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Codificada por: Saturno 🪐

Última Atualização: Julho/2024.

A Floreios e Borrões era um dos mais antigos estabelecimentos do Beco Diagonal ainda em atividade. Fundada em 1454, a livraria não era tão antiga quanto Gringotes ou a Loja de Olivaras, mas possuía uma história longa de sucesso, fornecendo material escolar aos alunos de Hogwarts e livros diversos para a sociedade bruxa. Contudo, isso eram tempos passados. Mesmo que a maioria dos feiticeiros se recusasse a admitir, tanto a Grande Guerra dos Trouxas quanto o colapso financeiro daquele ano acabaram respingando no mundo mágico. Rosette Blishwick soltou um suspiro involuntário ao perceber que apenas ela e outros parcos funcionários se encontravam no estabelecimento. Continuando as coisas daquela forma, era uma questão de tempo para que o patrão demitisse um deles.

A morena de olhos verdes seguiu para o fundo da loja, se concentrando em organizar uma das prateleiras de livros, preocupada com seu próprio destino. Eram apenas ela e a mãe, cuja saúde debilitada necessitava cuidados. Sem aquele emprego, não havia como sobreviverem.

Rose foi despertada de suas conjecturas ao ser chamada por uma colega de trabalho que lhe deu um leve cutucão, seguido de um sorriso malicioso.

— Seu cliente favorito acabou de chegar.

A moça deixou que um sorriso singelo aflorasse seus lábios ao vislumbrar o elegante feiticeiro que cruzava os umbrais da loja. Ele usava um terno grafite de fino corte e se apoiava em uma bengala com castão de prata em formato da cabeça de corvo. Seus olhos azuis observavam o recinto, perdidos nas centenas de livros.

— Sr. Black — Rosette chamou o moreno com suavidade. — É um prazer revê-lo. Em que posso ajudá-lo?

— Srta. Blishwick, o prazer é todo meu. — ele respondeu, também sorrindo. — Hoje eu gostaria de um exemplar de Lendas e Fatos sobre Kelpies.

— Pego em um instante — ela respondeu, solícita.

— Não precisa ter pressa.

Phineas Black observou a moça se deslocar para o interior da loja admirando a suave cadência do seu caminhar, as curvas escondidas sob o vestido de corte reto que ia até pouco abaixo dos joelhos, os cabelos em corte chanel deixando o pescoço à mostra. O sorriso dele ampliou-se. Talvez não fosse óbvio para a moça, mas aquelas visitas constantes dele à Floreios e Borrões não se devia a seus interesses literários.

*******


Quando Rosette chegou em casa, a noite já se adentrara. Ela colocou o pacote de compras na mesinha que havia na entrada da casa e despiu o casaco, pendurando-o no armário. Depois de tirar os grampos que prendiam seu chapéu e pendurá-lo também, pegou o pacote e seguiu para a cozinha.

Ela começou a separar os ingredientes para o jantar. Teriam que se contentar com uma sopa de batatas. Só receberia pagamento no fim da semana, e então poderia comprar carne e manteiga.

Enquanto colocava os legumes no fogo, escutou uma tosse alta. Ao sair da cozinha deu de cara com a mãe, Geraldine, que descia a escada enrolada em um robe de veludo.

— A senhora não devia se esforçar — Rose disse, caminhando apressada para ajudá-la.

— Ficar o dia inteiro de repouso é tedioso por demais — a senhora respondeu, estendendo suas mãos esqueléticas para a filha — Quero pelo menos dividir nossa refeição de forma apropriada com você.

Rosette assentiu, ajudando a mãe a sentar-se na cadeira de espaldar alto da mesa de jantar. Uma das poucas heranças que sobrara dos tempos de fartura da família.

— Em um minuto estará pronto. — ela respondeu.

Pouco tempo depois a refeição estava posta, e as duas mulheres sorviam a sopa em silêncio, cortado pelas ocasionais tosses da senhora Blishwick. Foi a mais velha, contudo, que decidira iniciar um diálogo.

— Rose, você não pode continuar vivendo assim, pensando apenas no presente. Você já tem vinte e seis anos, não é mais uma mocinha, dificilmente vai encontrar um homem que aceite alguém da sua idade!

A morena levantou-se abruptamente, jogando o guardanapo de qualquer jeito sobre a mesa. Ela compreendia que a mãe dizia aquilo com boas intenções, preocupada com seu futuro, mas isso não significava que tal assunto não incomodava Rosette. Desde que atingira a maioridade a mãe insistia naquele assunto, e a cobrança piorara depois da morte do pai.

— O que a senhora quer de mim? Que eu me case com o primeiro homem que aparecer no meu caminho? — ela retorquiu, exasperada.

— Se isso for tirá-la dessa vida miserável que nós levamos, eu não vejo razão para não o fazer.

A moça desviou os orbes esmeraldas do rosto exigente da mãe, estava cansada demais para continuar aquela discussão. Ela começou a retirar os pratos sujos da mesa, dizendo quase em um murmúrio:

— Eu vou pegar o seu remédio e ajudá-la a se deitar.

Geraldine não respondeu. Ela sabia que muito em breve deixaria aquele mundo e acreditava que Rosette era preciosa demais para não ter um porto seguro.

*******


Rose cerrou a porta da loja atrás de si, apertando o casaco contra o corpo. O vento gelado pronunciava a iminente chegada do inverno. Distraída, ela não percebeu o homem de fartos cabelos negros que se aproximava.

— Senhorita Blishwick — ele a cumprimentou.

Ela levantou o rosto e uma expressão iluminada de satisfação se revelou.

— Senhor Black — Rosette respondeu, com um tom mais entusiasmado do que planejara — Meu expediente já acabou, infelizmente não poderei atendê-lo hoje.

Phineas sorriu diante da inocência da moça. Esperava que ela não se retraísse diante da proposta que iria lhe fazer.

— Eu sei, senhorita Blishwick. Na verdade, eu vim por outro motivo. Gostaria de convidá-la para tomar uma xícara de chá ou qualquer outra bebida de sua preferência no Caldeirão Furado.

A moça abaixou o rosto, ligeiramente encabulada. Ela já havia sido cortejada em seus tempos de escola; contudo, desde a morte do pai, ocupara todos os momentos de sua vida em cuidar da mãe, apesar da insistência da matriarca em um possível enlace da filha.

Rosette não podia negar que ela se sentia atraída por aquele homem, mesmo ele sendo muito mais velho que ela. Talvez ela devesse ceder aos desejos da mãe e arriscar-se um pouco.

— Eu adoraria — ela respondeu, enlaçando o braço que lhe era estendido.

O pub estava relativamente vazio devido ao adiantado da hora. Rosette enviou um patrono avisando à mãe sobre o atraso. Ainda havia sobrado sopa da noite anterior para a velha senhora.

Phineas observava a moça enquanto ela sorvia um gole de chá de canela e maçã. A conversa fluía de forma natural quando estava com ela. Era a inteligência, a sensibilidade e a desenvoltura dela que despertaram seu interesse.

— Então, estava dizendo que pretende montar um jornal, Sr. Black? — ela perguntou, pousando a xícara com o líquido revigorante sobre a mesa.

Os olhos anis de Phineas cintilaram de entusiasmo. Aquele era um assunto que lhe causava paixão desmedida.

— Eu acho que não devemos depender apenas do Profeta Diário, especialmente quando as coisas estão se tornando cada vez mais complicadas, principalmente no Continente. É algo que o velho Fawley não consegue enxergar, e tenho certeza de que um dia isso vai lhe custar o Ministério. Além do mais, alguém também precisa dar mais espaço aos nascidos trouxas e mestiços.

— Trouxas? — Rose arqueou a sobrancelha.

— Algum problema, senhorita? — o cenho do homem se contraiu involuntariamente.

— Não, eu nunca tive problemas com trouxas...

— Mas...

— Não tem mais nada. Apenas nunca ponderei realmente sobre o assunto — ela respondeu de forma simples.

O moreno quase soltou um suspiro de alívio. Aquele assunto lhe era muito caro. Havia sido expulso da família por defender o direito dos trouxas, não desejava que aquele tema se tornasse um empecilho para o relacionamento que desejava estabelecer com Rosette.

A moça soltou um bocejo sem que percebesse, cobrindo rapidamente a boca.

— Não me entenda mal, Sr. Black, a conversa está interessante e gostaria muito de continuá-la, mas hoje foi um dia extenuante. Acho melhor aparatar para casa.

— Se a senhorita está tão cansada, talvez não seja seguro aparatar — ele disse, realmente preocupado, uma vez que o processo requeria relativa concentração. — Estou de carro, posso te dar uma carona.

Apesar da fadiga, uma onda de excitação percorreu o corpo de Rose. Com exceção do Noitebus Andante, nunca havia andado efetivamente de carro. A família sempre teve o hábito de usar apenas pó de flu ou outras opções bruxas, pois o pai via com suspeita aquele artefato de origem trouxa. Acreditava que poderia explodir a qualquer momento.

— Adoraria — ela respondeu, movida pela curiosidade.

O conforto e o sacolejar do automóvel acabou fazendo com que a moça cochilasse no ombro de seu acompanhante. Phineas deixou que um sorriso contente lhe brotasse nos lábios, o perfume de rosas que dela se desprendia era quase inebriante.

Ao chegarem no endereço que ela havia lhe passado, Black sacudiu de leve Rosette para que ela despertasse sem sobressalto.

— Chegamos — ele disse, baixinho.

Rose piscou um pouco os olhos antes de situar onde estava, ao passo que Phineas circulava o carro para abrir a porta e ajudá-la a descer.

Quando estavam diante um do outro, um silêncio momentâneo recaiu sobre os dois, os rostos se aproximando lentamente até que os lábios se tocaram, inicialmente tímidos, em um beijo repleto de descobertas.



Sob o dossel, ela ressonava serenamente, os cachos negros espalhados pelo travesseiro. Os pálidos raios de sol da manhã incidiam sobre o seu rosto, fazendo com que Rosette abrisse preguiçosamente os olhos. Ela passou a mão pelo colchão, percebendo que Phineas já se levantara.

Rose se ergueu da cama com um pouco de dificuldade. Estava sentindo dores nas costas desde o dia anterior, mas preferiu não dizer nada ao marido. Phineas estava agindo de forma superprotetora desde que descobriram que ela estava grávida de gêmeas.

Ela se dirigiu a passos arrastados até a penteadeira. Sentou-se e, com delicadeza, começou a escovar os cabelos, que alcançavam a altura dos ombros. O movimento quase hipnótico daquela ação fez com que a mulher se perdesse em seus pensamentos. Ela estava feliz como nunca se lembrava de ter sido antes. Mal parecia que fora há quase cinco que ela e o marido haviam trocado o primeiro beijo. Agora, com a chegada das filhas, a vida parecia ser perfeita. Apenas lamentava que a mãe não estivesse mais entre eles.

Ela foi resgatada de seus devaneios ao sentir uma das filhas chutando-lhe o ventre.

— Calma, coração. Mamãe já vai levantar e providenciar nosso café.

Rose trocou de roupa, colocando um vestido leve e confortável. Quando estava quase no pé da escada, escutou a voz do marido.

— Então Corbin e Cassius levaram Pericles para Lyon, para visitar os mestres bardos de seu marido? — ele dizia — Seu sobrinho está com quantos anos? Dezessete?

— Sim. — uma melodiosa voz feminina se pronunciou — Mas acredito que a empolgação de Pericles se deva mais ao passeio posterior à Paris que ao encontro com velhos druidas.

Enquanto Phineas soltava uma gargalhada diante do comentário da mulher, Rosette sorria ao reconhecer os cabelos rubros e a expressão usualmente suave de Aribeth Thorne, antiga colega de seu marido dos tempos de Hogwarts.

— Betsy — ela disse, com carinho — Se soubesse que estava aqui, teria me levantado mais cedo.

— De forma alguma — a ruiva respondeu — Você está prestes a dar à luz, precisa guardar energia.

Rosette apenas sorriu em resposta. Aproximou-se do marido, reclinando-se para lhe pousar um cálido beijo nos lábios.

Phineas levantou-se da cadeira, dando o braço à esposa e ajudando-a a sentar-se na cadeira próxima.

— Espero que o desjejum esteja do seu agrado e das meninas. — ele disse.

— Acredito que sim.

Aribeth observou os amigos com imensa afeição. Era notável para qualquer um o quanto os dois se amavam.

— Mesmo sabendo o quanto estima Betsy, não quis te acordar, querida — Phineas começou a se explicar— A visita dela é principalmente sobre negócios.

— Eu gosto das discussões de vocês — Rose respondeu, antes de dar uma generosa mordida na torrada coberta de geleia de framboesa.

— Não seja por isso — Aribeth chamou a atenção para si — Me disseram que não é bom contrariar uma grávida. Então, Sr. Black, o que me diz?

O moreno terminou de bebericar a xícara de Earl Grey antes de responder à amiga.

— Concordo. Imagino que tenha vindo aqui conversar comigo sobre o último editorial que escrevi.

A ruiva assentiu com uma expressão ligeiramente carregada.

— Meu amigo, não me entenda mal, eu até admiro a engenhosidade dos trouxas. Como antigo membro da casa de Rowena Ravenclaw, eu não consigo deixar de respeitar quem se utiliza do intelecto para triunfar. Carros, aviões, navios estão aí para provar que eles não são tão ineptos quantos nossos pares bruxos acreditam, embora eu tenha ressalvas quanto à questão da miscigenação entre nós e eles. Contudo, a maioria da comunidade mágica é bem mais intolerante.

— Inclusive seu irmão? — Phineas não conseguiu se refrear; nunca fora muito simpático a Cassius.

Aribeth revirou os olhos; admitia que o irmão mais velho sabia ser intransigente quando queria. Aquilo inclusive prejudicou o sobrinho mais do que ela gostaria de aceitar. Além de elitista, Pericles se tornara pouco proativo. Mesmo sendo os Thorne uma linhagem matrilinear e ela a líder do Clã, não havia muito mais que pudesse fazer além de tentar colocar um pouco menos de preconceito na cabeça do irmão, em todas as vezes que discutira com Cassius.

— Inclusive meu irmão, mas você há de admitir que existem pessoas mais radicais que ele, talvez a ponto de partirem para violência. — ela retorquiu.

Phineas passou a mão por entre os cabelos. Como poderia explicar à Betsy o quanto aquela posição lhe era cara, que dificilmente abriria mão das suas crenças?

— Você vai parar de financiar o jornal?

A ruiva olhou para o lado, observando Rosette com o canto dos olhos. A morena se mantinha calada, apenas esperando o desenrolar da conversa. Betsy não desejava trazer um assunto tão espinhoso para alguém no estado da esposa do amigo, mas era preferível que Rose soubesse a verdade. Florear a realidade nunca trazia benefícios.

— Não, não vou parar, Phineas. Apesar de discordarmos em algumas coisas, acredito que seu jornal tem sua importância. Você sabe que o poder de Grindelwald está aumentando e existem coisas que o ministro Fawley prefere que não sejam noticiadas. O Profeta pode questionar o governo às vezes, mas não são incisivos como você. Por isso seu trabalho é tão importante. Só peço que tome cuidado.

Black abaixou a cabeça pensativamente, refletindo sobre tudo aquilo. Conhecendo o marido, Rosette percebeu que a conversa se estenderia muito mais até que ele e Aribeth chegassem a um consenso. Ela levantou-se, pegando o bule de chá que estava sobre a mesa.

— Vou esquentar mais água para nós.

Mal ela deu dois passos, deixou que o bule escapasse de suas mãos, caindo estrondosamente no chão. Rosette inclinou-se, segurando o ventre com uma das mãos devido à forte pontada de dor, enquanto com a outra se apoiava na mesa. Phineas levantou-se de súbito para acudir a esposa, derrubando a cadeira no processo.

Aribeth também se prontificou a ajudar Rose. Ela pousou a mão sobre o ventre da morena, murmurando palavras na língua de seus ancestrais celtas. Embora houvesse frequentado Hogwarts, a escola dos Altos Magos, era à Antiga Magia ensinada aos membros de sua família a que ela recorria em situações como aquela. A pulseira que usava começou a brilhar, como se estivesse se tornando um metal incandescente, e uma luz azul emanou da mão da ruiva. Rosette sentiu um calor reconfortante, a dor diminuindo sensivelmente.

— Eu estou bem... já passou. — ela murmurou.

— Mesmo assim prefiro não arriscar — Black retorquiu — Vamos para o St. Mungus.

*******


Phineas depositou um beijo na fronte da esposa que dormia profundamente após as horas que passara em trabalho de parto. Era justificável, dado tanto esforço.

Ele se aproximou do berço onde as filhas ressonavam tranquilamente. As duas tinham os cabelos escuros como os dele e de Rosette, mas Phineas percebera, quando estavam acordadas, que uma delas possuía os olhos verdes como os da mãe, enquanto a outra tinha os olhos azuis.

Cassiopeia Marguerith e Betelgeuse Sandrine. Ele e Rosette discutiram tanto sobre quais nomes dariam às garotas. Apesar de ter sido expulso da família, Phineas desejava manter aquela tradição de dar nomes de estrelas ou de origem mitológica para os descendentes. A esposa, por sua vez, não achava justo que apenas ele tivesse a palavra final naquela questão. Optaram por um meio termo, cada um escolhendo um dos nomes para as filhas.

O homem sorriu, embevecido. Aquelas meninas eram a confirmação de que estava fazendo a coisa certa. Iria lutar para que elas crescessem em um mundo melhor, sem preconceitos, onde poderiam escolher o próprio caminho.



Ravi Patel conseguia escutar o barulho das teclas da máquina de escrever se misturando com o som das vozes saindo do rádio da sala do seu chefe. Ele já se acostumara com aquilo. Desde que começara a trabalhar para Phineas Black, Patel não se lembrava de um dia em que o jornalista não tirasse pelo menos algumas horas do dia para escutar um pouco da programação trouxa, pois acreditava que a conexão entre os dois mundos era tênue demais para ser ignorada.

A porta estava entreaberta e o rapaz pôde observar que Black estava em meio ao seu caos criativo: além de datilografar, ocasionalmente ele parava para anotar alguma coisa em uma caderneta de capa escura. O que mais espantava o rapaz era saber que, ainda assim, seu chefe conseguia prestar atenção ao que estava sendo dito no rádio.

— Phineas — ele chamou, fazendo com que o homem levantasse o rosto.

Black observou o rapaz por alguns segundos. Patel não tinha mais que vinte e cinco anos, contudo demonstrava um senso de responsabilidade que ultrapassava em muito a sua idade. Exatamente por isso, se tornara o braço direito de Phineas no jornal. Black desconfiava que aquilo se devia a uma gratidão que ele não julgava merecer.

Quando o jovem veio para a entrevista de emprego, parecia um pouco inseguro. Phineas não poderia culpá-lo. Além de ter nascido no seio de uma família trouxa, ele era estrangeiro; os pais viviam na Índia, e conseguiram enviá-lo à Inglaterra para estudar. As convicções políticas do rapaz também não o tornavam atrativo para ser contratado, pois às vezes deixava escapar seu desejo de que a terra natal se tornasse independente da Grã-Bretanha. Contudo, Black nunca se ateve a esses preconceitos; a inteligência e a perspicácia do rapaz o impressionaram, e resolveu contratá-lo.

A verdade era que Phineas juntara ao redor de si muitas pessoas que poderiam ser consideradas como fora do padrão tanto para os bruxos quanto para os trouxas. Todos os seus empregados tinham origem trouxas ou eram mestiços. Não eram muitos, mas faziam diferença.

Além de Ravi, Black podia considerar mais duas pessoas entre os seus empregados como a alma do jornal. Pietro Mateotti, um italiano anarquista que fugiu da Itália com a família por causa do fascismo, responsável pela impressão, e sua principal repórter, Williamina Goldie, que vinha de uma família cujas mulheres tinham uma forte herança sufragista.

Black preferia que fosse assim. Aquelas pessoas tinham fibra necessária para realizar o difícil trabalho que tinham em mãos.

— Em que posso ajudá-lo, Ravi?

— Pepe pediu para dizer que conseguiu consertar a prensa. Parece que era alguma poção colante nas engrenagens, mesmo assim não vai atrasar a impressão do jornal.

Phineas sorriu. O bom e velho Pepe sempre conseguia fazer milagres. Não era a primeira vez que passavam por aquele tipo de situação; era a segunda, só naquele mês, que entravam no jornal e sabotavam o maquinário. Os aurores que estavam investigando o caso pareciam não levar aquilo muito a sério.

Ravi, contudo, não parecia compartilhar do mesmo alívio do patrão.

— Eu não sei se devemos comemorar. Eles estão ficando mais espertos e ousados, conseguiram burlar os mecanismos de segurança que instalamos aqui.

O mais velho passou a mão por entre os cabelos escuros. Ele não podia negar que os artigos e reportagens que publicavam haviam chamado a atenção de pessoas indesejadas. Radicais da pureza bruxa. Com a crescente influência de Grindelwald no Continente, os extremistas britânicos pareciam estar se sentindo mais seguros para expor seus ideais, muitas vezes de forma pouco pacífica. Aquelas sabotagens poderiam ser apenas o começo.

— Tudo bem, Ravi, você tem razão. Willie disse que Goddriac conhece algumas pessoas que poderiam trabalhar como seguranças aqui no jornal.

O indiano finalmente se deixou relaxar, ainda que minimamente. O noivo de Williamina, Goodfellow Goddriac, podia parecer em um primeiro momento um bon vivant irresponsável, mas por baixo daquela pose havia uma pessoa séria e confiável. Se ele arrumaria alguém para cuidar do jornal, eles poderiam se sentir seguros.

— Falando na Willie — Patel se pronunciou — ela mandou um recado. Conseguiu convencer o novo ministro a nos dar uma entrevista exclusiva. O pessoal do Profeta vai se roer.

Black riu. Quando Goldie queria alguma coisa, ela sempre conseguia.

— Espero que Spencer-Moon seja mais incisivo no que diz respeito a Grindelwald como ele prometeu. — Phineas falou, em um tom mais sério — Antevejo tempos bastante sombrios para todos nós, Ravi.

— Alguma novidade na rádio trouxa?

O jornalista meneou a cabeça.

— Hoje não, mas as coisas estão piorando vertiginosamente. Os nazistas estão ganhando terreno. Ano passado foi aquela abominação. Noite dos Cristais... um nome bonito para uma coisa tão hedionda.

Ravi virou o rosto, olhando para o rádio, como se o aparelho pudesse trazer alguma resposta para o futuro deles.

— O ministro trouxa? Ele não está fazendo nada?

— Eu sei que ele tem boas intenções, mas a política de apaziguamento de Chamberlain vai ser nossa cova — o mais velho retrucou com amargura — Não duvido que ele saia do poder da mesma forma que Fawley saiu do nosso governo. O que mais me preocupa é que a comunidade bruxa não percebe que nosso caminho e o dos trouxas estão estritamente ligados. A tempestade que vai cair sobre eles vai nos atingir também com sua fúria.

A expressão de Phineas era pesada e cansada... Havia tanto a se considerar e tão pouco que ele poderia fazer. O abatimento dele não passou despercebido ao mais jovem. Patel efetivamente gostava do chefe quase como a um pai. Phineas foi o primeiro a enxergá-lo realmente como uma pessoa, sem preconceitos ou restrições. Nunca o julgou por sua origem trouxa, por ser estrangeiro, por sua cor de pele ou por suas crenças. Talvez tenha sido o primeiro amigo verdadeiro que tinha em anos.

— Chefe, vai embora para casa. — ele disse — Sua família está te esperando. Eu e Pepe damos conta de cuidar do jornal.

O rosto de Phineas se desanuviou e um brilho perpassou os olhos do jornalista.

— Você tem razão, vou fechar o texto e ir embora. A gente só consegue salvar o mundo um dia de cada vez.

*******


— Mamãe, eu estou cansada. — Marguerith disse, esfregando os olhos.

Rosette deu um suspiro quase inaudível. Passara a tarde inteira no St. Mungus. Betelgeuse estava com uma forte infecção de garganta. Ela trazia a filha adormecida no colo, ao mesmo tempo em que segurava a mão da gêmea caçula.

— Só vamos passar na farmácia para comprar o remédio da Bete e iremos para casa. Só mais um pouquinho, Marge.

A menina assentiu, enquanto chupava o dedo. Queria que a irmã ficasse boa logo para que pudessem voltar a brincar.

Rose entrou com as filhas no estabelecimento, procurando um atendente.

— Com licença — ela chamou.

Um homem de estatura alta, cabelos castanhos e queixo quadrado e proeminente se virou. Ele tinha uma expressão dura e pouco amigável.

