Revisada: Lightyear 💫
Última Atualização: 07/04/2025Os momentos felizes costumam passar rápido. Bastava apenas aproveitar cada segundo e se entregar à diversão, e tudo depois não passaria de lembranças que ficariam gravadas em nossa mente, guardando o dia em que fossem reveladas ao mundo. No entanto, aquela noite demorou uma eternidade e não entrou para o grupo de momentos felizes que gostaria de relembrar.
Nunca pensei que pudesse acontecer comigo; na verdade, achei que apenas os filmes possuíssem um roteiro tão doloroso.
A chuva caía como uma imensidão, molhando cada partícula de minhas roupas, enquanto dirigia em direção ao último lugar que gostaria de ir. Manobrei a moto no estacionamento, retirando o capacete durante a corrida que fiz até a porta de entrada da delegacia, sendo iluminada pelas constantes luzes azuis e vermelhas que piscavam freneticamente sob o teto dos carros ali estacionados.
Eu sempre odiei dias chuvosos, mas naquela noite tive que engolir meus insanos demônios internos, trancados a sete chaves, a fim de suportar as próximas horas que teria de enfrentar.
Meu par de tênis estava encharcado e meu corpo brigava para se manter aquecido. Só que nada importava; meu coração batia tão rápido contra as costelas, despedaçando-se a cada segundo que passava. A dor e o choque eram tão intensos que achei que fosse desmaiar, recusando-me a acreditar no que havia ouvido pelo telefone.
Empurrei as portas de vidro e adentrei a delegacia, sendo surpreendida por um grupo de policiais que gesticulavam e conversavam sobre algo importante que não consegui ouvir; na verdade, recusei-me a ouvir, porque sabia que tinha a ver com o motivo que me causava aquele aperto na garganta, como se estivesse sendo enforcada por minha própria consciência.
O tempo passava rápido demais. Em um momento, estava deitada na cama prestes a dormir, quando a ligação aconteceu. E aqui estava, diante do delegado da polícia de Nova Jersey. O uniforme colava ao seu corpo e o distintivo pendurado em corrente prata completava o visual; seus músculos eram tão aparentes que desconfiei quando analisei o homem de 1,70 m de altura, com o rosto tão envelhecido que denunciava sua idade avançada de 52 anos. Em outras circunstâncias, o denominaria muito bonito para servir à polícia local, mas, em meio à recepção, tudo que desejava era que sua boca carnuda dissesse o contrário e desmentisse a informação que me levou até ali.
Minhas mãos tremiam, e não conseguia conter a agitação dentro do peito; a reviravolta no estômago estava me deixando enjoada e a inquietação presente em minha mente impedia-me de ficar calma, gerando pânico e tanto desconforto que cheguei a pensar que a morte fosse mais reconfortante que passar por aquilo. Eu queria que fosse mentira. Queria que tivesse sido um engano. Que fossem adolescentes rebeldes e desocupados que se divertiam passando trotes para os moradores.
Não estava preparada para ouvir a verdade.
E o semblante abatido do delegado não alimentou minhas súplicas. As palavras saíram da sua boca com tanto peso que sentia meu corpo sendo golpeado e minha alma sendo dilacerada. Não conseguia acreditar, não era capaz de suportar a dor que se espalhou, me invadindo, me machucando, me despedaçando — e tudo que eu podia fazer era negar.
Era mentira, tinha que ser.
Não conseguia acreditar que havia acontecido comigo; com bilhões de pessoas ao redor do mundo, por que o destino me escolheu para tanto sofrimento? O que eu tinha feito ao universo?
Balancei a cabeça, negando o improvável. O homem, que descobri pelo uniforme se chamar Brandon, me amparou quando minhas pernas fraquejaram. Sua voz grossa e firme gritou por ajuda, enquanto me acomodava no sofá de couro e começava a chamar meu nome, tentando me manter acordada. Minha mente girava, remoendo lembranças que quebravam meu coração em milhões de pedaços. Eu estava em choque, não conseguia me mexer, completamente paralisada; havia esquecido até mesmo como se respirava, entregando-me àquela sensação obscura que rasgava meu interior.
Eu queria gritar, mas a voz não veio.
Eu queria chorar, mas as lágrimas não existiam.
Eu queria vê-los por uma última vez...
A última lembrança que tinha era de um ano atrás. O primeiro aniversário de sua filha.
