirmou, e os dois sorriram por alguns segundos, sem pressa.
passou a mão com delicadeza sobre o dorso do gato, que agora dormia tranquilo no seu colo. Aquele gesto o fez desviar brevemente os olhos, e quando voltou a encarar , havia algo diferente ali — um brilho silencioso, um calor contido.
— É bom estar aqui de novo, — falou, sincero. — Com você.
Ela sentiu a respiração falhar por um instante, e desviou o olhar, sorrindo com suavidade enquanto levava as mãos até os potinhos de bulgogi fumegantes.
— Espero que o jantar esteja à altura dessa recepção nostálgica — disse, tentando manter o tom leve, mas sentindo o coração bater mais rápido do que gostaria.
— Se estiver metade tão bom quanto tá cheirando… vai ser perfeito.
Eles se sentaram, os dois mais próximos do que imaginavam que ficariam naquela noite. O gato dormia como se já pertencesse àquele lar — e talvez, no fundo, soubesse que estava fazendo um trabalho maior do que o esperado.
Conectar o que o tempo separou. E reacender o que nunca chegou a apagar.
Ele a observava como se quisesse decorar cada novo detalhe dela — o jeito como o cabelo caía solto sobre os ombros, a forma tranquila com que ajeitava os talheres, o cuidado quase tímido de alguém que não sabia mais como se recebia visitas assim.
— O que foi? — ela perguntou, ao notar o olhar fixo dele.
desviou os olhos por um instante, mas o sorriso não sumiu.
— Nada… é só que… você parece diferente.
— Diferente como? — Ela arqueou uma sobrancelha, levando o copo à boca para esconder a ansiedade que crescia no peito.
— Mais tranquila, talvez. Mais... você.
soltou um riso baixo, sem saber exatamente como responder àquilo. Sentiu-se vulnerável, mas não de um jeito ruim.
— A cidade tem esse efeito, eu acho — ela disse, mexendo devagar o arroz no prato. — Ou talvez seja só o silêncio. Faz a gente se escutar mais.
— E o que você tem escutado?
Ela ergueu os olhos devagar, encarando os dele.
— Que talvez eu tenha me afastado de muitas coisas que me faziam bem... e nem percebi.
assentiu lentamente, como se entendesse mais do que ela dizia.
— Eu também. Mas algumas dessas coisas… às vezes, voltam.
O silêncio entre eles ficou mais espesso, mas não desconfortável. Era um silêncio que falava. Um que preenchia.
O cheiro do bulgogi ainda pairava no ar, mas agora havia outra coisa naquela sala: a sensação de que aquele jantar era mais do que comida. Era reconexão.
estava prestes a pegar mais uma concha do molho de bulgogi quando a tampa do pote escorregou da sua mão. Em um movimento desajeitado, ela tentou segurá-la no ar, mas acabou virando um pouco do molho direto no próprio colo — bem no tecido claro da calça de moletom.
— Ai, não! — murmurou, largando a colher e se levantando de imediato, olhando para a mancha escura com uma careta de pura frustração.
arregalou os olhos por um instante e depois soltou uma risada curta, abafada pela mão que levou à boca.
— Desculpa — disse, entre risos. — Mas isso foi… muito cinematográfico.
— Ótimo — ela respondeu, bufando e tentando conter o riso também. — É isso. Minhas chances de parecer minimamente interessante no meu próprio jantar acabam de escorrer com o molho de soja.
— Na verdade, você só ficou mais real. E molho é só prova de que a comida tá boa.
riu, envergonhada e divertida, enquanto pegava um guardanapo e tentava limpar a calça com rapidez, sem muito sucesso.
— Tá, chega, eu vou pegar um pano úmido antes que isso vire um mapa permanente da Coreia.
— Espera aí. — se levantou também, estendendo a mão. — Deixa que eu ajudo.
Sem pensar muito, ele se aproximou e pegou outro guardanapo da mesa, ajoelhando-se ao lado dela e tentando limpar a borda da mancha com toques leves. Por um instante, ambos ficaram em silêncio. Os dedos dele encostaram nos dela, quentes e firmes, e o tempo pareceu desacelerar um pouco.
parou de respirar por um segundo. O riso ainda pairava no ar, mas agora havia algo mais denso, mais calmo. Ela olhou para baixo, observando a concentração no rosto de , a maneira como ele franzia levemente a testa ao tentar ajudar, como se aquele gesto — tão simples — exigisse toda a atenção dele.
— Obrigada… — ela disse, quase num sussurro.
Ele ergueu os olhos para ela naquele momento. E o toque das mãos ainda ali, mesmo que breve, deixou um calor pairando entre eles.
— De nada — respondeu. baixinho.
Os dois se olharam por alguns segundos que pareceram longos demais. Não havia palavras, mas também não havia pressa. Quando ele finalmente se afastou, colocando o guardanapo de lado, os dois riram de novo — um riso mais contido, mais cúmplice agora.
— Da próxima vez, vou servir o molho — disse, tentando quebrar o clima com leveza.
— Ou a gente come de colher direto do pote e evita acidentes diplomáticos.
— Justo.
Eles voltaram a se sentar, mas o ar entre eles tinha mudado. Era mais leve, mais íntimo. Como se aquele pequeno desastre tivesse feito mais do que apenas manchar uma calça — tivesse aproximado dois corações que já se conheciam… mas estavam se reencontrando agora.
— Meu Deus, , você é visita, eu já disse! Vá se sentar por favor que eu vou lavar as louças.
— Vai tomar um banho, , tirar essa calça manchada, não me custa absolutamente nada lavar isso aqui enquanto você toma seu banho. Eu sou super rápido e eficiente lavando louças, você deveria se lembrar. Quantas vezes não jantei aqui e ajudei com a louça?
Assim que disse aquilo, o silêncio caiu entre os dois por um breve momento.
“Quantas vezes não jantei aqui e ajudei com a louça?”
A lembrança veio sem pedir permissão — como uma brisa morna que atravessa uma janela entreaberta.
se viu mais nova, sentada na mesma cozinha, com os cabelos presos de qualquer jeito e as pernas balançando sob a cadeira. A avó lavava os pratos, enquanto ela e secavam, passando panos floridos nas panelas como se fosse uma grande missão. Às vezes, competiam para ver quem terminava primeiro — e sempre acabavam molhados, rindo, com espuma nas mãos e gotas na camisa.