— Boa tarde — Rosette continuou, sem se intimidar — Gostaria de comprar este medicamento.

Ela estendeu a receita na direção do atendente. Ele fitou a mão da mulher, impassível.

— Não — ele respondeu, seco.

— Como não? — Rosette questionou, atônita. — Minha filha está doente, eu preciso do remédio.

— Eu sei quem você é, Sra. Black, sei o que seu marido escreve. E nós não vendemos para pessoas como vocês.

A mulher sentiu a raiva querer explodir em seu peito. Ele não poderia fazer isso com ela, era praticamente um crime recusar remédio para uma criança doente.

— O senhor vai me negar isso? Não me importo se não é de bom tom, mas vou aprontar um escândalo se não me vender.

O homem soltou uma risada grave e pesada.

— Pode fazer o que quiser. Em quem acha que vão acreditar? Você é uma mulherzinha amante de sangue-ruins.

— O que o senhor propõe que eu faça?

O atendente sacudiu os ombros com desdém.

— Talvez alguma loja na Travessa do Tranco não se importe de atender escória.

Rosette sentiu o corpo começar a tremer de ódio.

— O senhor está me sugerindo que eu vá com duas crianças pequenas em um dos lugares mais perigosos da cidade?

Antes que o homem respondesse, Rosette sentiu a mãozinha de Marguerith comprimir a sua.

— Mamãe, eu quero ir embora.

Os olhos cheios de temor da filha fizeram com que Rose desistisse daquela discussão. Ela saiu da farmácia a passos duros.

Não demorou muito para que ela e as filhas chegassem em casa. Depois de deixar Betelgeuse na cama, foi preparar o jantar enquanto Marge brincava na sala.

A porta de entrada da casa se abriu, revelando a figura de Phineas Black. O homem pendurou o chapéu e o capote nos ganchos do armário da entrada. Ao ouvir os passos do pai, Marguerith se levantou, largando de qualquer jeito a boneca com que brincava.

— Papai, você chegou — a garotinha de cinco anos pulou na direção do moreno.

Phineas pegou a filha em pleno ar, rodopiando-a em um abraço.

— Também senti saudades, Marge — ele disse, dando um beijo no rosto da menina.

— Você vai me contar uma história, papai? — ela perguntou.

— Você obedeceu à mamãe hoje?

Ela balançou afirmativamente a cabeça, resoluta.

— Então, depois do jantar eu leio para você.

Indo em direção à cozinha, ele percebeu que a esposa vinha ao seu encontro. A expressão abatida e sóbria de Rosette fez com que ele ficasse preocupado. Ele colocou a filha no chão.

— Marge, meu amor, vá brincar um pouco na outra sala. Papai precisa conversar com a mamãe.

— Tudo bem. — ela respondeu, saindo praticamente correndo sala afora.

Phineas aproximou-se da esposa, abraçando-a e pousando um beijo por cima dos seus cabelos.

— O que aconteceu, Rose?

Ela fechou os olhos, deixando que o calor do corpo dele a reconfortasse. Deixou que as lágrimas de revolta e indignação corressem soltas por seu rosto. Phineas sentiu os soluços da esposa reverberando pelo corpo dela. Ele se afastou um pouco, observando as faces úmidas de Rose.

— Eu estou aqui, meu amor.

— Eu não consegui comprar o remédio da Bete. Ela está com febre... eu fiz o que pude... eu...

O homem soltou-se da esposa e a conduziu até a cadeira próxima. Rosette se deixou levar, quase apática. Estava cansada demais... Queria ter tido mais força para proteger a filha, mas se sentia tão fraca, pequena e desamparada. O que mais ela poderia ter feito sem que colocasse a si mesma e as meninas em risco desnecessário?

— O atendente da farmácia se recusou a me vender o remédio — Rose falou, começando a se recompor. — Pelas coisas que você escreve...

Phineas pegou as mãos dela entre as suas; desde que optara por defender os direitos dos trouxas sabia que passariam por situações como aquela. Tentara preparar Rosette para aquilo, mas haveria sempre dias piores que os outros.

— Eu sinto muito, querida... — ele começou — Eu realmente gostaria que não tivesse que passar por isso, mas fazer a coisa certa nem sempre é fácil. Dumbledore disse que...

Rosette se levantou de chofre.

— Não me importa o que seu amigo disse, ou deixou de dizer... É muito conveniente para ele, protegido dentro de Hogwarts.

— Rose, você sabe que isso não é verdade... O que você quer que eu diga? O que quer que eu faça?

Ela suspirou, ao mesmo tempo em que massageava as têmporas.

— No momento eu só quero que compre o remédio de Betelgeuse.

— Isso eu posso providenciar — ele se levantou, preparando-se para sair.

Quando voltou, Phineas encontrou Rosette no quarto das gêmeas, velando o sono de Betelgeuse. A menina respirava pesadamente. Ele colocou o remédio na cômoda, aproximando-se da esposa que não tirara os olhos da menina em nenhum momento. Ele colocou a mão no ombro de Rose, que apenas se mexeu para pousar a própria mão em cima da dele.

— Como ela está? — Phineas quebrou o silêncio.

— A febre baixou e ela conseguiu comer um pouco. — Rose respondeu baixinho, quase melancólica. — Tem guisado para você na cozinha, e Marge está no nosso quarto, te esperando para ler uma história. Ela estava quase dormindo quando a coloquei na nossa cama, mas insistiu que iria te esperar.

Phineas nada respondeu; apenas se deixou aproveitar aquele momento com a esposa e a filha mais velha. Não sentia nenhuma raiva vindo de Rosette, apenas tristeza e preocupação.

— Eu te amo. — ele disse.

— Eu também te amo — ela respondeu, finalmente levantando o rosto para encará-lo.

— Imagino que vá querer passar a noite velando Bete?

Ela assentiu. Phineas a beijou por cima dos cabelos, deixando o quarto das filhas. Caminhou a passos lentos até o quarto que dividia com a esposa.

Marguerith estava deitada na cama de dossel, abraçada a um livro. Ele o tirou dos braços dela, observando o título: Contos de Beedle, o Bardo. Deixou que um discreto sorriso se insinuasse em seus lábios. O primeiro livro que comprou na mão de Rosette. Colocou o livro no criado mudo, cobriu a filha e depositou um beijo em sua testa.

Tirou os sapatos e deitou-se, fitando o dossel branco. No fim das contas, acabou indo na Travessa do Tranco comprar o remédio. Pensou em ir à farmácia confrontar o atendente, mas deixaria isso para o dia seguinte; trazer o remédio da filha era prioridade, e ele não sabia que resultado teria se houvesse optado pelo embate.

Phineas se perguntava se o mundo sempre fora daquele modo e ele não havia percebido, ou se o mundo estava piorando a uma velocidade vertiginosa. Por mais que ponderasse, não conseguia achar uma resposta.



O som da música vindo da vitrola preenchia o ambiente. Uma alegre canção italiana. Um homem alto de pele bronzeada e cabelos que começavam a se tornar grisalhos cantava a plenos pulmões enquanto um casal dançava na pista improvisada. A moça de cabelos escuros e curtos ria de algo que seu par, um rapaz de olhos azuis e cabelos loiros, acabara de lhe dizer ao pé do ouvido. Duas garotinhas morenas praticamente idênticas corriam de um lado para o outro junto a outras duas crianças, que pelos traços pareciam ser irmãos, um menino com aproximadamente oito anos e uma menina com cerca de seis anos. Uma mulher de longos cabelos encaracolados, pele morena e olhos ambarinos observava as crianças enquanto saboreava uma fatia de bolo.

Phineas Black observava a cena, sentado no refeitório do jornal. Um sorriso sereno brincava em seus lábios. Todos que estavam ali se tornaram pessoas essenciais em sua vida, praticamente uma família. Suas filhas, Marge e Bete, obviamente. Pepe, sua esposa Maria e seus filhos Francesco e Giovanna. Willie e seu noivo, Goodfellow. Faltava apenas Ravi que, mesmo sendo o mais jovem, era o mais sério; como não tinha o hábito de beber, foi embora mais cedo.

— Você está feliz — ele escutou uma voz suave lhe chamar, enquanto sentia braços amorosos o envolverem por cima dos ombros.

— Muito. — Phineas respondeu, encostando a cabeça no rosto da esposa. — Embora eu ainda ache que esteja muito velho para uma festa surpresa de aniversário.

— E perder a oportunidade de comer a lasanha da Maria? — Rosette respondeu, rindo.

— O seu bolo também não fica atrás — Phineas respondeu, bem-humorado.

Rose deu um sorriso malicioso, sussurrando ao pé do ouvido do marido.

— Bem, estão todos ocupados. Maria está de olho nas crianças, talvez eu possa te dar seu presente de aniversário agora.

— No que está pensando? — ele perguntou, divertido.

— Você se lembra da primeira vez que me trouxe aqui no jornal?

O homem sorriu ante a lembrança. Ele se levantou, dando a mão para a esposa, que o guiou pelos corredores do estabelecimento. Quando chegaram ao escritório, fecharam a porta atrás de si. Phineas a trancou enquanto Rosette se sentava na mesa.

Ele se aproximou, tomando os lábios da esposa com carinho, aprofundando o beijo, enquanto suas mãos seguravam a cintura dela com firmeza. Rose correspondeu com igual ardor. Fazia quase dez anos que estavam juntos e ainda assim ela sabia que o que sentiam um pelo outro não havia mudado.

Quando se separaram estavam ligeiramente sem ar. Encostaram a testa um do outro e sorriram de modo cúmplice. Rosette beijou o pescoço de Phineas antes de se inclinar para trás, sentindo as mãos dele subindo a sua saia até a altura das coxas. Ele se reclinou buscando outro beijo da mulher, mas na ânsia do gesto acabou esbarrando no tinteiro, fazendo com que o nanquim começasse a se espalhar sobre a mesa.

— Droga — ele disse, levantando-se abruptamente, puxando Rosette consigo.

A mulher olhou para trás, percebendo que por muito pouco a sua blusa não ganhara uma bela mancha. Ela levantou-se da mesa, ajudando o marido. Enquanto ele pegava a varinha para limpar a sujeira, ela tentava salvar os papéis espalhados sobre o móvel. Seus olhos pousaram inadvertidamente sobre o conteúdo de um deles. A cor fugiu completamente do rosto de Rosette. A tez usualmente rosada se tornou pálida como a cera de uma vela.

— Phin... — ela balbuciou, a voz quase falhando — Isso é sério?

Black levantou a cabeça, guardando a varinha no bolso interno do paletó. Ao notar a expressão da esposa, ficou assustado. Parecia que Rose estava prestes a desmaiar. Ela estendeu o papel para ele. Phineas compreendeu, ao ler o conteúdo.

— Isso é uma ameaça de morte — ela disse, em um fiapo de voz. — O que escreveram aqui é... é... abominável.

Phineas aproximou-se de Rosette, abraçando-a, beijando-a por cima de seus cabelos.

— Rose, os aurores já estão cientes, e cão que ladra não morde; se essas ameaças fossem de fato reais, já teriam me atacado há muito tempo.

A morena se soltou do abraço do marido, seus olhos verdes estavam nublados e escuros como se estivessem imersos em uma tempestade.

— Desde quando você vem recebendo esse tipo de correspondência?

Phineas abaixou o rosto pensativamente. Ponderava até que ponto deveria revelar sem preocupar Rosette desnecessariamente. Nunca contara sobre as cartas ou as sabotagens que sofreram. Justificou o segurança que contratara com a história de uma tentativa de assalto. Lembrava-se do quanto Williamina o recriminara por esconder essas coisas de Rose, contudo, ele ansiava proteger a felicidade da esposa e das filhas. O trabalho que escolhera para si, os ideais que desejava propagar, eram tão árduos e cheios de obstáculos... Não desejava colocar todo peso sobre elas. Por mais que dividisse muito com Rosette, as partes mais aterrorizantes sempre guardara para si.

— Faz alguns meses — ele respondeu, finalmente a encarando — Já estão investigando. Além disso, você sabe que Goodfellow providenciou alguém para proteger o jornal. Eu não queria te preocupar.

— Não mente mais para mim. — ela exigiu, sem esconder a mágoa — Promete?

— Prometo. — ele disse, abraçando a esposa novamente. — Vamos voltar para a festa, você toma uma taça de vinho para se acalmar.

Rosette assentiu, deixando-se guiar pelo marido. Apesar da palavra dada, algo no interior dela dizia que não podia confiar na promessa de Phineas.

*******


O homem observou a esposa e as filhas dormindo abraçadas na cama de casal. Os cabelos escuros contrastando com a alvura dos lençóis, os semblantes serenos, quase angelicais. Marguerith havia tido um pesadelo e pedira para dormir com os pais. Betelgeuse, por sua vez, sempre fora demasiadamente protetora com a gêmea caçula e não quis se separar da irmã. O homem acabou cedendo espaço para que as meninas dormissem com a mãe.

Infelizmente, ele precisava acordar a esposa do seu sono acalentador. Apesar do tardar das horas, ele precisava sair. Não queria preocupá-la caso ela acordasse e não o encontrasse.

— Rose... — ele chamou, baixinho.

Ela esfregou os olhos, tentando despertar.

— Willie mandou um patrono. Uma das fontes dela no Ministério disse que chegou um recado urgente para Spencer-Moon. A Alemanha invadiu a Polônia, é apenas uma questão de tempo até os trouxas oficializarem a guerra. Parece que ele convocou uma reunião de cúpula para definir como o governo bruxo vai se posicionar.

Rose se levantou de chofre diante da notícia. Por mais que uma parte dela soubesse que a guerra poderia realmente eclodir, outra almejou que aquilo nunca se tornasse realidade.

— O que vamos fazer, Phin? — ela perguntou, já sentada na cama.

— Nos prepararmos da melhor maneira possível. — Black respondeu, quase em um suspiro — Preciso ir para o jornal.

Ele depositou um beijo na testa da esposa em despedida.

— Tome cuidado — ela disse.

Phineas apenas assentiu, saindo porta afora. Rosette observou o marido ir embora, depois voltou sua atenção para as filhas. Os tempos estavam se tornando sombrios, ela percebia que o cerco estava se fechando ao redor deles, fosse pelos problemas do mundo mágico ou do mundo trouxa. Naquele momento ela jurou para si mesma que faria de tudo para garantir a segurança das filhas. Quaisquer que fossem os meios.



Rosette Black sempre soube que um dia levaria suas filhas para pegar um trem e partirem para longe de casa. Contudo, ela sonhou que seria quando as meninas fossem para Hogwarts, aos onze anos, alegremente se preparando para o primeiro ano na escola de magia e bruxaria. A realidade que estavam vivendo era o oposto daquele momento de felicidade que ela anteviu.

Marguerith chorava copiosamente agarrada ao pescoço do pai, recusando-se a soltá-lo, enquanto Betelgeuse fitava emburrada a ponta dos sapatos.

Próximos deles, Pepe e Maria se beijavam, enquanto Francesco segurava protetoramente a mão de Giovanna.

— Ti voglio tanto bene, amore mio — ele falou, ao soltar-se da esposa — Guarda i bambini fino a quando possiamo incontrarci.

— Anch’io ti voglio bene, tesoro. — ela respondeu, passando suavemente a mão no rosto do marido.

A estação estava apinhada de famílias. Mães se despedindo dos filhos, maridos se despedindo de suas esposas e suas crianças. Desde o ataque à Polônia o governo começou a evacuação de milhares de civis para o interior do país. A iniciativa partira do prefeito de Londres, Herbert Morrison, e fora batizada de Operação Pied Piper. O Flautista. Rose se lembrava de uma história que a mãe lhe contara quando criança, de um bruxo que enfeitiçara todas as crianças de uma cidade e as levara para longe. Pelo visto, os trouxas tinham uma fábula parecida.

Cada criança ali carregava em torno de seu pescoço uma pequena caixa de papelão quadrada contendo uma máscara de gás, e na lapela de seus casacos estava preso um cartão de identificação.

O primeiro ministro bruxo, Spencer-Moon, estava propagando uma campanha semelhante de evacuação, mas alguns feiticeiros ainda não estavam levando tão a sério a ameaça alemã e acreditavam que sua magia era suficiente para protegê-los. Talvez estivessem certos, mas Phineas preferia não se arriscar. Era doloroso, mas mandar as meninas para Weymouth junto com Maria e seus filhos era a melhor opção. Ele colocou Marguerith no chão. A garotinha não conseguia parar de chorar. Betelgeuse, ainda séria e amuada, segurou a mão da irmã. O homem se abaixou até ficar na mesma altura das filhas.

— Tia Maria vai tomar conta de vocês. Vai ser divertido, cidade nova, amigos novos para brincar.

— Você e a mamãe vão com a gente, papai? — Bete perguntou, enquanto Marge enxugava o rosto com as costas das mãos.

Foi Rosette quem respondeu à pergunta da filha, também se abaixando na altura das meninas.

— Hoje vocês vão com a tia Maria, a mamãe vai daqui a uma semana. Lembra que eu ensinei a vocês os dias da semana?

As duas garotinhas anuíram. Até mesmo Marguerith, que parara de chorar.

— Hoje é domingo — ela continuou — Quantos dias faltam para a mamãe ver vocês de novo?

As gêmeas olharam uma para a outra, pensativas, começando a contar nos dedos.

— Sete! — as duas responderam praticamente ao mesmo tempo.

— Isso mesmo. E vai passar rapidinho. Enquanto isso, vão brincar muito com o Frank e a Ginny. — Rose continuou.

Ela abraçou as filhas com força, quase se sentindo fraquejar ao deixá-las partir. Aquilo era tão doloroso para ela quanto era para as meninas. Quando ela se soltou das gêmeas, foi a vez de Phineas se despedir.

— Cuidem bem uma da outra — ele disse, também as abraçando. — Assim que puder, o papai vai visitar vocês.

Maria pegou as meninas pelas mãos depois de se despedir novamente de Pepe e dos amigos. À medida que o trem se afastava e a figura das crianças acenando na janela se tornava uma mancha borrada, Rosette se permitiu chorar, abraçada ao marido.

— Só uma semana, Rose, e você vai rever as meninas... — Phineas tentou consolar a esposa.

— Eu me pergunto quanto tempo vai demorar até podermos voltar de vez para casa. — ela disse.

*******


Fazia dois dias que as filhas haviam partido para o interior, mas para Rosette parecia uma eternidade, por mais cliché que aquilo pudesse soar. A casa parecia vazia de vida. Ela sentia como se estivesse presa dentro de um vira-tempo, os dias e as noites mais longos que o usual.

Naquele dia em questão, ela saíra de casa para comprar algumas coisas de que precisava para a viagem que se aproximava. O racionamento já estava praticamente às portas deles, mas ainda assim ela conseguiu uma quantidade razoável de mantimentos. A vantagem de ser bruxa permitia que ela reduzisse tudo a tamanhos minúsculos, mais fáceis de transportar. Ela adoraria comprar aquelas bolsas de fundo expandido, contudo estavam em falta no mercado.

Apenas quando saiu da loja foi que Rose percebeu que já havia anoitecido. A cidade estava completamente tomada pela escuridão. Desde primeiro de setembro ambos os governos, bruxo e trouxa, haviam instaurado um blackout obrigatório para dificultar os ataques aéreos que certamente viriam dos alemães. Para os bruxos era fácil impedir que a luz no interior das casas fosse vista do lado de fora, bastava escolher o feitiço certo. Para os trouxas era mais difícil, tinham que se contentar com cortinas pesadas, papelão ou tinta para evitar a fuga de quaisquer resquícios luminosos através das portas e janelas.

Rose levantou o rosto, observando o céu. Não se lembrava de ter visto tantas estrelas tão nítidas desde quando era criança. Era quase um alento tamanha beleza vinda daquele pesadelo em que estavam entrando.

Ela saiu de seus devaneios, pensando consigo que deveria se apressar para chegar em casa. Acidentes de carro, pessoas colidindo umas nas outras, furtos e outros crimes já haviam acontecido durante o blackout. Quanto mais cedo chegasse à segurança do seu lar, melhor.

Rosette apressou os passos, procurando um beco para que pudesse aparatar. Apesar da escuridão, preferia ser discreta.

Achou o lugar ideal, mas, antes que pudesse aparatar, uma figura masculina com o rosto escondido por um capuz surgiu na sua frente. Usava uma roupa preta que praticamente fazia com que ele se mesclasse à escuridão. Rose soltou um grito involuntário, mas, apesar do susto, sua mente estava alerta suficiente para que tomasse a decisão de fugir dali. Contudo, ela não foi rápida bastante: uma voz feminina se fez ouvir às suas costas.

Everte statum!

Rosette foi arremessada com força contra uma das paredes do beco. Sentiu uma dor forte no ombro, provavelmente o havia deslocado. Ela caiu pesadamente no chão. Estava apavorada, não sabia porque estava sendo atacada. Esperava que fosse apenas um assalto, que pegassem o que quisessem e a deixassem em paz.

Ela escutou os passos dos dois se aproximando. Dessa vez, foi o homem que se pronunciou.

— Crucius — ele falou, com uma voz grave e sem sentimentos.

Rose gritou, sentindo lágrimas escorrendo por seu rosto. A dor era insuportável, parecia que todos os nervos do seu corpo haviam sido retorcidos.

A mulher que a atacara se aproximou, segurando Rosette pela gola da blusa. A dor, as lágrimas e a escuridão não permitiram que ela conseguisse ver direito o rosto de sua atacante. Ela sentiu o cuspe da encapuzada atingir seu rosto.

— Acho que a Sra. Black deve estar se perguntando o porquê de tudo isso. — o homem falou — É tudo pelo bem maior. Algo que parece que seu marido ainda não percebeu.

Rose engoliu seco, as lágrimas continuavam a descer mornas por suas faces, não conseguia controlá-las. O medo do que viria a seguir a paralisava. Talvez aqueles fossem os últimos minutos de sua vida.

— Nós não vamos matá-la, Sra. Black.— o homem continuou, como se lesse o pensamento da mulher, enquanto sua companheira dava risadinhas baixas e sarcásticas — Pelo menos não por enquanto. Vocês são puro sangue, nós respeitamos isso. Mas estamos deixando alguns recados hoje: você e um dos sangue-ruins que trabalham para o seu marido.

O homem fez uma ligeira pausa antes de continuar, apreciando o espasmo de terror que percorreu o corpo de sua vítima.

— Fale para Phineas Black que ele deve parar de enaltecer os sangues ruins e mestiços, e parar de propagar mentiras sobre o grande Grindelwald, ou vamos destruir tudo o que ele ama. Começando por você e suas filhas. Nós sabemos que elas estão em Weymouth com a esposa daquele italiano de merda.

— Não! — Rose finalmente deixou que a voz saísse raspando pela garganta.

A mulher que a segurava riu mais alto, finalmente a soltando, de qualquer jeito, no chão.

— Nosso aviso está dado — o homem disse.

Em seguida, ele e a mulher falaram juntos, antes de partir:

— Por um bem maior.

Rosette permaneceu por ainda alguns minutos deitada no chão sujo do beco, encolhida, o pranto reverberando por todo o corpo. Quando finalmente se acalmou, levantou-se com dificuldade. As pernas ainda estavam bambas. Respirou fundo, pegou a bolsa e, com um mínimo de concentração que conseguiu juntar, aparatou.

Pouco tempo depois estava diante do jornal do marido. O ombro ainda doendo. Ela caminhou, cambaleante. Apesar da escuridão ela podia perceber que havia um aglomerado de pessoas na entrada.

Quando se aproximou, ela o viu. Nada a preparara para aquilo. O corpo de Pepe estava jogado na porta do jornal, quase irreconhecível. Ele havia sido linchado e torturado. Seu nariz era uma massa de sangue, seus olhos estavam inchados, os braços e as pernas estavam em um ângulo estranho, pareciam quebrados. No pescoço ele trazia uma placa que Rose só conseguiu ler porque alguém aproximou dela um lumus minima. Dizia em letras vermelhas: Morte aos sangue-ruins.

Ela permaneceu estática, observando Pepe, até que sentiu as mãos do marido a segurarem pelos ombros. Fez uma ligeira careta que passou despercebida por Phineas, que parecia ligeiramente perturbado.

— Você não deveria ter visto isso. Vamos para dentro — ele a puxou delicadamente pela mão.

Apenas quando entraram no ambiente iluminado do jornal foi que Black percebeu o estado lastimável da esposa. As roupas, seu rosto e suas mãos estavam sujos. Havia arranhões da testa, nos braços e nas pernas, bem nos lugares em que a meia calça desfiara. A boca de Rosette estava um pouco inchada, possivelmente a machucara na queda.

— Rose... O que aconteceu? — Phineas perguntou, horrorizado.