Noah e Lily estavam tão felizes e radiantes, enquanto observavam a pequena Mia em meus braços, em frente ao bolo de dois andares. Amigos e familiares cantavam a melodia festiva, parabenizando a pequena pelo seu primeiro aniversário. As crianças brincavam ao redor, os adultos gargalhavam e contavam piadas, enquanto eu assistia a tudo segurando minha sobrinha.
Eu amava tudo neles. Noah e Lily eram a minha família. As únicas pessoas nesse mundo que eu não queria perder...
Mas tinha perdido...
Depois de algumas horas, Brandon e os agentes saíram após receberem um chamado. Estava sentada no mesmo sofá de couro, sentindo meu peito clamar por uma pausa das lágrimas compulsivas que rolavam dos meus olhos. Os ombros subiam e desciam, acompanhando os soluços, ignorando a dor que invadia meu coração e se espalhava por todo o corpo. Inclinei-me para a frente, ficando com os cotovelos apoiados nos joelhos, enquanto cobria o rosto com as mãos, deixando tudo me dominar: a angústia, a tristeza, o medo.
Eu estava sozinha.
Não tinha ideia do que fazer para seguir em frente. Não conhecia ninguém em Nova Jersey. Não tinha amigos nem parentes a quem que pudesse ligar e pedir ajudar. Noah era meu irmão, a única família que eu tinha.
Há anos não me sentia assim, com essa dor que consumia cada pedacinho da minha alma, se deliciando com minha agonia. Eu o tinha para me ajudar, segurar minha mão e me fazer viver. Noah era a minha luz, o homem mais bondoso e carinhoso que já conheci. Eu nunca ficaria sozinha, enquanto ele vivesse — até aquela noite…
Estava desolada, perdida e sozinha.
As portas da delegacia se abriram e pude ouvir o som da chuva molhando a cidade com suas lágrimas, como se também chorasse pelo que aconteceu. O vento gelado invadiu a recepção e me encolhi contra o estofado, tentando me aquecer — uma tentativa inútil, mas a única que restava. Descobri o rosto, envolvendo os braços ao meu redor, querendo que o tremor parasse; os dentes batiam involuntariamente, denunciando meu estado. Gelada, fria, abandonada.
Ergui os olhos quando tênis pretos, de solados encardidos que um dia deveria ter sido brancos, invadiram meu campo de visão. As lágrimas me cegaram ao reconhecê-lo. Ele estava diferente, mas ainda o acharia em meio à multidão. Seus olhos amendoados, pigmentados de uma coloração azul tão clara quanto o céu, se encontravam escuros e sem brilhos –- apagados, perdidos, roubados pela fatídica noite. A barba preenchia o maxilar quadrado, mais cheia que da última vez que o vi. Os cabelos estavam molhados e desgrenhados, a coloração loiro-escura se perdendo entre os fios avermelhados, puxados para o tom cobre e dourado.
Seu corpo estava maior do que me lembrava; os ombros largos ligavam-se aos bíceps definidos, apertados pela camiseta azul-marinho, sem estampa. O tronco robusto e as pernas grossas completavam a estrutura, junto a calça jeans escura e ensopada. Ele não era mais o adolescente rebelde que conheci há 13 anos — havia se tornado um homem alto e vistoso, e foram os traços tão semelhantes à irmã que o tornaram a minha última esperança...
Levantei-me num salto e solucei, sendo envolvida pelos seus braços fortes. Agarrei o tecido molhado e macio da camiseta, deixando as lágrimas rolarem desenfreadas enquanto seu aperto me amparava. Não era preciso dizer nada; compartilhávamos a mesma dor. Ele era o único que poderia me entender, porque, apesar do semblante sereno, eu sabia que, por dentro, estava mais dilacerado do que eu...
Lily era a sua irmã gêmea, a outra parte da sua alma.
Noah era meu irmão, a minha luz para viver.
Mia era a união dos dois mundos: a junção do carinho e a bondade de Noah, com a delicadeza e determinação de Lily.
E ali, nos braços de , presos na bolha invisível, isolados do mundo, eu só conseguia pensar na reviravolta gigantesca que nossas vidas teriam quando saíssemos da delegacia. O que faríamos? Por onde começar? Como Mia cresceria sem os pais? Ela passaria a vida inteira presa em um orfanato, esperando para ser adotada? Noah e Lily tinham um plano para caso isso acontecesse?
