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Revisada: Lightyear 💫

Última Atualização: 18/05/2025



Os momentos felizes costumam passar rápido. Bastava apenas aproveitar cada segundo e se entregar à diversão, e tudo depois não passaria de lembranças que ficariam gravadas em nossa mente, guardando o dia em que fossem reveladas ao mundo. No entanto, aquela noite demorou uma eternidade e não entrou para o grupo de momentos felizes que gostaria de relembrar.
Nunca pensei que pudesse acontecer comigo; na verdade, achei que apenas os filmes possuíssem um roteiro tão doloroso.
A chuva caía como uma imensidão, molhando cada partícula de minhas roupas, enquanto dirigia em direção ao último lugar que gostaria de ir. Manobrei a moto no estacionamento, retirando o capacete durante a corrida que fiz até a porta de entrada da delegacia, sendo iluminada pelas constantes luzes azuis e vermelhas que piscavam freneticamente sob o teto dos carros ali estacionados.
Eu sempre odiei dias chuvosos, mas naquela noite tive que engolir meus insanos demônios internos, trancados a sete chaves, a fim de suportar as próximas horas que teria de enfrentar.
Meu par de tênis estava encharcado e meu corpo brigava para se manter aquecido. Só que nada importava; meu coração batia tão rápido contra as costelas, despedaçando-se a cada segundo que passava. A dor e o choque eram tão intensos que achei que fosse desmaiar, recusando-me a acreditar no que havia ouvido pelo telefone.
Empurrei as portas de vidro e adentrei a delegacia, sendo surpreendida por um grupo de policiais que gesticulavam e conversavam sobre algo importante que não consegui ouvir; na verdade, recusei-me a ouvir, porque sabia que tinha a ver com o motivo que me causava aquele aperto na garganta, como se estivesse sendo enforcada por minha própria consciência.
O tempo passava rápido demais. Em um momento, estava deitada na cama prestes a dormir, quando a ligação aconteceu. E aqui estava, diante do delegado da polícia de Nova Jersey. O uniforme colava ao seu corpo e o distintivo pendurado em corrente prata completava o visual; seus músculos eram tão aparentes que desconfiei quando analisei o homem de 1,70 m de altura, com o rosto tão envelhecido que denunciava sua idade avançada de 52 anos. Em outras circunstâncias, o denominaria muito bonito para servir à polícia local, mas, em meio à recepção, tudo que desejava era que sua boca carnuda dissesse o contrário e desmentisse a informação que me levou até ali.
Minhas mãos tremiam, e não conseguia conter a agitação dentro do peito; a reviravolta no estômago estava me deixando enjoada e a inquietação presente em minha mente impedia-me de ficar calma, gerando pânico e tanto desconforto que cheguei a pensar que a morte fosse mais reconfortante que passar por aquilo. Eu queria que fosse mentira. Queria que tivesse sido um engano. Que fossem adolescentes rebeldes e desocupados que se divertiam passando trotes para os moradores.
Não estava preparada para ouvir a verdade.
E o semblante abatido do delegado não alimentou minhas súplicas. As palavras saíram da sua boca com tanto peso que sentia meu corpo sendo golpeado e minha alma sendo dilacerada. Não conseguia acreditar, não era capaz de suportar a dor que se espalhou, me invadindo, me machucando, me despedaçando — e tudo que eu podia fazer era negar.
Era mentira, tinha que ser.
Não conseguia acreditar que havia acontecido comigo; com bilhões de pessoas ao redor do mundo, por que o destino me escolheu para tanto sofrimento? O que eu tinha feito ao universo?
Balancei a cabeça, negando o improvável. O homem, que descobri pelo uniforme se chamar Brandon, me amparou quando minhas pernas fraquejaram. Sua voz grossa e firme gritou por ajuda, enquanto me acomodava no sofá de couro e começava a chamar meu nome, tentando me manter acordada. Minha mente girava, remoendo lembranças que quebravam meu coração em milhões de pedaços. Eu estava em choque, não conseguia me mexer, completamente paralisada; havia esquecido até mesmo como se respirava, entregando-me àquela sensação obscura que rasgava meu interior.
Eu queria gritar, mas a voz não veio.
Eu queria chorar, mas as lágrimas não existiam.
Eu queria vê-los por uma última vez...
A última lembrança que tinha era de um ano atrás. O primeiro aniversário de sua filha.
Noah e Lily estavam tão felizes e radiantes, enquanto observavam a pequena Mia em meus braços, em frente ao bolo de dois andares. Amigos e familiares cantavam a melodia festiva, parabenizando a pequena pelo seu primeiro aniversário. As crianças brincavam ao redor, os adultos gargalhavam e contavam piadas, enquanto eu assistia a tudo segurando minha sobrinha.
Eu amava tudo neles. Noah e Lily eram a minha família. As únicas pessoas nesse mundo que eu não queria perder...
Mas tinha perdido...
Depois de algumas horas, Brandon e os agentes saíram após receberem um chamado. Estava sentada no mesmo sofá de couro, sentindo meu peito clamar por uma pausa das lágrimas compulsivas que rolavam dos meus olhos. Os ombros subiam e desciam, acompanhando os soluços, ignorando a dor que invadia meu coração e se espalhava por todo o corpo. Inclinei-me para a frente, ficando com os cotovelos apoiados nos joelhos, enquanto cobria o rosto com as mãos, deixando tudo me dominar: a angústia, a tristeza, o medo.
Eu estava sozinha.
Não tinha ideia do que fazer para seguir em frente. Não conhecia ninguém em Nova Jersey. Não tinha amigos nem parentes a quem que pudesse ligar e pedir ajudar. Noah era meu irmão, a única família que eu tinha.
Há anos não me sentia assim, com essa dor que consumia cada pedacinho da minha alma, se deliciando com minha agonia. Eu o tinha para me ajudar, segurar minha mão e me fazer viver. Noah era a minha luz, o homem mais bondoso e carinhoso que já conheci. Eu nunca ficaria sozinha, enquanto ele vivesse — até aquela noite…
Estava desolada, perdida e sozinha.
As portas da delegacia se abriram e pude ouvir o som da chuva molhando a cidade com suas lágrimas, como se também chorasse pelo que aconteceu. O vento gelado invadiu a recepção e me encolhi contra o estofado, tentando me aquecer — uma tentativa inútil, mas a única que restava. Descobri o rosto, envolvendo os braços ao meu redor, querendo que o tremor parasse; os dentes batiam involuntariamente, denunciando meu estado. Gelada, fria, abandonada.
Ergui os olhos quando tênis pretos, de solados encardidos que um dia deveria ter sido brancos, invadiram meu campo de visão. As lágrimas me cegaram ao reconhecê-lo. Ele estava diferente, mas ainda o acharia em meio à multidão. Seus olhos amendoados, pigmentados de uma coloração azul tão clara quanto o céu, se encontravam escuros e sem brilhos –- apagados, perdidos, roubados pela fatídica noite. A barba preenchia o maxilar quadrado, mais cheia que da última vez que o vi. Os cabelos estavam molhados e desgrenhados, a coloração loiro-escura se perdendo entre os fios avermelhados, puxados para o tom cobre e dourado.
Seu corpo estava maior do que me lembrava; os ombros largos ligavam-se aos bíceps definidos, apertados pela camiseta azul-marinho, sem estampa. O tronco robusto e as pernas grossas completavam a estrutura, junto a calça jeans escura e ensopada. Ele não era mais o adolescente rebelde que conheci há 13 anos — havia se tornado um homem alto e vistoso, e foram os traços tão semelhantes à irmã que o tornaram a minha última esperança...
Levantei-me num salto e solucei, sendo envolvida pelos seus braços fortes. Agarrei o tecido molhado e macio da camiseta, deixando as lágrimas rolarem desenfreadas enquanto seu aperto me amparava. Não era preciso dizer nada; compartilhávamos a mesma dor. Ele era o único que poderia me entender, porque, apesar do semblante sereno, eu sabia que, por dentro, estava mais dilacerado do que eu...
Lily era a sua irmã gêmea, a outra parte da sua alma.
Noah era meu irmão, a minha luz para viver.
Mia era a união dos dois mundos: a junção do carinho e a bondade de Noah, com a delicadeza e determinação de Lily.
E ali, nos braços de , presos na bolha invisível, isolados do mundo, eu só conseguia pensar na reviravolta gigantesca que nossas vidas teriam quando saíssemos da delegacia. O que faríamos? Por onde começar? Como Mia cresceria sem os pais? Ela passaria a vida inteira presa em um orfanato, esperando para ser adotada? Noah e Lily tinham um plano para caso isso acontecesse?
Eu não tinha respostas para tantas perguntas — e não fazia nem ideia de como respondê-las. Do fundo da minha alma, gostaria muito que tivesse a solução para todos os nossos problemas, mas, a julgar pela tensão em seus músculos, estávamos unidos dentro do mesmo barco, afundando juntos direto para a escuridão mais fria e sofrida do luto.
Teríamos que unir nossas forças se quiséssemos encarar a realidade que nos aguardava...






Quando acordei naquela manhã, com os olhos ardendo pelas lágrimas derramadas nas últimas 48 horas e o corpo dolorido clamando por descanso, não imaginei que acabaria o dia com o medo me consumindo, tomando cada partícula da minha alma e me sufocando com a realidade.
Encarava o reflexo no espelho do quarto minúsculo do meu apartamento alugado, localizado no centro de Nova Jersey. Percorri cada centímetro da escolha de roupa preta, que não achei que um dia se tornaria a cor mais repugnante do guarda-roupa. O vestido simples com mangas longas, sem detalhes ou qualquer marca de uso, foi escolhido a dedo para aquela ocasião.
Nunca imaginei que um dia entraria em um táxi a caminho para a cerimônia de despedida do meu irmão. Ele era tão jovem, com a vida inteira pela frente, a última coisa que pensei foi que veria pela última vez para sempre, ainda mais da maneira cruel que foi arrancado desse mundo.
O delegado Brandon nos apresentou o caso, explicando que havia sido uma colisão inevitável. O carro de Noah percorria a via principal a caminho da sua casa quando tudo aconteceu. Segundo a investigação, no exato momento que atravessavam uma ponte estreita, um caminhão em alta velocidade e completamente desgovernado invadiu a contramão, colidindo com o veículo do casal e causando a tragédia. O motorista do cargueiro também não sobreviveu e, graças à autópsia, descobriram que estava sob efeitos de anfetamina para se manter acordado.
Uma imprudência levou a vida das duas pessoas mais importantes da minha vida.
E ali estava eu, descendo do táxi amarelo em frente ao local que aconteceria a cerimônia. Respirei fundo, me preparando para ouvir todas as condolências da família e dos amigos de Noah. O local estava razoavelmente cheio e fui o centro das atenções quando cruzei o salão, na direção da sala de despedidas, ficando ao lado do corpo sereno e tranquilo do meu irmão, não conseguindo forças para encarar ninguém.
Fiquei isolada, longe dos olhares piedosos, odiando ser sinônimo de pena e assim permaneci até o final, conversando com poucas pessoas. Acompanhei quando chegou à cerimônia, descendo do Hyundai Creta preto e arrumando a gravata em seu pescoço como se o estivesse o sufocando. Seus olhos estavam escondidos pelo óculos escuro, possivelmente escondendo as olheiras e a vermelhidão dos últimos dias.
Ele estava impecável, mas ao longe era nítido o seu desconforto; possivelmente havia sido forçado pela mãe a comparecer de smoking requintado e visivelmente muito caro. Ao seu lado estava um homem e uma mulher, ambos também vestidos elegantemente. Eu não os conhecia, assim como a grande maioria das pessoas; estava tão descolada que nem fiz questão de saber o nome de ninguém.
foi recebido por diversos abraços calorosos e palavras consoladoras e, ao contrário de mim, preferia se misturar em meio à multidão, não se importando com a atenção que era direcionada a si. Agradeci por isso, já que sua presença ajudou a me livrar das pessoas que insistiam em ficar ao meu lado como se esperassem que, a qualquer momento, eu fosse desabar.
Eu gostava da minha privacidade e queria ficar sozinha.