Ela lembrou da sensação do braço dele roçando no dela, das piadas bobas, do som abafado das risadas ecoando entre as paredes daquela mesma casa.
também ficou quieto por um instante, com o olhar suavizado — como se estivesse vendo a mesma cena, mas do lado dele. A lembrança do cheiro de sabão neutro, da luz amarelada da cozinha acesa enquanto o mundo lá fora escurecia devagar. E dela. Sempre ela. Com aquele sorriso torto e a risada que ainda morava em algum lugar dentro dele.
— Eu me lembro, sim — disse, por fim, com a voz mais baixa, quase como se falasse para si mesma.
Os olhos dos dois se encontraram. Não precisavam dizer mais nada naquele momento.
As lembranças já haviam feito o trabalho. Reavivado a intimidade que o tempo não conseguiu apagar.
— Então vai lá tomar seu banho, eu sou de casa, não é?
assentiu lentamente para ele com a cabeça e então, com um sorriso sem mostrar os dentes ela se virou, pronta para caminhar até o banheiro.
Antes deu uma olhadinha no gatinho, deitado em sua cama, dormindo tranquilamente. Suspirou, soltando a respiração que nem ela sabia que havia prendido, e foi tomar seu banho.
O vapor quente ainda dançava em torno de seus ombros quando saiu do banheiro, os cabelos úmidos escorrendo pelas costas e o moletom largo e confortável abraçando seu corpo recém-aquecido. Sentia-se mais leve, como se tivesse deixado parte do cansaço para trás junto com a água do banho.
Enquanto caminhava pelo corredor até a sala, o som suave de uma respiração ritmada e um leve ronronar chegaram aos seus ouvidos antes mesmo da imagem. Quando virou no batente da porta, o coração apertou de leve com a cena que se formou diante dela.
estava afundado no sofá, com uma das pernas dobrada sob o corpo e a outra esticada no chão. O gatinho malhado dormia profundamente em seu colo, encolhido contra a camiseta cinza dele, que agora trazia pequenas marcas de pelos. A mão de fazia movimentos lentos sobre as costas do bichano, num carinho distraído e constante. O rosto dele estava virado um pouco para o lado, como se também estivesse à beira do sono, com os olhos semicerrados e o queixo apoiado levemente no ombro.
ficou ali parada por alguns segundos, observando os dois. E de repente, aquela cena — tão simples, tão silenciosa — pareceu gritar dentro dela.
Era uma imagem de paz. De algo que ela não via fazia tempo. De algo que, talvez, nem soubesse que queria tanto até aquele instante.
Ela apoiou a lateral do corpo na parede, cruzando os braços enquanto deixava um pequeno sorriso surgir. Não queria interromper — mas também não queria que ele pensasse que estava sendo ignorado.
— Acho que ele escolheu o colo certo — disse, suavemente, a voz baixa para não assustar o gato.
abriu os olhos devagar, e quando a viu ali, com o cabelo ainda úmido, envolta naquele moletom folgado, um sorriso sonolento se formou sem esforço.
— Vocês dois têm uma energia parecida — completou ela, se aproximando devagar.
— Quietos, desconfiados e com cara de que vão sair correndo se alguém fizer carinho demais? — ele brincou, sem se mover.
Ela riu, sentando-se ao lado dele, sem encostar, mas ficando perto o bastante para sentir o calor que ainda emanava de onde ele estava.
— Talvez… mas no fundo só estão procurando onde se sentir seguros.
a olhou por mais um instante, e o sorriso dele não era mais sonolento — era leve, verdadeiro.
— Então acho que ele encontrou.
sentiu o peito aquecer. Não sabia se ele falava do gato. Ou dela.
Talvez os dois.
Quando ela se sentou ao lado dele no sofá, sentiu a respiração começar a ficar descompassada, ainda afetada pelo que ele havia dito. As palavras tinham sido simples, quase casuais, mas carregadas de algo que ela reconhecia — um sentimento antigo, que agora voltava a pulsar com força.
O calor do corpo dele tão próximo, o som do ronronar baixinho do gato entre os dois, e o silêncio cheio de significados formavam uma atmosfera densa, difícil de ignorar. tentou focar em qualquer outra coisa — nas mãos, no tapete, no próprio colo — mas os olhos teimavam em voltar para o perfil de , para a forma como ele acariciava o gatinho com leveza e parecia tão absurdamente tranquilo ali, naquele espaço que era dela.
— Sabe… — ele começou, num tom mais baixo, sem virar o rosto. — Fiquei feliz por você ter voltado. Mais do que achei que ficaria.
A confissão pairou no ar por alguns segundos. engoliu em seco, os olhos ainda fixos em um ponto qualquer à frente, tentando entender como responder àquilo sem deixar escapar tudo o que também sentia.
— Eu… — ela começou, hesitando por um instante. — Estou surpresa com o quanto me sinto bem aqui. Na casa. Na cidade. Com…
Ela não terminou. Mas não precisava. virou o rosto, só um pouco, só o suficiente para olhá-la nos olhos. Ela sustentou o olhar por um segundo a mais do que gostaria, e então sorriu, pequeno, meio sem jeito.
A distância entre eles diminuiu sem esforço. Primeiro os ombros, que se tocaram de leve. Depois os joelhos, que se encontraram ali, lado a lado, imóveis, como se hesitassem em se afastar. Era um toque simples. Quase nada. Mas carregado de tudo.
— Não achei que fosse me sentir tão… em casa de novo — ela murmurou, quase como se falasse com ela mesma.
— Talvez nunca tenha deixado de ser — respondeu, tão baixo que ela mal ouviu, mas entendeu.
O gato se remexeu no colo dele, como se sentisse o peso da tensão crescente, e depois se ajeitou entre os dois, como uma ponte silenciosa. sorriu e olhou para baixo.
— Ele tá oficialmente em paz — disse, quase como uma desculpa para continuar falando, para não deixar o momento escapar.
assentiu, mas seus olhos ainda estavam nele. E naquele instante, não havia mais dúvida.
Se ele se inclinasse… ela não recuaria.
E se ela respirasse mais fundo, talvez ele sentisse que seu coração estava batendo por dois.
Quando voltaram a se encarar, ela viu o pomo de Adão dele subir e descer quando ele engoliu seco, voltando a encarar os olhos dela. A distância entre os rostos, começou a finalmente diminuir, o coração dela acelerado, os olhos se fechando, foi então que, no exato segundo em que seus narizes quase se encostaram, o gato soltou um miado alto — agudo, exigente, como se estivesse protestando contra ser ignorado.