Ela abriu e fechou a boca algumas vezes, mas não conseguia falar absolutamente nada, tamanho era seu estado de choque. Gastara todas as suas forças para chegar ao jornal. Rosette começou a chorar copiosamente, deixando que as lágrimas lavassem todo terror, humilhação e ultraje a que fora submetida.

Phineas se sentiu impotente, não sabia o que havia acontecido, tampouco o que poderia fazer para consolar a esposa. Parecia que naquela noite haviam aberto os portões do inferno e lançado seus demônios em cima deles. Primeiro Pepe, agora Rosette.

Ele guiou a esposa até seu escritório; o jornal todo estava cheio de Aurores, mas Ravi estava conversando com eles. Já haviam interrogado Phineas sobre o ocorrido daquela noite, portanto ele poderia focar sua atenção em Rose.

Ela sentou-se, completamente apática, na cadeira que o marido ofereceu. As lágrimas começaram a se tornar parcas. O jornalista pegou a jarra de água que estava na mesinha de canto, encheu um copo e estendeu para a mulher. Ele percebeu que ela pegara o copo com a mão esquerda. Aquilo era estranho, Rose era destra.

Ela sorveu o líquido com avidez, embora sua mão estivesse trêmula.

— Pepe? — ela perguntou, minimamente recomposta.

Apesar de estar ansioso sobre o ocorrido com a esposa, o jornalista compreendia que ela também estava preocupada e temerosa. Quanto mais rápido sanasse as dúvidas dela, mais rápido também teria as suas respostas.

— Ele está morto — Phineas sentiu uma dor profunda ao dizer aquilo. Pietro era um bom amigo, não merecia um fim tão terrível quanto aquele. — Ele não apareceu para trabalhar, ficamos preocupados, Ravi foi à casa dele e não o encontrou; mas, como não tinha 24 horas que ele havia sumido, não podíamos acionar os Aurores.

O jornalista fez uma mínima pausa antes de continuar. Tudo o que diria a seguir parecia tão irreal.

— Depois que as luzes se apagaram eles vieram, em vassouras; devem ter usado magia para se guiar. E soltaram o Pepe lá de cima, como se ele não fosse nada. Marshall, nosso segurança, acho que você só o viu uma vez, estava lá fora. Ele tentou atacá-los, mas eles foram mais rápidos e fugiram.

Phineas abaixou o rosto, esfregando os olhos. As lágrimas teimavam em sair. Ele respirou fundo, não queria desmoronar na frente de Rosette, especialmente pelo modo como ela estava.

Ela escutou tudo em completo estado de estupor, se sentia completamente fragmentada, sua mente não apreendeu totalmente o que o marido lhe relatara. Contudo, era evidente para ela que ele estava sofrendo.

— Phin... — Rose começou, ainda se sentindo desconectada da realidade. Sabia apenas que precisava falar. Contar tudo. — Eles me atacaram também. Um homem e uma mulher. Me arremessaram contra uma parede, me cruciaram, ameaçaram as meninas.

O homem virou de costas, dando um soco na mesa, incapaz de conter a raiva. Ele tremia de ódio e indignação. Trincou os dentes. Passou as mãos por entre os cabelos, tentando se conter. Precisava se concentrar, Rose precisava dele.

Ele se aproximou da esposa, ajoelhando-se e segurando as mãos dela entre as suas. Ela gemeu baixinho.

— O que foi? — Phineas perguntou, apreensivo.

— Meu ombro está doendo — ela respondeu, quase inexpressiva.

Phineas assentiu, passando carinhosamente a mão no rosto dela.

— Eu vou providenciar uma poção para isso. Os Aurores vão querer falar com você e a gente deve precisar ir ao St. Mungus, também.

Ele levantou-se, dando um beijo na testa de Rosette.

— Eu vou cuidar de tudo, não se preocupe.

Quando Phineas cerrou a porta atrás de si, Rose permaneceu estática, observando um ponto indefinido. Ela só desejava que aquele pesadelo acabasse logo.

*******


Apesar do estado de exaustão, Phineas Black não conseguiu pregar os olhos. Um misto de sentimentos se revirava em seu peito, embora ódio e tristeza se sobressaíssem. Rosette dormia pesadamente. Depois de colocar o ombro dela no lugar, o medibruxo que a tratou decidiu sedá-la. O jornalista se perguntava o quanto aquilo tudo realmente a afetara.

Ele levantou-se, calçando os chinelos de flanela. Dirigiu-se até o guarda-roupa, separando o terno e os sapatos mecanicamente. Havia tanto que fazer. Recepcionar Maria, esperar a liberação do corpo de Pepe, providenciar os preparativos para o funeral.

Não tinha ânimo nem fome, mas deixaria o café da manhã de Rosette preparado, embora duvidasse que ela acordasse tão cedo.

Seu consolo era que um Auror fora designado para vigiar a casa, assim como outro ficaria com as crianças no interior enquanto Maria voltava para Londres.

Depois de deixar tudo organizado, o café da manhã ao lado da cama com um bilhete para Rosette, Phineas saiu de casa pensando que faria tudo dentro do possível e impossível para levar justiça àquelas criaturas hediondas que destruíram parte importante de suas vidas.

*******


Ela fitava o dossel, apática. Rosette não tinha forças para se levantar. Tentou comer um pouco logo que acordou, contudo, mal conseguiu mastigar dois pedaços. Sua mente remoía as imagens da noite anterior. O ataque. O homem de preto e sua acompanhante. Pepe. Seu estômago revolvia com as lembranças.

Ela escutou a campainha da casa tocando. Contrariando seus desejos, a realidade a chamava. Rosette reuniu a coragem que parecia lhe faltar. Levantou-se, vestindo um robe de chambre. Praticamente se arrastou até a porta de entrada da casa.

Observou através do olho mágico que mandara instalar na porta de casa logo após ter encontrado as cartas de ameaças no dia do aniversário de Phineas. Reconheceu o homem como um dos Aurores da noite anterior, ao lado dele estava Maria.

Ela abriu a porta rapidamente. As duas mulheres se fitaram sem dizer absolutamente nada. O rosto de Maria expressava todo seu sofrimento. Os olhos inchados e vermelhos, as profundas olheiras sob eles.

Rosette puxou a amiga para junto de si, abraçando-a. Conhecia Maria fazia um bom par de anos, a amizade dos maridos estendera também a elas.

O Auror percebeu que as duas precisavam de um momento de privacidade.

— Se precisarem, basta me chamar. Vou voltar para o posto de vigilância. Não se preocupem com nada. Inclusive o senhor Black já me providenciou suprimentos. Ele também está providenciando a liberação do Sr. Mateotti.

Rose assentiu, ainda abraçada a Maria. A inglesa levou a outra até a saleta. As duas se sentaram no sofá. A italiana desmoronou por completo, deitou a cabeça no colo da amiga e deixou-se envolver pelo pranto, enquanto Rosette lhe afagava os cabelos, tentando passar algum conforto. As duas não conseguiram precisar quanto tempo ficaram ali. Quando as lágrimas de Maria cessaram, Rose se levantou, ajeitando algumas almofadas sob a cabeça dela.

— Vou preparar uma sopa de ervilhas e presunto para nós.

A outra mulher mal se mexeu, apenas se encolheu em si mesma. Rose sentia-se muito mal, mas Maria estava muito pior; por isso ela tentava sair do próprio estupor para ajudá-la.

Não demorou muito para que a sopa ficasse pronta. Maria se deixou guiar mais uma vez. Ela fitou o prato em que Rosette despejara a comida. Embora se sentisse vazia, sabia que não podia definhar. Os filhos dependiam dela.

Ela sorveu uma generosa porção de sopa. O líquido quente lhe deu um pouco mais de energia. Maria se sentia não apenas triste, mas também com raiva. Um ódio imensurável.

— Se Pepe tivesse me ouvido. — ela se pronunciou pela primeira vez, desde que chegara à casa dos Black. — Se tivéssemos ido para a casa dos meus primos no Brasil! Mas ele queria ficar na Europa, queria continuar lutando do jeito dele. Mesmo fora da Itália, um partigiano até o fim.

Rosette pousou a mão por cima da amiga. Maria continuou fitando o prato.

— Não deixe Phineas cometer o mesmo erro, Rose — a italiana prosseguiu, deixando escapar um soluço. — Saiam do país. O sacrifício é muito grande.

A inglesa conseguia perceber a dor impressa em cada uma das palavras ditas pela amiga. Não desejava passar pelo mesmo que ela ou reviver uma experiência como a que lhe proporcionaram. Não poderia permitir que as filhas passassem por aquele tipo de sofrimento.

Mas, quem poderia ajudá-la a convencer Phineas a abandonar tudo? Duvidava que tivesse algum auxílio por parte de Willie e Ravi, que tinham posições muito próximas da adotada pelo marido. Se Aribeth estivesse no país, com seu bom senso e sua racionalidade, ela poderia ser uma boa aliada. Contudo, ela estava na França com Corbin, sem previsão de retorno.

Talvez houvesse uma pessoa, embora a possibilidade de auxiliá-los fosse mínima. Ela iria atrás de Sirius Black.

*******


Tradução do italiano:
— Ti voglio tanto bene, amore mio. Guarda i bambini fino a quando possiamo incontrarci.: Eu te amo muito meu amor cuide bem das crianças até podermos nos encontrar.
— Anch’io ti voglio bene, tesoro: Também te amo, carinho.



Phineas levou Maria para resolver algumas pendências. Em poucos dias a italiana estaria embarcando com os filhos para o Brasil, como sempre desejou. Rosette viu a circunstância como uma oportunidade para pôr em prática aquilo a que se propusera. O Auror ainda protegia a casa, por essa razão optou por aparatar de dentro do seu quarto para alguns quarteirões de distância do lugar que pretendia visitar.

Rosette se sentia culpada por ter saído sem avisar a ninguém; contudo, considerando com quem iria lidar, preferia manter sigilo. Phineas não concordaria e tudo poderia dar em nada.

Ela parou diante do imponente casarão que se destacava no meio daquela vizinhança tipicamente trouxa. Considerando o posicionamento de grande parte da família de seu marido, era irônico e paradoxal que tivessem se estabelecido ali, Grimmauld Place, número 12. Diziam, obviamente pelas costas dos Black, que tudo se devia ao fato de um de seus ancestrais ter convencido um trouxa a passar-lhe o imóvel, fosse por ameaças, fosse através do Imperius, mesmo sendo uma maldição proibida. Fosse qual fosse a verdade, o fato era que aquele era o lar do patriarca da família durante muitos e muitos anos, geralmente herdada pelo primogênito do ramo principal dos Black.

Outrora foi ocupada pelo pai de seu marido, de quem ele herdou o nome, o antigo diretor de Hogwarts, Phineas Nigellus, que falecera alguns anos antes que Rose se casasse. Agora o chefe de toda a família era Sirius Black, o segundo a usar aquele nome em tempos recentes. Ele herdara a alcunha do falecido tio, que nem chegou a frequentar Hogwarts, partindo desse mundo ainda criança. Por tudo o que já ouvira falar do cunhado, sabia que as chances eram ínfimas de que ele a ajudasse, mas talvez o coração dele amolecesse por causa das sobrinhas.

Ela bateu na porta algumas vezes com a pesada aldrava, o estômago embrulhando de ansiedade. Uma figura de olhos esbugalhados a atendeu. Fazia anos que Rosette não via um elfo, provavelmente desde que saíra de Hogwarts, apesar de saber que o irmão de Aribeth mantinha alguns em casa.

— Eu tenho um horário marcado com o Sr. Black — ela disse, com a voz meio tremida.

A pequena criatura curvou-se, subserviente, em cumprimento.

— Pode me acompanhar, senhora.

Rosette seguiu o elfo em silêncio, observando os corredores suntuosos da mansão, com suas pesadas cortinas de veludo, suas tapeçarias e quadros. Parecia um lugar imponente e frio, talvez um pouco triste para uma criança crescer.

O elfo a deixou em uma saleta de visitas, com um piano de cauda, um barzinho e alguns livros, além de poltronas de veludo verde e uma mesinha de centro.

Ela sentou-se na poltrona de dois lugares, ansiosa. O elfo aparatou sem se despedir, para voltar pouco tempo depois com xícaras, biscoitos e um bule de chá. Apesar do cheiro delicioso que emanava daquilo tudo, ela não ousou tocá-los.

Novamente o elfo partiu, deixando Rosette completamente sozinha. Ela esperou por minutos que pareceram se estender indefinidamente.

Ela escutou passos pesados se aproximando. Rose levantou-se de imediato, nervosa. Respirou fundo, tentando se recompor. A porta se abriu, revelando a figura imponente de Sirius Black. Ele era um homem alto, de ombros largos, queixo quadrado, fartos cabelos grisalhos, que não aparentava ter mais que cinquenta anos embora já houvesse passado dos sessenta. Seus profundos olhos azuis recaíram sobre Rosette, avaliando a mulher. Ela não conseguiu sustentar o olhar, desviando o rosto. Ele deu um meio sorriso enigmático antes de se aproximar da cunhada.

— É um prazer finalmente conhecê-la, Rosette. — ele disse, com uma voz grave, estendendo a mão — Se importa de eu chamá-la assim? Para mim, senhora Black sempre será minha mãe.

Ela assentiu, dando a mão ao cunhado, que postou um suave beijo nela.

— O prazer é meu — ela respondeu.

Sirius indicou o sofá para que Rosette se sentasse novamente.

— Aceita uma xícara de chá? — ele perguntou, ao que Rose anuiu minimamente — Com açúcar?

— Sim, por favor.

Sirius entregou a xícara à mulher antes de se dirigir para o barzinho, servindo para si uma generosa dose de Bafo de Dragão, apesar de ser ainda muito cedo para aquele tipo de bebida. Ele sentou-se na poltrona, cruzando as pernas. Balançou suavemente o copo com a bebida ambarina e encorpada antes de sorver um generoso gole.

— Faz o quê? Dez anos que você e meu irmão se casaram? — ele perguntou, com afetada indiferença. — Ao que devo o prazer de finalmente conhecê-la pessoalmente?

Rose colocou a xícara em cima da mesa, pegando a bolsa; depois de vasculhar um pouco, estendeu para o cunhado um porta-retratos. Sirius pegou o objeto, era uma foto colorida. Embora a tecnologia já existisse há algum tempo, elas não eram tão comuns. Duas garotinhas acenavam sorridentes, praticamente idênticas, não fosse os cabelos encaracolados de uma e os lisos da outra, além da diferença dos olhos. Verdes e azuis.

— São suas sobrinhas. Betelgeuse Sandrine e Cassiopeia Marguerith. — Rose falou, observando a reação de Sirius. Contudo, o rosto dele continuava impassível e duro como um bloco de granito.

— Eu sei quem elas são — o homem devolveu a foto, indiferente — Na verdade, sei muitas coisas sobre vocês. Sei que seu sobrenome de solteira é Blishwick, o que te faz também uma parenta distante da minha família. Sei o que meu irmão escreve naquele jornaleco e quem trabalha para ele. E sei também o que a fez vir me procurar, Rosette. Você está com medo pelo ataque que sofreram. Quer ajuda.

A mulher não escondeu o espanto, fazendo com que um sorriso cínico se insinuasse nos lábios de Black.

— E você vai ajudar? — ela balbuciou.

— O que você quer exatamente de mim, Rosette? — ele perguntou, sorvendo mais um gole de Bafo de Dragão.

Ela abaixou os olhos, tentando criar coragem, embora, pelo desenrolar da conversa, acreditasse que a resposta seria negativa.

— Eu preciso que convença Phin a desistir do jornal, a sair do país para proteger nossas meninas. Imaginei que se a família o aceitasse de volta, talvez ele pudesse cogitar essa hipótese.

Dessa vez foi Black quem não escondeu a surpresa, soltando uma sonora gargalhada que ecoou pelo aposento. Rosette permaneceu quieta e atônita diante da explosão do cunhado. Depois de ser recompor, Sirius voltou sua atenção para a mulher.

— Rosette, Rosette — ele começou, com a voz afável — você é muito inocente, não é mesmo? Realmente acha que eu ainda nutro qualquer sentimento fraternal por Phineas? Eu odeio meu irmão. Ele traiu a família. Ele herdou o nome do nosso pai e o jogou na lama. Eu quero que ele sofra como nosso pai sofreu diante de tamanho ultraje.

— Ao custo da vida das suas sobrinhas? Elas são apenas crianças, não pediram para ficar na mira de fanáticos! — Rose vociferou, se perguntando se existia algum mínimo traço de decência naquele homem.

Sirius levantou-se da poltrona. Rosette imaginou que ele iria se servir de mais uma dose de bebida, contudo ele se sentou ao lado da cunhada.

— Talvez haja uma forma de nós dois conseguirmos o que queremos, Rosette. Proteção para suas filhas e sofrimento para o meu irmão.

Sirius aproximou se do ouvido da cunhada enquanto colocava uma das mãos sobre a coxa dela. Ele sentiu o corpo dela se tensionar ante o toque, mas preferiu ignorar.

— Você é uma mulher bonita, poderia me conceder alguns favores e em troca recebo você e as meninas novamente no seio da família. Ninguém mais poderia ameaçá-las devido à minha posição na sociedade.

Rosette levantou-se, sobressaltada, a tez bastante vermelha, um misto de constrangimento e indignação.

— Eu sou uma mulher casada! Eu amo meu marido! E o senhor é um homem casado também!

— Hesper não se importa. — ele respondeu, com desdém — E por mais que ame Phineas, imagino que se importa mais com minhas sobrinhas.

— A resposta é não! — ela disse, se dirigindo para a porta.

Sirius riu mais uma vez.

— Melhor conter seu rompante, Rosette. A casa é grande, vai acabar perdida. Deixe-me pelo menos chamar um elfo para acompanhá-la.

Percebendo que Black estava certo, ela cruzou os braços, mantendo o cenho fechado, enquanto ele tocava uma sineta. Em poucos segundos o elfo que a recepcionara apareceu, pronto para levá-la até a saída.

— A proposta ainda está de pé, caso mude de ideia. — Sirius lançou a ela um último sorriso.

— Vá para o inferno. — Rosette falou, antes de sair.

*******


O dia estava claro e sem nuvens, parecia uma boa ideia deixar que as meninas brincassem um pouco no quintal. Estavam naquela cabana, longe de Londres, longe de todas as guerras. Fossem dos trouxas, fossem dos bruxos. Ninguém poderia encontrá-las.

Rosette suspirou, aliviada, enquanto se preparava para tirar a torta do forno. Não fosse pela ausência de Phineas, ela poderia até mesmo acreditar que estava no paraíso. Era quase tudo perfeito.

Ela começou a ajeitar a mesa para o desjejum das filhas, cantarolando baixinho. A melodia foi interrompida por um grito estridente. Sem raciocinar, agindo apenas pelo impulso, ela pegou a varinha em cima da mesa e correu porta afora.

Havia duas pessoas, desta vez dois homens, embora um deles fosse quase um menino. Ela nunca os tinha visto. Cada um deles segurava uma das gêmeas no colo, segurando uma adaga de chifre de arpéu na altura do pescoço das meninas.

— Nós avisamos, senhora Black, que viríamos atrás de vocês. — o mais velho se pronunciou.

Rose mantinha a varinha apontada para os atacantes, ora direcionando para um, ora direcionando para o outro. Sua mão tremia. Ela não ousava lançar um feitiço, temendo ferir as filhas.

— Você pode escolher qual das duas matamos primeiro. Ou podemos matar as duas ao mesmo tempo. — ele acenou para o mais jovem.

— Não, por favor não! — Rosette gritou, mas era tarde demais.

Os bruxos das trevas soltaram os corpos inertes das garotinhas no gramado, o sangue saindo em profusão. Rose deixou se cair de joelhos no chão, enquanto os dois homens lhe apontavam as varinhas, o brilho verde saía das pontas, ameaçadoramente.

Antes que seu fim chegasse, ela escutou a voz de Phineas a chamando. Ela abriu os olhos percebendo que estava na penumbra do próprio quarto. O marido a aninhava protetoramente nos braços.

— Está tudo bem, amor, foi só um pesadelo.

Rose percebeu que ainda chorava. Parecia tudo tão terrivelmente real.

— Eles atacaram as meninas... — ela murmurou, entre soluços.

Phineas acariciou de leve os cabelos da esposa, deixando que ela se acalmasse.

— Phin... vamos embora, pegamos as meninas e deixamos tudo para trás. Podemos ir para os Estados Unidos ou encontrarmos Maria e as crianças no Brasil.

O jornalista suspirou profundamente. Ele mesmo já havia cogitado aquelas possibilidades e as refutado. Não era alguém de fugir à luta. O jornal, seus textos, eram seu modo de enfrentar Grindelwald e seus asseclas. A morte de Pepe também seria em vão se abandonasse tudo.

— Meu amor — ele disse com suavidade — é duro dizer isso, mas não temos para onde fugir se Grindelwald alcançar seus propósitos. Ele esteve na América alguns anos atrás, você sabe disso. Se ele triunfar nem a MACUSA será capaz de impedi-lo de voltar. Por isso preciso ficar.

Rose sempre soube que aquela seria a resposta do marido. Começava a perceber que nem ela, nem Aribeth, nem mesmo o cunhado seriam capazes de fazer Phineas mudar de ideia.

— Eu tenho alguns amigos em Gales que se comprometeram em recebê-las. Vocês vão para um lugar onde ninguém será capaz de encontrá-las.

— Eu espero que esteja certo, Phin. — Rose respondeu, ainda que ligeiramente descrente.



As colinas da Inglaterra foram aos poucos sendo substituídas pelas montanhas de Gales. Rose observava tudo, sentindo-se absurdamente exausta. Naquele instante Maria deveria estar no meio do Atlântico juntamente com Francesco e Giovanna, enquanto ela e as filhas partiam para seu próprio exílio, embora não tão longe quanto ela desejara. As investigações continuavam, mas a vigilância dos Aurores sobre sua família havia sido dispensada. Estavam por conta própria. Tudo o que ela tinha era a palavra do marido de que ele providenciara um lugar seguro, incapaz de ser localizado por aqueles que os perseguiam.

— Mamãe. — a voz de Betelgeuse a fez sair dos seus devaneios.

Enquanto Marguerith dormia pesadamente, a mais velha das gêmeas estava inquieta. Seus olhos anis pousavam de forma inquiridora sobre a mãe.

— É verdade que o tio Pepe foi morar com os anjos? Foi a Ginny que falou.

— É verdade, sim, meu amor. — Rose tentou ser sincera, sem entrar em detalhes que ainda a perturbavam.

— Por isso ela e o Frank choravam o tempo todo. — a garotinha concluiu.

A mulher afagou o cabelo da filha. Se havia algo que efetivamente ainda lhe dava forças para continuar eram as suas meninas.

— Você demorou muito para voltar, mamãe. Eu contei todos os meus dedos e a Marge também e você não chegava. — Bete cobrou, sem esconder a indignação.

Rosette sorriu, abraçando a filha.

— Mas agora eu estou aqui, e nada vai nos separar.

*******


A pequena cidade para onde Phineas as havia mandado parecia ter parado completamente no tempo. Não havia eletricidade ou carros. Tudo era iluminado com velas e lamparinas. Ovelhas passeavam despreocupadas nas ruas, guiadas por pastores. O meio de transporte principal eram as carroças. Contudo, Rosette se sentia em casa, tendo sido bem acolhida por Brenda Conway e seu filho Gwyn, um adolescente de quase dezenove anos.

A senhora era considerada por todos como a parteira e curandeira oficial do lugar, embora para os trouxas locais tudo fosse por causa de um conhecimento apurado em ervas e práticas antigas. Ninguém sabia que, na verdade, ela era uma bruxa.

Brenda Conway havia se formado em Hogwarts alguns anos atrás e se casado com o namorado dos tempos de escola. Estava estudando para ser medibruxa quando engravidou. Tudo parecia perfeito até o dia que descobriram que Gwyn era um aborto. O garoto nascera sem um pingo de magia. Abandonada pelo marido, ela preferiu se refugiar no interior do seu país de origem, onde o filho poderia crescer sem sofrer nenhum preconceito.

A história pregressa da mulher, sua simpatia e fibra fizeram com que Rose se identificasse com ela quase imediatamente.

O casebre que dividiam não era muito grande. Possuía dois quartos. Um era ocupado por Brenda, outro por Rosette e as filhas. Mesmo com os protestos da inglesa, Gwyn passou a dormir no sótão da casa para dar mais privacidade às visitantes. Além dos quartos, havia apenas mais uma sala e a cozinha. Os banheiros ficavam nos terrenos externos.