. — levantei o olhar assim que o calor se fez presente.

estava mais radiante de perto; a escolha de roupas sociais moldava ao seu corpo, deixando-o mais alto e sério. Deixei que meus lábios se curvassem em um sorriso tímido e pequeno, em um cumprimento silencioso.

— Como você está? — perguntou, sentando-se ao meu lado no banco de concreto.

Tinha escolhido o primeiro assento isolado do lado de fora do salão, mas não achei que ele fosse me encontrar ali e fazer a mesma pergunta que ouvi tantas vezes naquele dia. Ninguém de fato queria saber como eu estava, era apenas um pretexto para dizer que havia prestado suas condolências. As pessoas naquela cerimônia não se importavam se eu havia perdido a única família que tinha.

— Estou bem... — menti e soltei o ar pela boca. — Tantas pessoas já me perguntaram isso hoje. — abaixei o olhar, olhando perdidamente para as folhas no chão.

Ele jogou a cabeça para trás e fechou os olhos, parecendo compartilhar da mesma opinião que a minha.

— Meu maxilar dói de tanto responder a mesma coisa. — revelou, e um sorriso brotou em sua boca. — É uma pergunta tola no final das contas.
— Não tem como ficar bem.

V O silêncio pairou sobre nós e ficamos submersos nele, parecendo ser a única válvula de escape. As pessoas conversam dentro do salão e se espalhavam ao redor, mas nenhuma estava preocupada de fato conosco. Queríamos ficar sozinhos, encontrar consolo na nossa própria solidão.
No entanto, o momento durou pouco, logo Stephen, o pai de , nos chamou para finalizar a cerimônia. E não tivemos escolha a não ser seguir a favor da correnteza, nos despedindo pela última vez de Noah e Lily. Nunca mais os veríamos outra vez.
As lágrimas rolaram pelo meu rosto, não conseguindo conter o aperto em meu peito quando, enfim, tudo acabou. Fiquei alguns minutos em frente ao grande túmulo, encarando as placas de prata que eternizariam os nomes de Noah e Lily para sempre. Eu nunca mais os veria, nem mesmo escutaria suas vozes.
Eles seriam apenas lembranças.
Senti quando o braço forte envolveu minha cintura e, ao erguer o olhar, deparei-me com o rosto de . Solucei e o abracei com força, sentindo o calor do seu corpo me acolhendo, aconchegando-me em seus braços. Era estranho saber que a única pessoa que me confortava era o homem que, há anos atrás, eu tanto odiava.
Talvez fosse o luto, eu não sabia dizer.
Sua mão acariciou meu cabelo enquanto me deixava esconder o rosto na curva de seu pescoço. O cheiro do perfume amadeirado, com notas de cedro e pimenta-preta, invocavam a sensação de aconchego e masculinidade. Os batimentos do meu coração se acalmaram, ficando embriagada com o aroma delicioso que emanava da sua pele.
Nunca estive tão calma nos braços de um homem antes, exceto por Noah. Era como se fosse o raio em meio à minha tempestade, possuindo o poder de afastar toda a minha dor. Ele me amparava apenas com seu toque, sem precisar de palavras. E estava gostando do modo como fazia isso. Eu queria passar o resto da minha vida ali, em seus braços, longe de tudo e de todos.
Eu estava ficando louca, tinha certeza.
A parede invisível ao nosso redor desmoronou quando a voz aguda e firme se fez presente. Ainda unidos, nos virando em direção ao homem de terno, engomadinho e impecavelmente sério, que nos observava a poucos metros de distância atrás do óculos de grau de armação fina e requintada. E se não fosse pela presença de , diria que estava diante de um ceifador.

— Sr. e Srta. , sinto muito atrapalhar o momento de vocês. — ele se aproximou. — Mas tenho um assunto pendente que tenho de tratar com os dois. — retirou um envelope de dentro do paletó, entendendo em nossa direção.

o pegou e, juntos, encaramos a assinatura. Era uma carta judicial, remetida a nós e assinada pelo juiz de Nova Jersey, Theodore Meyer.

— Desculpe-me, não me apresentei. Meu nome é Jeremy Clack, era o advogado de Noah e Lily. — apresentou-se, atraindo nossa atenção.

Afastei-me de para que pudesse abrir o envelope e retirar a carta. Era um convite para comparecermos ao tribunal de justiça para tratarmos, em particular, sobre um assunto importante envolvendo a vida da pequena Mia. Arqueei a sobrancelha, encarando o advogado, tentando identificar algo em seu semblante que justificasse aquelas palavras.

— Por que estão nos convocando juntos? — questionou, desviando o olhar do papel.

Jeremy limpou a garganta.

— Podemos conversar em outro lugar em particular? — pediu, olhando ao redor.

Só então notei que ainda havia muitas pessoas da cerimônia caminhando pelo cemitério, e um casal de vizinhos passou por nós, nos cumprimentando e prestando homenagens no túmulo de Noah e Lily.

— Eu sei que não é o melhor momento, mas preciso que saibam a verdade. — continuou a explicação. — Podemos nos encontrar na casa do Noah e da Lily em 20 minutos? — sugeriu, retirando o óculo e limpando a lente.

e eu concordamos em um uníssono e seguimos o advogado até a saída do local. Seja lá o que ele tinha a dizer, sentia meu estômago revirando somente de pensar em Mia. Desde que recebi a ligação da polícia, me preocupava sobre qual seria o destino dela, e talvez estivesse prestes a descobrir o que aconteceria.

*****


Há dois dias, não imaginei que minha vida fosse dar uma reviravolta tão intensa e inesperada, e agora, sentada em frente a Jeremy, com ocupando a cadeira ao meu lado, soube que o universo estava mesmo disposto a mudar tudo o que eu conhecia.
A casa de Noah e Lily era aconchegante, grande, e o leve aroma de lavanda tomava o lugar. Todos os móveis — desde o tapete cobrindo o chão da sala e as persianas em frente às janelas —, cada detalhe, tudo lembrava a eles. E isso só ajudava a aumentar cada vez mais o aperto em meu peito, o nó na garganta e a vontade imensa de desabar em lágrimas em posição fetal no meio do carpete.
Eu odiava me sentir assim: tão frágil e vulnerável.

— Sr. e Srta. , os chamei aqui para tratarmos desse assunto em particular. — Jeremy abriu a maleta sobre a mesa e tirou alguns papéis, colocando à nossa frente. — Como sabem, como advogado da família sou responsável por cuidar e tomar as devidas providências para casos como esses. — explicou. E eu ainda não conseguia entender aonde ele queria chegar com o discurso.

Olhei de relance para ao meu lado, sua mandíbula estava tencionada e os olhos, atentos no homem à sua frente.

— Eu gostaria de esperar para dar essa notícia a vocês, mas a justiça não espera. — apoiou os cotovelos da mesa, estralando os dedos, e prosseguiu: — Há alguns meses, Noah e Lily me procuraram para fazer um pequeno testamento sobre a filha, Mia. Disseram que queriam garantir o futuro dela, caso algo acontecesse com eles, e, como desejado, deixaram por escrito esta carta, para caso esse dia chegasse. — retirou um envelope amarelo da maleta, já sem o lacre. — E eles me pediram que entregasse isso a vocês. — estendeu em minha direção.

Com os dedos trêmulos, peguei o envelope, retirando o papel dobrado de dentro. Meu coração acelerou quando reconheci a caligrafia do meu irmão, desenhada pelas linhas, o traço tão suave quanto a correnteza de um rio. Os olhos marejaram, e tive que conter as lágrimas caso quisesse lê-lo. Engoli em seco e, com o aperto no peito quase me sufocando, comecei a revelar o conteúdo da carta.

Minha doce irmã,

Eu queria que esse dia nunca chegasse, mas se está lendo isso é porque, infelizmente, não podemos mais nos ver. Eu sei que está sofrendo, que está doendo, e não quero que fique desse jeito. O mundo pode parecer cruel, às vezes, mas não escolhemos o nosso destino. Você precisa ser forte, encarar os obstáculos e conquistar o seu êxito. E, através dessa carta, quero que me prometa apenas uma coisa: Mia precisará de alguém que a ajude a seguir em frente, e quero que cuide dela por nós como nosso último desejo.

É pedir muito, eu sei, mas não estará sozinha. Lily me pediu para dizer que gostaria que assumisse as responsabilidades e cuidados de Mia ao seu lado. Sabemos que ele nunca se recusaria a esse pedido, e sei também que cuidará de vocês duas. Ficarei em paz sabendo que estarão com ele. Jeremy os ajudará com a papelada, então não há com o que se preocuparem. Sabemos que farão de tudo para protegê-la.