Num pulo súbito, ele se esticou entre os dois, espreguiçando as patas com toda a falta de cerimônia felina, e acabou colocando uma delas diretamente no peito de , empurrando-o de leve para trás enquanto se ajeitava, como se estivesse reivindicando de volta o espaço que julgava seu por direito.
se afastou com um leve solavanco, surpreso, e soltou uma risada abafada, cobrindo a boca com a mão. O momento havia se quebrado — ou melhor, sido sequestrado — pelo pequeno intruso ronronante, agora deitado com o focinho enfiado no moletom de como se nada tivesse acontecido.
— Bom… acho que temos um chaperone felino — comentou, ainda sorrindo, mas visivelmente frustrado de forma divertida.
— Ou ele só tem um timing impecável — respondeu, balançando a cabeça, os olhos ainda brilhando de riso e… talvez, de um pouco de nervosismo contido.
O silêncio voltou, agora mais leve, mais cúmplice. Não havia beijo — ainda. Mas havia algo ali. Algo que nem mesmo o gato conseguiria espantar.
Pelo menos… não por muito tempo.
Ainda sorrindo com a interrupção felina, se ajeitou no sofá, recobrando aos poucos o fôlego — e a compostura. Passou a mão pelo cabelo, tentando disfarçar o rubor nas orelhas, e então olhou para o gatinho agora calmamente deitado entre eles, como se nada tivesse acontecido.
— Bom… — ele começou, a voz um pouco mais baixa, mas firme. — Antes que eu esqueça e esse carinha me distraia de novo… deixa eu te explicar direitinho o que fazer com os cuidados dele.
endireitou a postura, ainda tentando organizar os próprios pensamentos. Assentiu com um aceno leve e atencioso, como quem precisava muito se concentrar em algo técnico… antes que o clima voltasse a desestabilizá-la.
— Eu deixei os remédios na sacola ali perto da porta. — apontou com o queixo. — Tem antibiótico líquido que você precisa dar duas vezes ao dia, de preferência após a comida. Ele não costuma reclamar, mas se recusar, pode misturar com um pouco de pasta de malte. Eu deixei uma amostra também.
— Certo — ela murmurou, pegando mentalmente as instruções.
— A patinha ainda tá sensível, então evita deixar ele pular muito nos próximos dias. E o curativo… eu fiz um hoje, mas você pode tirar amanhã à noite e colocar um novo. Tem mais gaze, fita e solução antisséptica na sacola.
— Ok… tá. Acho que consigo fazer isso.
— Se ele começar a mancar mais forte ou parar de comer, me avisa. Mas sinceramente? — Ele sorriu, olhando para o bichano. — Acho que ele já entendeu que tá em boas mãos.
seguiu o olhar dele e sorriu também, mais suave agora, mais confortável.
— Obrigada, . Por tudo. De verdade.
Ele assentiu, e por um instante, o silêncio entre eles voltou — não mais tenso, mas cheio de promessas que não precisavam ser ditas naquela noite.
se levantou devagar, pegando as chaves no bolso e jogando o capuz do moletom sobre os ombros.
— Eu vou indo, antes que ele ache que vou dormir aqui também.
o acompanhou até a porta, o gato observando de longe com os olhos semicerrados, como um guardião preguiçoso.
Quando ela abriu a porta, o ar noturno entrou suave, trazendo consigo o perfume das flores do quintal e um restinho de brisa fresca.
— Até logo, — ele disse, já do lado de fora.
Ela hesitou por um segundo antes de responder.
— Até logo, .
E naquela despedida simples, havia uma coisa clara para os dois: Eles ainda não haviam terminado de se reencontrar.
Ele estava de pé, próximo a cama dada por , a patinha machucada não estava encostada no chão e ele parecia estar com dor e muito incomodado, miou ainda mais alto ao ver , que se aproximou dele, segurando-o com delicadeza e carinho.
— Ei, ei… tá tudo bem. — sorriu, falando com suavidade, como vira fazer. — Já tô aqui, pequenino.
O bichano miou mais alto ao vê-la se aproximar, e então permitiu que ela o segurasse. Ela o envolveu com cuidado, apoiando o corpinho contra o peito e sentindo o calor frágil dele atravessar o tecido do moletom. Os olhos dela se suavizaram, e o coração apertou só de pensar em como aquele serzinho já dependia tanto dela.
Sentou-se com ele no colo, pegando mentalmente cada uma das instruções que lhe havia dado.
“Duas doses por dia. Depois da comida. Se ele resistir, mistura com a pasta de malte…”
Lembrou-se da voz dele dizendo isso, com aquele tom tranquilo e certo. E do jeito como ele olhava para o gato — e, por um momento, também para ela — com aquela atenção silenciosa que dizia muito mais do que qualquer palavra.
colocou o gato sobre a manta estendida no sofá e se levantou para buscar a sacola dos remédios. Ao encontrar o frasco do antibiótico, seus dedos hesitaram por um segundo. O frasco de vidro era pequeno, mas o gesto carregava peso.
Ela preparou a dose como ele ensinou, misturando com um pouco da pasta para disfarçar o gosto. Quando voltou para o sofá, o gatinho ainda a observava, os olhos miúdos mais calmos agora, como se confiasse nela sem reservas.
— Prontinho… só um pouquinho, tá bem? — disse, com a voz quase infantil.
Com paciência, ofereceu a mistura numa seringa, e o gato lambeu aos poucos, sem protestar. Ela sorriu.
— Viu? Você é mais corajoso do que muita gente por aí.
O rosto de surgiu de novo em sua mente — o jeito como ele sorriu quando ela disse que se surpreendia em se sentir bem ali. O toque leve dos ombros. O quase-beijo. O coração acelerado.
Ela passou a mão devagar nas costas do gato, tentando se concentrar no presente, mas já sentia que algo em sua rotina havia mudado. Não era só o bichano que tinha escolhido ficar.
Talvez ela também estivesse, enfim, escolhendo voltar.
Tomou um café da manhã bem rápido, trocou de roupa e deixou ração para o gatinho, precisava sair de casa e procurar um emprego, se quisesse realmente ficar para valer em Yulha, o dinheiro referente ao acerto do emprego anterior em Busan não duraria para sempre, quiçá mais uns dois meses.
Precisava se virar com o que achasse de emprego por lá, mesmo que ela já soubesse que as opções não seriam muitas: poderia trabalhar do mercado dos pais de Ryujin, como caixa, estoquista, quem sabe ajudar no administrativo, já que era formada exatamente nisso… poderia trabalhar na lojinha de velas da senhora Mirae, ou talvez com o senhor Kim, ajudando-o a fabricar e vender as geleias…
Ou… Será que não precisava de uma secretária? Ontem ela não havia visto nenhuma por lá…Não. Ela balançou a cabeça veementemente enquanto conferia se tudo que precisava estava na bolsa, tentando afastar aquela idéia idiota que havia surgido na cabeça.