Naquele momento, as duas mulheres estavam sentadas na cozinha do casebre, ocupadas em seus afazeres. Brenda preparava o almoço em um fogão de lenha, mexendo uma deliciosa mistura de legumes e carne de cordeiro em um caldeirão. Rosette cosia algumas roupas enquanto observava as filhas tentarem ajudar Gwyn a cuidar da horta no quintal.

Rose observava o rapaz pacientemente segurar um regador pesado, ajudando Marge a entornar água em algumas plantas enquanto Bete escavava a terra com uma pequena pá. Gwyn era muito parecido com a mãe, não apenas pelos olhos e cabelos castanhos claros e o rosto sardento que compartilhavam, mas porque também tinha um imenso coração.

Fazia mais de um mês que moravam ali, mas para a morena era como se conhecessem aquela família por uma vida inteira.

— Rose — Brenda a chamou, sem desviar os olhos do conteúdo que borbulhava no caldeirão. — Será que poderia ir à feira com o Gwyn hoje à tarde? Amelia Jones está muito perto de dar à luz, preciso visitá-la.

— Tudo bem, vai ser um prazer. — Rosette respondeu, se ocupando novamente das roupas.

O sol da tarde não estava muito quente enquanto a mulher seguia de mãos dadas com as filhas em direção ao centro da vila. Gwyn vinha atrás com um carrinho de mão para transportar as compras da semana. Para todos os efeitos, Rose era prima de Brenda.

A feira acontecia uma vez por semana, aos sábados à tarde, e se estendia até altas horas da noite. Era ponto não apenas de troca de mercadorias, mas também de confraternização. Rosette cumprimentava a todos já com bastante familiaridade. As gêmeas soltaram suas mãos, correndo em direção às outras crianças da vila com quem costumavam brincar naquelas ocasiões.

A inglesa sorriu, pensando consigo que Phineas acertara em enviá-las para ali. Estavam finalmente seguras. Ela começou a separar os itens da lista de compras enquanto Gwyn os empilhava no carrinho. Os dois se ocuparam desse afazer por um bom tempo, e ocasionalmente Rose olhava na direção das meninas.

Ela se pôs a escolher algumas peças de carne de cordeiro quando sentiu a mão de Marguerith puxando a manga de seu vestido. Rosette abaixou o rosto, observando a menina. Ela trazia na mão uma generosa fatia de bara brith, com uma visível mordida. A menina mastigava o pão doce com gosto.

— Marge, mamãe não te disse para não aceitar comida de estranhos?

— Mas ela não é estranha, mamãe. Ela disse que conhece o papai — a menina respondeu, apontando para uma moça loira e de cabelos encaracolados que acenava para elas.

Rose estreitou os olhos, não se lembrava de conhecer aquela mulher.

— Ela pediu para te entregar isso — Marge chamou novamente a atenção da mãe, lhe estendendo um pedaço de pergaminho.

A inglesa abriu o papel e suas mãos começaram a tremer ao ler o conteúdo: “Nós avisamos, Sra. Black”. Rosette levantou o rosto procurando novamente a loira, contudo ela havia desaparecido, provavelmente em um passe de mágica.

— Mamãe... — Marge balbuciou.

A morena abaixou o rosto e a visão que teve a aterrorizou. A filha estava completamente pálida e suava frio, estava prestes a desmaiar quando Rosette a amparou.

— Gwyn... Gwyn... — ela virou-se para o rapaz, desesperada — chame a sua mãe, rápido.

*******


O rapaz colocou a garotinha desfalecida em cima da cama. Rosette segurava Betelgeuse no colo; a menina não escondia o medo diante do estado da irmã, mas evitava chorar. Brenda sentou-se ao lado de Marguerith. Examinou seus olhos, não havia reação. Colocou o ouvido no peito dela, as batidas do coração estavam fracas, a respiração errática. Era óbvio que a menina havia sido envenenada. Se não agisse rápido, ela morreria.

— Gwyn, eu sei que o senhor Jones não veria com bons olhos você dormir na mesma casa que a filha dele antes de se casarem, mas preciso que peça abrigo para ele esta noite. Leve Rose e Bete com você.

— Não, eu não vou deixar a Marge — a mulher retorquiu.

Brenda conseguia compreender toda dor de Rosette; se fosse com Gwyn, ela não sairia do lado dele nem por um momento. Ela assentiu, ao que tanto o filho quanto Rose compreenderam que ela havia concordado que a inglesa permanecesse. O rapaz pegou Bete no colo, ela não protestou. Os adultos estavam sérios demais.

Depois que o rapaz saiu com a garotinha, Brenda virou-se para Rose com sobriedade.

— Eu tenho uma poção de cura, para expurgar qualquer que seja o veneno que tenham ministrado. Mas não é algo que eu gostaria que você presenciasse.

Rosette observou a filha desacordada, para depois se voltar para a curandeira.

— Ela vai sofrer?

Brenda balançou a cabeça em negativa.

— Não, mas é muito doloroso para quem assiste. Ela vai arder em febre para depois se esfriar a ponto de parecer morta. Depois desse ponto, temos que esperar para termos certeza de que o antídoto funcionou.

— Eu entendo... mas quero ficar.

A curandeira assentiu, enquanto se dirigia para a cozinha para preparar o antídoto. Rose deitou-se na cama, abraçando a filha.

As horas se arrastaram dolorosamente para a mulher, mas em momento algum Rosette se afastou de Marge, nem quando o corpo da menina se tornou lívido e gelado, e ela mal segurou o soluço. Quando os primeiros raios de sol beijaram o rosto da mulher com seu calor morno, ela percebeu que o tormento findara. A tez da filha estava rosada, e ela respirava com suavidade.

Brenda, que velara todo o processo em uma poltrona próxima das duas, se levantou, pousando a mão no ombro de Rosette. A morena virou-se, sob seus olhos esmeraldas havia profundas olheiras.

— O pior já passou — a senhora disse, dando um sorriso singelo. — Vou preparar algo para o desjejum.

— Obrigada. Por tudo. — Rose disse, com os olhos marejados — Depois que comermos, pode ficar um pouco com Marge? Preciso enviar uma coruja.

Brenda concordou, imaginando que Rosette desejasse contar ao marido tudo o que aconteceu nas últimas horas. Contudo, não foi Phineas Black quem recebeu em Londres a ave parda com um pergaminho atado em uma das patas.

O homem abriu o papel observando, satisfeito, seu conteúdo:

“Eu aceito seus termos se puder nos garantir proteção.

Att, Rosette Black”

Sirius sorriu maliciosamente. Ele sempre soube que era apenas uma questão de tempo até que a cunhada lhe procurasse novamente.



A carruagem negra puxada por trestálios parou com suavidade na porta do número 12 de Grimmauld Place. O blackout encobriu a chegada do transporte mágico sem a necessidade de um feitiço desilusório. Muitos bruxos estavam aproveitando a imposição do governo trouxa para se locomoverem livremente com seus artefatos. Não demoraria muito para que o ministério bruxo precisasse intervir nesse novo hábito.

Sirius Black havia mandado buscar Rosette e as meninas na casa de Brenda Conway, uma vez que não havia meios de transporte mágicos na vila onde elas haviam se refugiado e ele se recusava a deixar que elas voltassem para Londres por vias trouxas.

As gêmeas estavam maravilhadas com o passeio. Embora elas tivessem nascido em uma família composta apenas por feiticeiros, a vida deles era modesta e não tinham o hábito de utilizar carruagens ou outras regalias da alta sociedade mágica. Tudo era uma empolgante novidade.

Rosette estava feliz por elas não poderem enxergar os cavalos esqueléticos e quase draconianos. Embora não deixassem de ser uma visão fascinante, eram tenebrosos demais para a mente impressionável de duas meninas de cinco anos.

Elas desceram da carruagem. As garotinhas praticamente correram de mãos dadas até a entrada, batendo na porta quase ao mesmo tempo. O elfo doméstico abriu para recepcioná-las, fazendo com que as duas soltassem uma interjeição de espanto. Nunca tinham visto um ser mágico daquela espécie antes, a não ser nos livros de história que o pai costumava ler para elas.

— Boa noite — o pequenino cumprimentou, fazendo uma exagerada reverência — Mestre pediu para outros elfos pegar as malas. Ziggy leva meninas para brincar e senhora para jantar.

Rose apenas assentiu, agradecendo quase em um murmúrio. Ela e as filhas o acompanharam pelos suntuosos corredores. A mulher em completo silêncio, as meninas em uma frenética conversação, se sentindo como pequenas princesas adentrando um castelo repleto de segredos.

Quando pararam na frente do quarto destinado a elas e Ziggy abriu a porta revelando seu interior, nem mesmo Rosette conseguiu conter o espanto diante de um cenário tão magnífico.

Havia bonecas de várias formas e tamanhos, com vestidos de época magnificamente detalhados, como pequenas princesas em miniatura congeladas no tempo. Fazendo companhia a elas, vários bichos de pelúcia, alguns maiores que as meninas. Ursos, unicórnios, dragões, coelhos. Também podiam ser vistos cavalinhos de madeira para se sentar e balançar, casinhas de boneca, trenzinhos mágicos que soltavam fumaças coloridas, soldadinhos de chumbo que marchavam ao redor de bailarinas que rodopiavam elegantemente. Fadinhas de brinquedo voavam pelo lugar. Parecia um cenário tirado de um conto de fantasia.

As meninas não se fizeram de rogadas: correram para os brinquedos, maravilhadas em descobrir aquele pequeno novo mundo cheio de possibilidades.

Percebendo que as filhas estavam demasiadamente entretidas com tudo aquilo e que teriam uma noite agradável depois de todos os infortúnios que haviam passado, Rosette se resignou diante do sacrifício que estava prestes a fazer.

Ela seguiu o elfo em muda conformidade. Ele a levou a uma suntuosa sala de jantar, com uma mesa farta, um lustre iluminado por várias velas cujas chamas refletiam nos cristais, conferindo uma atmosfera aristocrática ao ambiente.

Na ponta da mesa estava Sirius Black. O homem vestia um terno escuro, com uma gravata azul royal se destacando. Ele levantou-se, caminhando até a morena. Seus olhos anis faiscavam em cobiça, avaliando a figura da cunhada. Nada na aparência dela indicava que ela se preparara para ele naquela noite: vestido simples, cabelo preso em um coque, ausência de maquiagem; ainda assim, ele conseguia ver os traços da beleza dela e antever momentos agradáveis por baixo de toda aquela simplicidade. Sirius beijou a mão dela como era de praxe, de acordo com a etiqueta.

— Boa noite, Rosette. — ele disse, lançando a ela um sorriso malicioso.

— Boa noite, Sr. Black. — ela respondeu, de forma contida.

— Você pode me chamar de Sirius, minha querida. Depois de hoje à noite, não vejo razão para tanta formalidade.

Rose anuiu minimamente. Embora aquilo tudo tenha sido uma escolha dela, forçada pelas circunstâncias externas, ela não conseguia se sentir confortável. O homem puxou a cadeira para que ela se sentasse.

— Obrigada, Sirius. — ela respondeu, de forma quase mecânica.

Ele serviu a ela uma dose generosa de vinho tinto de Borgonha, enquanto uma perdiz recheada surgia em seu prato. Rosette sorveu o vinho e experimentou a ave e seus acompanhamentos. Ela não se lembrava da última vez que provara uma comida tão requintada.

— Enquanto estiver comigo vai ter sempre o melhor — o homem disse.

Ela tentou sorrir. Sirius ao menos estava tentando tornar a situação menos desagradável, embora não diminuísse aos olhos de Rosette a imoralidade daquilo que ele lhe propusera.

Durante todo o jantar ele falou... sobre seus negócios... sobre a família... sobre o falecido pai... sobre os filhos. Rose tentou ser educada, respondendo o que lhe era perguntado, enquanto perdia a conta de quantas taças de vinho já havia bebido.

— As meninas gostaram do quarto? — Sirius perguntou — Eu pedi para os elfos desenterrarem do sótão todos os brinquedos que encontrassem. Muitas das bonecas são de Lycoris, mas tem algumas coisas da minha infância. Também pedi para providenciarem um lanche para elas.

— Foi muito gentil da sua parte. — Rose respondeu, com a voz levemente embotada, percebendo que estava ficando bêbada. Talvez aquilo tornasse as coisas menos difíceis.

Sirius sorriu enquanto ele próprio sorvia um gole da bebida, pensando consigo que o estado da cunhada também facilitaria as coisas para ele. Era irônico o quanto aquela situação se assemelhava à primeira noite que compartilhara com Hesper. A esposa também não estava particularmente empolgada com a noite de núpcias e bebera champanhe em demasia. Não se amavam nem chegaram a se amar depois, mas criaram uma cumplicidade única com o passar dos anos. Talvez conseguisse algo minimamente parecido com Rosette.

— Amanhã nós providenciaremos a mudança de vocês para nossa casa de campo em Cheshire. Podemos mandar todos os brinquedos junto. Creio que elas vão gostar. Lá estarão protegidas tanto dos bombardeios quanto de quem as estão perseguindo. Hesper as está esperando.

Rose arregalou os olhos surpresa, quase engasgando com o pedaço da torta de maçã servida na sobremesa.

— Sua esposa? Ela sabe? — a mulher perguntou, entremeio à crise de tosse, bebendo logo em seguida outro gole de vinho.

Sirius deu um meio sorriso.

— Nós raramente mantemos segredos entre nós e eu preciso do apoio dela para que os demais aceitem sua presença e de minhas sobrinhas na família. Belvina, em particular, pode nos dar um pouco de trabalho. Minha irmã nunca foi muito tolerante. Hesper tem um talento especial em acalmá-la.

Rosette abaixou o rosto, compreendendo, pela primeira vez, que as relações daquela família eram mais complexas e espinhosas do que Phineas deixara transparecer durante todos os anos que estiveram juntos.

— Nós vamos cuidar bem de vocês. — Sirius falou, percebendo a ligeira perturbação da mulher. — Eu prometo.

Ela abaixou a cabeça, fitando o próprio prato. Já havia chegado até ali, precisava ir até o fim. Não suportaria ter novamente nos braços o corpo gelado de uma das filhas. A sensação de que Marguerith poderia não ter acordado de seu sono e que ele se tornaria um repouso perpétuo foi a pior sensação que já tivera na vida.

— Eu só peço algumas cortesias de você, se possível. — ela disse, ainda cabisbaixa — Que me respeite na presença de minhas filhas e da sua esposa. E que seja gentil comigo.

Sirius levantou-se da mesa, seguindo até Rosette. Ele segurou as mãos dela com delicadeza, fazendo com que ela se levantasse.

— Você tem a minha palavra. Serei um cavalheiro.

Ele beijou as mãos dela, depois a testa antes de tomar seus lábios com suavidade. Rose sentia se completamente entorpecida, como se sua mente e seu corpo naquele momento fossem entidades separadas, talvez fosse resultado da bebida. Entretanto Sirius percebeu que ela tremia. Ele a abraçou até que ela se acalmasse. Quando ela levantou o rosto, o homem a beijou mais uma vez aparatando com ela para o quarto.

Quando Rosette abriu os olhos na manhã seguinte sentia-se vazia. Não havia mais retorno, era fato consumado. Entregara-se para o irmão de seu marido. Embora Sirius houvesse cumprido a promessa e a tratado com cuidado e gentileza, isso não diminuía o desalento dela, pois sabia que Phineas a odiaria pelo resto da vida, e ela não poderia culpá-lo. Ainda não tivera coragem de contar que o abandonara.

Sirius não estava no quarto, pelo barulho estava tomando um banho. Rose sentou-se na cama, abraçou os joelhos e chorou. Provavelmente amaria Phineas até o fim de sua existência, mas o que importava era a sobrevivência das filhas. Ela enxugou o rosto com as costas das mãos e levantou-se, indo até a penteadeira. O mundo não pararia porque ela estava sofrendo. Precisava se arrumar para a sua nova vida.



A mulher observou a mesa que acabara de colocar com delicadeza e esmero. Embora deixasse a maior parte da organização da casa e das refeições a cargo dos elfos, o chá da tarde era um ritual particular, que ela cultivava desde a infância. Os criados podiam preparar os quitutes, mas colocar a mesa era um dos pequenos prazeres dela. Escolher a porcelana perfeita, a toalha de mesa combinando, decidir a melhor disposição das xícaras, do bule, pães e biscoitos. Usar o encantamento adequado para ferver a água até a temperatura ideal para o chá escolhido naquele dia. O cheiro das folhas lhe preenchendo os sentidos, como um caloroso abraço há muito esperado.

As melhores lembranças de sua vida aconteceram naquela hora mágica... os momentos compartilhados com a mãe... a introdução daquele ritual com seus próprios filhos... especialmente com a menina, que compreendera plenamente a importância daquilo para ela...

Exatamente por isso, ela se esmerava em deixar tudo absolutamente perfeito. Sua convidada chegaria em breve. E por mais estranho que isso pudesse parecer a olhos externos, ela desejava que a outra mulher se sentisse acolhida e protegida. Ninguém deveria ser obrigado a abrir mão da própria dignidade para sobreviver. Mas, não foi isso que aconteceu com ela própria? Obrigada pelo pai a se casar com o herdeiro de uma família mais rica, que poderia injetar recursos nos negócios dele. O velho Gamp nem esperou que ela se graduasse em Hogwarts para formalizar o enlace. Aos quinze anos, já era uma senhora casada com o primeiro filho nos braços. Fora criada desde menina apenas para ser moeda valiosa de troca. Contudo, demorou tanto para perceber os meandros daquela verdade, quase uma vida inteira.

O som da campainha fez com ela saísse de suas conjecturas. Quando recebeu as malas mais cedo, deu ordens expressas aos elfos de que não atendessem à porta. Desejava ser a primeira a receber Rosette Black em seu novo lar.

A morena esperava ansiosa do lado de fora da casa, respiração quase suspensa, tamanha sua ansiedade. Sirius não passou muito tempo com ela e as meninas depois do acordo entre eles ser cumprido. Tomou a refeição matinal com elas, se apresentou às sobrinhas e depois disso deixou tudo a cargo dos elfos para auxiliá-la em sua partida.

Naquele momento, Rose estava parada diante do batente da porta, cada uma das filhas segurando-lhe uma das mãos, sem saber o que esperar da sua anfitriã. Contudo, nada a preparara para aquilo. Um sorriso caloroso e uma mão estendida.

— Você deve ser Rosette. Eu sou Hesper Black, seja bem-vinda.

Por alguns segundos, a morena não soube o que fazer. Hesper não era exatamente o que Rose esperava da matriarca da mui antiga e nobre casa dos Black. Não era a senhora sisuda de cabelos rigidamente impecáveis e olhar severo que possivelmente conduzia com mão de ferro o destino daqueles que a rodeavam. Agora era claro que aquele era o papel exclusivo de Sirius. Hesper emanava doçura, mas permeada de determinação. Seus olhos violetas possuíam um brilho sagaz, seus cabelos cor de mel emolduravam harmoniosamente seu rosto. Rosette só conhecera uma mulher além de Hesper a possuir tamanho porte de rainha: Aribeth Thorne. Contudo, a druidesa era uma regente guerreira tal qual a lendária Boadiceia; já Hesper parecia a própria encarnação de Titânia, a monarca do reino das fadas.

— Eu... eu... — Rose balbuciou — é um prazer também.

Hesper abaixou-se até ficar na mesma altura das garotinhas.

— Vocês devem ser Marguerith e Betelgeuse. Sou sua tia Hesper e vou ajudar sua mãe a cuidar de vocês.

A mais velha das gêmeas pousou seus olhos muito azuis sobre a tia, estendendo a mãozinha em cumprimento. Hesper sorriu diante daquilo. A menina parecia não se intimidar com estranhos. Havia potencial na pequena.

Por outro lado, Marguerith se encolheu, praticamente se escondendo atrás da mãe. Depois do trauma que sofrera, quase morrendo envenenada, era justificável que se comportasse de modo tão arredio.

— Vamos, não se acanhem. — a anfitriã se levantou, conduzindo as convidadas para os jardins ao fundo da casa.

Hesper serviu o chá para Rosette e as filhas. A morena permaneceu calada, observando a alegria das meninas diante das guloseimas. A atenção de Marguerith foi capturada por um pequeno coelho marrom que saltitava pelo quintal.

— Podemos brincar com ele, mamãe? — ela perguntou, os olhos brilhando em expectativa.

Rose lançou um olhar inquiridor para Hesper, que assentiu, indicando que não havia com que se preocupar

— Tudo bem, meu amor.

Mal a mãe respondeu, Marge disparou jardim afora atrás do coelho, com Bete logo atrás dela.

— Agora que estamos sozinhas, vamos conversar. — Hesper falou, pousando a xícara suavemente na mesa.

Rosette abaixou os olhos, envergonhada. Ela soube, desde o momento em que Sirius dissera que a esposa tinha ciência do acordo, de que haveria algum tipo de cobrança por parte da matriarca dos Black.

— Me desculpe... — ela disse, cabisbaixa, a voz quase inaudível — eu não tinha outra opção... eu estava desesperada.

Hesper pousou a mão sobre a de Rosette, fazendo com que a mulher mais jovem a encarasse.

— Você não precisa se desculpar. — ela respondeu, com uma melancolia palpável — Eu entendo mais do que possa imaginar. Eu tentei dissuadi-lo, tentei convencê-lo a aceitar pelo menos as meninas conosco. Mas Sirius é tão teimoso e insensato quando quer. Por mais que eu tenha ganhado seu respeito e me tornado sua conselheira no decorrer dos anos, minha influência possui certos limites.

Hesper soltou um suspiro curto.

— Entenda, Rosette — ela continuou — eu não sou sua inimiga, pois não estamos competindo por nada. Meu marido nos vê pela utilidade que temos para ele. Eu fui um negócio de família arranjado por nossos pais que acabou se tornando mais valiosa que uma mera progenitora de seus herdeiros. E você é um capricho para atingir o pobre Phineas, a peça chave de uma vingança infantil, um corpo quente para ele usar, se sentir jovem e se vangloriar com os amigos no clube de cavalheiros.

A sinceridade de Hesper foi tão incisiva e cruel que Rose não segurou as lágrimas. As gotas salgadas respingaram no chá antes que a mulher tampasse o rosto com ambas as mãos.

— Chore, pequena... deixe toda a sua mágoa ir embora... eu não digo isso porque quero te machucar, mas para que você entenda que tipo de homem Sirius é e em que tipo de mundo você acabou de entrar. Queria que me tivessem aconselhado quando me casei com ele.

A mulher deixou que seus olhos violetas recaíssem carinhosamente sobre as duas meninas, que, um pouco distantes, acariciavam o coelho.

— Eu tenho uma filha, também. Lycoris. Seu único crime foi ter se apaixonado por alguém de fora do nosso círculo. Um cantor de jazz americano que ela conheceu em uma temporada em Paris. Um homem de cor, como Sirius, repleto de desprezo, costuma dizer. Um bruxo, mas ainda assim inferior perante aos olhos dos Black. Eu precisei de todo meu empenho e de ceder muitos favores a Sirius para que ele não expulsasse nossa filha da família, apagasse seu nome da tapeçaria e lhe privasse da herança. Meu marido concedeu minha vontade com a condição de que Lycoris não se casasse oficialmente com o rapaz; ainda assim, ela é uma pária para o resto da família. Contudo, está feliz. Enquanto isso, Regulus, meu caçula, passa os dias em Monte Carlo jogando, se envolvendo com diversas mulheres e desperdiçando a nossa fortuna. Para o orgulho de Sirius.

Hesper suspirou novamente. Rosette a observava, repleta de surpresa. Ela se lembrava tanto de Lycoris quanto de Regulus da época em que estudara em Hogwarts. Nunca imaginou que alguém aparentemente arrogante quanto a colega pudesse abrir mão de tudo por amor.

— Este é o mundo em que nós vivemos. É o mundo em que minha filha cresceu. O mundo em que suas filhas crescerão. Tudo que podemos fazer é nos unir para que elas possam ter as melhores ferramentas para sobreviver.

A mais velha abriu um sorriso cansado para Rose.

— Confesso que, na verdade, estou feliz em tê-la aqui. Tenho esperanças de, finalmente, não estar mais sozinha depois de tantos anos.

*******


Williamina Goldie estava sentada numa poltrona de veludo azul estilo vitoriano, possivelmente tão antiga quanto a casa onde se encontrava, um dos últimos lugares onde imaginaria achar Phineas Black.

Ele havia sumido por praticamente todo o final de semana, não apenas sobrecarregando Willie e Ravi na condução do jornal, mas, sobretudo, preocupando os dois imensamente. Depois da morte de Pepe, os nervos de todos estavam à flor da pele.