Com amor,
Noah e Lily.
Encarei as palavras à minha frente, perplexa e sentindo a leve vertigem assumir o controle do meu corpo. Era como levar um golpe no estômago. Meu coração batia tão rápido que achei que seria capaz de saltar pela boca e me abandonar naquele momento tão delicado. Entreabri os lábios, tentando respirar, mas o ar da cozinha não era o bastante — precisava sair, ir em busca de um lugar vazio. Minha mente estava tão confusa que não conseguia pensar com clareza, estava em absoluto estado de choque, não sabia como reagir àquela carta.
E pelo semblante de , sabia que não era a única.
Como Noah e Lily tiveram a coragem de arremessar aquela bomba em nossas mãos? Sem nunca sequer falarem nada a respeito?
Esfreguei o rosto, deixando o papel sobre a mesa e abandonando o cômodo com toda a agilidade que tinha. Precisava de um momento sozinha, longe de todos. Eu queria protestar, gritar, entender como isso foi acontecer. Precisava saber o porquê acreditaram que dois adultos, solteiros e desconhecidos, fossem conseguir cuidar de uma criança de 2 anos. Não estava pronta para ver minha vida desmoronar sem que pudesse fazer algo para impedir. Esperava que Jeremy fosse tratar de qualquer outro assunto, mas isso me pegou completamente desprevenida.
Eu não conhecia . A última vez que nos falamos foi há 13 anos, quando ainda éramos adolescentes e gostávamos de passar o dia inteiro nos odiando pelos cantos. Pensar em dividir uma vida com ele me assustava. Não sabia nada sobre ele: a sua cor favorita, a comida preferida, as manias, os defeitos… Éramos dois completos desconhecidos. Como isso poderia dar certo? E ? Será que concordava com tudo isso? Lily sabia que nunca se negaria a realizar o pedido, mas será que estaria disposto a abandonar tudo e dividir sua vida comigo e com uma criança?
A dúvida consumia cada pedacinho do meu ser, me estrangulando, incomodando, arrepiando os pelos e obrigando-me a roer as unhas de aflição. Eu não entendia o que se passou pela cabeça de Noah e Lily quando acharam uma boa ideia nos unir e jogar a responsabilidade em nossas mãos.
Levei as mãos para os cabelos e puxei os fios, soltando o peso do corpo para que caísse sentada no sofá da sala, não conseguindo pensar em mais nada que não fosse Mia. Ela merecia uma família e ficar perto de pessoas que realmente a amavam. Não queria abandoná-la — uma parte de Noah ainda estava viva dentro dela —, e, pelos anos que passamos juntos, lutando para viver, eu devia isso a ele. Precisava pagar a dívida.
Puxei e soltei o ar repetidamente por alguns minutos, acalmando a palpitação desfreada do meu coração. Minhas mãos estavam tão trêmulas e geladas que achei que estivesse à beira de um colapso. Eu precisava ser forte para encarar todos os desafios que ainda estavam por vir. Prometeria a Noah que cuidaria da sua filha da melhor maneira possível, me tornaria seu porto seguro, o seu lugar de paz e tranquilidade, seria em meus braços que encontraria a calmaria.
Mesmo que para isso tivesse que suportar pelo resto da minha vida.
Eu faria tudo por ela.
Retornei para a cozinha e notei que estava tão ofegante quanto eu. O estudei em silêncio, encostado contra a pia da cozinha, curvado sobre o mármore; seus ombros inclinados para frente subiam e desciam freneticamente. Seus músculos das costas estavam contraídos, e a cabeça abaixada só confirmava o quanto lutava para processar toda a informação.
Queria poder abraçá-lo e oferecer algum conforto, ajudá-lo a encontrar o caminho pela linha tênue que nos rodeava.

— Eu sei que é um momento difícil para assimilar toda essa informação de uma vez. Eu realmente peguei os dois desprevenidos, e me desculpe por isso — Jeremy quebrou o silêncio. — Mas foram escolhidos, e agora possuem a missão de cuidar dela.
— E se não aceitarmos, o que vai acontecer? — encostei-me ao batente da porta, cruzando os braços à frente a barriga.

virou-se e me fuzilou com o olhar incrédulo, surpreso com minhas palavras, mas, no fundo, mais interessado nisso do que eu.

— Bom, vocês têm duas opções — Jeremy começou. — Podem aceitar o pedido de acordo da tutela, e realizar o último pedido de Noah e Lily. Mas também podem recusar, porque estamos falando de uma criança. É um compromisso muito sério. — girava uma caneta entre os dedos. — Se recusarem, a tutela poderia passar para os avôs paternos ou maternos. No entanto, devido à idade avançada, o juiz não acha que seja uma boa ideia. Então, ela seria encaminhada para um orfanato, como uma criança órfã, e ficaria na espera de uma família para adotá-la. E, assim...
— Não! — interrompi, e só então notei que estava ofegante. — Ela não vai para um orfanato — enfatizei, direcionando o olhar para .
— Tudo bem. Então, estão dispostos a assumir esse compromisso, pela Mia?
Abri a boca, prestes a concordar, hesitando no meio do caminho. E se ele não aceitasse? Será que eu conseguiria criar uma criança sozinha?

— Jeremy, nós aceitamos. — disparou, atraindo minha atenção. — Mas como isso irá funcionar? — estreitou os olhos, cruzando os braços à frente ao peito.
— O Conselho Tutelar pede que assinem os termos de responsabilização, e podem buscar a Mia ainda hoje, que entrará em custódia temporária. — indicou os dois papéis que havia colocado sobre a mesa no início da conversa. — Amanhã terão uma audiência com o juiz, somente para concretizar o acordo. Vocês passaram por uma avaliação mensal, durante três meses, pela Assistente Social, que irá avaliar se os dois estão aptos para receber a tutela definitiva.

Jeremy continuou explicando e tirando nossas dúvidas com paciência durante longas horas, até assinarmos os termos de responsabilização. Eu não sabia ao certo onde estava me metendo quando aceitei honrar o último desejo de Noah e Lily. Só sabia que era o certo a fazer.
Durante a tarde, e eu fomos buscar a pequena Mia, na unidade do Conselho Tutelar. O advogado nos acompanhou durante todo o percurso, garantindo que nos ajudaria com a burocracia. Estava tão ansiosa que não conseguia manter as mãos paradas, enrolando os fios de cabelo no dedo indicador, ao mesmo tempo que roía a unha, parecendo uma criança prestes a ganhar o presente mais esperado do ano.
E quando Mia atravessou pela porta, junto da Assistente Social, não hesitei em ir até ela e pegá-la em meus braços, sentindo o cheiro indescritível dos seus cabelos penetrando meus pulmões, apaziguando todos os conflitos internos. A delicadeza dos seus olhos azuis e o sorriso alegre que se fez presente quando nos viu, adoçavam o meu dia.
Ela era tão pequena, tão frágil, que me doía pensar em outra família a adotando. Mia merecia o melhor e nos adorava. Eu a amava com tanta força que era doloroso.

— Oie, querida — sussurrei contra sua cabeça, depositando um beijo no local. — É tão bom ver você, minha linda — sorri, segurando as lágrimas quando o aperto me atingiu. — Vai ficar tudo bem, Mia... Eu prometo. — disse, mas as palavras pareceram ser mais para mim mesma.

O calor surgiu, percorrendo minhas costas e arrepiando a espinha. Virei-me e levantei o olhar para me deparar com os glóbulos azuis de nos olhando, esperando sua vez de se aproximar. Ele parecia tímido, retraído, talvez, até mesmo com medo da reação da pequena.

— Olha, Mia! — fingi entusiasmo, indicando-o com o dedo. — Olha quem também veio. É o tio . — acariciei seus cabelos macios, depositando outro beijo.
— Oi, pequenina. — murmurou, o tom baixo e gentil.
Mia sorriu, imitindo um som tão fofo quando o reconheceu pela voz. Estava tão feliz e confortável com nossa presença. levou a mão até o rosto dela, fazendo um leve carinho que resultou nela clamando por seu colo, esticando os braços em sua direção. Tão fofa.

— Quer ficar com o tio ? — a levantei para que pudesse pegá-la.

Ele a envolveu em seus braços, aconchegando-a em seu peito. Era um alívio vê-la tão calma e confiante, completamente entregue ao nosso carinho, sendo o suficiente para percebermos que não tinha mais volta. Teríamos que cuidar dela — era o nosso dever, a nossa promessa. Iríamos superar os medos juntos e deixar as inseguranças, somente para priorizar o bem-estar dela.





Empurrei a porta do apartamento com o pé, abrindo caminho entre a bagunça para arremessar mais caixas pelo chão. Coloquei as mãos na cintura, olhando o cenário ao meu redor. Parecia que a minha casa havia sido invadida por um exército de ratos que fizeram uma festa, revirando cada metro do lugar em busca de comida. Uma verdadeira zona para quem era acostumada a viver em um ambiente organizado e limpo.
Olhei ao redor, sentando-me no meio da antiga sala que gostava de usar para ver filmes de romance e desvendar os crimes policiais das séries que tanto adorava assistir. Peguei os diversos livros que havia espalhado pelo chão, começando a organizar com cuidado dentro da caixa, calculando cada centímetro para que nenhum amassasse no caminho. Ainda não sabia onde os colocaria na nova casa, por isso precisava ser cautelosa na hora de empacotá-los.
Nova casa. Novo ambiente. Lembranças de Noah e Lily por todos os lados.
O livro de romance de capa clara era o próximo a entrar na caixa. Passei o dedo pela ilustração, delineando cada detalhe da arte. Fechei os olhos e suspirei, abraçando o objeto contra o peito, sentindo o nó na garganta outra vez. Noah havia me presenteado com o ”Como Eu Era Antes de Você” no meu aniversário, depois de passar quase um ano implorando por ele.
As lembranças me assolaram e deixei os olhos marejarem.
Era meu aniversário de 18 anos e, como sempre, Noah e eu comemoramos com um bolo que compramos na primeira confeitaria que achamos. Passeamos no shopping, compramos roupas e muitas besteiras para comer, nos divertimos no parque de diversões como duas crianças. Havia sido um dia incrível.

— Aqui, . Esse é para você. — disse, pegando o pequeno embrulho debaixo do meu travesseiro. — Não é muito, mas sei que irá gostar. — Estendeu-o em minha direção com um brilho intenso nos olhos.

Eu sorri, agradecendo o presente e me sentei ao seu lado na cama, começando a puxar o laço e a rasgar a embalagem de papel. A capa branca, com detalhes precisos em rosa, desenhava a arte que namorava todas as noites antes de dormir. Era o meu sonho ler aquela história, depois do lançamento do filme, tudo o que eu mais queria era conhecer a trajetória de Will Traynor e Louisa Clark, e me sentir mais próxima dos personagens.

— Obrigada, Noah! Eu adorei! — Joguei o corpo contra ele, puxando-o para um abraço apertado e cheio de gratidão.

Tinha sido o melhor presente da minha vida.
Sempre fomos unidos, desde quando nossos pais morreram e tivemos que lutar juntos para sobreviver naquele mundo tão complexo. E agora, pensar que estava me mudando para sua casa era estranho, ainda mais sabendo que nunca mais o teria por perto, para abraçá-lo e sentir o seu carinho.
Depois da audiência bem-sucedida com o juiz de Nova Jersey, Jeremy sugeriu que eu e nos mudássemos para a residência de Noah e Lily. Segundo ele, a adaptação de Mia com os novos “pais” seria mais fácil se ela estivesse em um ambiente que já conhecia. Além disso, todas as coisas dela estavam na casa, o que facilitaria os cuidados diários que teríamos que aprender a ter com a pequena.
Confesso que convencer não foi uma tarefa fácil, mas, depois de muita insistência e ouvir uma palestra gratuita de Jeremy sobre os benefícios que isso traria a Mia, ele concordou. O semblante marrento e sério deixava implícita sua apatia com a decisão, chegando a me fazer pensar que desistiria em algum momento. Ele era calado demais para um homem que, quando mais novo, vivia em baladas, saindo com cada garota que cruzasse o seu caminho.
Talvez fosse o choque recente do luto, ou a sua indignação pelo fato de dividir uma casa comigo. , a única mulher que nunca se deixou cair em seus encantos baratos, desde que era uma adolescente. E não foi por falta de tentativas, já que até mesmo Noah e Lily tentaram nos unir em um encontro arranjado há 13 anos. Havia sido um desastre, e me lembrava perfeitamente daquele dia.
Tinha escolhido o vestido longo e deslumbrante, confeccionado em seda pura, um tecido nobre que conferia um caimento leve e fluido. A silhueta sereia realçava minhas curvas, enquanto o decote em V era profundo, e as mangas longas adicionavam um toque de sensualidade e sofisticação. A cor vermelho rubi, vibrante, era o que o tornava perfeito para o evento da empresa de contabilidade em que Noah trabalhava.
Escolhi uma combinação de joias prateadas e detalhadas que combinavam com o vestido, o salto alto preto de ponta fina e a maquiagem leve, considerando que não precisava de muito para ficar bonita, já que minhas curvas moldadas ao tecido vermelho davam o toque especial.
Eu estava linda, e mesmo assim não foi o suficiente para .
Tudo começou a desmoronar quando fiquei plantada por 2 horas na frente da recepção do meu prédio, que dividia com Noah, esperando até que ele aparecesse para me levar. Tinha apenas 17 anos na época e ainda não possuía carteira de motorista, então ficou combinado que me levaria e entraria comigo no evento, sendo uma grande armação de nossos irmãos.
No entanto, quando o SUV preto finalmente dobrou a esquina e estacionou, tive vontade de subir de volta para o apartamento e fingir que nunca havia concordado com aquela loucura. Entrei no veículo sentindo o cheiro de álcool predominando o interior e tinha os cabelos desgrenhados, assim como a gravata completamente desalinhada com o smoking. Eu sabia que era uma adolescente que o odiava, mas não achei que precisaria de uma boa dose de bebida para me suportar.