Deu uma última acariciada na cabeça do gatinho, se despedindo do mesmo e então saiu de casa.
Dirigiu até a praça principal da cidade, e correu em direção a banca do senhor Jongho para comprar o jornal de classificados de Yulha, ali, as pessoas anunciavam casas à venda ou para alugar, objetos usados que queriam repassar, ofertas especiais dos pequenos comércios, propagandas de eventos locais e, claro… oportunidades de emprego.
Para quem realmente queria saber o que estava acontecendo em Yulha — ou precisava se virar — o jornal de classificados era indispensável.
pegou o exemplar recém-impresso com as pontas dos dedos ainda mornas, agradeceu ao senhor Jongho com um sorriso e se afastou para se sentar num dos bancos da praça. Abriu o jornal com o cuidado de quem folheava algo muito mais importante do que parecia — e, de certo modo, era mesmo.
Seu futuro podia estar escondido ali, entre letras miúdas, papel amarelado e uma vaga de “procura-se alguém de confiança”.
Virou as páginas com atenção, riscando mentalmente todas as opções que não combinavam com ela — babá de cães em tempo integral (apesar da coincidência recente, não era sua praia), vendedora de trufas artesanais (passava), ajudante em uma pousada afastada da cidade (longe demais).
Mas então, quase no final da seção de “Serviços e Saúde”, uma pequena manchete capturou seu olhar:
“Procura-se auxiliar administrativo para clínica veterinária local.”
“Clínica — experiência básica em organização, agendamento e atendimento ao público. Meio período, possibilidade de efetivação. Início imediato. Interessados, entregar currículo pessoalmente.”
congelou por um segundo. O nome da clínica não deixava dúvidas. Era a de .
A primeira reação dela foi rir sozinha, baixo, em descrença.
“Ele postou isso hoje? Ontem?” “Será que foi antes… ou depois do jantar?”
A segunda reação foi mais complexa. Uma mistura de surpresa, hesitação… e uma pontada quase desconfortável de esperança.
Será que ele pensou em mim quando publicou isso? Será que ele estava esperando que eu visse?
Ela afastou o jornal devagar e olhou para frente, como se o mundo lá fora pudesse lhe dar alguma resposta imediata. Não deu.
Seu primeiro impulso foi dobrar o jornal, colocar na bolsa e esquecer. Era fácil dizer para si mesma que seria estranho, confuso. Que misturar trabalho com o tipo de reencontro que estavam vivendo era uma péssima ideia.
Mas o segundo impulso… foi o que ficou.
O jornal ainda aberto no colo, os olhos fixos naquele anúncio que parecia ter sido colocado ali só para ela.
“Ele precisa de ajuda. Eu preciso de um emprego.”
E por mais que ela tentasse negar, a ideia não parecia mais tão idiota assim.
Dobrou o jornal com cuidado e o guardou na bolsa como se fosse um segredo precioso. Respirou fundo, tentando ignorar a agitação no peito, e se levantou do banco com um único pensamento: Se é pra tentar, então que seja agora.
Seguiu pelas ruas da cidade com passos firmes — ou ao menos tentando parecer firmes — até encontrar uma das poucas casas de impressão e internet que ainda resistiam no centro de Yulha. Era um lugar pequeno, com fachada simples, letreiro azul desbotado e duas janelas protegidas por grades pintadas de branco.
Ao entrar, foi recebida pelo som leve das teclas sendo pressionadas e o chiado baixo de uma impressora em funcionamento. Atrás do balcão, uma garota jovem — provavelmente estudante do ensino médio — levantou os olhos e sorriu.
— Bom dia! Precisa de algo?
— Sim… preciso imprimir um currículo.
— Pode usar o computador da segunda mesa. Se tiver salvo em pendrive, é só conectar.
assentiu e caminhou até o terminal indicado, sentando-se diante da velha máquina com cadeira de rodinhas. Enquanto conectava o pendrive, sentiu o nervosismo voltar. Aquele currículo estava parado há meses. Era básico, direto, nada impressionante. Mas era honesto.
Abriu o arquivo, revisou rapidamente as informações — formação em Administração, experiência como assistente em um escritório de contabilidade em Busan, algumas habilidades em organização, atendimento e sistemas simples — e clicou em Imprimir.
O som da impressora cortando o silêncio da lan house foi quase mais alto que o próprio coração dela batendo forte.
Quando pegou a folha quente e recém-impressa, a encarou por um instante. Era só um pedaço de papel… mas representava tanta coisa. Coragem. Início. Talvez… reencontro.
Saiu da lan house com o currículo dobrado e protegido dentro da bolsa, e seguiu direto pela rua principal até a clínica.
O dia estava ensolarado, mas havia uma brisa fresca que fazia as árvores da praça dançarem levemente. Tudo parecia normal — normal demais para o turbilhão que acontecia dentro dela.
Quando avistou a placa de madeira com o nome Clínica Veterinária , sentiu o estômago dar um nó.
Parou por um instante diante da porta de vidro.
“E se ele achar que é carência disfarçada de interesse?” E se eu estiver confundindo tudo?”
Mas então lembrou do gato dormindo em paz no sofá de casa. Da forma como a olhou na noite anterior. E de como ela mesma se sentia… como se estivesse, pela primeira vez em muito tempo, voltando a pertencer a algum lugar.
Com esse pensamento, apertou o currículo contra o peito, respirou fundo, e empurrou a porta.
O sininho tilintou. E o próximo capítulo da história deles estava prestes a começar.
— Você deve estar enjoado da minha cara já… — riu e então caminhou até o balcão.
— Por que eu estaria? Nós dois vivíamos grudados durante a infância e eu posso te garantir que não enjoei de você mesmo quando você insistia em apanhar frutas nos pomares das casas da vizinhança e corríamos para comer na minha casa ou na sua até às nove da noite.
Ela ficou apenas ali, diante dele, ouvindo aquela lembrança escapando de seus lábios com uma naturalidade que doía e aquecia ao mesmo tempo.
Era uma imagem tão viva, tão infantil e doce, que fez o peito dela apertar. Porque havia verdade ali — não só na lembrança, mas na forma como ele a guardava. E, principalmente, na forma como ele a dizia: como se ela ainda fosse parte daquilo. Como se ela ainda fosse parte dele.