Exatamente por isso Willie decidiu colocar em prática seus dotes de jornalista investigativa e também acionar seus contatos para localizar o chefe.

Ela observava o homem completamente desfalecido em um divã que fazia conjunto com a poltrona em que estava sentada. Fazia oito anos desde que Willie conhecera Black com mais proximidade além daquela que as formalidades dos encontros sociais da elite bruxa permitiam. Ela se sentia saturada e enclausurada em sua posição dentro do Profeta Diário. Quando soube que Phineas iria abrir um jornal concorrente e procurava membros para a equipe, ela se dispôs a tentar uma entrevista de emprego. A paixão daquele homem por seu trabalho e seus ideais a convenceram a cair de cabeça naquela nova aventura. Nunca se arrependeu, nem quando Pepe foi assassinado, e nem naquele momento, observando Phineas em, possivelmente, um dos pontos mais baixos de sua vida.

O moreno gemeu, abrindo vagarosamente os olhos; a visão começou a se tornar mais clara, e foi com inegável surpresa que ele percebeu que era Goldie quem o fitava.

— Achei que um Black tinha dinheiro para bancar pelo menos a Silver Cross. — ela disse, em um tom pretensamente jocoso, para quebrar o embaraço da situação. — Espero que Ravi não descubra que o ídolo dele tem pés de barro.

Phineas massageou as têmporas antes de responder. A boca tinha um gosto rascante, como há anos ele não sentia.

— Willie, poderia falar um pouco mais baixo?

A mulher apenas assentiu. Ela encheu um copo com água da jarra que repousava na mesinha redonda lado da poltrona onde estava. Levantou-se, entregando-o para Phineas, que não se fez de rogado e bebeu o líquido com afinco.

— Obrigado — ele disse, devolvendo o copo a ela — Como me achou aqui? Eu achei que mulheres fora do ofício não pudessem entrar no lugar.

Willie deu um meio sorriso quase sarcástico. Ela sabia que Phineas acreditava na competência dela, mas, como muitos homens, ele ainda tinha o mau hábito de separar as mulheres em pecadoras e santas.

— Você sabe que eu sou sua melhor repórter, não foi difícil te encontrar. Além do mais, a dona daqui é minha amiga, ajudei ela alguns anos atrás.

Black arregalou os olhos. Williamina era uma pessoa extraordinária em diversos aspectos.

— E antes que você tenha a ideia imbecil de me perguntar se Goodfellow sabe onde estou, ele está lá embaixo bebendo e possivelmente jogando enquanto resolvo meus assuntos com você. Não é a primeira vez que ele me acompanha até aqui.

Phineas apenas concordou com um menear de cabeça. Ele nunca julgou Goldie por suas posições e comportamento, não começaria naquele momento. O fato era que a admiração por ela se ampliava. Ela era uma mulher praticamente despida de preconceitos, se apegando ao caráter das pessoas.

— E eu juro — ela sibilou — que se você sumir assim de novo e nos deixar loucos de preocupação, eu mesma te mato. Mesmo que seus motivos para isso sejam justificados, como foram.

— Você sabe? — Phineas perguntou, sem esconder o pesar.

A expressão da mulher se carregou diante do que estava prestes a falar.

— Seu irmão não é particularmente discreto. Ele estava no Clube dos Valetes se vangloriando para os amigos sobre a nova conquista. Goodfellow acabou escutando. Sinto muito.

Phineas abaixou o rosto, sentindo as lágrimas querendo tomar novamente conta dele.

— Ela me mandou uma carta, explicando tudo, sobre como quase mataram Marge, sobre como ela percebeu que eu não abandonaria minha causa, e que restava a ela fazer todo o possível para proteger nossas filhas. E sabe o que é mais triste de tudo, Willie? Rose está certa. Ao invés de ir atrás dela, pegar as meninas e fugir para o mais longe possível, eu, ironicamente, me enfiei no lugar onde meu irmão me trouxe na adolescência, pensando em dar o troco em Rosette. E me afundando em firewhisky por não conseguir cumprir meu intento. Sou ou não sou patético?

Willie deu um sorriso triste, compreendendo a dor daquele homem. Não invejava a posição dele, dividido entre a família e as suas crenças mais profundas. Não era a primeira vez que Phineas Black passava por aquilo, mas agora era diferente, ele tinha muito mais a perder que apenas uma posição social.

— Definitivamente patético — ela respondeu, abraçando Black e o ajudando a se levantar. — Agora nós vamos te levar para casa. Good e eu vamos te dar um banho, um café e uma comida decente. Depois, com a cabeça fria, você decide se vai salvar o mundo ou o seu casamento.

Phineas assentiu, apenas se deixando levar. Goldie estava certa. Ele não tinha forças ou clareza para resolver qualquer coisa. Amanhã seria um outro dia.



O homem observou a porta, sentindo um calafrio de hesitação. Perdeu a conta de quantos anos haviam se passado desde a última vez que pisara naquela soleira. Aquela casa que abrigou dias felizes em suas férias de verão não era mais parte da sua vida, contudo não era fácil conter a onda de nostalgia que parecia querer lhe dominar.

Ele bateu algumas vezes na madeira pesada antes de escutar passos pequenos se aproximarem e abrirem a porta.

— Kreacher! — Phineas exclamou, contente ao ver o elfo.

Tinha lembranças carinhosas daquela criatura extremamente dedicada que estivera em sua vida durante toda a infância e um pouco mais.

Como se fosse possível, os olhos do elfo se tornaram ainda maiores, com um brilho alegre. Ainda demoraria muitos anos para que Kreacher se tornasse um ser amargo, preconceituoso e rancoroso; naquele instante, ele ainda era um elfo feliz em reencontrar um senhor que sempre fora bondoso com ele.

— Mestre Phin, muito bom ver você!

Phineas inclinou-se, fazendo um carinho na cabeça do elfo.

— Está bem longe de Grimmauld, meu caro. — ele disse, em um gracejo.

— Senhora Hesper precisava de Kreacher aqui.

Phineas assentiu, concluindo que a cunhada, como sempre, era ponderada. Kreacher era o melhor elfo a serviço da família, seria de grande ajuda com as meninas.

O moreno adentrou a casa. Tudo parecia exatamente igual. Fechou os olhos. Por breves minutos sentiu como se tivesse usado um vira-tempo. Quase podia escutar as vozes dos irmãos ecoando pelo aposento. Nunca percebeu, até aquele instante, que uma parte dele sentia imensa falta de sua antiga família, apesar dos pesares.

— Phineas? — uma voz suave o chamou.

Ao abrir os olhos percebeu que uma mulher o observava com certa afeição. Infelizmente, não era aquela que ele desejava.

— Hesper, fico satisfeito em reencontrá-la tão bem. — o homem segurou a mão dela, depositando um beijo.

— Também estou satisfeita em recebê-lo aqui. — ela respondeu, com um sorriso singelo.

— Isso não te trará problemas? — ele perguntou, com uma expressão preocupada.

Ela meneou a cabeça em negativa. Antes de continuar a conversa, virou se para o elfo.

— Kreacher, poderia chamar as meninas para vir aqui e também providenciar um lanche?

— Sim, senhora.

Assim que a criatura partiu, ela voltou sua atenção novamente para o irmão mais novo do marido.

— Pela minha posição na família não preciso me preocupar com as opiniões de Cygnus, Arcturus ou Belvina. Quanto a Sirius, ele vai esbravejar, mas sei como lidar com isso. Aqui não é Grimmauld, portanto posso ser um pouco mais flexível. Por maiores que sejam seus pecados diante da família, minha consciência não me permite separar um pai de suas filhas.

— Obrigado, Hesper. — ele respondeu — Prometo cumprir suas condições. Virei apenas uma vez por mês e encontrar as meninas apenas aqui. Depois de tudo que aconteceu, entendo o receio de elas se ferirem.

O homem abaixou a cabeça por um momento, tentando desentalar a pergunta que estava dolorosamente presa na garganta.
— Rosette? Ela não quer me ver? Mesmo eu tendo feito o pedido?

— Não.

— Ela me odeia por eu não ter protegido ela e as meninas — o jornalista soltou, pesaroso.

Hesper balançou a cabeça, sem conseguir refrear o riso.

— Continua o mesmo tolo de sempre, não é, Phin? Rosette não te odeia, na verdade, é o oposto disso. Antes que o homem pudesse dizer alguma coisa, as filhas surgiram na sala, correndo para sanar as saudades do pai com um abraço há muito desejado.

— Vou deixá-los à vontade — Hesper falou, se retirando da sala.

A tarde passou preguiçosamente enquanto Phineas se divertia no quintal, em meio à folhagem acobreada de outono que se estendia sobre grande parte do terreno, correndo atrás das meninas com uma energia surpreendente para seus cinquenta e seis anos; para parte dos bruxos, o declínio físico ocorria mais lentamente do que para os trouxas.

Da janela de seu quarto, Rosette observava a cena com um misto de alegria e tristeza. Estava feliz pelas meninas finalmente reencontrarem Phineas, contudo tal benção não poderia ser aplicada a ela. Ela virou-se, ao escutar batidas suaves na porta.

— Pode entrar... — disse.

Hesper adentrou o recinto, seguindo até onde Rose estava parada em silêncio. Ao chegar na janela, compreendeu a expressão melancólica da mais jovem.

— Você deveria falar com ele. Talvez seja a última oportunidade de conversarem sinceramente um com o outro. A mulher corajosa com que tenho convivido nos últimos dias faria isso.

Rosette piscou os olhos, um pouco aturdida. Pareceu-lhe estranho e surpreendente Hesper vê-la daquela maneira quando ela própria só conseguia ver fraqueza e covardia no caminho que escolhera. Contudo, em uma coisa Hesper tinha razão, ela e o marido precisavam conversar. Era preferível não protelar indefinidamente aquela situação.

*******


— Meninas, o lanche está pronto. — a voz de Hesper se fez ouvir no alpendre da casa.

Phineas virou-se enquanto colocava Betelgeuse no chão; contudo, seu olhar se viu preso na figura da esposa, que estava um pouco atrás da matriarca dos Black.

— Vamos, minhas queridas. — Hesper chamou as gêmeas com doçura — Vamos deixar seus pais conversarem enquanto comemos uma deliciosa fatia de bolo de chocolate.

Phineas mal percebeu as filhas e a cunhada entrando na casa: seus olhos anis pareciam hipnotizados pelo verde profundo dos orbes de Rosette. Ele conseguia perceber ali uma mescla de sentimentos. Carinho, culpa, e sobretudo tristeza.

— Olá, Phineas. — Rosette quebrou o incômodo silêncio que havia se instaurado entre eles.

— Rose. — o jornalista respondeu com um aceno de cabeça. Embora estivesse desejoso em reencontrá-la, ele preferiu deixar que ela guiasse os passos iniciais da conversa.

— Vamos caminhar um pouco. — ela retomou — Não quero correr o risco das meninas nos escutarem. Os dois prosseguiram lado a lado, atravessando a pequena porta de madeira que havia no fundo do quintal e dava acesso ao bosque próximo, que ainda fazia parte da propriedade da família.

Por longos e silenciosos minutos eles andaram, nenhum dos dois capaz de retomar o diálogo. Phineas havia repassado aquele momento em sua mente muitas e muitas vezes. Em alguns cenários, ele simplesmente chorava escutando as críticas de Rose, em outros ele se deixava tomar pela raiva e pelo ciúme, perguntando aos gritos se o irmão conseguira dar a ela mais prazer do que ele lhe proporcionara em toda uma vida juntos. A verdade era que o jornalista chegou a pensar em ir atrás de Sirius e fazer algumas cobranças, partir a cara dele ao meio... contudo, percebeu que isso só daria ao mais velho a satisfação em ver que sua vingança mesquinha tinha realmente lhe afetado. Entretanto, de todas as possibilidades que ele havia fantasiado, aquela era a mais angustiante: um mutismo frio no qual eles pareciam um para o outro muito mais estranhos que no começo do namoro.

Rosette caminhava olhando para o chão, a respiração quase suspensa; sentia vontade de chorar, sentia vontade de implorar ao marido que levasse ela e as filhas dali para os confins do mundo e esquecesse a traição dela. Ela respirou fundo, retomando o controle de si. Tudo o que poderia dar a Phineas naquele momento era sua sinceridade.

— Eu não escolhi pedir abrigo para sua família por mero impulso, Phin... — ela começou, se abstendo de mencionar o fato de que compartilhara o leito com o cunhado. Era doloroso admitir isso para o homem que ainda amava. — Enquanto eu sentia o corpo da nossa filha esfriando em meus braços, sem ter a certeza de que ela abriria novamente os olhos, eu pensei muito no que eu faria, Marguerith sobrevivendo ou não. Pensei em voltar para você e pedir mais uma vez para fugirmos. Pensei em abandoná-lo, sair do país e ficar junto com Maria. Mas então eu seria uma mulher sozinha, em uma terra estrangeira, trabalhando para sustentar as filhas, sem ter certeza se teria dinheiro suficiente para colocar comida na mesa. Isso não me assustou, eu já trabalhei muito para sobreviver e já passei fome ao lado da minha mãe. O que me deixou temerosa foi submeter as meninas a essas privações. Além do mais, isso não me garantiria que elas realmente estivessem protegidas. Só entre os Black eu poderia ter certeza de que ninguém que nos ameaçou as machucariam novamente.

Ela levantou o rosto, finalmente o encarando, e o que Phineas encontrou dessa vez no fundo dos orbes da esposa foi determinação. Foi, então, a vez do homem abaixar o rosto. Ele tinha todas as razões do mundo para se sentir traído e humilhado, para sentir mágoa e rancor, contudo, o que sentia era remorso e vergonha. Rosette lhe falara com todas as letras que queria ir embora e ele se negara a atender àquele pedido. A culpa era dele por ela ter tomado aquela decisão.

— Eu sinto tanto, Rose... tanto mesmo... — ele balbuciou — acho que sou realmente um tolo como escutei durante toda minha vida... Eu deveria te odiar, mas simplesmente não consigo. Eu deveria ter pensando em você, pensando nas meninas... E agora, mais do que nunca, eu percebo que o lugar mais seguro para vocês é longe de mim.

Rosette se aproximou de Phineas ao notar que o marido tremia. Ela segurou a mão dele e, quando o homem levantou a cabeça, seus olhos estavam marejados de lágrimas.

— Phineas... o que você fez? — ela perguntou, ao perceber que havia algo muito mais complicado na fala dele que apenas a separação dos dois.

— Depois que Pepe morreu e você foi atacada, eu tive tanta raiva, me senti tão impotente. Eu não conseguia parar de pensar em fazer alguma coisa mais ativa que apenas escrever. Eu contatei Dumbledore... me dispus a ajudá-lo para finalmente dar um fim nesses bastardos. Estou investigando algo potencialmente perigoso. Você é a primeira pessoa para quem eu conto isso...

Rosette sentiu um aperto no peito. Aquilo era tão típico do marido, mais impulsivo e passional que ela própria. Ela estava tão imersa nos seus próprios receios e traumas, preocupada com as filhas, tentando se apoiar em Phineas, que não percebeu o quão profundamente tudo aquilo também tinha afetado a ele.

— Você não pode pedir para Dumbledore que simplesmente passe a tarefa para outra pessoa? — ela perguntou, embora já soubesse a resposta.

Ele meneou a cabeça com veemência.

— Não depois do que eu já descobri.

Ela soltou as mãos dele.

— Então, Phin, só nos resta abraçar nossas escolhas. Enquanto você vai salvar o mundo, eu protejo nossas filhas.

Black fitou a mulher que estivera a seu lado nos últimos dez anos. Amava Rosette com tamanha intensidade que ainda lhe doía no peito. Aquilo que estava fazendo também era por ela e pelas meninas; contudo, precisavam, naquele momento, seguir caminhos diferentes. Talvez no futuro eles pudessem voltar a ficar juntos, mas não faria promessas às quais não tinha certeza de poder cumprir.

Ele se aproximou dela, colocando a mão em seu rosto, notando que ela fechou os olhos ao compreender suas intenções. Então eles se beijaram como se fosse a última vez. Quando Rosette abriu os olhos, Phineas já havia aparatado para longe.



Os primeiros meses de 1940 estavam terrivelmente frios, mas aquilo não parecia importar para a família Black. Apesar dos bombardeios ainda contínuos à capital inglesa, apesar do racionamento cada vez mais crescente na Grã-Bretanha, nada disso parecia ter afetado aquele clã bruxo.

A mansão onde Arcturus Black, filho mais velho de Sirius e Hesper, residia com a esposa Melania e seus herdeiros, Lucretia e Orion, era uma das várias propriedades da família espalhadas por toda ilha. Com o passar dos anos, e consequente decadência, restaria ao clã apenas o casarão em Grimmauld. Os presentes ao baile de debutante da jovem Lucretia não poderiam sequer imaginar os acontecimentos funestos que recairiam sobre seus descendentes nas décadas seguintes. Para muitos deles, aquela noite de ostentação era uma comprovação da sua posição de donos do mundo, fosse mágico ou trouxa.

Rosette Black sentiu o estômago revirar em ansiedade ao avistar, de dentro da carruagem, o casarão totalmente iluminado. Sentiu a mão enluvada de Hesper pousar sobre a sua, seus olhos encontraram um sorriso sereno no rosto dela, tentando lhe passar confiança.

Aquela deveria ser a estreia de Lucretia na alta sociedade bruxa, mas, de certa forma, a situação também se aplicava à própria Rosette. Não era apenas a primeira vez em que iria à um baile de tamanho porte, mas também era a primeira vez em que conheceria os demais membros da família do marido.

— Eu vou estar ao seu lado. — Hesper falou.

Rosette assentiu, ajeitando as luvas de tecido azul índigo que faziam par ao belo vestido que usava. No banco defronte a ela estavam suas filhas. As pequenas pareciam ansiosas para a festa. Nos últimos meses, a tia começara a instruí-las nas regras de etiqueta e em uma educação mais formal, que acreditava ser útil para ambas futuramente. As duas usavam vestidos rodados cor de creme com uma faixa rosa na cintura. Marguerith tinha os cabelos negros presos em cachinhos no alto da cabeça, sob um complicado arranjo parecido com o da própria mãe. Já os cabelos lisos de Betelgeuse estavam presos em uma trança com pequenas pedrinhas brilhantes aplicadas, parecido com o arranjo de Hesper.

Quando desceram da carruagem, a matriarca dos Black seguiu na frente; seu vestido vinho farfalhava enquanto ela caminhava elegantemente em direção às portas duplas de carvalho da casa de seu primogênito. Rosette seguiu logo atrás, segurando cada uma das gêmeas pelas mãos.

Quando anunciaram seus nomes na entrada do salão de festas e Rose sentiu todos os olhos recaindo sobre ela, as pernas começaram a fraquejar. Hesper voltou para seu lado, pousando a mão em seu ombro. Uma onda de alívio percorreu o corpo da morena e ela se sentiu mais confiante em adentrar aquele ninho de cobras.

Assim que as duas desceram a escadaria, Hesper se aproximou do ouvido de Rosette, apontando discretamente os convidados com a cabeça.

— Não é muito difícil saber quem são os Black, a maioria deles tem os cabelos escuros e os olhos azuis como Sirius e Phineas. Aquele é meu cunhado Cygnus, a loira ao lado dele é Violetta, sua esposa. A caçula deles, Dorea, também tem os cabelos claros, e se casou recentemente com o filho dos Potter. Ainda não vi Cassiopéia, a filha do meio deles. O mais velho, Pollux, está conversando com Harfang Longbottom e Caspar Crouch, maridos das minhas sobrinhas, Callidora e Charis, filhas de Lysandra e Arcturus, de quem meu mais velho herdou o nome. As duas estão do outro lado da sala, com Irma, mulher de Pollux. Charis é a morena em visível estado de gravidez. Os filhos de todos eles devem estar espalhados por aí. Belvina e Hebert pelo visto não chegaram, e meu filho Regulus não virá.

Rosette se sentiu completamente tonta com aquela quantidade enorme de informações.

— Eu não vou conseguir guardar isso tudo. — ela balbuciou.

Hesper deu um meio sorriso.

— Aos poucos você vai aprendendo. O importante é você se lembrar de que algumas pessoas são tabus nesta família. Phineas, obviamente. Minha Lycoris. O pobre Marius, filho de Cygnus que foi despachado ainda criança para a casa dos avós maternos assim que descobriram que ele era um aborto. E a jovem Cedrella, filha de Arcturus, que fugiu para se casar com Septimus Weasley. Provavelmente vão te testar quanto a isso, especialmente sobre Phineas.

Rosette abaixou o rosto, pensativa, e antes que pudesse perguntar para Hesper qual a melhor maneira de agir caso a abordassem sobre o marido, um homem moreno de penetrantes olhos azuis se aproximou. Ele era praticamente uma cópia mais jovem de Sirius Black. Aquele era Arcturus. Ao lado dele estava uma mulher de cabelos castanhos claros e lisos, olhos também azuis. Melania.

— Mãe, fico imensamente feliz em tê-la aqui conosco. — ele tomou a mão de Hesper, depositando um beijo.

-Arc, deixe de formalidades. Faz meses que não nos vemos, dê pelo menos um abraço na sua mãe.

O homem atendeu ao pedido prontamente. Embora externamente não fosse aparente, sentia saudades dela. Ao se soltarem, Hesper cumprimentou a nora e decidiu fazer as apresentações.

— Talvez conheçam Rosette. — ela disse, com sua voz aveludada.

— Oh sim — Melania assentiu — Eu e Rosette éramos do mesmo ano em Hogwarts, mas de casas diferentes. Você era da Lufa-lufa, não?

— Corvinal. — ela respondeu, um pouco mais seca do que pretendia.

Ela se lembrava de Melania e mesmo de Arcturus, dois anos mais velho que elas, andando pela escola como se fossem os reis de Hogwarts. Era tão estranho que anos depois pertencessem à mesma família.

— E estas são suas primas, Betelgeuse e Marguerith.

As duas garotinhas tinham se mantido caladas até o momento, conforme a tia havia instruído quando na presença de adultos conversando. Ambas fizeram uma mesura, arrancando um sorriso de Melania e um discreto curvar de lábios de Arcturus.

— Elas são uma graça, está de parabéns, Rosette. Vou leva-las à ala júnior da festa. — a dona da casa se pronunciou.

Arcturus ofereceu o braço à mãe para circularem pelo salão. Rosette caminhou ao lado deles.

— Seu pai? — Hesper perguntou, de forma displicente.

— Mandou um patrono avisando que se atrasaria, as coisas estão complicadas em Londres.

Rose olhou de soslaio para Hesper, mas não conseguiu decifrar o que se passava por trás dos seus enigmáticos orbes violetas. Aquela seria a primeira vez que estariam três no mesmo lugar. Sirius não as visitara durante todo esse tempo.

— Creio que tem alguém ansiosa em vê-la, mãe.

Hesper sorriu. A neta estava lindíssima em um vestido verde justo até a cintura, que depois se abria, volumoso; os cabelos negros desciam livres pelas costas. Ela conversava, sorridente, com um rapaz loiro de cabelos anelados. A matriarca dos Black puxou pela memória quem poderia ser ele. Parecia um dos caçulas dos Prewett. Ignatius, talvez.

Lucretia parecia tão feliz e radiante. Hesper se lembrou de que, na idade dela, ao invés de um baile de debutantes, ganhara uma festa de casamento. Esperava que a neta tivesse melhor sorte em escolher o próprio destino.

— Vovó — a menina veio praticamente correndo ao escutar seu nome sendo chamado.

As duas se abraçaram com carinho.

— Está gostando da festa? — a garota perguntou.

— Está magnífica, como você merece. — a mulher respondeu, sincera. — Esta é sua tia Rosette.

— Prazer. — Lucretia fez uma mesura muito semelhante àquela que as gêmeas haviam feito. Rose sorriu, notando que havia alguma influência de Hesper na criação da neta.

— O prazer é meu. E parabéns por seu aniversário.

Arcturus percebeu que os amigos da filha, principalmente Ignatius, pareciam ansiosos em tê-la novamente entre eles.

— Seus convidados pedem atenção, filha. Terá muito tempo para conversar com sua avó mais tarde. — depois que Lucretia saiu, Arcturus virou-se para mãe, completando — Também preciso me ausentar por uns minutos.

— Pode ir tranquilo. — Hesper disse, enquanto o filho fazia uma ligeira reverência antes de se dirigir para o meio do salão.

Hesper pegou duas taças de champanhe que um garçom próximo lhe ofereceu. Entregou uma delas para Rosette.

— Bem, minha cara, sorria e vamos nos divertir. Hoje é um dia para se comemorar.