Eu não tinha respostas para tantas perguntas — e não fazia nem ideia de como respondê-las. Do fundo da minha alma, gostaria muito que tivesse a solução para todos os nossos problemas, mas, a julgar pela tensão em seus músculos, estávamos unidos dentro do mesmo barco, afundando juntos direto para a escuridão mais fria e sofrida do luto.
Teríamos que unir nossas forças se quiséssemos encarar a realidade que nos aguardava...
Quando acordei naquela manhã, com os olhos ardendo pelas lágrimas derramadas nas últimas 48 horas e o corpo dolorido clamando por descanso, não imaginei que acabaria o dia com o medo me consumindo, tomando cada partícula da minha alma e me sufocando com a realidade.
Encarava o reflexo no espelho do quarto minúsculo do meu apartamento alugado, localizado no centro de Nova Jersey. Percorri cada centímetro da escolha de roupa preta, que não achei que um dia se tornaria a cor mais repugnante do guarda-roupa. O vestido simples com mangas longas, sem detalhes ou qualquer marca de uso, foi escolhido a dedo para aquela ocasião.
Nunca imaginei que um dia entraria em um táxi a caminho para a cerimônia de despedida do meu irmão. Ele era tão jovem, com a vida inteira pela frente, a última coisa que pensei foi que veria pela última vez para sempre, ainda mais da maneira cruel que foi arrancado desse mundo.
O delegado Brandon nos apresentou o caso, explicando que havia sido uma colisão inevitável. O carro de Noah percorria a via principal a caminho da sua casa quando tudo aconteceu. Segundo a investigação, no exato momento que atravessavam uma ponte estreita, um caminhão em alta velocidade e completamente desgovernado invadiu a contramão, colidindo com o veículo do casal e causando a tragédia. O motorista do cargueiro também não sobreviveu e, graças à autópsia, descobriram que estava sob efeitos de anfetamina para se manter acordado.
Uma imprudência levou a vida das duas pessoas mais importantes da minha vida.
E ali estava eu, descendo do táxi amarelo em frente ao local que aconteceria a cerimônia. Respirei fundo, me preparando para ouvir todas as condolências da família e dos amigos de Noah. O local estava razoavelmente cheio e fui o centro das atenções quando cruzei o salão, na direção da sala de despedidas, ficando ao lado do corpo sereno e tranquilo do meu irmão, não conseguindo forças para encarar ninguém.
Fiquei isolada, longe dos olhares piedosos, odiando ser sinônimo de pena e assim permaneci até o final, conversando com poucas pessoas. Acompanhei quando chegou à cerimônia, descendo do Hyundai Creta preto e arrumando a gravata em seu pescoço como se o estivesse o sufocando. Seus olhos estavam escondidos pelo óculos escuro, possivelmente escondendo as olheiras e a vermelhidão dos últimos dias.
Ele estava impecável, mas ao longe era nítido o seu desconforto; possivelmente havia sido forçado pela mãe a comparecer de smoking requintado e visivelmente muito caro. Ao seu lado estava um homem e uma mulher, ambos também vestidos elegantemente. Eu não os conhecia, assim como a grande maioria das pessoas; estava tão descolada que nem fiz questão de saber o nome de ninguém.
foi recebido por diversos abraços calorosos e palavras consoladoras e, ao contrário de mim, preferia se misturar em meio à multidão, não se importando com a atenção que era direcionada a si. Agradeci por isso, já que sua presença ajudou a me livrar das pessoas que insistiam em ficar ao meu lado como se esperassem que, a qualquer momento, eu fosse desabar.
Eu gostava da minha privacidade e queria ficar sozinha.
— Amy. — levantei o olhar assim que o calor se fez presente.
estava mais radiante de perto; a escolha de roupas sociais moldava ao seu corpo, deixando-o mais alto e sério. Deixei que meus lábios se curvassem em um sorriso tímido e pequeno, em um cumprimento silencioso.
— Como você está? — perguntou, sentando-se ao meu lado no banco de concreto.
Tinha escolhido o primeiro assento isolado do lado de fora do salão, mas não achei que ele fosse me encontrar ali e fazer a mesma pergunta que ouvi tantas vezes naquele dia. Ninguém de fato queria saber como eu estava, era apenas um pretexto para dizer que havia prestado suas condolências. As pessoas naquela cerimônia não se importavam se eu havia perdido a única família que tinha.