— Você foi atropelado por uma carreta no caminho? — disparei, prendendo o cinto de segurança.
— Esse é o preço que tenho de pagar para aguentá-la a noite toda. — A voz embargada denunciava seu estado, enquanto tentava desajeitadamente arrumar a gravata.

Apertei a ponte do nariz com os dedos.

— Ah, , você está bêbado! — Franzi a testa, não acreditando no que estava vendo.
— Ainda não, . — Era um tremendo irresponsável dirigir naquele estado.

Será que seria mais imprudente eu dirigir sem a carteira de motorista ou ele, alcoolizado?
Rolei os olhos, tomando a decisão de ajeitar a gravata que ele lutava com todas as forças para amarrar. Inclinei-me em sua direção, e o cheiro forte de tequila estapeou meu rosto, ardendo os olhos até que lacrimejassem. Quando minhas mãos tomaram o tecido que envolvia o seu pescoço, me controlei para não o enforcar e acabar de vez com aquele pesadelo. Eu poderia inventar uma desculpa esfarrapada depois para justificar o ocorrido, e todos iriam acreditar.
Portanto, a maior surpresa surgiu assim que comecei a fazer o nó em volta do colarinho e encontrei a marca de batom fortemente vermelho na gola da camisa social. Fechei os olhos e prendi o ar, tentando acalmar a raiva que surgia em meu interior, queimando o estômago e se espalhando pelas veias. Queria, mais do que tudo, acertar um soco naquele rostinho delinquente, porque, enquanto eu esperava como uma idiota, sentindo os pés doloridos e reclamando do salto, ele estava ocupado transando com alguma prostituta barata.
Eu sabia que a fama de mulherengo de o precedia, mas não imaginei que era um cafajeste de primeira.

— Você não tem vergonha de ter transado com uma mulher antes de me buscar? — pensei alto demais e deixei escapar pelos lábios.

Ele gargalhou, tão estridente e irônico que meus ouvidos quase explodiram.

— Desde que a mulher em questão não seja você, por mim, está tudo bem. — Os cantos da sua boca curvaram-se em um sorriso cínico, aumentando cada vez mais a vontade de acertar um soco nele.
, você é um delinquente! — cuspi com ódio.
— Oh, , eu sou muitas coisas: bonito, charmoso, extremamente gostoso. — Convencido feito uma mula. — Mas delinquente não está entre as minhas qualidades.

Abaixou o quebra-sol, arrumando seu cabelo de maneira que ficasse alinhado.

— É porque você ainda não se deu conta disso. — Terminei o nó e cruzei os braços em frente ao peito, notando que seria uma noite longa. — Dirige logo a porra desse carro, antes que eu te jogue pela janela.

O imbecil riu, girando a chave na ignição.

— Vamos, , não seja tão dura. — Girou o volante, finalmente colocando o veículo em movimento. — Nós dois sabemos que você não vive sem mim.

Eu quis me atirar do carro e acabar de vez com aquela tortura. Lembro-me de nunca ter perdoado Noah e Lily por terem me feito passar por aquele estresse gratuito.
No entanto, a noite havia apenas começado. No evento, conseguiu tirar ainda mais a minha paciência, fazendo-me passar mais raiva com as suas piadas sem graça e o comportamento convencido. Ele me apresentava a cada pessoa que conhecia, como se eu fosse uma pirralha mimada, um fardo que ele era obrigado a tomar conta. E, como se não bastasse passar por tudo isso, teve a audácia de me largar sozinha no meio da festa, porque encontrou uma loira bonita e gostosa para entreter o seu pau no banheiro.
Uma noite digna de um Oscar, se fosse uma premiação dos piores encontros da vida.
E, desde aquela desastrosa noite, não nos vimos mais, seguimos caminhos diferentes. Ele ingressou na faculdade de medicina veterinária em outra cidade e eu comecei a cursar direito, mas abandonei o curso antes do primeiro semestre. Quando iniciou o estágio, raramente aparecia nas festas de família, sendo assim, nossas vidas foram apenas se cruzar novamente no casamento de Lily e Noah, em um evento bem minimalista onde não trocamos nenhuma palavra, e depois no aniversário de 1 ano de Mia, agindo como dois desconhecidos que nem mesmo se cumprimentavam.
E, apesar de estar completamente diferente, gostava de pensar que não só seu físico havia mudado, mas também a sua mente. Seu corpo magro ganhara tantos músculos nos últimos anos que eu nem era capaz de nomeá-los. A barba cheia e desenhada destacava o maxilar, abandonando seu rosto de garoto jovial. Diria que apenas os olhos azuis-claros permaneceram os mesmos, apesar de ter notado que o brilho de adolescente desaparecera, abrindo caminho para um olhar mais maduro e sazonado.
era um homem, e espero que tenha largado seus modos inconsequentes de lado.
Ah, como eu criaria uma criança com ele? Mal nos falamos nos últimos dias, como construiríamos uma relação saudável desse jeito? Eu estava perdida, não sabendo nem por onde começar, depois de anos sem vê-lo, percebi que não sei mais nada a seu respeito.
Balancei a cabeça, voltando a empacotar meus pertences. Tinha que acabar tudo até às 16h00 da tarde, antes de pegar Mia na creche, e não podia deixar que as lembranças e inseguranças me atrapalhassem desse jeito. Ainda assim, não conseguia parar de pensar que o maior obstáculo da minha vida, agora, não era aprender a como cuidar de Mia, mas sim a como me aproximar do homem que viveria ao meu lado — que nem sequer sabia mais quem era.

*****


O cheiro adocicado e revigorante preenchia o ambiente, lembrando-me um jardim florido, recheado por flores frescas e radiantes. Fui envolvida em uma atmosfera calma e relaxante, sendo arremessada para outro mundo onde o estresse e a ansiedade não existiam. Li uma vez que o aroma era muito usado como técnica terapêutica, buscando promover a saúde do corpo e da mente.
E era assim que me sentia: relaxada, calma, acolhida.
Empurrei a porta com a mão livre, fechando-a, segurando Mia nos braços, observando os detalhes e os móveis posicionados na sala. Ao lado da entrada, havia um vaso branco habitado por uma Monstera, com folhas grandes e verdes, chamando a atenção de tão belas, e, em companhia, uma cortina branca, que ficava na enorme janela feita de vidro, que dava vista para o jardim. Logo à frente, ficava o sofá-cama retrátil — o estofado em coloração preta magnífica, o formato em L virado para a televisão pendurada na parede, localizado acima de um rack claro. A tonalidade creme constatava com os detalhes castanhos que formavam as prateleiras, combinando com os porta-retratos. Havia também uma mesinha de centro — de madeira rústica delicada — e alguns vasos de plantas ao redor.
Beijei o topo da cabeça de Mia, colocando-a dentro do cercadinho em frente à televisão. Havia acabado de pegá-la na creche, então teria a tarde toda livre para ficarmos juntas, além de arrumar um tempo para desempacotar as caixas que estavam espalhadas pela sala. Sentei-me no chão, sentindo o tecido macio do tapete acomodar minhas pernas, agarrei o controle remoto e liguei a TV no programa favorito da pequena — era o desenho de um dinossauro roxo que ensinava as crianças a cantarem músicas infantis.
Enquanto ela se divertia, puxei a caixa ao meu lado, começando a retirar a pilha de porta-retratos, pensando onde iria colocá-los. Olhei ao redor buscando pelo melhor lugar, mas abandonei a ideia quando meu estômago revirou e senti o nó na garganta. A casa de Noah e Lily era um santuário de fotografias que eternizavam as memórias em família — um lugar onde a felicidade e a tristeza se entrelaçavam.
E eu era uma intrusa, profanando aquele espaço sagrado.
Os quadros nas paredes brancas e em cima do rack, contavam a história da família. Noah e Lily em seu lindo e perfeito casamento; o nascimento de Mia; a pequena, desajeitadamente, dando seus primeiros passos; os três juntos em um parque de diversões, com Mia sobre os ombros do pai. A cada fotografia, era como se eu recebesse um golpe em cheio no estômago, com meu coração ficando cada vez mais apertado. As molduras deveriam ter sido escolhidas a dedo para combinar com a mobília, e o modo como foram penduradas nas paredes destacava as horas que passaram analisando os melhores lugares.
A cada imagem, era uma lembrança dolorosa da vida que haviam construído, da qual eu nunca faria parte disso.
Não sei dizer ao certo em que momento me levantei, mas sentia as pernas fraquejarem a tal ponto que precisei urgentemente me sentar, antes que caísse no chão. Por sorte, o sofá estava logo ali, para acomodar meu corpo. O estofado me envolveu em um abraço de consolação; puxei os joelhos e os apertei contra o corpo. As caixas de papelão espalhadas pela sala pareciam zombar de mim, estapeando meu rosto como um lembrete constante de que estava invadindo um espaço que não me pertencia.
O que eu estava pensando? Pegaria minhas coisas e mudaria toda a casa como se fosse minha?
A onda de culpa e inadequação me consumiu. Olhei pela janela, em busca de algo para aliviar a pressão em meu peito, mas tudo que consegui foi intensificá-la, as lágrimas surgiram no canto dos olhos. O sol da tarde iluminava o jardim — o lugar preferido de Mia. A grama verde e macia era onde costumava brincar com seu pai. Conseguia ver a imagem deles juntos, entre risos e muito carinho, enquanto ela tentava pegar a bola de futebol que ele havia chutado. E, ao lado, Lily observando a cena com o rosto iluminado, e encantada pela ternura do momento.
As lágrimas quentes escorreram pelo meu rosto, desenhando caminhos tortuosos pela pele. Cruzei os braços sobre os joelhos e escondi o rosto neles, deixando que a dor me atingisse, como as ondas do mar se chocando contra rochas. Sentia-me como um barco à deriva, perdido em um oceano de incertezas. O peso da responsabilidade era insuportável, como uma âncora me puxando para o fundo.
Olhei para Mia, que dançava alegremente com a melodia do dinossauro roxo. Seu riso infantil preenchia a sala, me atingindo como uma afronta à realidade. Como poderia dar a Mia tudo o que precisava? Como poderia ser a mãe que ela merecia? Como poderia fazer isso, sem ter ideia de por onde começar?
A dor de perdê-los seria, por um longo tempo, uma ferida aberta. E eu queria tanto que Noah estivesse ali — ele saberia me dizer o que fazer. Solucei e meu peito se dilacerou com as lâminas afiadas. Nunca mais o veria, não ouviria mais a sua voz sábia. Eu estava sozinha com a responsabilidade de cuidar de sua filha e de preservar a memória de uma família que nunca mais seria a mesma.
Mas tinha uma única certeza e me apegava a isso: eu faria de tudo para proteger e garantir que Mia tivesse uma vida feliz e cheia de amor.