Rose engoliu o conteúdo praticamente em um único gole, desejando que as palavras de Hesper se tornassem realidade.

*******


O pequeno Alphard Black estava entediado. Simplesmente não conseguia gostar das festas dos adultos, tão cheias de etiquetas e pompa, em que não podia fazer praticamente nada nem havia com quem brincar. A maioria dos primos era muito mais velha que ele, no alto dos seus seis anos. Orion, que agora estava com onze anos, começou a agir como se fosse adulto e estava tentando se enturmar com os amigos de Lucretia. A irmã de Alphard, Walburga, era da mesma idade da prima, e também acompanhava os colegas de classe. E, para a tristeza do garoto, o irmão caçula, Cygnus, mal tinha feito dois anos e estava muito mais interessado no colo da mãe que qualquer outra coisa.

Ele suspirou, emburrado. Só concordara em ir à festa pela promessa de poder comer todos os doces que conseguisse, entretanto precisava esperar que Lucretia partisse o bolo de aniversário, mas aquilo parecia que ia demorar bastante, e não havia mais nada interessante que pudesse fazer ali. Foi nesse instante que ele percebeu, debaixo da mesa onde se escondera, dois sapatos rosa com laços em cima; eram pequenos como os seus e possivelmente estavam ligados a uma garota.

Empolgado com a descoberta de uma possível parceira de folguedo, ele tentou sair apressado, batendo a cabeça no tampo da mesa.

— Ai! — ele exclamou.

A garotinha, curiosa com o barulho, abaixou-se, percebendo Alphard, que a observava com uma careta de dor. Ela se perguntou o que ele poderia estar fazendo ali, e se algum dos adultos não daria uma bronca nele por se esconder. Por outro lado, ela compreendia os sentimentos dele. Afinal, decidira se refugiar naquele canto mais afastado da festa. Aquela quantidade enorme de adultos que não conhecia a estava incomodando. A irmã, por outro lado, decidiu ir sozinha para o salão, explorar o ambiente, nas palavras dela.

— Você está bem? — ela perguntou.

— Acho que sim — ele respondeu, massageando a cabeça, ao mesmo tempo em que saía debaixo da mesa.

Quando ele ficou em pé, percebeu que a menina era pouca coisa mais baixa que ele. Seus cabelos eram tão negros quanto os do próprio Alphard, seus olhos eram verdes e pareciam ligeiramente tristes. Ele sentiu um misto de curiosidade e compaixão. Não se lembrava de tê-la visto antes.

— Eu sou Alphard Black. E você? — ele falou, fazendo uma mesura com a cabeça, conforme aprendera.

Ela piscou os olhos, surpresa. Aquele devia ser um dos vários primos que sua tia Hesper disse que conheceria naquela noite.

— Cassiopeia Marguerith Black — ela respondeu, séria, se esforçando para fazer a reverência formal que a tia havia lhe ensinado quando fosse se apresentar a alguém.

Ele piscou os olhos, surpreso.

— Black, como eu?

— Acho que somos primos. — ela disse, ainda um tanto incerta

— Se é assim, pode me chamar de Alphie. — ele sorriu, simpático.

— Marge. — a garotinha respondeu, um pouco mais relaxada.

— Marge — Alphard sorriu, um pouco mais marotamente dessa vez. — Então... você quer brincar?

A menina finalmente deixou que um sorriso se estampasse em seu rosto.

— Eu quero — ela assentiu, ainda que timidamente, mas mal podendo conter a felicidade.

— Ótimo! — ele esfregou as mãos em contentamento.
A pequena sentiu os dedos do primo se fecharem ao redor de sua mão e se viu repentinamente arrastada por ele para o meio do salão de festas, quase correndo por entre os convidados. Apesar de saber que, possivelmente, poderia ser repreendida por aquele comportamento, ela não se importou. Uma sensação boa preenchia seu coração de criança.

*******


Sirius Black desceu as escadarias do salão como um monarca a observar seu precioso reino. De certa forma, aquilo não deixava de ser verdade. Era o patriarca de sua família. Todos os irmãos, cunhados, filhos e sobrinhos deviam obediência a ele. Aquela festa era a comprovação de que estava fazendo um excelente trabalho, pois refletia a grandiosidade do clã.
Enquanto entregava a capa e a bengala para um dos criados, ele buscou com afinco pelo recinto a figura da neta para lhe dar as devidas felicitações; contudo, ao invés de localizá-la, se deparou com uma cena deveras curiosa. Uma das pequenas de Rosette estava conversando com o Barão Grygiel, um nobre polonês que estava de passagem pela Inglaterra. Embora nada na expressão do homem indicasse que estava aborrecido com a presença da menina, Sirius achou melhor intervir.
— Barão Grygiel — ele disse, fazendo uma ligeira reverência ao cumprimentar o homem. — É um imenso prazer revê-lo.
O polonês era um homem alto, de cabelos claros e olhos castanhos; trazia um cavanhaque no rosto, e usava um smocking de fino corte. Ele respondeu ao cumprimento com um meneio de cabeça.
— Também é um prazer revê-lo, Black.
O homem virou-se para a sobrinha, que fez uma mesura quase perfeita. Ele tentou se lembrar qual das filhas do irmão era aquela. Ele então percebeu o anis dos orbes dela.
— Boa noite, Betelgeuse. — ele disse.
— Boa noite, Tio Sirius — ela respondeu.
— Ela é uma menina encantadora. — Grygiel falou — Ela estava me contando sobre as aulas de etiqueta e leitura que está tendo. É bastante inteligente. Deve ter muito orgulho dela, uma verdadeira Black.
O homem voltou sua atenção novamente para a sobrinha. Os pequeninos olhos da menina não se desviaram enquanto o tio a observava. Olhos altivos e orgulhosos. Sirius permitiu que um sutil curvar de lábios se formasse em seu rosto. Talvez o irmão não tivesse contaminado completamente a menina.
— Lamento não ter trazido meu pequeno Tomek à festa. Eles fariam um excelente par. Algo que podemos pensar em longo prazo. — Grygiel completou.
Aquilo verdadeiramente surpreendeu Black. A sobrinha realmente impressionou o Barão. Um possível casamento entre as famílias poderia ser muito vantajoso. Grygiel era um grande apoiador da causa de Grindelwald. Quando o bruxo chegasse ao poder, era óbvio que o polonês receberia parte do quinhão naquela conquista.
— Com certeza — Sirius respondeu — podemos combinar uma visita à nossa casa da próxima vez que vierem para a Inglaterra e apresentá-los. Betelgeuse, poderia ir brincar com as outras crianças enquanto os adultos conversam?
— Claro. Foi um prazer conhecê-lo, milorde. — ela se despediu.
Os homens continuaram a conversa, discutindo sobre política e a visão que compartilhavam de um mundo regido por bruxos. Após alguns minutos, uma mulher se aproximou; também tinha os cabelos claros como os do barão.
— Emilja, lembra-se de Sirius Black? — Grygiel perguntou à esposa.
— Claro, é um prazer reencontrá-lo — ela lhe estendeu a mão, que ele prontamente beijou conforme pedia a etiqueta. — Estava conversando com sua esposa e sua cunhada agora há pouco.
Sirius olhou na direção que a polonesa indicara, notando que além de Hesper e Rosette havia também Belvina. A expressão da irmã não era das melhores.
— Se me permitem, faz um bom tempo que não vejo Hesper.

*******


Rosette estava começando a se divertir na festa. A música estava agradável, a comida estava deliciosa, a bebida era de alta qualidade. Ela passara a maior parte do tempo calada, ao lado de Hesper, quase como uma aia acompanhando a sua rainha, uma vez que todos pareciam mais interessados em rever a matriarca dos Black que em conhecer Rose. Aquilo, ao invés de incomodá-la, trazia certo alívio à morena. Com exceção de alguns olhares de curiosidade ou discreta reprovação, ninguém se dirigiu a ela de modo rude ou agressivo.

Contudo, aquilo estava prestes a acabar...

Belvina Burke havia chegado à festa, acompanhada do marido, Herbert, fazia alguns minutos. Mal avistou Hesper, seus olhos se estreitaram em desgosto ao pousarem na mulher mais jovem que a acompanhava. Pela descrição que tinham lhe dado, aquela deveria ser a esposa de seu irmão traidor. Ela seguiu a passos firmes até onde as duas mulheres se encontravam, conversando animadamente com Emilja Grygiel.

Hesper percebeu a impetuosidade da cunhada antes que ela se aproximasse; prevendo algum escândalo, achou de bom tom se despedir da convidada.

— Emilja, querida, será que poderia nos dar licença por um momento? Parece-me que minha estimada Belvina necessita conversar seriamente conosco.

A polonesa virou-se, também notando a expressão carregada no rosto da morena que chegava.

— Claro, Hesper. Nós nos falamos depois. Foi um prazer conhecê-la, Rosette.

Belvina finalmente alcançou as cunhadas, os orbes azuis chispando de raiva. Ela lançou um olhar fulminante de desprezo para Rosette antes de dirigir-se para Hesper.

— Então é verdade, vocês acolheram mesmo essa vadia e as bastardinhas. — ela disse, por entre os dentes.

Rose abriu a boca para se defender, mas a fala morreu no caminho quando Hesper meneou a cabeça. A matriarca dos Black tinha um semblante impassível.

— Belvina — Hesper falou em um tom de voz baixo e fleumático — você está na casa do meu filho, no aniversário da minha neta, peço que tenha um mínimo de respeito pela minha convidada.

A mulher levantou as mãos, indignada. Do ponto de vista dela, aquela atitude era uma afronta à família, e, principalmente, à memória dos pais.

— Respeito? — Belvina quase cuspiu ao falar — Você fala em respeito enquanto essa prostituta dorme com seu marido e meu irmão traidor defende aqueles animais sem magia?

Rosette tremia; contudo, preferiu confiar em Hesper. Tanto ela quanto Sirius haviam dito que Belvina não aceitaria a presença de Rose e das filhas na família, entretanto, ambos frisaram que era melhor deixar que Hesper lidasse com a irmã caçula do marido.

Hesper bebericou o champanhe como se as palavras da cunhada fossem insignificâncias, o que para ela, de fato, eram.

— Minha querida — ela começou — mesmo depois de todos esses anos ainda não consegue compreender minha relação com Sirius, não é? A cumplicidade que adquirimos não se compara ao que você e Hebert vivem. Eu sei que nos inveja... e inveja também minha posição nesta família...

— Eu não... — Belvina elevou a voz, sua tez estava se tornando escarlate.

Um sorriso malicioso se formou nos lábios de Hesper; ela sabia que, novamente, estava chegando no ponto em que conseguiria quebrar a cunhada. Bebericou o champanhe mais uma vez, prolongando aquele pequeno prazer. Ela e Belvina haviam sido colegas de casa em Hogwarts, e a irmã de Sirius não lhe facilitara muito a vida nos primeiros anos de casada. Mas, com o tempo, Hesper aprendeu quais fios manipular para tornar Belvina uma obediente marionete.

— Você nada. — Hesper a cortou — Você nunca aprende, não é? Sempre impulsiva e inconsequente, dominada pela arrogância. Será que eu devo te lembrar que você deve a vida que leva a Sirius e a mim?

A mulher se calou, abaixando a cabeça. Rosette observava as duas com visível espanto. Aquele era um lado de Hesper que ainda não conhecia. Diferente da mulher doce e compreensível com quem convivera nos últimos meses. A matriarca dos Black também sabia ser dura, incisiva e cruel.

O sorriso de Hesper se ampliou ao notar o mutismo amuado de Belvina.

— Adoraria saber o que Caractacus dirá quando precisarem mudar o nome da loja de Burke & Borgins para Black & Borgins; afinal, fomos nós que emprestamos para Hebert o dinheiro para cobrir as dívidas de jogo. E se me lembro bem, o dinheiro que seu marido perdeu ele tirou da loja sem que ninguém soubesse...Devo contar a Caractacus ?

Belvina soluçou, engolindo o orgulho.

— Não, Hesper, não vai ser necessário. — a mulher se virou para Rosette. O brilho inflamado dos olhos dela no início da conversa havia se apagado. — Bem vinda à família.

— Obrigada... — ela balbuciou, um tanto incrédula.

Rose não conseguia entender plenamente o que acabara de presenciar. Apenas compreendera que Hesper sabia ser uma força a ser temida, e que era preferível ter ela como aliada que inimiga.

— Fico feliz que tenha compreendido a situação, minha querida — a matriarca dos Black falou — Pouco me importa o que fala por nossas costas, mas espero que nunca mais destrate Rosette ou as meninas.

— Algum problema? — uma voz grave se fez anunciar.

— Sirius, não sabia que havia chegado. — Hesper falou, com uma voz suave, quase divertida.

Belvina permaneceu calada, enquanto Rosette sentiu uma onda de constrangimento lhe esquentar as bochechas.

— Está tudo bem — Rose disse, baixinho.

O homem sorriu, observando as três mulheres. Belvina parecia uma criança pega fazendo uma travessura. Rosette não conseguia encará-lo. Hesper, por sua vez, tinha um brilho vitorioso no olhar. Pela reação delas, não era muito difícil deduzir o que havia acontecido.

Ele se aproximou da irmã beijando-lhe a testa; pousou outro beijo na mão de Rosette e um terceiro nos lábios da esposa.

— Fico feliz em saber que minhas garotas favoritas estão se dando bem.

— Por que não estaríamos? — Belvina respondeu, um pouco mais recomposta. — Também estou feliz em revê-lo, irmão.

— Deveríamos nos reunir mais vezes — ele disse. — E você, Rosette, está maravilhosa.

Estava sendo sincero. A cunhada era uma delícia para os olhos. Imaginou quão deleitoso seria tirá-la daquele vestido de festa.

— Obrigada — ela respondeu, observando Hesper de soslaio. A mulher continuava com um sorriso sereno no rosto.

— E você, minha esposa, está simplesmente estonteante.

— Eu vou procurar Herbert — Belvina o interrompeu — Creio que deseja matar as saudades de Hesper.

Assim que a irmã mais nova de Sirius partiu, Rosette ficou sem reação. Talvez com o tempo pudesse se acostumar com o desconforto da situação, mas não naquela noite.

— Querem que os deixem a sós? — ela perguntou.

— Na verdade, eu vim roubar Hesper de você. Gostaria de levá-la para dançar.

— Será um prazer, meu caro. — ela estendeu a mão para o marido.

Os dois seguiram com elegância para o centro da pista deixando para trás uma Rosette ainda incapaz de compreender o enigma que era o casal Black.

*******


Sirius cingiu a cintura da esposa com delicadeza enquanto os acordes de uma valsa começavam a preencher o ambiente. Hesper se deixou guiar, apreciando a cadência daquele bailar. O marido sempre foi um exímio dançarino, e aquele era um dos prazeres que efetivamente compartilhavam. Ela fechou os olhos para aproveitar melhor a satisfação daquele momento.

O homem deu meio sorriso ao observar o semblante extasiado de Hesper. Poderia não nutrir sentimentos verdadeiramente românticos pela esposa, mas continuava atraído por ela, por sua beleza e sua inteligência.

Ele se lembrava da primeira vez que a encontrara. Sirius tinha vinte e quatro anos, ainda aproveitava seus dias de bon vivant quando seu pai anunciou o noivado com a caçula dos Gamp. Apesar de contrariado, ele aceitou os desígnios do velho Phineas Nigellus. Era o filho mais velho, responsável por dar continuidade ao legado dos Black e aquele casamento era benéfico a ambas as famílias. Foram formalmente apresentados poucos meses antes do casamento em um chá na casa dos sogros. Quando ela se levantou na sala de estar e o encarou com aqueles olhos violetas altivos, embora conseguisse perceber um ligeiro temor no fundo deles, Sirius não enxergou a menina inexperiente com quem iria se casar, mas a mulher excepcional que ela poderia se tornar, e estava certo.

Ele depositou um beijo na curva do pescoço dela, sentindo a esposa estremecer. Hesper abriu os olhos, encontrando um sorriso malicioso de Sirius.

— Um pouco de compostura. É a festa da sua neta. — ela disse, em um tom pretensamente sério, embora o sorriso a traísse.

— Não pode me culpar por você estar particularmente tentadora hoje. — ele retorquiu.

— Mais que Rosette? — Hesper ergueu de leve a sobrancelha.

Sirius soltou uma risada curta. Sabia que não eram ciúmes o que movia Hesper. Ela apenas tentava provocá-lo.

— Igualmente tentadoras. — ele respondeu, ampliando ainda mais o sorriso, como um predador diante da presa.

Hesper também riu. Depois de todos aqueles anos, não caía mais tão facilmente nos truques de Sirius.

— Então, meu caro, você está diante de um grande problema. Arc nos convidou para pernoitar. A questão é, vai dividir sua cama com seu brinquedo novo ou com o antigo?

O homem aproximou-se do ouvido da esposa, sussurrando de modo insinuante.

— Por que não os dois?

Embora Sirius ainda a segurasse pela cintura e continuassem dançando, Hesper aumentou o espaço que havia entre eles. Seu semblante era sóbrio e ligeiramente carregado.

— Eu gosto de Rosette, não quero estragar minha amizade com ela por causa de qualquer fantasia que possa ter sobre nós duas. Além disso, você não prometeu a ela que a respeitaria na minha presença?

— Promessas são feitas para serem quebradas. — ele respondeu com desdém.

A esposa de Phineas lembrava a Hesper muito ela própria antes de se casar com Black. Determinada, senhora de si, mas ainda com certa inocência. Seus laços se estreitaram nos últimos meses de convivência, fazendo com que nascesse uma vontade de poupá-la no que fosse possível.

— Eu estou falando sério. Rose é uma boa moça, o que estiver ao meu alcance para tornar a vida dela um pouco mais amena, eu farei.

— Sabe, assim fico com ciúmes... — Sirius falou, tentando retomar o controle da conversa; entretanto, a expressão de Hesper continuava fechada. Ele encolheu os ombros, sentindo-se vencido. — Tudo bem... Eu não vou abrir mão de Rosette, isso não posso fazer, nós temos um trato; mas, vou limitar minhas fantasias menos ortodoxas apenas a você.

A mulher sorriu, sentindo se um pouco mais aliviada.

— Isso não vem de graça, não é? — conhecia o marido suficiente para saber que ele sempre desejava algo em troca para abrir mão de seus caprichos.

— Nada que você não tenha feito antes — ele respondeu, o sorriso malicioso voltando aos lábios — Na próxima vez que você for a Londres para me ajudar com os contratos do nosso novo empreendimento, vou contatar nossa acompanhante de sempre.

— Você é um velho safado, Sirius Black — ela respondeu, rindo.

— Mas, tendo em vista o acordo que acabamos de firmar, hoje à noite vou me divertir com meu brinquedo novo.

Ele rodopiou com um pouco mais de velocidade com a esposa nos braços na pista de dança, se sentindo vitorioso. Poderia ter aberto mão de algo que poderia lhe trazer muito prazer, contudo Hesper saberia compensá-lo. Apreciava aquela relação que às vezes se assemelhava a um jogo de xadrez. Se ele era um rei entre seus pares, a esposa, com os anos, tornara-se realmente uma esplêndida rainha.

*******


Rosette observava pelo canto dos olhos a interação entre Sirius e Hesper à mesa do café. A forma como ele a olhava, às vezes parecia hipnotizado. Era quase difícil acreditar que aquele homem não nutria algum tipo de paixão pela esposa, não fosse o fato da própria Rose ter compartilhado o leito com o patriarca dos Black. Ela levou à boca mais uma colherada de feijão branco com molho de tomate e um pedaço de salsicha, se perguntando como a família estava conseguindo tais iguarias em meio ao grande racionamento que se abatera no país.

Sirius levantou-se da mesa, sem não antes depositar um beijo suave nos lábios de Hesper. Ele lançou um olhar sério para Rose em despedida.

— Tem certeza que não quer ficar para o almoço, pai? — Arcturus perguntou, enquanto seguia o mais velho em direção à porta.

Sirius meneou a cabeça, assertivamente.
— Londres me aguarda com urgência, Arc. Ainda mais com uma guerra para se manter longe do dinheiro da família. Os trouxas se matam e nós quem sofremos.
Rose suspirou ao ouvir aquilo, pensando em Phineas e no quão realmente ele era diferente do resto da família. Aquela estada na casa de Arcturus estava sendo bem educativa.
Os homens se afastaram cada vez mais, deixando apenas ela e Hesper no recinto. Tanto Melania quanto Lucretia e as gêmeas ainda estavam dormindo.
Hesper notou que a mulher mais jovem estava apreensiva e tensa. Ela compreendia que a noite anterior trouxera alguns momentos desagradáveis, porém a maior parte da festa havia sido bastante aprazível.
— Qual o problema, Rose? — a matriarca dos Black perguntou, antes de levar a xícara de chá aos lábios e pousar seus orbes violetas sobre a mais jovem.
— Eu fiz alguma coisa errada? Sirius está com raiva de mim? — ela perguntou sem esconder o temor de ofender o cunhado e perder a proteção que conseguiu para as filhas.
Hesper compreendeu as dúvidas de Rosette. Sirius havia dito que passaria a noite com a cunhada, entretanto foi na porta da esposa que ele bateu murmurando que “Não gostava de brinquedos quebrados”.
Ela pousou com delicadeza a xícara sobre a mesa, e fitou Rosette com carinho.
— Ele não está com raiva de você. Apenas não te deseja mais. Você já deu o que ele queria, que era ver Phineas sofrendo.
Rose mordeu o lábio inferior, temerosa. Aquilo parecia ser a confirmação de seus medos mais profundos.
— Ele vai expulsar a mim e às meninas?
— Oh não... Manter sua família separada ainda faz ele muito feliz. Vamos deixá-lo acreditar que conseguiu. — a mulher respondeu dando uma piscadela divertida para Rosette.



Hesper observava o cunhado brincar com as duas gêmeas, praticamente rolando com as meninas sobre o gramado. Apesar de quase dois anos recebendo Phineas para aqueles encontros com as gêmeas, ela ainda se surpreendia com a forma carinhosa como ele as tratava. Nunca, em todos os anos de casamento, Sirius se dispusera a brincar com os filhos. Embora, ele estivesse sempre atento à educação deles. Da mesma forma que, surpreendentemente, depois da festa de Lucretia, ele começara a se interessar pela educação das sobrinhas. Sobretudo de Betelgeuse. Hesper sabia o que ele planejava e tranquilizava Rosette quanto a isso. Bete e Marge ainda eram filhas de Phineas e Rose. Mesmo que Sirius esperneasse, a esposa não deixaria que o patriarca conduzisse o destino das meninas a revelia dos pais, assim como não permitiu que fizesse com Lycoris.
Phineas se levantou, postando as mãos nos joelhos, observando as garotas ainda correndo.
— Um minuto, que eu já volto. — ele disse, ligeiramente arfante. — Papai precisa de uma xícara de chá.
Ele sentou-se à mesa, se servindo com uma generosa porção de Earl Grey, e alguma torradas com geleia.
— Bete hoje estava mais falante que o normal — ele comentou, de forma casual, antes de fitar Hesper de maneira mais incisiva — Quem é Tomek?
Hesper sorriu, afinal, o garoto passou alguns dias ali com elas, apreciando o agradável interior inglês, nas palavras da mãe dele, Emilja, que também desfrutara da estada. À convite de Sirius, obviamente. A guerra trouxa havia prejudicado um pouco a circulação de todos, mesmo os bruxos. Mas o marido havia dado um jeito de trazer os convidados da Polônia.
— Ele é filho do Barão Grygiel. Acho que já ouviu falar dele, digo, do pai...
O cenho de Phineas se carregou. Sim, ele conhecia o Barão por sua fama de carniceiro e por suas associações com Grindelwald e seus asseclas.
— E por que a minha filha de sete anos está dizendo que vai se casar com esse garoto?
Hesper quase riu ao perceber que a reação do cunhado era exatamente a que ela previra. Entretanto, se conteve. Não desejava se indispor com Phineas.
— Porque seu irmão cismou com isso e faz dois anos que planeja o enlace dos dois junto com o Barão. — ela respondeu, com extrema delicadeza.
Contudo, o tom dela, ao invés de acalmar o homem, o enervou ainda mais.
— Sirius enlouqueceu? — ele esbravajou.
— Completamente. — Hesper respondeu, dessa vez sem conseguir conter o riso.
Phineas passou a mão por entre os cabelos, exasperado. A ponto de querer pegar as meninas e tirá-las dali o mais rápido possível.
— É você ainda ri?
— Phin... Como você mesmo disse, Bete tem só sete anos. Ela não vai se casar com Tomek amanhã. E provavelmente nunca. Essa guerra ainda vai acabar... Deixe esses dois velhos tolos planejarem o futuro das crianças, acreditando que dominam tudo, quando na verdade não sabem de nada.
O jornalista suspirou, um pouco mais calmo. Hesper tinha razão, a arrogância do irmão era um trunfo sobre ele. E a cunhada sabia muito bem como gerencia-la. Caso contrário, ela teria permitido que a própria filha entrasse em algum casamento infeliz.
— Tudo bem... — ele concordou, ainda que não totalmente seguro sobre a situação — Hoje Marge perguntou de novo quando vamos quebrar a “maldição” que não deixa eu e Rosette estarmos no mesmo lugar...
— Eu sei que a desculpa que demos para as meninas não é a ideal, mas não deixa de ser uma maldição, não é? Sirius já tolera que eu permita que você venha aqui, mas interagir com Rose... Ele ficaria possesso...
Phineas abaixou a cabeça, pensativo. Ele se tornara refém do irmão. Ele, a esposa e as filhas. Todos dependendo do bom humor e da boa vontade de Sirius em proteger as sobrinhas. Mas aquilo acabaria em breve, ele estava muito, muito perto mesmo, de encontrar o artefato que Dumbledore lhe incubira de localizar.
— Eu preciso ir. — ele falou, tirando o relógio do bolso e conferindo as horas.
A cunhada lhe lançou um olhar malicioso, enquanto sorria por trás da xícara de chá.