— Estou bem... — menti e soltei o ar pela boca. — Tantas pessoas já me perguntaram isso hoje. — abaixei o olhar, olhando perdidamente para as folhas no chão.
Ele jogou a cabeça para trás e fechou os olhos, parecendo compartilhar da mesma opinião que a minha.
— Meu maxilar dói de tanto responder a mesma coisa. — revelou, e um sorriso brotou em sua boca. — É uma pergunta tola no final das contas.
— Não tem como ficar bem.
V O silêncio pairou sobre nós e ficamos submersos nele, parecendo ser a única válvula de escape. As pessoas conversam dentro do salão e se espalhavam ao redor, mas nenhuma estava preocupada de fato conosco. Queríamos ficar sozinhos, encontrar consolo na nossa própria solidão.
No entanto, o momento durou pouco, logo Stephen, o pai de , nos chamou para finalizar a cerimônia. E não tivemos escolha a não ser seguir a favor da correnteza, nos despedindo pela última vez de Noah e Lily. Nunca mais os veríamos outra vez.
As lágrimas rolaram pelo meu rosto, não conseguindo conter o aperto em meu peito quando, enfim, tudo acabou. Fiquei alguns minutos em frente ao grande túmulo, encarando as placas de prata que eternizariam os nomes de Noah e Lily para sempre. Eu nunca mais os veria, nem mesmo escutaria suas vozes.
Eles seriam apenas lembranças.
Senti quando o braço forte envolveu minha cintura e, ao erguer o olhar, deparei-me com o rosto de . Solucei e o abracei com força, sentindo o calor do seu corpo me acolhendo, aconchegando-me em seus braços. Era estranho saber que a única pessoa que me confortava era o homem que, há anos atrás, eu tanto odiava.
Talvez fosse o luto, eu não sabia dizer.
Sua mão acariciou meu cabelo enquanto me deixava esconder o rosto na curva de seu pescoço. O cheiro do perfume amadeirado, com notas de cedro e pimenta-preta, invocavam a sensação de aconchego e masculinidade. Os batimentos do meu coração se acalmaram, ficando embriagada com o aroma delicioso que emanava da sua pele.
Nunca estive tão calma nos braços de um homem antes, exceto por Noah. Era como se fosse o raio em meio à minha tempestade, possuindo o poder de afastar toda a minha dor. Ele me amparava apenas com seu toque, sem precisar de palavras. E estava gostando do modo como fazia isso. Eu queria passar o resto da minha vida ali, em seus braços, longe de tudo e de todos.
Eu estava ficando louca, tinha certeza.
A parede invisível ao nosso redor desmoronou quando a voz aguda e firme se fez presente. Ainda unidos, nos virando em direção ao homem de terno, engomadinho e impecavelmente sério, que nos observava a poucos metros de distância atrás do óculos de grau de armação fina e requintada. E se não fosse pela presença de , diria que estava diante de um ceifador.
— Sr. e Srta. , sinto muito atrapalhar o momento de vocês. — ele se aproximou. — Mas tenho um assunto pendente que tenho de tratar com os dois. — retirou um envelope de dentro do paletó, entendendo em nossa direção.
o pegou e, juntos, encaramos a assinatura. Era uma carta judicial, remetida a nós e assinada pelo juiz de Nova Jersey, Theodore Meyer.
— Desculpe-me, não me apresentei. Meu nome é Jeremy Clack, era o advogado de Noah e Lily. — apresentou-se, atraindo nossa atenção.
Afastei-me de para que pudesse abrir o envelope e retirar a carta. Era um convite para comparecermos ao tribunal de justiça para tratarmos, em particular, sobre um assunto importante envolvendo a vida da pequena Mia. Arqueei a sobrancelha, encarando o advogado, tentando identificar algo em seu semblante que justificasse aquelas palavras.
— Por que estão nos convocando juntos? — questionou, desviando o olhar do papel.
Jeremy limpou a garganta.
— Podemos conversar em outro lugar em particular? — pediu, olhando ao redor.
Só então notei que ainda havia muitas pessoas da cerimônia caminhando pelo cemitério, e um casal de vizinhos passou por nós, nos cumprimentando e prestando homenagens no túmulo de Noah e Lily.