O relógio era meu pior inimigo. Uma criatura tão incompetente que nem sequer poderia atrasar as horas, pelo menos naquele dia. O horizonte já pintava os últimos raios solares em volta da enorme bola laranja que desapareceria aos poucos entre os prédios, dando caminho para a lua radiante e brilhante dominar o céu. Minha jornada de trabalho estava no fim, sendo então eu era obrigado a encarar todos os problemas que tanto lutava para evitar.
Sentia falta de quando conseguia comandar minha própria mente com maestria. Porque agora, quando a penumbra chegava, as sombras da noite me aprisionavam, roubando minha autonomia e me deixando à deriva em mar de incertezas.
Atravessei o corredor, empurrando a porta da sala de internações, sendo recebido pelas luzes ofuscantes que brilhavam intensamente, iluminando cada centímetro do local. Procurei pelo prontuário sobre a mesa metálica encostada à parede, ao lado da porta e do armário de medicamentos, de frente para as quinze baias empilhadas e enfileiradas. Meu paciente estava ótimo e já poderia voltar para casa. Li as últimas observações que anotara mais cedo, antes de procurar pela baia desejada.
O número três clamava por atenção. Através do vidro, conseguia ver a agitação do filhote ao me ver — ele sabia que havia recebera alta. O balançar de sua pequena cauda, em contraste com os olhos castanhos brilhantes, já me bastava como o agradecimento mais sincero. O latido agudo e curto mostrava seu entusiasmo assim que meus dedos abriram a tranca.
O pequeno poodle veio em minha direção, saltando sobre meus braços estendidos. Acariciei sua cabeça; os pelos macios e cacheados, como uma ovelha, era o charme da raça. Ele tinha a pelagem mesclada de mel e o branco, tornando-o único. Fechei a portinha e, rapidamente, percorri os olhos sobre as outras baias para me certificar de que todos estavam bem e confortáveis na ala de internações.
Não consegui conter o sorriso quando o filhote alcançou meu rosto e disparou lambidas molhadas e rápidas. Acariciei seu focinho, tentando acalmar sua euforia, sendo uma tentativa inútil, já que, assim que deixei a sala, voltou a lamber como se estivesse agradecendo por salvá-lo de uma virose.
Atravessei o corredor, conversando com o pequeno como se ele me entendesse. E assim que pisei na recepção, uma garotinha com seus sete anos, os cabelos ondulados e castanhos, correu em minha direção, saltitando e gritando pelo nome do cãozinho. Abaixei-me até ficar na sua altura, observando quando o filhote a reconheceu e não hesitou em abandonar meus braços para pular sobre ela.
A gargalhada da menina preencheu a recepção e forcei meu melhor sorriso amarelo, voltando a endireitar o corpo enquanto ela corria com o filhote em mãos para mostrar aos pais. Enfiei as mãos nos bolsos do jaleco, notando que o tecido branco estava decorado por pelos pretos, alguns laranjas e outros cinzas, típico de veterinário.

, está tudo bem com ele? — o homem se aproximou. Não era comum os tutores me chamarem de “doutor”.
— Está ótimo. — respondi, ainda olhando para a menina saltitando com o filhote. — Ele só terá que voltar em três semanas para tomar a última dose da vacina. Até lá, sem passeios para ele.
— Agradeço por todo o carinho que teve com ele — agradeceu, estendendo a mão em minha direção.

Aceitei o aperto, ainda com o sorriso estampado no rosto. Mas bastou apenas a família atravessar a porta para que ele desaparecesse, e minha boca transformar-se em uma linha fina e endurecida. Minha atenção decaiu sobre um ponto qualquer, e suspirei, como se isso bastasse para retirar o peso dos ombros. O brilho em meus olhos escureceu e senti a pontada tão familiar no peito.
Os últimos dias tinham sido sempre assim: na frente dos tutores e funcionários, colocava o melhor sorriso no rosto e, depois, quando estava sozinho, deixava meu corpo agir livremente. Não havia lugar para sentimentos dentro da clínica. Passei anos construindo cada pedacinho dela, sendo cobrado pelas responsabilidades, e gostava da minha posição de chefe. Então, não havia tempo para me distrair com a dor — e também não queria que ninguém a visse pelos corredores.

... — a voz feminina, fina e calma, me despertou. — Está tudo bem com você?

Fechei os olhos por um instante, tentando me recompor. Ao me virar e abri-los, encontrei os globos verdes de Yelena cravados em mim, tão atenta que parecia sondar a minha alma. Ela era uma das poucas pessoas na clínica que sabia me ler através da fachada de veterinário. Seus conhecimentos em psicologia lhe davam liberdade para conhecer todos os meus defeitos e qualidades. E, por algum motivo, sabia que, se me abrisse com ela, o fardo pesado em meu peito diminuiria — mas não queria falar sobre Lily com ninguém.

— Estou tentando ficar bem. — Não era de tudo mentira.

Ela colocou as mãos na cintura e me fuzilou, como se estivesse lidando com uma criança teimosa. Evitei qualquer contato visual.

— Sabe que um dia terá que falar sobre isso com alguém — às vezes, ela agia como uma psicóloga já formada.
— Eu não tenho que falar sobre nada — Fui ríspido, atravessando a recepção como um raio para sair do seu campo de visão.

Conhecia Yelena. Sabia que ela tentaria me arrastar para uma conversa profunda, insistindo em soluções e conselhos. Mas era justamente o oposto do que eu precisava naquele momento. Queria apenas um pouco de paz e silêncio, um tempo para digerir tudo sozinho, e não alguém cutucando minhas feridas em uma sessão de terapia forçada. Isso me sufocava. Precisava de espaço, de tempo para que as coisas se encaixassem na minha cabeça, longe de qualquer boa intenção que viesse disfarçada de preocupação.
O corredor era calmo e frio, o melhor lugar para ficar quando se buscava o silêncio e a solidão. Passei a mão pelos cabelos, bagunçando os fios e descendo para o pescoço, continuando a caminhar até minha sala. Era hora de pegar minha mochila, o Hyundai Creta e desaguar pelas ruas de Nova Jersey, em busca de algum lugar aberto para comprar a minha janta — e depois me afogar no oceano que era a solidão do meu apartamento.
Passei o dia todo na clínica, ocupando-me com cirurgias e consultas apenas para evitar ir para casa. Gostava do modo como o trabalho conseguia me distrair, desde que perdi Lily, era o jeito que encontrei de não pensar na minha dor. Além disso, também estava fugindo de e da responsabilidade que Jeremy jogou em minhas costas: morar com uma mulher que não via e com quem não falava há 13 anos, e com uma criança, era a última coisa que desejava na vida.
E sabia que Lily estava rindo de mim, se divertindo com a situação. Ela sempre sonhou em me ver casado, construindo uma família, dizendo que a minha vida de solteiro tinha que acabar, e que deveria me apaixonar por alguém, assumir um compromisso sério e ser pai de vários filhos. Mas, ao contrário dela, não conseguia me ver amarrado a um casamento — gostava da minha liberdade e da diversão.
Eu era um homem de apenas uma noite, e não de uma vida inteira.
No entanto, Lily conseguiu o que queria, planejando pelas minhas costas e jogando-me nos braços da única mulher que sempre me odiou. Era como se minha irmã estivesse me punindo, forçando-me a conviver com a pessoa que mais me tirava do sério. , desde a adolescência, tinha um prazer doentio em me irritar, e eu, em troca, adorava provocá-la, criando um jogo de gato e rato que nos divertia quando éramos jovens. Agora, como adultos, não sabia dizer como seria a dinâmica entre nós, ainda mais com um bebê no meio.
E como se não pudesse piorar, ela havia se transformado em uma mulher... linda e muito atraente.
Se antes era uma garota gordinha e desengonçada, agora era uma mulher belíssima e confiante. Suas curvas eram perfeitas, suaves e femininas, e a pele tinha aparência macia e luminosa. Os olhos castanhos, antes resguardados, agora brilhavam com uma intensidade que me deixava sem fôlego. Seus cabelos negros, sempre presos em um rabo de cavalo desleixado, caíam em cascatas sedosas sobre os ombros, emoldurando o rosto que exibia um sorriso radiante.
Lembrava-me das nossas provocações constantes, das suas reações explosivas, e não tinha ideia de como seria dividir o mesmo teto com ela. Por isso, estava adiando o inevitável, ainda buscando alguma saída para não ser obrigado a conviver com as consequências de um plano arquitetado por alguém que já não estava mais entre nós, como uma magnífica ironia.
Ah, se eu soubesse que Lily acabaria com a minha vida, colocando-me em uma coleira contra a minha vontade, nunca teria sido padrinho do seu casamento.
Empurrei a porta, indo em direção à janela, sentindo uma força magnética me atraindo até ela. Minha sala ficava no segundo andar da clínica e era possível observar as ruas movimentadas com a caída da noite, os carros com os faróis intensos iluminando o caminho, da mesma maneira que a luz da lua refletia nos meus olhos, revelando os turbilhões de emoções. Suspirei, concentrado nos sons da cidade, sentindo a pontada de dor me dominar ao pensar em Lily. Sentia tanto a sua falta que me dilacerava, rasgando meu peito e abrindo feridas que não cicatrizariam tão cedo.
Eu a amava como parte da minha alma. E, por mais que sentisse raiva pelo que fez com a minha vida, no fundo, havia uma chama de esperança tímida de que, junto com , pudéssemos construir um lar para Mia. Eu nunca seria como o Noah, mas estava disposto a me esforçar para ser a figura masculina que a pequena precisaria em seu crescimento.

— Você pretende criar raízes nessa clínica, ? — A risada zombeteira acompanhou a voz.

Revirei os olhos antes de me virar para encará-lo, ficando com as costas encostadas no parapeito da janela. Cruzei os braços em frente ao peito, observando o homem de cabelos castanhos, alguns cachos escuros caindo sobre a testa; o corpo magro e esbelto se acomodava em minha cadeira e a girava feito um moleque travesso. Eu sabia que o deixar trabalhar na clínica era uma péssima ideia, mas tinha que admitir: sua especialidade com os felinos era de ótima excelência.
Aidan era meu melhor amigo; cursamos medicina veterinária juntos e sempre foi nosso sonho construir uma clínica onde pudéssemos exercer nossas profissões. Eu só não contava que, no meio do caminho, ele jogasse toda a responsabilidade burocrática nos meus ombros, o que resultou na chefia em meu nome, e, desde então, passou a viver como se fosse a minha sombra.