*******


O fim da tarde se descortinava preguiçosamente nos vastos terrenos da propriedade de campo dos Black em Cheshire. Os últimos raios de sol brilhavam por entre as folhas, seus feixes tal como pequenos pingentes de cristal lembravam aos que viviam ali que a magia estava em todos os cantos, até nas mais pequenas situações.
Perdida em pensamentos como aqueles, a morena de olhos verdes e longos e encaracolados cabelos cor de azeviche, caminhava tranquila em direção à orla da floresta. Trazia consigo algumas sacolas com as compras que fizera no vilarejo. Os demais mantimentos chegariam no dia seguinte. Rose se tornara responsável pelas compras mensais da casa. Era o mínimo que podia fazer em agradecimento à hospitalidade de Hesper. “Coincidentemente” realizava a tarefa nas tardes em que o marido visitava as filhas. Era um boa desculpa, caso Sirius lhe perguntasse.
Ela abriu a porta do chalé, que muito tempo atrás pertencera ao falecido caseiro dos Black, com um pouco de dificuldade, equilibrando-se, entre o segurar da chave e as sacolas. Quando conseguiu finalmente entrar depositou os conteúdos sobre a mesa.
Só nesse instante ela percebeu o delicado ramo de flores que também estava ali— lírios. Suas favoritas.
Não havia, realmente, motivos para que ela se surpreendesse com o gesto. Durante anos ele a presenteara com aquelas flores, sempre naquele mesmo dia, sempre daquela mesma maneira.
Ela acariciou ligeiramente as pétalas macias, agradecendo interiormente por aquele lugar e, principalmente, pela aliada e amiga que encontrou em Hesper.
Rosette meneou a cabeça, quando notou um par de mãos a tampar-lhe os olhos, já adivinhando quem poderia ser.
— Phineas... — ela murmurou, com satisfação.
O moreno de olhos azuis deu um sorriso alegre enquanto a esposa se virava para encará-lo.
— Feliz aniversário — ele disse, tomando Rose em seus braços, depositando um delicado beijo na fronte da mulher.
— Obrigada — ela respondeu, deixando-se ficar no calor do abraço dele.
— As meninas disseram que vocês devem ter um bolo hoje à noite — Phineas disse, fazendo um pequeno cafuné no topo da cabeça da esposa. — Marge queria que eu ficasse...
— Imagino... — Rosette suspirou.
Ela sabia que não poderia encontrar felicidade e vida que não fosse ao lado do marido, contudo, ambos concordaram que a segurança das gêmeas era prioridade. Por isso, nesses dois longos anos, com a cumplicidade de Hesper, Rose e Phineas agiram como amantes, e não como marido e mulher que de fato eram. Continuaram a compartilhar uma vida juntos, porém, às escondidas.
Ele a carregou no colo, o que fez com que Rosette desse um pequeno grito de susto, seguido de uma risada. Como tantas vezes antes, ele a depositou na pequena cama do chalé e a beijou. Sentiu que ela suspirava entremeio às carícias. Phineas sabia que amava Rose mais que tudo. Foi preciso que ele quase perdesse a família para compreender que sua luta seria em vão sem ela ao seu lado.
— Semana que vem eu vou para a França com Goddriac. Vou cumprir a promessa que fiz a Dumbledore — ele falou, ao se separar dela enquanto a mulher lhe encarava com os olhos verdes e inquiridores, com a cabeça ainda suavemente pousada no travesseiro.
Percebendo que a respiração de Rosette estava quase suspensa, Phineas desejou tranquiliza-la, revelando a sua resolução.
— Já conversei com Good e com Willie. Goddriac vai comprar o jornal e ela vai assumir a direção. Quando voltar da missão, eu e você podemos pegar as meninas e ir para onde você quiser, Rose...
A mulher levantou o rosto, selando os lábios de Phineas em um impulso. Aquilo era o que ela mais desejava ouvir fazia anos. Parecia-lhe quase impossível que ele abrisse mão de tudo por ela e as filhas.
Não foi necessário que a mulher dissesse nada para que o jornalista soubesse o quanto ela estava feliz com a notícia. Os dedos ansiosos abrindo os botões da sua camisa em meio aos beijos eram indicação suficiente.



Vislumbrando as ondas se quebrarem na proa do navio, Phineas só pensava em Rosette. No sorriso com que ela se permitiu dar ao se despedir dele, em sua confiança na promessa do jornalista de que começariam uma nova vida depois que retornasse, longe de todos que pudessem prejudica-los. Não precisariam mais se encontrar às escondidas. E seriam novamente felizes.
— Sonhando acordado, meu amigo? — o loiro se aproximou, colocando o a mão no ombro de Black.
— Um pouco — ele respondeu, sorrindo.
— Não queria te fazer acordar para a realidade, mas estamos quase chegando. — Goodfellow disse, um pouco mais sério.
Phineas anuiu, com o semblante bastante carregado. O país que eles iriam entrar não era a França livre e alegre que visitara em sua juventude, mas um país ocupado pelos nazistas, dominado pelo medo e pela desconfiança. E, ainda assim, que se mantinha resistente nas sombras. Se o artefato não fosse tão necessário a Dumbledore e tão perigoso se caísse em mãos erradas, Black não arriscaria. Tampouco levaria um bom amigo como Goddriac consigo.
Exatamente por isso não foram direto para a França, mas sim para a Portugal, onde pegariam uma chave de portal que os levaria até a Paris ocupada. Embora fosse oficialmente neutro na guerra, os lusitanos ainda mantinham relações cordiais com o Reino Unido, o que era relativamente contraditório, levando em conta que seu governante, Salazar, possuía tendências fascistas mas era simpático aos Aliados.
Não demorou muito para que o contato providenciado por Dumbledore os encontrasse no cais e discretamente acenasse para os dois. Era um antigo aluno de Hogwarts, que Goodfellow reconheceu prontamente como um ex-colega da casa dos Texugos.
Os homens caminharam discretamente em direção ao outro e, em um falso empurrão, Goddriac pegou o galeão de ouro que serviria como chave.
— Sinto muito — o ex-lufano, murmurou, em um português carregado, se afastando.
Assim que o outro homem já estava longe, Phineas e Goddriac seguiram a passos rápidos para um beco próximo.
O loiro abriu a mão, mostrando a moeda dourada para Black, que sorriu, aliviado. O jornalista postou a mão do ombro do amigo, que contou até três. Os dois fecharam os olhos involuntariamente e quando os abriram estavam em um apartamento pequeno, entulhado de livros e pergaminhos. Um homem de meia idade, com entradas visíveis entre os cabelos grisalhos os cumprimentou, enquanto ajeitava os óculos que lhe escorregavam pelo nariz.
— Goddriac, Black. É um prazer finalmente conhecê-los.
— Professor Henri Lefoux — Phineas estendeu a mão — o prazer é todo meu.
O homem retribuiu o aperto de mão.
— Então — Phineas continuou — o senhor realmente conseguiu localizar o Aureos Oroburus Sibilae?
O acadêmico assentiu.
— Está em uma das Catacumbas de Paris, na parte bruxa e mais profunda. Eu os levarei lá, mas peço um favor em troca...
Goodfellow fechou o cenho, ligeiramente alterado.
— Esse não foi o combinado, professor Lefoux.
O homem arqueou os ombros, em um suspiro tão profundo que quase se encurvou dentro de si mesmo. Era como se o peso do mundo o estivesse oprimindo naquele momento, tal qual fazia com Atlas na mitologia. As coisas haviam piorado bastante nos últimos dois dias, e, aqueles ingleses talvez fossem a única forma de salvar mais algumas vidas.
— Eu tinha um amigo...Rudolph Evansberg... Talvez seja melhor eu lhes mostrar...
Com um aceno de varinha, Lefoux abriu uma passagem secreta atrás de uma estante de livros. Em um lugar que mal cabia uma pessoa, estavam uma mulher e três crianças. A expressão deles era de pura desolação.
— Esta é Liesel Evansberg. E seus filhos, Yossef, Hans e Hannah.
Bonsoir... — a mulher murmurou, baixinho, segurando a filha de dois anos, que dormia em seu colo — Esses são os ingleses que podem nos ajudar, Henri?
Antes que o francês respondesse, Phineas se adiantou, sem não antes trocar um olhar cúmplice com Goodfellow.
— Sim, somos nós. — Black respondeu.



Enquanto arrumava as coisas dentro da mochila para entrarem nos túneis que cortavam os subterrâneos da capital francesa como um labirinto quase indecifrável, Phineas pensava na mulher judia e seus filhos, escondidos na casa de Lefoux. Os três bruxos haviam conjurado juntos um feitiço de proteção forte suficiente para mantê-los a salvo enquanto estivessem fora.
Liesel dormia abraçada com as crianças, na cama do professor, que havia sido aumentada com um engorgio pelo homem. Pelo que ela e o acadêmico haviam contado aos ingleses, naquela tarde, Rudolph havia sido assassinado, enquanto despachava a esposa de sangue trouxa e os filhos para casa do amigo via Pó de Flu.
Henri, assustado com a chegada súbita, acolheu os fugitivos, ao mesmo tempo em que conseguiu informações com alguns amigos de confiança. Estavam capturando os judeus residentes na cidade, tanto da zona ocupada quanto da livre, e os encarcerando no Vélodrome d'Hiver, um antigo estádio parisiense. Sem água, sem comida, sem condições sanitárias básicas.
— Um fidelius não seria mais seguro? — Black escutou Goodfellow perguntar — Um de nós pode ser o Fiel do Segredo.
— Certamente — o professor concordou — mas, se fosse tão simples assim, todas as casas bruxas da cidade já estariam enfeitiçadas. A única chance é vocês levarem eles, escondidos com feitiço desilusório, até os limites da cidade. Eu tenho um contato que ficou de conseguir uma chave de portal de volta para Portugal. Chaves de portais estão cada vez mais raras de se encontrar no mercado negro...
Goodfellow olhou para Phineas, que simplesmente assentiu, compreendendo as preocupações do amigo. Os riscos eram altos, mas também não poderiam simplesmente ignorar uma mulher e crianças em perigo. O filho mais velho tinha a mesma idade de Marge e Bete.
— Estamos prontos — o jornalista disse, enquanto colocava a mochila nas costas.
Os homens saíram da casa, para a escuridão da noite. Os feitiços que haviam colocado provisoriamente na residência não permitiam que eles aparatassem de dentro dali. Eles se entreolharam, e, depois de um aceno de cabeça, três sons de “cracs” quebraram o silêncio da noite.
No instante seguinte, eles estavam na entrada principal das conhecidas "Les Carrières de Paris" — As Pedreiras de Paris. Embora a parte mais famosa fosse o ossuário, chamados comumente de Catacumbas, aqueles túneis eram bem mais antigos, escavados desde a época dos romanos. Fornecendo material para a construção de lugares importantes, como a Catedral de Notre Dame e o Louvre.
Eram como veias subterrâneas cortando a cidade, algumas partes se tornando o lar de milhões de ossos, depois que o cemitério de Saints-Innocents se tornou uma fétida cova coletiva a céu aberto, inundando Paris com seu fedor em 1780. Nos anos seguintes, os corpos foram transportados para o subsolo.
Contudo, não apenas os ossos encontraram um novo lar. Vários bruxos aproveitaram a movimentação para esconder coisas importantes e perigosas. Um delas era o Aureos Oroborus Sibilae, um livro antigo, que foi roubado de Hogwarts no século XV. Pelo menos era isso que indicava a pesquisa de Lefoux. Ele havia passado grande parte da vida acadêmica estudando o artefato, e os últimos cinco anos desmontando as proteções mágicas dos túneis que abrigavam o Aureos
Goodfellow olhou para a entrada das Catatumbas, lendo: Arrète! Cest ici l'empire de la mort — Pare! Este é o Império da Morte. Um arrepio percorreu sua espinha e ele pensou consigo que naqueles tempos sombrios, especialmente na cidade ocupada, aquela era uma verdade palpável, não apenas debaixo de Paris. Embora estivessem sob o disfarce de feitiços desilusórios, Goddriac desejou ter uma capa de invisibilidade naquele momento.
Lefoux acenou a cabeça, fazendo com que os dois homens o seguissem. O caminho que precisavam pegar era longe da entrada principal. Ele já havia desfeito quase todas as defesas do livro, mas precisava de uma coisa que só Black poderia fornecer. O sangue de um descendente de uma das “Sagradas Vinte e Oito Famílias”. Embora o termo tivesse sido cunhado nos anos 30, basicamente significava que precisava de alguém de uma linhagem bastante antiga, descendente apenas de bruxos puro-sangue. Embora os Goddriacs fossem uma família tradicional, existiam alguns mestiços em sua árvore genealógica.
Os túneis eram tranquilos, escuros e úmidos, carregados de melancolia. Ou talvez esse sentimento viesse dos homens, que caminhavam em silêncio, até que Goodfellow, percebendo o quão longe estavam da superfície e afastados do perigo, decidiu falar.
— O que você acha que tem no livro? — ele perguntou.
Lefoux ponderou antes de responder, entre teorias e incertezas, ele chegou na conclusão que compartilhou com Dumbledore.
— Uma chave. — ele afirmou. — O Aureos é um compendio de famílias puro sangue inglesas, seu nome e o de Black devem estar nela. Existem seitas que creem que ele revela uma profecia. Pessoas perigosas aliadas a Grindelwald. Mas eu acredito que seja uma chave para algo maior que os Quatro Grandes esconderam para proteger Hogwarts.
— Ou ser usado como uma arma — Phineas completou, lembrando-se das palavras de Dumbledore — Capaz de destruir cidades inteiras.
— Um dragão, talvez? — o loiro perguntou, curioso.
Sem que percebesse, Black começou a rir diante de tamanho absurdo.
— Que imaginação, Good — ele gracejou.
Goddriac riu também mas falava a sério.
— Nunca pensou que o lema da escola pode ser sobre isso? Draco dormiens nunquam titillandus.
— Nunca cutuque um dragão adormecido — Phineas traduziu quase automaticamente — Os Quatro Grandes eram poderosos, mas adormecer um dragão e colocá-lo dentro do castelo! Isso seria além do imaginável.
— Eu acho plausível — Goodfellow insistiu — Quando eu estudava em Hogwarts, descobri uma passagem secreta com essa mesma inscrição que dava para um pequeno salão. Havia uma barreira, cerrada por pesadas cortinas, que sempre me impediu de ver o que se escondia atrás. Por que não um dragão?
— O que acha, Lefoux? — Black perguntou.
O professor ajeitou os óculos, dizendo.
— Não duvidaria. E creio que em breve, vamos descobrir. Chegamos.
Os homens pararam, observando buraco escavado na parede, onde o Aureos repousava. Embora não fosse perceptível a olho nu, os três conseguiam sentir a barreira de energia que circundava o local.
Phineas abriu a mochila, tirando de lá uma adaga de chifre de árpeu. Sangue era algo poderoso. Ele lembrou-se de Aribeth ao pensar nisso, na Antiga Magia que ela manipulava, tão diferente daquela que ele aprendera desde menino. Era isso que estava para acontecer ali, com ele.
Com um golpe rápido, fez um talho na própria mão. O sangue imediatamente gotejou, farto. Sem se importar com a dor ou com o líquido que escorria por seu braço, começando a empapuçar-lhe o terno escuro, Phineas se aproximou da barreira de energia, estendendo a mão ferida em sua direção. Os olhos de um azul profundo tornaram-se momentaneamente translúcidos. Observando seu sangue correr como um rio vermelho, formando o desenho de runas antigas, Black sentiu as pernas fraquejarem, e as mãos de Goddriac o segurarem pelos ombros.
— Tudo bem ai, amigo? — o loiro perguntou.
Black apenas assentiu, percebendo que não estava tão bem quanto desejava transparecer. Contudo, a barreira havia sido quebrada e Lefoux já havia pegado o livro e guardado na mochila que antes estava com Phineas.
O jornalista fez o resto do caminho apoiado em Goddriac.
— Vai conseguir aparatar sozinho? — o loiro perguntou, preocupado.
— Acho melhor não — Phineas, respondeu, com sinceridade.
O professor observava a interação dos ingleses em silêncio. Apesar da tensão, Lefoux sentia-se quase satisfeito. O trabalho de uma vida rendera frutos e poderia ser a diferença no embate contra Grindelwald. Em poucos minutos estariam de volta a seu apartamento, e, em breve, a família de seu falecido e querido amigo estaria segura, longe de Paris.



Os ingleses passaram o dia inteiro na casa de Lefoux descansando. Haviam voltando tarde da missão e não era sensato saírem em pleno dia com uma família de fugitivos. Black caiu em um sono profundo e sem sonhos, exaurido em decorrência da barreira que quebraram. Lefoux e Goddriac se alternavam reforçando os feitiços de proteção que haviam lançado na casa.
Foi uma dia longo, com um misto de tensão e esperança. Quando finalmente a escuridão cobriu com seu manto denso a cidade, a família judia e os dois ingleses puderam partir no carro de placa adulterada de que o professor francês havia providenciado. Não faltava muito para o toque de recolher, ainda assim, tinham tempo suficiente para chegar até o limite da cidade e ao ponto de encontro no horário combinado com o contato de Lefoux.
Liesel e as três crianças se acomodaram silenciosamente no banco de trás do jipe, protegidos pelos feitiços desilusórios. Goddriac assumiu a direção enquanto Phineas fez as vezes de copiloto, lendo o mapa para o amigo, de forma a chegarem o mais rápido possível no seu destino.
Não demorou mais que meia hora para se aproximarem do ponto onde a cidade terminava e a possibilidade de segurança se tornava cada vez mais concreta.
Contudo, dizem as más línguas que o universo é regido pela Lei de Murphy e quando o Destino resolve jogar os dados da sorte da vida de alguém, ele torce para que o apostador perca. E foi exatamente o que aconteceu naquela noite.
Mesmo Lefoux tendo garantido que a área em questão era pouco patrulhada, um jipe os fechou com violência. Os pneus cantando estridentemente. Dois oficiais alemães desceram do caro com armas em punho. Um deles, mais jovem e de cabelos escuros, era visivelmente de baixa patente, um soldado. Já o loiro mais alto parecia ser um tenente ou capitão. Era difícil ver as insígnias no meio da penumbra da noite .
Que faites-vous ici?— o mais jovem perguntou em um francês carregado de sotaque. (O que você está fazendo aqui?)
Goddriac e Phineas trocaram um olhar rápido. Goodfellow não sabia o idioma, e seu desejo era estuporar aqueles homens e partir. Black achava aquilo poderia arriscar desnecessariamente todos eles e preferiu tentar argumentar. Os homens discutiram silenciosamente por Legimancia, e, apesar do protesto do loiro, Phineas desceu do carro, com as mãos levantadas.
Liesel e as crianças se encolheram ainda mais no banco traseiro, tremendo.
Black respirou fundo, antes de criar coragem para encarar os soldados alemães. Pensou em Rosette e nas gêmeas, na promessa que eu havia feito de voltar em segurança. Ele iria cumpri-la.
Ah, bonsoir, messieurs. Je vis de l'autre côté de la frontière. Je veux juste retourner chez moi.— ele disse em um francês fluente, embora um pouco enferrujado.
Pas de documents, pas de passage.— o soldado alemão reforçou o pedido.
S'il vous plaît, monsieur ? Je vous en prie.— Black insistiu.
O soldado mais jovem parecia ainda indeciso. Ele voltou-se para seu superior em busca de orientação.
Herr, was soll ich machen?— ele perguntou.
O outro oficial apenas deu de ombros. Para ele aquela situação estava se alongando mais que o necessário. Queria voltar logo para a sede e tomar uma boa dose de Jägermeister .
Langweilig. Töte ihn.— o superior respondeu com uma expressão fria e desdenhosa.
Tudo aconteceu muito rápido. O soldado levantou a Maschinenpistole 40, lançando uma saraivada de tiros e abafando os gritos de Goddriac como testemunha horrorizada da cena.
Phineas conseguiu apenas fechar os olhos, sentindo as balas perfurando seu corpo. Ele se despediu do mundo, levando Rosette em seu coração.
Tudo continuou de maneira confusa e desordenada. Goodfellow saiu do carro com a varinha em punho, lançando feitiços que posteriormente não conseguiria lembrar quais foram mas que derrubando os dois alemães de forma violenta.
Ele correu até o corpo do amigo e com um levecorpus o transportou até o carro. Ainda com a adrenalina correndo nas veias, Goddriac acelerou o jipe, cantando os pneus. Ele apenas desejava sair dali sem olhar para trás. O homem sentiu o rosto úmido, mas tentou ignorar a emoção que parecia querer apossa-lo. Mesmo perdendo o amigo, ainda havia vidas a salvar. Devia isso ao sacrifício de Phineas.

*******


A dor era tão grande que o mundo parecia tingindo de vermelho. Rosette não refreou a avalanche de sentimentos que tomava conta dela. Tudo ao redor parecia ter ruído. Não havia mais chão que a sustentasse. Ela se deixou cair no piso de madeira e permitiu que o pranto tomasse conta de seu ser.
Seus soluços e choro ecoavam pela casa, atraindo a atenção de alguém.
Hesper entrou no recinto, assustada, encontrando Rose sentada no chão do quarto, o cabelo caindo sobre o rosto, uma das mãos sobre os olhos, enquanto a outra segurava a mensagem que acabara de chegar de Portugal, em meio a soluços tão fortes que seu corpo tremia em um espasmo involuntário cada vez que um se formava.
Rosette cerrou os olhos, apoiando a cabeça na parede, estendendo o papel na direção da matriarca dos Black. Hesper pegou o pergaminho. Uma expressão de espanto e tristeza se imprimiu no rosto da mais velha.
— Eu sinto tanto. — a mulher de olhos violetas abaixou-se, sentando-se ao lado de Rosette. Colocando a mão por sobre seus ombros, a puxou com delicadeza, deixando que a mais jovem se apoiasse nela.
As duas permaneceram em um silêncio soturno, por vezes quebrado pelos soluços de Rose. Depois que todo o pranto se esvaiu, Hesper observou a outra com o canto dos olhos. O semblante de Rosette ainda possuía marcas de tristeza e desolação, entretanto um brilho tênue de determinação começou a se manifestar.
— Eu tenho que pensar nas meninas — ela falou, enxugando as faces molhadas com as costas das mãos.
— Vai contar para elas? — Hesper perguntou com suavidade.
Rosette meneou a cabeça. Era tarde, as gêmeas já estavam dormindo. Não iria acordá-las para contar que nunca mais veriam o pai.
— Amanhã...talvez... eu tenho que estar preparada... E tem tanta coisa para resolver... o translado... o velório... — nesse ponto Rose não conseguiu continuar, tapando a boca com as duas mãos, voltando a chorar. Não estava pronta para se despedir do marido.
Hesper voltou a puxa-la para perto de si, fazendo com que a cabeça de Rosette se aconchegasse no seu ombro.
— Querida, você não está sozinha. Eu vou estar do seu lado em tudo que precisar.