— Eu sei que não é o melhor momento, mas preciso que saibam a verdade. — continuou a explicação. — Podemos nos encontrar na casa do Noah e da Lily em 20 minutos? — sugeriu, retirando o óculo e limpando a lente.
e eu concordamos em um uníssono e seguimos o advogado até a saída do local. Seja lá o que ele tinha a dizer, sentia meu estômago revirando somente de pensar em Mia. Desde que recebi a ligação da polícia, me preocupava sobre qual seria o destino dela, e talvez estivesse prestes a descobrir o que aconteceria.
Há dois dias, não imaginei que minha vida fosse dar uma reviravolta tão intensa e inesperada, e agora, sentada em frente a Jeremy, com ocupando a cadeira ao meu lado, soube que o universo estava mesmo disposto a mudar tudo o que eu conhecia.
A casa de Noah e Lily era aconchegante, grande, e o leve aroma de lavanda tomava o lugar. Todos os móveis — desde o tapete cobrindo o chão da sala e as persianas em frente às janelas —, cada detalhe, tudo lembrava a eles. E isso só ajudava a aumentar cada vez mais o aperto em meu peito, o nó na garganta e a vontade imensa de desabar em lágrimas em posição fetal no meio do carpete.
Eu odiava me sentir assim: tão frágil e vulnerável.
— Sr. e Srta. , os chamei aqui para tratarmos desse assunto em particular. — Jeremy abriu a maleta sobre a mesa e tirou alguns papéis, colocando à nossa frente. — Como sabem, como advogado da família sou responsável por cuidar e tomar as devidas providências para casos como esses. — explicou. E eu ainda não conseguia entender aonde ele queria chegar com o discurso.
Olhei de relance para ao meu lado, sua mandíbula estava tencionada e os olhos, atentos no homem à sua frente.
— Eu gostaria de esperar para dar essa notícia a vocês, mas a justiça não espera. — apoiou os cotovelos da mesa, estralando os dedos, e prosseguiu: — Há alguns meses, Noah e Lily me procuraram para fazer um pequeno testamento sobre a filha, Mia. Disseram que queriam garantir o futuro dela, caso algo acontecesse com eles, e, como desejado, deixaram por escrito esta carta, para caso esse dia chegasse. — retirou um envelope amarelo da maleta, já sem o lacre. — E eles me pediram que entregasse isso a vocês. — estendeu em minha direção.
Com os dedos trêmulos, peguei o envelope, retirando o papel dobrado de dentro. Meu coração acelerou quando reconheci a caligrafia do meu irmão, desenhada pelas linhas, o traço tão suave quanto a correnteza de um rio. Os olhos marejaram, e tive que conter as lágrimas caso quisesse lê-lo. Engoli em seco e, com o aperto no peito quase me sufocando, comecei a revelar o conteúdo da carta.
Minha doce irmã, Amy
Eu queria que esse dia nunca chegasse, mas se está lendo isso é porque, infelizmente, não podemos mais nos ver. Eu sei que está sofrendo, que está doendo, e não quero que fique desse jeito. O mundo pode parecer cruel, às vezes, mas não escolhemos o nosso destino. Você precisa ser forte, encarar os obstáculos e conquistar o seu êxito. E, através dessa carta, quero que me prometa apenas uma coisa: Mia precisará de alguém que a ajude a seguir em frente, e quero que cuide dela por nós como nosso último desejo.
É pedir muito, eu sei, mas não estará sozinha. Lily me pediu para dizer que gostaria que assumisse as responsabilidades e cuidados de Mia ao seu lado. Sabemos que ele nunca se recusaria a esse pedido, e sei também que cuidará de vocês duas. Ficarei em paz sabendo que estarão com ele. Jeremy os ajudará com a papelada, então não há com o que se preocuparem. Sabemos que farão de tudo para protegê-la.
Encarei as palavras à minha frente, perplexa e sentindo a leve vertigem assumir o controle do meu corpo. Era como levar um golpe no estômago. Meu coração batia tão rápido que achei que seria capaz de saltar pela boca e me abandonar naquele momento tão delicado. Entreabri os lábios, tentando respirar, mas o ar da cozinha não era o bastante — precisava sair, ir em busca de um lugar vazio. Minha mente estava tão confusa que não conseguia pensar com clareza, estava em absoluto estado de choque, não sabia como reagir àquela carta. Eu queria que esse dia nunca chegasse, mas se está lendo isso é porque, infelizmente, não podemos mais nos ver. Eu sei que está sofrendo, que está doendo, e não quero que fique desse jeito. O mundo pode parecer cruel, às vezes, mas não escolhemos o nosso destino. Você precisa ser forte, encarar os obstáculos e conquistar o seu êxito. E, através dessa carta, quero que me prometa apenas uma coisa: Mia precisará de alguém que a ajude a seguir em frente, e quero que cuide dela por nós como nosso último desejo.