— Se quebrar essa cadeira, terá que comprar uma nova — alertei, observando-o abusar do objeto.
— Você está pior do que um velho ranzinza — colocou os pés sobre a mesa, sentindo-se o dono da sala. — O que aconteceu? A desconhecida não é tão gostosa assim?

Jogou a cabeça para trás e gargalhou.
Apertei a ponte do nariz e fechei os olhos por um instante, o arrependimento estapeou meu rosto com tanta força que tive vontade de dar um tiro em Aidan e acabar de vez com o tormento. Eu sabia que assim que falasse para ele o que tinha acontecido, isso me resultaria em diversos momentos estressantes como esses.

— Ela não é uma desconhecida. — enfatizei, gesticulando com uma mão.
— Vocês não se veem há 13 anos. — Só então notei que girava uma caneta na mão. — Tem alguma foto dela para eu ver se é bonita?

O sorriso travesso curvou seus lábios, os olhos verdes cintilavam. Era um demônio mesmo.

— Por que teria uma foto dela, Aidan? — Franzi as sobrancelhas.
— Porque você vai praticamente se casar com ela, o mínimo é ter uma foto, cara. — Abriu os braços como se estivesse falando algo óbvio. — Mas... Você não negou que ela é gostosa.
— Eu não sei se ela é gostosa. — era bonita, mas gostosa, eu não sabia dizer; não havia tido tempo o suficiente para notar isso, e nem era minha intenção.
— Você a viu mais de uma vez e não reparou se é gostosa? — seu semblante franzido expressava sua indignação.
— Eu não sou um tarado compulsivo como você.

Voltei a olhar para as ruas movimentadas, analisando o sinaleiro mudando da cor vermelha para a verde.

— Eu sou analista, é diferente. — defendeu-se, ainda brincando com a caneta.

Lancei um último olhar para as ruas, antes de me virar e focar minha atenção nele.

— Nós iremos criar uma criança juntos. E eu não sei nada sobre ela, só sei que, há 13 anos, me odiava. — soou como um desabafo.
— Cara, ainda acho uma loucura essa história de morarem juntos, vocês são desconhecidos. Como isso vai funcionar? — girou a caneta entre os dedos, com o olhar distraído.
— É uma loucura, mas o advogado disse que será o melhor para a adaptação da Mia. — E tinha razão, a pequena havia acabado de perder os pais, não deveria ficar pulando de casa em casa com uma guarda compartilhada.
— Eu acho que você perdeu a cabeça, . — disparou e me encarou com o cenho franzido.
— Não fui eu que perdi a cabeça, a Lily armou para cima de mim! — defendi-me, apontando o meu peitoral com as mãos.
— Não culpe a Lily, você perdeu a cabeça, cara, só não quer admitir para si mesmo. — acusou.

Tencionei o maxilar, sentindo a raiva crescer cada vez mais em meu interior. Eu odiava quando as pessoas me acusavam daquele jeito.

— Qual o seu problema? — Largou a caneta e cruzou os braços. — Sobre cuidar da Mia, eu entendo. Mas se submeter a viver na mesma casa com uma estranha, que, aliás, nem gosta de você...
— Ela não é uma estranha, Aidan. — corrigi, interrompendo-o. — Nós crescemos juntos por um tempo, só nunca nos demos bem.
— Mesmo assim, cara. Por que aceitou isso?
— Foi pela Mia. É para preservar as lembranças que ela tem do lar.

E, no fundo, gostava de acreditar que foi pela pequena que aceitei o acordo. De fato, seria bom que ela crescesse na mesma casa em que sempre viveu — era onde estavam as lembranças de seus pais, além de ajudar na adaptação dela conosco. Mas o fato de ter que dividir minha vida com a única mulher que me rejeitou e odiou ainda era uma incógnita.

— Não deixo de achar tudo um absurdo. — Aidan quebrou o silêncio, retirando os pés da mesa.
— É um absurdo, mas não tenho como fugir das minhas responsabilidades. — Encarei o relógio no pulso, decidindo que era uma boa hora para ir embora.
— Eu nem te reconheço falando assim. — Colocou a mão no peito, fingindo surpresa. — Já contou para a Madison?
— Não, fique à vontade para fofocar sobre a minha vida com ela. — desencostei do parapeito, pegando a mochila sobre a mesa e guardando o notebook.
— Ela vai rir muito quando souber que virou um homem de família — zombou.

Rolei os olhos com seu comentário, jogando a alça da mochila sobre o ombro.

— Tenho que empacotar as coisas da minha casa, então feche a clínica hoje — Joguei o molho de chaves em sua direção.

Não esperei que respondesse para desaparecer pelo corredor. E, conhecendo Aidan como conhecia, sabia que o infeliz já estava mandando uma mensagem de áudio explicando todos os detalhes para Madison — e que os dois passariam horas fofocando sobre minha vida. Passei a mão pelos cabelos e suspirei; por mais que odiasse ser o centro das conversas, sabia que eles adoravam isso. E não havia nada que pudesse fazer para evitar.
Abri a porta do SUV, jogando a bolsa no banco do passageiro e sendo rápido em ocupar o lado do motorista, desbloqueando o celular e pedindo a comida mais gostosa para ser a minha janta da madrugada. Seria uma longa noite e precisaria de uma boa dose de álcool também se quisesse sobreviver; por sorte, tinha uma garrafa cheia de vodka me esperando. Girei a chave na ignição e manobrei o veículo, torcendo para que minha mente decidisse ficar calada e me deixasse sozinho, usufruindo do completo silêncio do mundo.
Tudo que menos precisava era ser atormentado por um pesadelo do qual não conseguia acordar.

*****


Durante um tempo, não imaginei que estaria sentado no meio da sala do apartamento, com uma caixa fechada de pizza sabor calabresa disposta ao meu lado e uma garrafa grande de vodka me fazendo companhia. Eu havia oficialmente chegado ao fundo do poço. A escuridão reinava ao meu redor; as luzes apagadas do cômodo deploravam a minha existência.
O álcool desceu queimando cada partícula da minha garganta, deixando o rastro ardido pelo caminho. Fechei os olhos e balancei a cabeça de um lado para o outro, batendo a garrafa no chão. Meu estômago reclamou, se retorcendo, contraindo-se pela falta de alimento. Eu queria ficar bêbado e acabar o dia dormindo tão pesado que só acordaria no dia seguinte com uma puta ressaca, mas, ao invés disso, tinha que controlar as doses.
Puxei o chaveiro do bolso da calça e o girei no dedo, dando outro gole na bebida. A chave prateada era o tormento da minha noite. As caixas estavam prontas, embaladas no canto perto da porta de entrada, esperando para serem movidas para o novo lar: a casa de Lily e Noah. E precisava fazer isso nas próximas horas, ou não teria mais coragem; a ideia de morar com ainda me incomodava, mas não tinha escolhas — era a vontade da minha irmã e tinha que honrar com a minha palavra.
Joguei a cabeça para trás, sentindo o impacto com a parede; a pequena dor não era nada comparada àquela que me atormentava todos os dias. Peguei o celular, que deixei em cima da caixa da pizza ao meu lado, deslizei os dedos por alguns minutos até parar na galeria de fotos. Gostava de me torturar ao ver a imagem do segundo mês de vida de Mia, onde Lily e Noah a seguravam em frente a um a pequeno bolo e sopravam a vela. Naquele dia, tentei fazer o possível para comparecer à celebração, mas estava preso no Canadá, sendo responsável pelo parto de uma égua que carregava dois bebês. Analisei a fotografia; eles eram tão felizes juntos. Duas pessoas tão compatíveis, que acho que todos gostariam de viver a vida deles.
Arrastei para o lado, sentindo um aperto na garganta me sufocando quando o vídeo da formatura de Lily em Administração começou a rodar, deixando o barulho da comemoração preencher o ambiente vazio do meu lar. Ela gritava junto com os outros alunos, tendo o maior sorriso de felicidade nos lábios, jogando o capelo para cima. Tomei um grande gole da vodka, passando para mais uma foto.
E aquela socou meu estômago com tanta força que precisei me conter para não jogar o aparelho longe. Lily estava radiante na festa de formatura; os cabelos louros-escuros se perdiam entre os fios avermelhados caindo sobre os ombros em ondas. O vestido azul, longo e com brilhantes, destacava a cor dos seus olhos; sua mão estava em meu rosto, apertando minhas bochechas, enquanto fazíamos caretas para a câmera em frente a um arranjo de flores brancas. Lembro-me de ela ter acabado com a minha raça porque queria que eu usasse um conjunto smoking bonito e me comportasse com as mulheres, dizendo que aquela noite era o momento dela.
Minha boca se curvou em um sorriso de saudade, sendo invadido pelas lembranças do momento daquela foto. Lily brigou comigo na frente de todos porque havia me recusado a fazer a careta, obrigando-me, não me restando escolha, a não ser ceder. Além disso, ficou no meu pé a noite inteira depois de ver uma das amigas delas dar em cima de mim descaradamente — e a culpa ainda foi minha.
Eu não tinha culpa das mulheres se derreterem quando usava smoking.
Bloqueei o aparelho e o joguei ao lado do corpo, apoiando os cotovelos sobre os joelhos dobrados, esfregando o rosto com as mãos e o escondendo ali. Fiquei imóvel por alguns minutos, lutando com a dor que insistia em me consumir por inteiro, despedaçando cada sentimento do meu coração. Eu não queria me sentir assim; sempre fui o homem forte, rude e petulante, então por que doía tanto? Por que parecia que garras enormes e afiadas me rasgavam por dentro apenas por me lembrar dela?
Eu a amava, mas nunca pensei que perdê-la me afetaria tanto.
Olhei ao redor da sala, não conseguindo pensar em mais nada que não fosse Lily e minha dor. Eu queria que tudo parasse, que voltasse a ser o que conhecia. Morar na casa dela não me ajudaria em nada, mas pela pequena eu tinha que tentar; não se tratava mais de mim, tinha que pensar em Mia acima de qualquer coisa.
Meus devaneios foram interrompidos quando ouvi o ronronar do felino que esfregava o corpo pelas minhas pernas. Levei minha mão para acariciar suas costas, assistindo-o ronronar mais alto e amolecer o corpo, entregando-se ao carinho. Sky era um bichano insolente, que não se preocupava em me consolar, só estava atrás de comida. Continuei o afago, até que ele caísse no chão e rolasse, ficando com a barriga exposta para cima, em uma armadilha, já que assim que me aproximasse, sairia correndo como se estivesse ofendido.
Os cantos da minha boca transformaram-se em um sorriso divertido. Eu gostava de como Sky tinha o poder de acalmar os meus piores demônios apenas com sua presença. E, como veterinário, sabia que os animais tinham o dom de curar nossas feridas mais profundas, e foi o que aconteceu nos últimos dias. Com o gato preguiçoso e gordo sendo o único a presenciar as minhas fraquezas, soube o quanto era verdade.