Ela piscou algumas vezes, o sorriso enfraquecendo apenas o suficiente para que ele percebesse algo diferente em seu olhar. Não era tristeza. Era… um reconhecimento. Um reencontro interno.
— Eu… — ela começou, ajeitando a alça da bolsa no ombro, tentando manter o tom leve. — Nem sei porque estou surpresa que você lembra disso. Mas estou.
— Eu lembro de muitas coisas — respondeu, agora um pouco mais sério, mas ainda sorrindo. — Principalmente das boas.
sentiu o coração disparar de novo, mas dessa vez, não de nervosismo.
De conexão.
E foi com as mãos um pouco trêmulas — mas decididas — que ela puxou o currículo de dentro da bolsa e o colocou sobre o balcão.
— Eu vim por causa disso.
olhou para o papel, depois de volta para ela. E o sorriso que surgiu dessa vez foi mais contido, mas cheio de significado.
— Achei que talvez você viesse.
pegou o currículo com cuidado, como se o papel fosse mais importante do que aparentava. Passou os olhos rapidamente pelas informações, mas não demorou muito. A verdade é que ele não precisava do conteúdo para saber que queria ali.
— Você tem formação em Administração? — ele perguntou, erguendo os olhos para ela com uma expressão de surpresa sincera.
— Tenho. Não é nada muito avançado, mas dá pra quebrar um galho com organização, atendimento, planilhas… essas coisas.
— E o seu último emprego?
— Escritório de contabilidade em Busan. Ficava mais sentada do que qualquer outra coisa, mas aprendi a me virar com clientes difíceis e relatórios mensais. — Ela deu um leve sorriso, tentando descontrair.
assentiu, ainda analisando mais ela do que o currículo.
— Sabe, eu estava precisando de alguém com exatamente esse perfil. — disse, apoiando os antebraços no balcão. — A clínica tem crescido, e eu não consigo mais dar conta sozinho da parte de marcação de consultas, registros de atendimento, fornecedores… Fora que você viu ontem: a recepção está sempre vazia, e eu fico indo e vindo como um maluco.
— Então você está dizendo que vai me contratar porque sou boa com planilhas… e por pena?
— Pena, não. — Ele sorriu, abaixando levemente o tom de voz. — Confiança. E talvez um pouco de memória afetiva também.
Ela soltou uma risadinha curta, desviando o olhar só por um segundo, antes de voltar a encará-lo.
— Então... você vai me contratar mesmo?
— Ainda precisa passar pela entrevista oficial, claro — ele respondeu, fazendo um gesto formal com as mãos, como se estivesse brincando de ser chefe. — Mas considerando que você já me salvou de um ataque de alergia quando tinha nove anos e que cuidou melhor do gato do que muita gente cuidaria de um filho… sim, acho que tenho bons motivos.
cruzou os braços, fingindo analisar a proposta.
— Ok. Mas eu só aceito se tiver direito a café na recepção e pelo menos uma pausa para alimentar o gato.
— Fechado. — estendeu a mão por cima do balcão. — Bem-vinda à Clínica , Srta. .
Ela apertou a mão dele, sentindo aquele calor conhecido, reconfortante e ao mesmo tempo inquietante percorrer seus dedos.
— Obrigada, Sr. . Espero que saiba no que está se metendo.
— Espero mesmo que eu saiba — ele murmurou, mais para si do que para ela, sem soltar a mão de imediato.
E naquela troca de olhares que se prolongou um pouco além do necessário, havia algo mais do que um simples novo emprego.
Era um recomeço. Talvez de carreira. Talvez de algo maior.
pegou os papéis com as duas mãos, lendo com atenção as cláusulas básicas: carga horária, tarefas previstas, salário modesto — mas justo — e início imediato.
— Você é sempre assim, direto ao ponto? — perguntou enquanto lia, sem erguer os olhos. — Me lembro que na escola você procrastinar um pouco…
— Só quando estou prestes a contratar alguém que mexe com minha rotina inteira — ele respondeu com um sorriso no canto dos lábios. — Ei! Eu sempre trabalhei muito bem sob pressão e isso virou um hábito, por isso eu procrastinava!
Ela mordeu o interior da bochecha para não sorrir mais do que deveria. Quando terminou de ler, assinou no canto inferior da folha com a mão firme, mas o coração acelerado.
pegou os papeis de volta com um aceno de cabeça satisfeito.
— Agora é oficial.
— Agora é real — ela respondeu, encarando a própria assinatura por um segundo antes de ajeitar a bolsa no ombro.
— Amanhã às oito?
— Oito em ponto — ela confirmou, começando a dar alguns passos em direção à porta.
Antes de sair, virou-se de lado e lançou um último olhar para ele.
— Obrigada, . Por confiar em mim.
— Obrigado você, . Por aparecer.
Ela saiu e o sininho da porta tilintou atrás de si, leve, como uma bênção silenciosa.
Quando chegou em casa e se jogou no sofá depois de um suspiro baixo, fechou os olhos com força e não conteve o sorriso satisfeito que brotou no rosto, ao se lembrar que agora trabalharia com … o gatinho miou tentando subir no sofá, mas sem sucesso.
então se abaixou para pegá-lo no colo e então começou a conversar com ele:
— Você não faz ideia do que acabou de acontecer — ela começou, passando os dedos devagar pelas orelhinhas dele. — A sua nova mãe aqui… agora tem um emprego. Nada mal, hein?
O bichano miou em resposta, baixinho, como se incentivasse a conversa.
— E não é qualquer emprego… — ela continuou, sorrindo. — Eu vou trabalhar com o . É, aquele mesmo. O do casaco vermelho. O das frutas roubadas dos vizinhos. O que quase me beijou no sofá ontem à noite, mas foi interrompido por você, aliás.
O gato soltou um som curto, quase indignado, e ela riu.
— Não vem bancar o inocente. Eu vi muito bem aquela patinha sabotadora, viu?
Ele se aninhou mais contra ela, ronronando forte, os olhos já começando a se fechar.
— Mas tudo bem. Talvez tenha sido melhor assim. Um quase-beijo dá mais frio na barriga que um beijo de verdade, não dá?
Silêncio. Ronronar.
— Você acha que ele ficou feliz de verdade por me ver hoje? Ou foi só gentileza? — Ela mordeu levemente o lábio, pensativa. — Porque eu… eu fiquei. Muito. Mas não quero me enganar.
O gato esfregou o focinho contra o moletom dela como se respondesse com certeza. Ela sorriu.
— Tá bom. Vou confiar em você dessa vez. Mas se ele quebrar meu coração… você vai ter que dividir a cama comigo e me consolar com ronronadas, entendeu?