É pedir muito, eu sei, mas não estará sozinha. Lily me pediu para dizer que gostaria que assumisse as responsabilidades e cuidados de Mia ao seu lado. Sabemos que ele nunca se recusaria a esse pedido, e sei também que cuidará de vocês duas. Ficarei em paz sabendo que estarão com ele. Jeremy os ajudará com a papelada, então não há com o que se preocuparem. Sabemos que farão de tudo para protegê-la.
Com amor,
Noah e Lily.
Noah e Lily.
E pelo semblante de , sabia que não era a única.
Como Noah e Lily tiveram a coragem de arremessar aquela bomba em nossas mãos? Sem nunca sequer falarem nada a respeito?
Esfreguei o rosto, deixando o papel sobre a mesa e abandonando o cômodo com toda a agilidade que tinha. Precisava de um momento sozinha, longe de todos. Eu queria protestar, gritar, entender como isso foi acontecer. Precisava saber o porquê acreditaram que dois adultos, solteiros e desconhecidos, fossem conseguir cuidar de uma criança de 2 anos. Não estava pronta para ver minha vida desmoronar sem que pudesse fazer algo para impedir. Esperava que Jeremy fosse tratar de qualquer outro assunto, mas isso me pegou completamente desprevenida.
Eu não conhecia . A última vez que nos falamos foi há 13 anos, quando ainda éramos adolescentes e gostávamos de passar o dia inteiro nos odiando pelos cantos. Pensar em dividir uma vida com ele me assustava. Não sabia nada sobre ele: a sua cor favorita, a comida preferida, as manias, os defeitos… Éramos dois completos desconhecidos. Como isso poderia dar certo? E ? Será que concordava com tudo isso? Lily sabia que nunca se negaria a realizar o pedido, mas será que estaria disposto a abandonar tudo e dividir sua vida comigo e com uma criança?
A dúvida consumia cada pedacinho do meu ser, me estrangulando, incomodando, arrepiando os pelos e obrigando-me a roer as unhas de aflição. Eu não entendia o que se passou pela cabeça de Noah e Lily quando acharam uma boa ideia nos unir e jogar a responsabilidade em nossas mãos.
Levei as mãos para os cabelos e puxei os fios, soltando o peso do corpo para que caísse sentada no sofá da sala, não conseguindo pensar em mais nada que não fosse Mia. Ela merecia uma família e ficar perto de pessoas que realmente a amavam. Não queria abandoná-la — uma parte de Noah ainda estava viva dentro dela —, e, pelos anos que passamos juntos, lutando para viver, eu devia isso a ele. Precisava pagar a dívida.
Puxei e soltei o ar repetidamente por alguns minutos, acalmando a palpitação desfreada do meu coração. Minhas mãos estavam tão trêmulas e geladas que achei que estivesse à beira de um colapso. Eu precisava ser forte para encarar todos os desafios que ainda estavam por vir. Prometeria a Noah que cuidaria da sua filha da melhor maneira possível, me tornaria seu porto seguro, o seu lugar de paz e tranquilidade, seria em meus braços que encontraria a calmaria.
Mesmo que para isso tivesse que suportar pelo resto da minha vida.
Eu faria tudo por ela.
Retornei para a cozinha e notei que estava tão ofegante quanto eu. O estudei em silêncio, encostado contra a pia da cozinha, curvado sobre o mármore; seus ombros inclinados para frente subiam e desciam freneticamente. Seus músculos das costas estavam contraídos, e a cabeça abaixada só confirmava o quanto lutava para processar toda a informação.
Queria poder abraçá-lo e oferecer algum conforto, ajudá-lo a encontrar o caminho pela linha tênue que nos rodeava.
— Eu sei que é um momento difícil para assimilar toda essa informação de uma vez. Eu realmente peguei os dois desprevenidos, e me desculpe por isso — Jeremy quebrou o silêncio. — Mas foram escolhidos, e agora possuem a missão de cuidar dela.
— E se não aceitarmos, o que vai acontecer? — encostei-me ao batente da porta, cruzando os braços à frente a barriga.
virou-se e me fuzilou com o olhar incrédulo, surpreso com minhas palavras, mas, no fundo, mais interessado nisso do que eu.