— Ah, Sky... No que a Lily foi me enfiar? — falei para o bichano, esperando que me entendesse.

No entanto, o que recebi em resposta foi o som alto vindo do fundo da sua garganta, um miado estridente e depois um ronronar. Ele pulou sobre a mesinha de centro logo à minha frente, acomodando os pelos pretos ao me encarar com os olhos amarelos intensos e brilhantes, julgando-me por ainda não ter levantado para alimentá-lo com sachê de salmão, seu favorito.





Balancei a cabeça e levei a mão em direção ao nariz, esfregando a palma em um movimento urgente. Engoli em seco, a garganta arranhando como um disco antigo. A sensação era incômoda e parecia que o universo me pressionava, fazendo uma pressão pesada em meu peito. Fiz uma careta, era como se minúsculos fios, macios e finos, invadissem minhas narinas, causando a irritação que coçava insuportavelmente.
Entreabri os olhos, sendo atingida por uma parede escura que bloqueava minha visão turva. Não consegui tempo para ver ao certo o porquê de haver uma barreira negra na minha cabeça, quando um espirro estrondoso se sucedeu, obrigando-me a virar o rosto e cobrir a boca com o antebraço. A queimação dominou minhas vias aéreas, bloqueando qualquer passagem de ar e rasgando cada pedacinho que percorria. Meus lábios se abriram em uma fenda estreita, possibilitando a respiração acompanhada de rangidos do fundo dos brônquios.
Tentei puxar o ar e meus pulmões reclamaram, transformando a tarefa simples em um campo de batalha, continuando a sentir o peito doendo e a estrutura pesada ainda repousava sobre ele. Será que o universo decidiu se vingar de mim e agora levava minha alma para o submundo?
Forcei as pálpebras pesadas a se arrastarem, deixando que a maré de lágrimas se formasse no canto dos olhos. Soltei o ar pesadamente pela boca e não havia palavras para definir a onda de desespero que me tomou quando encontrei círculos gigantescos e dourados, brilhantes e faiscantes, me encarando como se fossem me devorar. As pupilas minúsculas pareciam ler a minha alma.
Engoli em seco, levantando-me abruptamente em um movimento tão rápido que o felino pulou contra o estofado com as perfeitas quatro patas e continuou a me encarar, me analisando minuciosamente. Outro espirro me acometeu.

— O que caralhos você está fazendo aqui? — disparei, olhando para o gato como se fosse uma bomba-relógio prestes a explodir.

Esfreguei as mãos no rosto com desespero, sentindo a pele ardendo. Levei os punhos em direção aos olhos e os cocei, não conseguindo suportar o nariz bloqueado clamando por socorro. Minha rinite alérgica não me atacava há anos, mas bastou apenas aquela coisinha peluda se aproximar para minha respiração fazer as malas e balançar a mão em uma despedida solene para o quinto dos infernos.
Olhei ao redor, com os olhos marejados e provavelmente vermelhos como o fogo, percebendo que tinha apagado na noite anterior no sofá. Depois de organizar as caixas no quarto de hóspedes, tomar um banho e colocar Mia para dormir, deveria ter colocado um filme qualquer para assistir no canal de streaming. E lembro-me de ter esperado por algum sinal de antes de ser vencida pelo sono, com a consciência confusa ao pensar que ele provavelmente fugiria das responsabilidades.
Mas agora tinha um gato no meio da sala, me fuzilando em um julgamento silencioso. O que ele estava fazendo ali, sendo que Noah e Lily não tinham animais de estimação?

— Bom dia, . — A voz máscula, grossa e mais rouca do que me lembrava invadiu a sala.

Fiquei surpresa e meu coração quase pulou pela boca. Virei o rosto e me deparei com encostado ao batente da porta da cozinha, vestindo uma calça jeans, uma camiseta preta de linho com os primeiros botões abertos que delineavam os seus músculos, tênis brancos impecáveis e os cabelos bagunçados, parecendo não ter tido tempo para ajeitá-los. Como um adolescente magro e desprovido de beleza tinha se transformado em um homem tão atraente? Quando sua voz estridente e irritante havia adotado um tom firme e sexy?

— Vejo que já conheceu o Sky. — Apontou o bichano com a xícara que segurava em mãos.

Franzi o cenho e apontei para o esquilo peludo ao meu lado.

— Essa coisa se chama Sky? — O gato pulou do sofá, caminhando como um lorde na direção de , esfregando os pelos contra a calça dele.
— Não é uma “coisa”, é um gato — disse calmamente, bebericando a bebida que, pelo aroma, era café.
— Sério? — usei meu melhor tom de surpresa. — Nossa, achei que fosse um babuíno! — bati as mãos nas coxas, levantando-me e indo em direção à cozinha.

só poderia estar de brincadeira comigo. Um gato? Um ser que se achava superior a todos os outros, morando debaixo do mesmo teto que eu?

— Por que trouxe um gato para esta casa? — Eu tinha que saber.

E, enquanto esperava a resposta para o meu protesto, lavei as mãos, jogando água no rosto e depois esfregando as roupas com a umidade, retirando qualquer resquício de pelo que houvesse. Se não tomasse o antialérgico, passaria o dia sofrendo com os sintomas da rinite e, como entendedora no assunto, sabia que não era nada agradável ficar espirrando a cada cinco minutos e ter que ficar lubrificando as vias aéreas com soro para afastar um pouco do incômodo rotineiro que causava.

— Não é óbvio? — disparou e, mesmo de costas, sabia que tinha um sorriso infeliz nos lábios.

Fechei as mãos em punho, clamando por paciência.

— O que é óbvio, ? — Virei-me, fuzilando-o. — Um gato preto se chamar Sky, sendo que o significado desse nome é Céu? — Era muita ironia para começar o dia.
— Qual o problema com o nome do meu gato? — Encostou o corpo contra o balcão que dividia a cozinha, inclinando-se para frente, apoiado nos cotovelos.
— Seu gato? — Arquei as sobrancelhas e cruzei os braços em frente ao peito. — Trouxe um gato para esta casa sabendo que tenho alergia a pelos?

O felino pulou no balcão da cozinha à sua frente, emitindo um grunhido que pareceu indignação. Sentou-se e os pelos se acomodaram como um lorde, marcando sua ilustre presença, como se soubesse que estávamos falando dele. acariciou a cabeça do bichano.

— Eu não sabia que tinha alergia, na verdade, não sei nada sobre você — deu de ombros, levando a xícara aos lábios com a mão livre. — Mas não precisava fazer uma tempestade em copo d’água, sabia que existem antialérgicos para isso? — Contou como se tivesse acabado de fazer uma descoberta incrível.
— Antialérgicos são feitos de corticoides e essas merdas me deixam inchada. — Da última vez que usei os comprimidos continuamente, meu peso na balança subiu tanto que fiquei abismada.

Acompanhei quando deixou a xícara no balcão e abriu o armário acima da geladeira, localizada ao seu lado, revelando um estoque de sachê de salmão, petiscos e muita ração premium para gatos. Revirei os olhos, mas era só o que me faltava, ia ser mesmo obrigada a aceitar a presença do felino. Eu deveria estar sendo muito castigada para isso.

— Nem todos os antialérgicos possuem corticoides, posso recomendar alguns, aliás, eu sou médico. — Quando voltou a me encarar, segurava um pacote de sachê e o rasgava, enchendo o pote do gato, e este, por sinal, miava, parecendo desesperado.
— Você é veterinário, é médico de animais! — Talvez ele estivesse me enxergando como uma mula alérgica.
— Sabia que a maioria dos medicamentos de humanos agora serve para animais? Então, tecnicamente, estou por dentro da indústria farmacêutica. — O modo como falava parecia que havia feito uma descoberta histórica.
— Isso não substitui uma consulta com o especialista em humanos. — Cruzei os braços.
— Vá em frente. — Balançou os ombros em desdém, dando outro gole no café. — Gaste horrores com consultas e exames caros, só para no final receitarem um anti-histamínico barato que nem precisa de prescrição médica. — Arqueou uma sobrancelha, o olhar fixo em mim com um desafio mudo.

E, como imaginei, poderia ter mudado da água para o vinho no quesito beleza, o corpo de Deus grego, com direito a tanquinho e tudo, mas a mentalidade continuava a de um adolescente mimado que adorava me provocar.

— Eu não estaria tendo que passar por isso se tivesse me comunicado que traria um gato para morar comigo! — Venci o espaço até o balcão, não segurando o espirro por causa do felino.
Conosco, é o termo correto — corrigiu, com o sorriso cínico nos lábios.

Pressionei a ponte do nariz e fechei os olhos com força.

— E, já que prefere uma apresentação formal, — indicou o esquilo peludo. — , este é o Sky, e será o nosso mascote. — Acariciou as costas do gato e o ouvi ronronar. — Ele é um gato castrado, gordo e preguiçoso que é carente, gosta de colo e lugares quentinhos para dormir. — Deu mais um gole, indo até à mesa da cozinha e enchendo a xícara com mais café. — E uma curiosidade sobre ele: Sky tem problemas com continência urinária, então tudo o que pode comer é restrito e está naquele armário. Não o alimente com comida ou qualquer outra coisa que não seja a ração e o sachê especial.

Franzi o cenho.

— Então, além de eu ter que lidar com você, terei que me preocupar com a taxa de sódio dessa coisa? — Olhei para o gato, que me encarava com os olhos dourados, julgando-me.
— Deixe que eu o alimente, se preocupe com a sua vida e pare de chamar meu gato de coisa — disse, sentando-se à mesa e servindo seu prato de pão, ovos e muito bacon, um café da manhã nada saudável.
— Você vai comer isso? — questionei, olhando para os ovos fritos e o bacon. — Não é nada saudável.

revirou os olhos.

, quando eu pedir a sua opinião sobre o meu café da manhã, aí você poderá compartilhá-la comigo. — Deu uma garfada tão generosa na comida, parecendo ser a última maravilha do mundo.
— Ah, que ótimo... Agora vou ter que dividir a casa com um gato preguiçoso e com uma pessoa que não liga para a própria saúde. — Quando morresse, a primeira coisa que faria seria procurar pelo meu irmão no reino divino e estrangulá-lo por me fazer passar por tudo aquilo.
— Não tenho culpa se o coelhinho gosta de comer salada no café da manhã. — Ainda era cedo para dizer que morar com ele era uma péssima ideia?
— Eu priorizo minha saúde, algo que você deveria fazer — acusei, pegando o celular para conferir a meteorologia, meu ritual sagrado de todas as manhãs.

bateu as mãos na mesa e se levantou em um salto, vindo em minha direção como um raio. Seus olhos azuis estavam escuros e havia uma pequena faísca no fundo das íris, onde consegui ver perfeitamente o meu reflexo. Com certeza, não era a única a pensar que era uma tremenda perda de tempo dividirmos uma casa.