Outro miado curto, preguiçoso.
— Combinado.
fechou os olhos por um momento, ainda acariciando o gatinho.
Talvez estivesse falando sozinha. Talvez só estivesse se ouvindo pela primeira vez em muito tempo. Mas ali, com o bichano no colo e o coração leve, ela sentia que estava exatamente onde deveria estar.
E, de algum jeito silencioso, tudo estava começando a fazer sentido outra vez.
O som inesperado de batidas à sua porta fez com que ela levantasse os olhos para lá, sem parar de acariciar o bichano, que não pareceu nenhum pouco incomodado com as batidas.
— Quase às sete da noite? Quem pode ser? — Se levantou, ouvindo os joelhos estalarem levemente e riu de como estava se sentindo sedentária e até um pouco velha.
Abriu a porta com um pouco de receio, só um pedaço, e colocou metade do rosto para fora, dando de cara com um buquê de rosas vermelhas tampando o rosto da pessoa do outro lado.
O cheiro das rosas foi a primeira coisa que chegou até ela — doce, intenso, inconfundível.
Por um segundo, congelou, encarando o buquê que tapava completamente o rosto da pessoa do outro lado. O coração deu um pulo sem aviso, e ela precisou de um instante para processar o que estava acontecendo.
— Hã… oi? — disse, confusa, com a testa franzida e meio sorriso no canto da boca.
Foi então que o buquê abaixou lentamente, revelando , com aquele meio sorriso torto e olhos brilhando sob a luz da varanda.
— Desculpa aparecer assim, mas… achei que você merecia um buquê no seu primeiro dia oficialmente contratada.
piscou algumas vezes, surpresa demais para falar de imediato.
— Uau… isso é… — Ela olhou para as flores, depois para ele. — Um exagero fofo.
— E tem mais. — ergueu a outra mão, olhando o relógio. — Jantar.
Ela arqueou uma sobrancelha, ainda segurando a porta entreaberta.
— Você tá me convidando pra um jantar na minha própria casa?
— Na verdade… — Ele riu, ajeitando o buquê. — Eu pensei em te levar pra jantar fora. Como uma comemoração pelo emprego novo. E, claro… — O sorriso dele cresceu um pouco mais. — …porque hoje é Dia dos Namorados.
sentiu o estômago revirar — mas de um jeito bom, elétrico. O friozinho subiu pelas costas e fez seu coração acelerar como se tivesse voltado à adolescência.
— Então não é só pelo emprego?
— Não — ele respondeu, firme, sem hesitação. — É por você. Porque você voltou. E porque... eu queria te ver hoje de novo
Ela ficou em silêncio por um segundo. Só um segundo. Porque logo depois disso, abriu a porta por completo e estendeu a mão para pegar o buquê.
— Me dá cinco minutos pra me arrumar e passar pelo menos um batom.
— Tô contando.
Ele riu enquanto ela desaparecia pela casa com o buquê apertado contra o peito — e um sorriso que ela já não conseguia esconder nem que quisesse.
Começou a procurar por algum vestido que fosse apresentável para um jantar com , seu amigo de infância — barra, primeiro amor, e bom, agora chefe.
Jogou algumas peças de roupa pela cama, e então encontrou um vestido em uma das gavetas — e soube na hora que seria ele.
Era um vestido branco, justo ao corpo, de tecido macio e leve que se moldava com naturalidade às curvas. O modelo era reto, com comprimento curto, logo acima dos joelhos, e alças finas que deixavam os ombros à mostra. Minimalista, mas com um charme discreto que fazia ele se destacar mesmo sem esforço.
Ao vesti-lo, se olhou no espelho e sentiu algo diferente.
Não era só o vestido.
Era ela.
Voltando a se sentir… bonita. Desejável. Viva.
Passou os dedos pelos cabelos, soltou um suspiro nervoso e pegou um colar delicado para completar. Era um jantar com , ela repetia para si mesma. Seu amigo de infância, o garoto das frutas roubadas e do casaco vermelho.
Mas lá no fundo, sabia que aquela noite podia ser muito mais do que isso.
ajeitou a alça fina do vestido no ombro, passou a mão pelos cabelos uma última vez e respirou fundo antes de sair do quarto. Estava nervosa, mas decidida. Quando atravessou o corredor e surgiu na sala, os saltos baixos ecoando no piso de madeira, viu se virar em sua direção.
O buquê agora repousava sobre a mesinha da entrada, e ele estava observando o ambiente distraidamente… até que a viu.
Os olhos dele passearam pelo corpo dela devagar, como se cada centímetro fosse um choque suave de surpresa e admiração. Começaram pelos pés, subiram pelas pernas à mostra, pararam no vestido branco justo — simples, mas de efeito devastador — e se perderam brevemente nos ombros dela, descobertos sob a luz amarelada da luminária.
Por um instante, esqueceu completamente como se respirava.
— Uau… — Foi tudo o que conseguiu dizer, num tom quase reverente.
sentiu as bochechas esquentarem, mas manteve o sorriso leve, fingindo não notar o olhar dele.
— É só um vestido, . Não precisa olhar como se eu tivesse saído de um filme.
— É que… você parece que saiu direto da memória — ele disse, ainda olhando pra ela. — Mas, de alguma forma, melhor.
Foi então que os olhos dela se desviaram para a jaqueta que ele usava. Um casaco vermelho escuro, de tecido mais moderno, corte mais ajustado… mas inconfundível.
Ela parou por um segundo, o sorriso vacilando, e o peito apertando com a lembrança.
— Esse casaco… — ela murmurou. — Você ainda tem um igual.
abaixou os olhos para o próprio peito e sorriu de lado.
— Esse aqui é novo. O outro não caberia mais em mim nem com mil promessas. Mas… — ele ergueu o olhar para ela outra vez. — Era o meu preferido. Achei que fazia sentido usar hoje.
Ela mordeu o lábio, tentando conter o turbilhão de sensações.
— É quase injusto você usar isso. Me faz lembrar demais.
— E isso é bom ou ruim?
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Vamos descobrir no jantar?
sorriu, estendendo o braço.
— Vamos.
Ela aceitou, entrelaçando o braço no dele, e os dois saíram pela porta como se o tempo estivesse se reorganizando para deixá-los exatamente onde deveriam estar.
Ela virou-se levemente para , confusa.
— Isso aqui não existia na minha época, né?
— Não. — Ele sorriu, desligando o carro. — É novo. Quer dizer… relativamente. Inauguraram há uns três anos. O dono é o Minjae, lembra dele? Era do nosso terceiro ano.
arregalou os olhos, surpresa.