— Bom, vocês têm duas opções — Jeremy começou. — Podem aceitar o pedido de acordo da tutela, e realizar o último pedido de Noah e Lily. Mas também podem recusar, porque estamos falando de uma criança. É um compromisso muito sério. — girava uma caneta entre os dedos. — Se recusarem, a tutela poderia passar para os avôs paternos ou maternos. No entanto, devido à idade avançada, o juiz não acha que seja uma boa ideia. Então, ela seria encaminhada para um orfanato, como uma criança órfã, e ficaria na espera de uma família para adotá-la. E, assim...
— Não! — interrompi, e só então notei que estava ofegante. — Ela não vai para um orfanato — enfatizei, direcionando o olhar para .
— Tudo bem. Então, estão dispostos a assumir esse compromisso, pela Mia?
Abri a boca, prestes a concordar, hesitando no meio do caminho. E se ele não aceitasse? Será que eu conseguiria criar uma criança sozinha?
— Jeremy, nós aceitamos. — disparou, atraindo minha atenção. — Mas como isso irá funcionar? — estreitou os olhos, cruzando os braços à frente ao peito.
— O Conselho Tutelar pede que assinem os termos de responsabilização, e podem buscar a Mia ainda hoje, que entrará em custódia temporária. — indicou os dois papéis que havia colocado sobre a mesa no início da conversa. — Amanhã terão uma audiência com o juiz, somente para concretizar o acordo. Vocês passaram por uma avaliação mensal, durante três meses, pela Assistente Social, que irá avaliar se os dois estão aptos para receber a tutela definitiva.
Jeremy continuou explicando e tirando nossas dúvidas com paciência durante longas horas, até assinarmos os termos de responsabilização. Eu não sabia ao certo onde estava me metendo quando aceitei honrar o último desejo de Noah e Lily. Só sabia que era o certo a fazer.
Durante a tarde, e eu fomos buscar a pequena Mia, na unidade do Conselho Tutelar. O advogado nos acompanhou durante todo o percurso, garantindo que nos ajudaria com a burocracia. Estava tão ansiosa que não conseguia manter as mãos paradas, enrolando os fios de cabelo no dedo indicador, ao mesmo tempo que roía a unha, parecendo uma criança prestes a ganhar o presente mais esperado do ano.
E quando Mia atravessou pela porta, junto da Assistente Social, não hesitei em ir até ela e pegá-la em meus braços, sentindo o cheiro indescritível dos seus cabelos penetrando meus pulmões, apaziguando todos os conflitos internos. A delicadeza dos seus olhos azuis e o sorriso alegre que se fez presente quando nos viu, adoçavam o meu dia.
Ela era tão pequena, tão frágil, que me doía pensar em outra família a adotando. Mia merecia o melhor e nos adorava. Eu a amava com tanta força que era doloroso.
— Oie, querida — sussurrei contra sua cabeça, depositando um beijo no local. — É tão bom ver você, minha linda — sorri, segurando as lágrimas quando o aperto me atingiu. — Vai ficar tudo bem, Mia... Eu prometo. — disse, mas as palavras pareceram ser mais para mim mesma.
O calor surgiu, percorrendo minhas costas e arrepiando a espinha. Virei-me e levantei o olhar para me deparar com os glóbulos azuis de nos olhando, esperando sua vez de se aproximar. Ele parecia tímido, retraído, talvez, até mesmo com medo da reação da pequena.
— Olha, Mia! — fingi entusiasmo, indicando-o com o dedo. — Olha quem também veio. É o tio . — acariciei seus cabelos macios, depositando outro beijo.
— Oi, pequenina. — murmurou, o tom baixo e gentil.
Mia sorriu, imitindo um som tão fofo quando o reconheceu pela voz. Estava tão feliz e confortável com nossa presença. levou a mão até o rosto dela, fazendo um leve carinho que resultou nela clamando por seu colo, esticando os braços em sua direção. Tão fofa.
— Quer ficar com o tio ? — a levantei para que pudesse pegá-la.
Ele a envolveu em seus braços, aconchegando-a em seu peito. Era um alívio vê-la tão calma e confiante, completamente entregue ao nosso carinho, sendo o suficiente para percebermos que não tinha mais volta. Teríamos que cuidar dela — era o nosso dever, a nossa promessa. Iríamos superar os medos juntos e deixar as inseguranças, somente para priorizar o bem-estar dela.