— Isso nunca vai dar certo se você continuar sendo a garota mimada de sempre — esbravejou, fuzilando-me com tanta intensidade que achei que fosse me matar somente com o olhar.
— E você continua sendo o garoto arrogante e irritante de sempre! — retruquei, levantando as mãos para o alto. — É mais que óbvio que isso não vai dar certo! Não precisa ser especialista no assunto.
— Por que nossos irmãos nos colaram nessa cilada? — Seu tom estava alterado, mais firme e rude.
— Eu não sei o que pensaram quando acharam que uma mulher como eu, gostaria de morar com um homem insuportável como você!
— Acha que concordei com isso? A última coisa do mundo que eu queria era dividir uma casa com uma mulher teimosa e egoísta como você! — praguejou, levando as mãos para os cabelos, desarrumando mais os fios.

Eu iria retrucar, fazê-lo pagar pelas palavras malcriadas, mas foi o barulho baixo e quase perceptível do choro da pequena Mia que me impediu de fazer isso. Suspirei, recuperando a compostura antes de ir vê-la e deixá-lo sozinho, sozinho, com a companhia do gato — o único ser que o suportava.

*****


A pequena banheira rosa estava quase pronta. Mergulhei a mão na água, sentindo a temperatura morna aquecer minha pele. Desliguei a torneira e passei pela porta, atravessando a suíte do quarto de Noah e Lily. A pequena estava deitada com uma chupeta, sobre a enorme cama do casal, mexendo os olhos brilhantes e curiosos ao redor, investigando o cômodo nos mínimos detalhes.

— Vamos tomar um banho quentinho, princesa? — A peguei em meus braços, analisando o quarto. — Você gosta de ficar aqui, não é? — Beijei o topo da cabeça dela. — Eu também sinto falta deles. — A dor preencheu meu peito.

Os perfumes ainda estavam nos lençóis, em cada fio de seda. E, apesar de cada canto que olhava me lembrar deles, de certo modo me sentia confortável. Mia também estava mais calma, de um jeito indecifrável, como se estivesse sendo abraçada pelos pais. Ela havia parado de chorar quase instantaneamente quando entrei no quarto, não sendo minha intenção, já que procurava a porta do banheiro.

— Vamos para o banho, pequena. — A balancei nos braços, indo em direção à suíte e a colocando na banheira.

Mia sorriu e brincava com o patinho de borracha, que apitava quando apertava, batendo as mãos na água e me molhando inteira. Acompanhei-a na risada, com a leveza dominando meu ser. Vê-la se divertindo, enquanto esfregava o sabonete em sua pele delicada, deixava meu coração quentinho.
O banho foi rápido, calmo e sereno. Enrolei o corpinho em uma toalha macia e a sequei, coloquei a fralda, passei a colônia com notas florais de rosa e baunilha, deixando sua pele perfumada e refrescante. Havia escolhido um vestido verde-claro com flores e sapatinhos brancos, transformando-a em uma princesa linda e cheirosa.
Peguei-a no colo e nos despedimos do quarto, indo em direção ao dela, levando o patinho junto. Arrumei o berço antes de colocá-la por alguns minutos, sendo o tempo que levei para ajeitar a bolsa com os pertences para sairmos. Seus pais haviam optado pela introdução dela na creche desde cedo, acreditando que isso ajudaria a desenvolver os sentidos, além de conseguirem organizar a rotina de trabalho no período da manhã.
Mia já tinha completado 2 anos e estava se aventurando com os primeiros passos, que foram presenciados pelos pais, sendo cruel pensar que não estariam presentes para vê-la dizer a primeira palavra. Será que seria ? Ou seria ? Talvez o nome do gato?
Desci as escadas assim que troquei as roupas molhadas, com a alça da bolsa no ombro e a segurando nos braços, brincando com o patinho junto com ela. A recepção foi calorosa, já que, quando chegamos nos últimos degraus, apareceu da cozinha com um sorriso largo estampado nos lábios.

— Olha quem acordou! A minha bebê favorita! — aproximou-se, depositando um beijo na testa da pequena.

Ele a pegou no colo e Mia não perdeu tempo, pressionando o brinquedo contra a bochecha dele, emitindo o som do apito, arrancando gargalhadas do homem. Observei a cena e sorri, percorrendo os olhos pela sala até pairar sobre Sky. Deitado no sofá, o felino levantou a cabeça para olhar a agitação, retornando rapidamente a dormir, ignorando tudo ao redor. Neguei com a cabeça, qual era a graça que as pessoas viam em gatos?
Mia ficou agitada quando notou que tínhamos um animal de estimação, apontando o bichano, ficando eufórica no colo de . Cruzei os braços e optei por apenas observar a cena dele aproximando-se do gato, com a pequena balançando os braços, ansiosa para tocar os pelos longos e macios.

— É, Mia, agora temos um gatinho — murmurou.

E como um perfeito delinquente, Sky levantou a cabeça e arregalou os olhos dourados; a pupila dilatou, disparando em uma corrida desesperada em direção da cozinha, deixando claro que odiava crianças perto dele. Cobri a boca com a mão, tentando segurar o riso zombeteiro que me atingiu.

— Ainda... — ri, não me contendo. — Ainda acha que o seu gato é uma boa ideia? — provoquei, atravessando a sala, me rendendo à risada.

endireitou o corpo e me acompanhou até a porta. Seu semblante fechado e abatido, enquanto Mia puxava os botões da camiseta, ignorando o comportamento do gato.

— Ele vai se acostumar, não é todo dia que é acordado por uma maluca histérica o chamando de “coisa” — retrucou, segurando a porta.

Rolei os olhos e passei pela saída, trancando a fechadura. Descemos os dois degraus da varanda em silêncio, olhei para os lados em busca de um táxi para nos levar até a creche. No entanto, quando estava levantando a mão para sinalizar, pensei que a figura imponente ao meu lado poderia fingir ser um bom cavalheiro e me poupar de gastar dinheiro.

— Vai me acompanhar até a creche? — disparei, tentando não soar oferecida. — É importante para a Mia que fôssemos juntos como uma família, já que somos os pais dela. — Contive o sorriso pilantra que queria se curvar em meus lábios.
— Nós somos os tios dela — corrigiu, colocando a mão no bolso da calça.
— Nós recebemos a guarda temporária dela, então temos que agir como figuras paternas — gesticulei.
— Se quer gastar a gasolina do meu carro a levando para a creche, é só dizer, . — Deu uma piscadela em minha direção, retirando a chave do veículo do bolso. — Depois preciso ir para a clínica, consigo deixá-la em casa — falou sobre os ombros, cumprimentando os vizinhos curiosos com nossa presença.
— Pode me deixar no mercado na volta, tenho que comprar algumas coisas para a casa e para minha dieta. — Ajeitei a alça da bolsa, ficando em seu encalço.
— Combinado, — concordou, apertando o botão do alarme.

Meus olhos caíram sobre o carro quando as luzes piscaram, indicando que havia sido destravado. O modelo SUV era de uma pintura negra, profunda e brilhante, com linhas perfeitas e musculosas que contrastavam com a suavidade das curvas. A grade frontal, imponente, parecia como a de um felino pronto para saltar. Seus faróis, desenhados iguais aos olhos de um gato, cortariam qualquer escuridão; as rodas de liga leve eram envoltas em pneus largos, denunciando sua potência latente e expondo a capacidade off-road surpreendente.
O Hyundai Creta é a combinação perfeita de beleza.

— Achei que tivesse um carro. — quebrou o meu momento, abrindo a porta do passageiro traseiro.

Adentrei o veículo, sendo abraçada pelo banco confortável, colocando o cinto de segurança. Estendi os braços, recebendo o corpo pequeno e delicado de Mia, sentando-a sobre minhas pernas, já que não tínhamos tido tempo para instalar a cadeirinha infantil — teríamos que fazer do modo tradicional. Não era tão seguro, mas era nossa única opção.

— Eu tenho uma moto, ainda não tive dinheiro para comprar um carro — respondi, prendendo os olhos no interior do veículo.

Tudo era envolto em uma elegância escura, denunciando o convite para o conforto e o relaxamento; os detalhes cromados nos bancos de couro eram os responsáveis por dar o toque final de sofisticação.

— E como irá voltar para casa com as compras? Voando? — quis saber, ocupando o lado do motorista.

Rolei os olhos, notando quando ele acomodou os óculos escuros no rosto, realçando sua beleza. Como era possível o carro combinar tanto com o condutor?

— Eu chamo um táxi ou peço para o mercado entregar a compra, ainda não desenvolvi minhas habilidades voadoras. — Olhei para os lados, tentando ocupar minha atenção com qualquer coisa que não fosse o retrovisor interno refletindo a imagem do cretino.

Mia riu, atraindo minha atenção.

— Está vendo, Mia, o que seus pais fizeram comigo? — brinquei, segurando sua mão que tocou meu rosto. — Condenaram os meus últimos neurônios saudáveis a queimarem por ter de conviver com esse imbecil — ergui o olhar, mirando .

Ele deu a partida no veículo e curvou o sorriso irônico no canto dos lábios.

— E os meus neurônios não estão em risco, ? — disparou. — Você tem alergia a gatos e ainda come pior do que um coelho, se dependêssemos da sua dieta, o mundo passaria fome. — Ele só estava daquele jeito porque a geladeira estava cheia de frutas e alimentos saudáveis.
— E se dependesse da sua, todos nós teríamos obesidade mórbida e morreríamos antes dos 40 anos — acusei, ouvindo Mia se divertindo com nossa discussão.
— Comer açúcar e carboidratos no café da manhã é uma forma de deixar o meu dia mais produtivo.
— Sério? Comer dois ovos fritos e uma pilha de bacon é ser produtivo? — De onde aquela mente fértil tirava tantas asneiras?
— A Mia aprovaria minha ideia, ao contrário de você, que prefere começar o dia comendo frutas e café sem açúcar — provocou, parando o veículo no sinaleiro e virando o corpo para me encarar. — Por isso é tão reprimida. — Abaixou um pouco os óculos e estralou a língua no céu da boca.

Deus que me ajudasse, porque eu ia matar aquele homem antes da primeira visita da assistente social.

— Você é o imbecil dessa conversa, , o reprimido aqui é você! — esbravejei, com os olhos ardendo em fendas faiscantes. — Agora, dirige a droga desse carro!
— Mia, ela falou uma palavra feia, agora está devendo um dólar para o Cofrinho dos Impropérios. — E foi a última provocação dele, retornando a atenção para a estrada.

O Cofrinho dos Impropérios era um recipiente que Noah e Lily criaram para controlar o uso de palavrões, sendo uma técnica lúdica e educativa. A ideia era ser uma penalidade para cada palavra feia que fosse proferida, tornando-se uma brincadeira engraçada. E levando em consideração minha situação atual, sabia que faltariam potes no mundo para encher, morando debaixo do mesmo teto com .
Ele era tão insuportável que não sabia até quando aguentaria ficar sem acertar um tapa na sua cara.


Continua...


Qual o seu personagem favorito?


Nota da autora: Oiie, leitores!! Espero que estejam gostando de nossos protagonistas, da baby e do gatinho preguiçoso. Estou amando escrever essa fic de tão gostosinha que ela é, e ansiosa para mostrar como será o desenrolar da nossa coelhinha e do veterinário, só posso dizer que teremos muitas emoções com esses dois!!
Me diga do que mais estão gostando e deixe aquele comentário que irei amar ler! ❤️
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