— O Minjae? Que só comia pão recheado com leite de banana no recreio?
— Esse mesmo. Agora ele serve polvo caramelizado com molho de gengibre artesanal. O mundo gira.
Ela soltou uma risada, balançando a cabeça em descrença.
— Nunca imaginaria.
— Pois é. A vida é cheia dessas — ele disse, saindo do carro e correndo para abrir a porta do lado dela.
entrou com ele no restaurante e imediatamente sentiu o contraste com a memória que tinha da cidade. Era um espaço pequeno, mas extremamente bem decorado — paredes de tijolos aparentes, quadros com ilustrações minimalistas de flores e paisagens de Yulha, música ambiente baixa e mesas com velas acesas em suportes de vidro.
O ar cheirava a ervas frescas e algo levemente adocicado. A luz era quente, suave, como se o lugar inteiro tivesse sido projetado para desacelerar o tempo.
cumprimentou o garçom com um aceno e a conduziu até uma mesa próxima à janela, de onde se via parte da rua iluminada pelas lanternas da praça principal.
— Você e o Minjae são próximos?
— Nos encontramos de vez em quando. Ele sempre me prometeu uma mesa aqui “quando eu arranjasse alguém que valesse a pena trazer”.
desviou o olhar com um leve sorriso.
— E agora você trouxe uma colega de trabalho?
— É. — Ele a olhou, firme, sem desviar. — E também a garota que fez parte de toda a minha infância.
Ela parou por um segundo, sem saber o que responder. Mas o sorriso que escapou em seguida dizia tudo.
Sim. Ela estava exatamente onde devia estar.
O garçom trouxe água com limão e um cardápio enxuto, mas requintado. fingiu se concentrar nas opções, mas seus olhos escapavam vez ou outra para do outro lado da mesa. Ele estava mais arrumado do que de costume — o casaco vermelho destacando-se sob a luz morna do restaurante, os cabelos penteados de um jeito que parecia casual demais para ser só coincidência.
Ela sabia. Ele tinha se preparado.
— Vai querer o polvo caramelizado? — ele perguntou, escondendo o sorriso atrás do cardápio.
— Minjae ficaria ofendido se eu recusasse, né?
— Extremamente. Ele até ameaça cortar laços de amizade com quem pede hambúrguer aqui.
Ela riu, balançando a cabeça. O garçom logo retornou, anotou os pedidos e deixou uma pequena garrafa de vinho local sobre a mesa. Quando se afastou, o silêncio que ficou entre eles não foi desconfortável — foi o tipo de silêncio que escuta.
girava levemente a taça entre os dedos. Ela observava.
— É estranho estar aqui — ela disse, por fim, apoiando os cotovelos de leve na mesa, inclinando-se um pouco à frente. — Não só no restaurante… mas aqui. Com você.
— Estranho de bom ou estranho de “o que eu tô fazendo”?
— Dos dois jeitos — ela admitiu, sorrindo. — Tem algo muito familiar em estar com você. Mas ao mesmo tempo, tudo é diferente agora. Você é diferente.
— E você também — ele disse sem hesitar, os olhos fixos nela. — Mas o jeito como você ajeita o cabelo quando tá nervosa… ainda é o mesmo.
ergueu as sobrancelhas, surpresa.
— Você reparava nisso?
— Reparava em tudo — ele respondeu, dando um gole no vinho como se aquilo não fosse nada demais.
Mas era. E ela sabia.
Depois do pedido feito, os dois voltaram a se encarar quando ficaram sozinhos, e ela levou o vinho até os lábios. O ambiente parecia mais silencioso agora que estavam sozinhos — ou talvez fosse só o peso dos olhares que se reencontravam.
Ela não estava exatamente nervosa… mas havia uma tensão doce no ar, como se qualquer palavra errada pudesse despertar uma tempestade ou um beijo. E, naquele momento, ela não sabia o que temia mais.
ainda a observava, sem pressa, com aquela expressão que ela lembrava da infância — a mesma de quando ele prestava atenção demais nas coisas simples. Só que agora, o olhar dele era mais maduro. Mais homem.
— Você ficou diferente — ele disse, quebrando o silêncio com a voz baixa, quase reflexiva. — Mas não de um jeito distante… É como se você fosse a mesma, só… mais você.
Ela pousou a taça devagar sobre a mesa, um sorriso hesitante nos lábios.
— Eu não sei se isso é um elogio ou uma tentativa de me desconcertar.
— As duas coisas — ele admitiu, sem desviar o olhar. — Você ainda fica sem jeito quando alguém te elogia.
soltou uma risada leve, baixa, e apoiou os cotovelos na beirada da mesa, entrelaçando os dedos.
— E você ainda fala como se soubesse mais de mim do que eu mesma.
— Talvez saiba. Ou talvez eu só tenha prestado atenção de verdade.
Ela mordeu o canto do lábio, desviando os olhos por um instante, apenas para não se perder demais nos dele.
— Sabe o que é mais louco disso tudo? — ela disse, depois de um silêncio breve. — Quando eu era mais nova… e gostava de você… achava que você nunca ia olhar pra mim desse jeito.
— E agora?
Ela voltou a encará-lo. Os olhos dele estavam fixos nos dela. Não havia ironia, nem insegurança. Só certeza.
— Agora eu fico me perguntando se eu consigo continuar fingindo que isso aqui é só um jantar entre amigos.
encostou o braço na mesa, inclinando-se um pouco para a frente.
— E você consegue?
não respondeu de imediato. O calor do vinho, o calor do olhar dele… tudo estava misturado agora.
— Ainda tô tentando — ela sussurrou. — Mas não prometo durar até a sobremesa.
Ele sorriu, e a tensão entre os dois se tornou quase visível. Mas antes que qualquer gesto tomasse o espaço entre eles, o garçom reapareceu com os pratos, como se o universo decidisse que mais alguns minutos de espera seriam necessários.
se recostou, retomando o controle com um suspiro leve.
— Salvos pela comida.
— Temporariamente — respondeu, com os olhos ainda dizendo tudo o que as palavras não diziam.
Comeram devagar, entre comentários sobre o sabor e risos abafados por memórias antigas: da vez em que ela quase desmaiou ao ver um porco vivo em uma fazenda da escola, ou de quando ele caiu de cara no rio porque tentou atravessar com uma bicicleta com o pneu furado.
— Você me empurrou — ele acusou.
— Eu salvei sua mochila de afundar. É diferente.
— E ainda fez eu levar a culpa sozinho.