*******


Marguerith estava feliz. Ela sempre se sentia feliz quando se encontrava com Alphard. O primo era divertido. Ele a fazia se sentir mais segura perto dos adultos e também mais ousada nas brincadeiras. Betelgeuse, por outro lado, embora participasse dos folguedos com os outros dois, sentia-se, às vezes, um pouco enciumada com a cumplicidade que via crescer entre a Marge e o primo. Ela sempre foi levemente possessiva no que dizia respeito à irmã caçula. Entretanto, Bete acabava se rendendo e se deixando levar pelos dois. Era melhor participar que ficar emburrada em algum canto.
Naquele momento, os três estavam brincando de esconde-esconde nos jardins da casa da mãe do garoto, Irma. Esta, por sua vez, estava ocupada, tomando refresco ao ar livre na companhia da cunhada, Cassiopeia.

Betelgeuse se refugiou nas faias, próximas do pequeno lago, enquanto Alphard, sem se importar em sujar as roupas novas e receber as devidas broncas de Irma, subiu em uma árvore. Marguerith se escondeu entre os arbustos de azaleias, próximos de onde as mulheres conversavam animadamente.

— Então as bastardinhas estão aqui. — Cassiopeia falou, de modo bastante afetado.

“Bastardinhas?”, Marguerith pensou consigo que nunca tinha escutado aquela palavra antes, mas concluiu que a prima mais velha estava falando dela e da irmã.

— Você sabe que nunca é bom se indispor com Hesper e virar persona non grata na família. Além disso, Alphard gosta das meninas. É bom ter alguém para fazê-lo gastar energia. Cygnus não consegue acompanha-lo. Tanto que está até dormindo.

Irma tomou um gole de refresco enquanto Cassiopeia meneava a cabeça com uma expressão de desagrado.

— Eu realmente não entendo o que ela e Sirius viram naquela vadia para acolhe-la.

Cassiopeia soltou um risinho abafado e jocoso.

— Você sabe que o velho Sirius é um safado. E Hesper sempre tentou agrada-lo nesse sentido. A vadiazinha deve ser muito boa de serviço.

— Como você é má — Irma retrucou, rindo também. — O que eu sei é que agora Hesper está com a agregada resolvendo a lambança de Phineas.

Marguerith se encolheu, ficando no mais completo silêncio. Ao escutar o nome do pai, ela se esqueceu da brincadeira e passou a prestar mais atenção na conversa das mulheres.

— Quem diria que o “grande” Phineas Black, amante dos trouxas acabaria dessa forma. Irônico, não? Morto pelos próprios trouxas que tanto defendia. — Cassiopeia falou com desdém.

“Papai...Morto...por trouxas...”, Marge pensou, desesperada. Ela sentiu a garganta apertar e o pranto querer sair. Mas não desejava chorar perto das adultas. Sem que percebesse, suas pequenas pernas de criança a levaram para longe dali.

Alphard a encontrou, pouco depois, atrás de um carvalho. Completamente encolhida dentro de si mesma, a barra do vestido enlameada, os cabelos, antes impecáveis, completamente bagunçados. O garoto tinha pensando em comemorar a vitória por ter encontrado a prima tão facilmente, mas, ao vê-la em estado tão deplorável, ele se refreou.

— Marge... — ele balbuciou.

A garotinha continuou chorando, sem levantar a cabeça. Entretanto, Marguerith esticou a mão na direção de Alphard. Ele compreendeu o pedido silencioso de consolo. Enlaçou a mão de Marge, e sentou ao lado dela. Ficaria ali pelo tempo que ela precisasse.

*******


Tradução:
— Que faites-vous ici?: — O que você está fazendo aqui?
— Ah, bonsoir, messieurs. Je vis de l'autre côté de la frontière. Je veux juste retourner chez moi.: — Ah, boa noite, senhores. Eu moro além da fronteira. Eu só quero ir para casa.
— Pas de documents, pas de passage.: — Sem documentos, sem passagem.
— S'il vous plaît, monsieur? Je vous en prie.: — Por favor, senhor? Eu te suplico.
— Herr, was soll ich machen?: — Senhor, o que devo fazer?
— Langweilig. Töte ihn.: — Estou entediado. Pode matá-lo.



O escritório de Phineas continuava exatamente o mesmo que ela guardava na memória, mesmo depois de dois anos sem colocar os pés ali. A organização e o caos convivendo lado a lado. As anotações avulsas empilhadas na mesa, debaixo da caderneta com capa de couro de dragão que ele costumava comprar todos os anos. O tinteiro meio cheio. O quadro de avisos com vários pequenos lembretes. As fotos dela e das gêmeas a enfeitar a mesa.

Contudo, uma coisa diferia absurdamente das memórias de Rosette. Não era o marido quem a observava de trás da mesa do escritório. Eram olhos azuis como os de Phineas que lhe encaravam, porém os orbes anis pertenciam a um homem loiro, com uma expressão absurdamente desolada. Sentada também na sala, ao lado da viúva, estava uma mulher morena, que ao contrário da moda feminina vigente na época, usava os cabelos bem curtos, quase masculinos.

— Eu sinto tanto, Rose — o loiro disse quase em um fiapo de voz — Eu não pude fazer nada, foi tudo muito rápido.

Rosette apertou os dedos contra as palmas das mãos com força, segurando a vontade de novamente chorar. Ela sabia que Goodfellow Goddriac dizia a verdade. Entretanto, também podia sentir o peso da culpa em cada uma das sílabas proferidas pelo homem.

— Eu sei que não... — ela murmurou, postando uma das mãos sobre a de Goddriac — Você sempre foi um bom amigo. Eu não te condeno por nada que aconteceu na França.

O homem anuiu silenciosamente. Apesar das palavras da viúva do amigo, ele sentia que as memórias da noite em que Phineas Black morreu ainda lhe perseguiriam durante muito tempo.

— Rose... — a voz de Williamina ressoou pelo aposento, quebrando o mutismo que se instaurara entre os três — Eu sei o que este jornal representava para Phineas. E prometo que cuidaremos bem dele.

— Eu sei que sim... Phin sempre teve vocês em alta conta. — a viúva disse, sentindo os olhos um pouco úmidos.

— Nós já abrimos uma conta no Gringotes no seu nome e das meninas — Willie retomou — Só falta assinarmos a papelada.

Rosette assentiu, pegando o contrato que Goddriac lhe passava. Era a última coisa que faltava fazer desde que fecharam o inventário do marido.

Ela assinou o documento, resoluta, pensando consigo que agora que eram apenas ela e as gêmeas, chegou a hora de definir o que faria a partir dali. O dinheiro da venda do jornal era um começo. Precisava fazer o que fosse necessário para salvaguardar as meninas.

*******


Hesper observava o marido enquanto os dois ceavam silenciosamente na ampla sala de jantar da casa localizada em Grimmauld Place. Desde que contara a ele sobre a morte do irmão mais novo, Sirius estava ensimesmado, contudo, duvidava que fosse se lamentando pela perda de Phineas.

— Um galeão por seus pensamentos. — ela disse, fazendo com que o marido levantasse o rosto a fitando.

— Muitas coisas... — ele respondeu, enquanto bebericava uma taça de vinho tinto — A primeira delas é a ironia da situação. Meu irmão viveu como um tolo e morreu como um tolo.

Hesper discordava daquela afirmação, mas, pelo turbilhão dos últimos dias, não se sentia disposta a questionar o marido. Mesmo que não estivesse exaurida, sabia que convencer Sirius de que a morte do irmão era uma perda imensurável era inútil.

— A segunda — continuou ele — é que estou pensando na pobre Rosette e nas minhas sobrinhas. Foi realmente providencial termos acolhido elas...

A mulher fechou os olhos violetas por alguns segundos, antes de voltar a encarar o marido. Ela sabia que Sirius Black nunca foi e nunca seria um homem altruísta.

— Tudo isso por causa do casamento de Bete com Tomek Gryegel? — ela o cortou mais ríspida do que pretendia.

Sirius deu um meio sorriso, sem se surpreender com as palavras de Hesper. A esposa o conhecia plenamente e deduzira acertadamente as intenções.

— Minhas sobrinhas são joias preciosas e podem ajudar a garantir um bom futuro para todos nós, com dinheiro e influência. Quem sabe eu não consigo juntar a pequena Marge com Stephanio Ivory, filho do grande Kamus?

Hesper bateu o punho na mesa com força. Tudo de novo, da mesma maneira que aconteceu com Lycoris. Ela, a filha, Rosette, as sobrinhas... Todas as mulheres na vida daquele homem eram apenas objetos a serem usados como melhor lhe proviesse.

— Elas são crianças, Sirius! — a mulher falou visivelmente ressaltada — As coisas podem mudar muito até que se tornem adultas. E nem sempre vão terminar da forma que você deseja.

Sirius levantou-se da cadeira, parando na frente de Hesper, segurando o pulso da esposa.

— De uma forma ou de outra, eu sempre ganho — ele disse, sarcástico — A marca do Voto Inquebrantável nos nossos braços me diz o contrário. Eu perdi Lycoris, mas você será minha até o dia da minha morte, Hesper querida.

A mulher puxou o braço, com visível indignação.

— Eu não acho que Rosette queira ficar sob nossa proteção. Agora que Phineas está morto, aqueles que os perseguiam não tem mais motivos para ameaçá-la ou às meninas. Ela me disse que talvez vá para o Brasil, morar com uma amiga.

Sirius fechou o cenho, contrariado. Ele subestimara a cunhada, acreditava realmente que dando a ela e às sobrinhas do bom e do melhor nos últimos dois anos seria suficiente para lhe garantir alguma fidelidade. Teria que pensar em outra maneira de mantê-las junto da família.

— Você a ama, não é mesmo? — ele perguntou à esposa, com uma leve pontada de ciúmes. — Da forma como amou Monique?

Hesper meneou a cabeça ao se lembrar da antiga preceptora de seus filhos, com quem compartilhou alguns dos melhores momentos da sua vida. Com a entrada de Regulus em Hogwarts, Monique precisou ir embora. As duas sempre souberam que não era possível construírem um futuro juntas, mesmo que Sirius deixasse a esposa partir. Por isso, guardou cada um dos encontros que tiveram como doces lembranças que carregaria consigo até seus últimos dias.

— Não... Nunca como Monique — Hesper respondeu, sabendo que o marido, mesmo fazendo vista grossa para o antigo caso da esposa, nunca viu o relacionamento das duas com o mesmo desprendimento das aventuras que ele dividia junto com ela e as acompanhantes — Rose é como uma irmã para mim...

Sirius suspirou, percebendo que não conseguiria apoio da esposa no que dizia respeito aos seus planos para a cunhada e as sobrinhas. Hesper podia ter aprendido a ser moralmente flexível em seu casamento e nos negócios que mantinham juntos, porém os limites dela eram bem mais definidos que os dele.

— Tudo bem, querida — ele falou, depositando um beijo na fronte de Hesper, antes de voltar ao seu lugar. — Você sabe que eu não consigo ficar muito tempo sem contrariá-la. Eu posso perder algumas joias desde que não perca você, que é meu diamante.

Ela suspirou ruidosamente. Sirius não a amava, contudo, sempre foi obcecado por ela. Era como se ele necessitasse dela ao seu lado, como um vício do qual não era possível abandonar.

— Eu quero acreditar em você — ela disse — Quero muito mesmo.

O homem ergueu a taça de vinho em direção à esposa, dando um sorriso absurdamente sedutor em uma tentativa de reforçar suas supostas boas intenções.

— O Barão ficará decepcionado, mas acredito que posso persuadi-lo a manter os negócios conosco. Portanto, vamos brindar a Rosette e sua nova vida, onde quer que vá passá-la.

Hesper levantou a taça, mas não respondeu ao brinde, se contentou em sorver o liquido rubro e aveludado. Assim que Rose viesse a Grimmald Place, depois que terminasse de organizar as coisas na antiga casa que dividiu com o falecido marido e as filhas, a matriarca dos Black daria a boa notícia sobre a decisão de Sirius e ajudaria no que pudesse na partida de Rosette. Hesper apenas desejava que a concunhada e as sobrinhas fossem felizes, mesmo indo para longe dela.

*******


A vitrine da Borgins e Burkes continha em seu mostruário várias tsantsas, aparentemente recém adquiridas, apesar dos governos peruano e equatoriano terem proibido e tornado ilegal a venda desses artefatos cerca de uma década antes. Contudo, os donos daquela loja de artefatos de magia, geralmente não muito bem quista pela maioria da população bruxa, pareciam não ter dificuldades em adquirir as macabras cabeças encolhidas manufaturadas pelos povos Jivaro.
Sirius Black as observou por alguns segundos antes de decidir entrar no estabelecimento. Embora todas elas estivessem com as bocas bem costuradas com tecido, o homem teve a impressão que pelo menos uma delas lhe lançou uma discreta piscadela. Ele apenas meneou a cabeça, pensando consigo que em todos os anos de vida já tinha presenciado coisas muito mais estranhas.

A loja parecia vazia naquele momento, o que não surpreendeu o patriarca dos Black. Ele havia pedido ao cunhado para que o recebesse depois do expediente. Preferia que não soubessem o que havia trazido ele a Borgins e Burkes naquela noite.

Enquanto esperava o cunhado chegar até a frente da loja, possivelmente vindo do almoxarifado, Sirius percebia o discreto tilintar dos instrumentos de metal pontiagudos e enferrujados que pendiam no teto, enquanto máscaras sinistras de culturas de todo o mundo lhe encaravam de maneira diabólica, quase como se estivessem vivas.

— Boa noite, Sirius — Hebert Burke o cumprimentou, de modo extremamente polido.

Black pousou seus olhos no homem de cabelos castanhos, com visíveis entradas no topo da cabeça, e pequenos orbes escuros que o fitavam com atitude subserviente.

— Boa noite, Hebert. — ele respondeu com frieza e altivez. — Conseguiu o que eu te pedi?

Burke balançou a cabeça em negativa, com visível temor que o patriarca dos Black não se sentisse satisfeito com aquela resposta.

— Infelizmente eu não tenho nada no nosso estoque que seja tão indetectável e eficiente quanto a água-tofana. Inclusive essa própria mistura está em falta.

Sirius apertou com força o castão da bengala que usava, visivelmente contrariado. O tempo estava contra ele, necessitava colocar as engrenagens do seu plano para girarem o mais rápido possível.

— Eu preciso disso com urgência, Hebert.

O outro homem anuiu tirando uma caixa e um livro de capa vermelha e páginas amareladas debaixo do balcão, colocando na frente do cunhado.

— Exatamente por isso pensei que talvez outras opções além de poções poderiam ser boas alternativas para você.

Hebert abriu primeiramente a caixa escura de veludo, revelando um rico colar de opalas, digno de uma rainha.

— Essa belezinha é amaldiçoada. Até o momento já matou pelo menos oito pessoas, até onde conseguimos catalogar.

Sirius observou a peça com curiosidade, talvez se ele tivesse pensado nisso uns dois anos atrás, ninguém, nem mesmo Hesper, teria desconfiado. Não teria sido estranho dar um pequeno mimo para uma amante nova que lhe houvesse agradado, mas agora, a situação era completamente diferente.

— É uma peça magnífica, mas não para o que eu desejo.

Hebert assentiu, abrindo o livro velho em uma determinada página. O texto era um latim antigo, contudo, não pareceu ter confundido Sirius, que há anos estudando Artes das Trevas já se familiarizara com línguas arcaicas e praticamente em desuso.

Necromanus? — ele perguntou, curioso.

— Se você ainda tiver aquela segunda varinha que te consegui pode ser uma boa opção. O livro é do século X, mas acredito que o feitiço é mais antigo. Se você conseguir que a pessoa não esteja consciente quando lançar, é praticamente indetectável.

Sirius mantinha os olhos pregados nas instruções manuscritas em uma letra firme e elegante.

— Ele mata lentamente no decorrer de meses, até mesmo anos... Os medibruxos não poderiam identificar?

— O feitiço causa sintomas parecidos com os da Sindrome de Thanatus. Não foi disso que a senhora Blishwick morreu? Não vejo porque a filha não poderia ter herdado essa moléstia...

Black deu um meio sorriso pensando consigo que Burke não era um total inepto. Ele deduzira a vítima de Sirius com as pouquíssimas informações que lhe fornecera. Definitivamente Hebert mereceu ter se casado com Belvina. Não fosse o vício do homem pelo jogo, ele poderia ser ainda bem mais sucedido do que realmente era.

— Vou ficar com o livro — Sirius disse, depositando um pequeno saco de veludo azul cheio de galeões em cima do balcão — Nem preciso dizer que Hesper não pode saber disso.

Um sorriso perverso surgiu nos lábios de Burke, cujos olhos não se despregavam das moedas reluzentes.

— Seu segredo vai morrer comigo.



As cabeças da mulher e da garotinha estavam tão próximas que seus cabelos ondulados pareciam um único emaranhado de fios. Os orbes verdes de ambas fitavam com atenção o delicado desenho feito linhas de algodão no tecido claro firmemente preso no bastidor onde a mais velha traçava seu bordado.

A matriarca dos Black surgiu no batente da porta do quarto pousando com afeto eu seus olhos violeta nas duas figuras sentadas na cama. Apesar de toda situação dos últimos quase três anos, o semblante de Rosette mantinha-se sereno, fato que surpreendia imensamente Hesper. Ela às vezes se perguntava se conseguiria ter tamanha resiliência diante de uma doença incurável como aquela que a matriarca dos Black acreditava ter recaído sobre a concunhada. Talvez se ela soubesse a verdade sobre as causas da suposta enfermidade da amiga, ela sentiria revolta e não aquela conformidade melancólica.

— Como estão duas das minhas mulheres favoritas? — Hesper perguntou, enquanto notava que dois pares de olhos brilhantes como esmeraldas a encaravam.

— Tia Hesper. Que bom que voltou! — Marguerith, no alto de seus onze anos falou, em um misto de polidez e sincera alegria.

Rosette mantinha um sorriso angelical no rosto, notando que a matriarca se aproximava da cama, sentando-se ao lado da pequena Marge, agora rodeada pelas duas mulheres mais velhas.

— O que estão bordando hoje? — Hesper perguntou.

— Lírios e Rosas, as flores favoritas minhas e da mamãe. — Marguerith respondeu — Depois vamos colocar as orquídeas que a Bete gosta.

Hesper assentiu, ainda sorrindo. Aqueles momentos em família lhe aqueciam o coração.

— E onde está nossa querida Bete?

Rosette respondeu com um semblante levemente mais sério.

— Sirius decidiu vir hoje, e, desde que ela assistiu a vocês jogando xadrez na última vez que ele esteve aqui, ela não tirou da cabeça a ideia de jogar com ele também.

O marido não as visitava muitas vezes em Cheshire desde que Hesper se mudou para ali junto com Rose e as gêmeas por causa da guerra, mas quando passou a vir, depois da morte de Phineas, sempre dava uma atenção especial à Betelgeuse. Às vezes ela se perguntava se Marge se ressentia disso, contudo, ao mesmo tempo eram momentos em que a menina podia ter a mãe só para si.

— Ela se parece com ele mais do que eu gostaria de admitir. Contudo, ainda assim me surpreendo como ela consegue convence-lo a fazer certas vontades dela. — Hesper falou em meio a um discreto suspiro. Rosette por sua vez apenas concordou silenciosamente.

A matriarca dos Black virou-se para Marguerith com um sorriso encantador.

— Minha querida, sei que uma partida de xadrez é um acontecimento importante, mas poderia dizer para a sua irmã que cheguei do Beco Diagonal com os materiais escolares. Talvez Bete queira parar um pouquinho e ver o que trouxe para vocês.

A garota assentiu, levemente contrariada. Embora estivesse curiosa sobre Hogwarts e tudo que aprenderiam lá, ainda se sentia um pouco encabulada na presença do tio.

— Tudo bem, tia Hesper. — ela falou, descendo da cama e seguindo a passos curtos em direção à porta

Quando estavam completamente sozinhas, Hesper perguntou, segurando uma das mãos de Rosette:

— Como passou o dia?

— Perfeitamente bem — Rose respondeu com serenidade — As poções que você providenciou parecem estar ajudando. Não fosse a sensação de fraqueza eu nem diria que estou doente.

O semblante da matriarca se desanuviou.

— Fico feliz em ouvir isso. Sobre amanhã, tem certeza que consegue?

Rosette assentiu com determinação. A vida sempre lhe trouxe adversidades, e ela enfrentou cada uma delas com força e dignidade, não deixaria que aquela enfermidade a impedisse de vivenciar seus momentos de felicidade.

— Eu sonhei com isso desde o primeiro dia que segurei Marge e Bete em meus braços. Amanhã estarei lá com elas.

Hesper se inclinou, beijando a fronte de Rose com um carinho quase maternal. Se aquele era o desejo da mais jovem, ela guardaria suas preocupações para si e faria o possível para que o dia seguinte fosse inesquecível.

*******


As duas mulheres caminhavam calmamente em direção à uma coluna entre as plataformas nove e dez da estação de King's Cross. Na frente delas, as meninas quase idênticas iam à frente, empurrando os maleiros.

— Podem atravessar sem medo — Rosette se abaixou, falando com as filhas, de modo suave e carinhoso.

As gêmeas assentiram, atravessando o portal mágico quase instantaneamente. Quando as quatro se encontraram no outro lado, perceberam que Plataforma 9 ¾ estava apinhada de pessoas. Era primeiro de setembro e, às onze em ponto da manhã, a locomotiva vermelha partiria para um novo ano letivo na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, uma das melhores instituições de ensino do gênero no mundo.

Havia um mar de capas e chapéus pontudos tomando o lugar. Ali, bruxos não precisam disfarçar quem eram. Várias crianças e adolescente empurravam carrinhos contendo malas e baús, com suas roupas, seus livros e seus materiais escolares. Ao mesmo tempo, pais se despediam amorosamente dos filhos, com beijos e abraços.

O grupo se aproximou dos vagões de bagagens. Com um aceno de varinha, Hesper Black fez com os malões levitassem do carrinho em direção aos compartimentos. Betelgeuse e Marguerith colocaram lá dentro com cuidado as gaiolas das criaturas que haviam ganhado como animais mágicos: um par de corujas negras que tinham sido importadas da América do Sul.

Embora as meninas tentassem manter a expressão polida e discreta que aprenderam nas aulas de ética desde pequenas, seus olhos as traiam, pois um brilho de êxtase era perceptível. As gêmeas se viraram na direção da mãe e ao perceberem que Rosette sorria, se permitiram extravasar mais livremente a sua felicidade.

Rose sentia seu coração cheio de alegria. Lembrou-se da primeira vez que se separou das filhas, também em uma estação de trem. Aqueles foram dias de tristeza, agora era uma ocasião para se comemorar. Apenas lamentava que Phineas não estivesse ali com elas. Ele também se sentiria emocionado em ver as meninas ingressarem em Hogwarts.

— Venham aqui — Rosette disse, abrindo os braços.

Marguerith e Betelgeuse não se fizeram de rogadas, abraçando a mãe demoradamente. Todas elas antevendo as saudades que as acompanhariam naqueles dias de separação. O primeiro apito soou, chamando a atenção da mulher e das filhas, fazendo com que elas se separassem.

O Expresso de Hogwarts começava a expelir nuvens de fumaça cinzenta pela chaminé, demonstrando que não faltava muito para que começasse a se movimentar em sua viagem até a estação de Hogsmeade.

— Comportem-se — Rosette falou — Cuidem uma da outra. E, principalmente, não se esqueçam que eu amo vocês.

— Nós também te amamos — as garotinhas de onze anos responderam.

Hesper também se aproximou das meninas, abraçando ambas com igual carinho.

— Escrevam sempre que precisarem — a matriarca dos Black falou — Vejo as duas no Natal.

As meninas assentiram, caminhando em direção da locomotiva. Não demorou muito para que Bete e Marge aparecessem na janela de uma das cabines e acenassem para a mãe e para a tia até que o Expresso de Hogwarts se afastasse em uma curva.

Rosette encostou a cabeça no ombro de Hesper, que enlaçou uma das mãos da amiga. Elas permaneceram assim por alguns minutos, até que a matriarca dos Black quebrou aquele confortável silencio.

— Como você se sente? — ela perguntou.

Rose levantou seus olhos verdes e deixou que eles se fixassem nos calorosos orbes violetas de Hesper.

— Contente. Apesar de tudo, da minha enfermidade, das saudades que sinto do Phin, eu tenho uma vida boa. Filhas maravilhosas, uma ótima amiga. Eu sou feliz.

A mulher mais velha assentiu, depositando um beijo na fronte de Rosette.

— Fico satisfeita em ouvir isso, minha querida. Também por ter vocês na minha vida e ser parte dessa felicidade.

As duas caminharam de mãos dadas em direção à saída da Plataforma 9 ¾. Independente do que o futuro lhe aguardava, independente do tempo que ainda lhe sobrara, Rosette sentiu que todas as suas escolhas, tudo o que vivera, passara e presenciara havia valido a pena.


FIM


Nota da autora: Sem nota.

🪐

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