— Eu estava protegendo a nossa reputação. — Ela riu, e ele acompanhou.
Quando o prato se esvaziou e o garçom ofereceu sobremesa, nenhum dos dois aceitou. Não estavam com pressa. Mas também sabiam que aquele jantar não era sobre comida.
— Você sabia que eu gostava de você, naquela época? — ela soltou, baixinho, quase como se testasse o ar.
demorou meio segundo para responder.
— Eu sabia. Mas achava que era uma daquelas coisas que a gente guarda e supera.
— E superou?
Ele pousou a taça, entrelaçou os dedos sobre a mesa e olhou para ela com mais intensidade do que em qualquer outro momento naquela noite.
— Não completamente.
O coração de parou por um segundo — ou pelo menos pareceu. Ela queria responder, mas não conseguiu. O olhar dele era firme, tranquilo… e ao mesmo tempo tão cheio de emoção que parecia querer atravessar a mesa.
Ela desviou por um instante, baixando os olhos para o guardanapo. Brincou com a borda, nervosa, sorrindo sem mostrar os dentes.
— Acho que o vinho subiu.
— Ou é só tudo o que a gente não teve coragem de falar por muito tempo — ele disse.
Mais um silêncio. Mais um olhar.
Mas agora, havia algo ali entre eles. Quente. Vivo. Quase palpável.
Se não fosse pela mesa no meio, talvez já estivessem mais próximos. Talvez já tivessem se tocado.
Mas ainda não era hora.
E os dois sabiam disso.
O jantar terminou com poucas palavras, mas muitos significados. Os pratos foram retirados, a conta paga, e se levantou, oferecendo o braço de novo. Ela aceitou, como se já fosse hábito. Como se nunca tivessem deixado de estar assim — lado a lado.
Quando ele estacionou o carro em frente à casa dela, deixou o motor ligado por um instante, como se aquele momento de pausa tivesse peso demais para ser quebrado de uma vez. A luz do painel iluminava suavemente os rostos dos dois, e lá fora, a rua dormia em silêncio, como todo o resto de Yulha, a não ser pelos casais apaixonados voltando de seus jantares.
soltou o cinto devagar, mas não se moveu. Ficou ali, com uma das mãos apoiada no colo, a outra brincando com a borda do vestido. a observava pelo canto dos olhos, com o mesmo olhar de antes — aquele que dizia mais do que qualquer palavra.
— Obrigada pelo jantar — ela disse, baixinho, ainda sem se virar completamente para ele.
— Eu devia dizer o mesmo — ele respondeu, com um sorriso leve na voz. — Por aceitar. Por ter voltado.
Ela finalmente o encarou, e por um segundo, os dois ficaram apenas ali, com o mundo inteiro em suspenso dentro do carro parado. A tensão que os acompanhou o jantar todo estava ali de novo, pairando entre eles como algo antigo que nunca foi dito em voz alta.
desligou o motor e se virou de vez para ela.
— Posso… te acompanhar até a porta?
assentiu com um sorriso contido, e os dois saíram do carro em sincronia. Caminharam lado a lado até a varanda, passos lentos, como quem estica o tempo.
E então, diante da porta da casa dela, a noite decidiu que era hora.
Diante da porta, girou devagar a chave na fechadura, mas não entrou de imediato. Ficou ali, com a mão ainda na maçaneta, enquanto sentia tão próximo que podia ouvir a respiração dele — firme, contida, como se ele também estivesse esperando algo acontecer.
Ela se virou devagar, e seus olhos se encontraram mais uma vez. Aquela troca de olhares não era mais silenciosa. Ela dizia ‘vai.’
ergueu a mão, tocando de leve o rosto dela, com os dedos deslizando até atrás da orelha. Ela fechou os olhos por um segundo, como quem se rende. E então, finalmente, ele a beijou.
Não foi um beijo apressado.
Foi profundo, firme, cheio de tudo o que ficou guardado por anos demais.
As lembranças se misturaram ao toque — mãos pequenas dividindo doces na escola, risadas com os pés sujos de terra, olhos desviados nas tardes de estudo que escondiam sentimentos grandes demais para a idade.
agarrou a camisa dele com os dedos, como se estivesse se ancorando, e retribuiu o beijo com a mesma intensidade — deixando o corpo falar tudo o que a boca ainda não tinha coragem de dizer.
Quando o ar faltou, ele se afastou só o suficiente para encostar a testa na dela.
— Me diz que isso não é um erro — ele sussurrou, a voz rouca, baixa.
— Não é — ela respondeu sem hesitar. — Mas se você não entrar agora, talvez seja.
Ele sorriu contra os lábios dela e não precisou de convite duas vezes.
Entraram juntos. A porta fechou com um estalo suave às costas dele, abafando o mundo do lado de fora.
Ela o guiou pela sala em silêncio, como quem já sabia o caminho de cor. Ele a puxou de volta antes que chegassem ao corredor, colando-a contra o próprio corpo e voltando a beijá-la, agora com urgência. O casaco vermelho caiu no chão como uma folha solta, logo seguido pelos sapatos. As mãos dela deslizavam por baixo da camisa dele como se buscassem certezas. E ele… ele só queria se perder nela.
Entre beijos, risos abafados e suspiros, tropeçaram pelo corredor até o quarto. A luz amarela do abajur revelou os olhos dela brilhando, as bochechas coradas, e ele parou por um instante, só para olhá-la.
— Eu achava que já tinha superado você — ele confessou, os dedos traçando a curva do ombro dela. — Mas acho que, na verdade, eu nunca tentei de verdade.
segurou o rosto dele com as duas mãos, os olhos fixos nos dele.
— Eu nunca te esqueci, . Nem por um segundo.
O beijo que veio depois foi diferente — mais lento, mais íntimo, como se dissessem um ao outro: você está em casa agora.
As roupas foram ficando pelo chão, uma por uma. As promessas não ditas ficaram presas entre os toques. E os corpos, finalmente livres do passado, encontraram abrigo no presente.
Ficaram assim, entre lençois bagunçados e corações acelerados, até que a madrugada chegou sem pedir licença — trazendo com ela o silêncio dos satisfeitos, o cansaço dos inteiros, e o calor de quem não precisa mais procurar o que já tem.
Ali, entre memórias e recomeços, o primeiro amor virou novo amor. E soube: tudo o que foi, levou ela até ali. Até ele.
Até os dois. Enfim.
Fim.
Nota da autora: Olá, queridas! Gostaram desse clichêzinho água com açúcar? Eu confesso que amei escrever esses dois!
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