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Revisada/Codificada por: Calisto

Última Atualização: 16/08/2024
- Universo Infinito, Reino Eterno -

Amos admirava tudo que fazia parte de seu reino.
O deus de pele negra sempre trajava roupas brancas com um cordão grosso e pingente em formato de águia no meio de seu peito, enquanto a coroa de ouro branco com diamantes negros nas pontas pontiagudas se destacava dentre os fios crespos do cabelo escuro, e ele amava tudo e todos. Sempre foi assim.
Ele nutria um carinho especial por cada detalhe do Reino Eterno. Desde a brisa que lhe tocava todo o rosto, que tinha linhas adquiridas ao longo dos anos, até os lábios grossos que viviam repuxados num sorriso capaz de fazer se sentir abençoado quem o visse. Gostava da grama baixa que tocava os pés quase sempre descalços, e ficava muito feliz quando ouvia os cantos dos pássaros que sobrevoavam o céu de seu reino. Apreciava sentir a textura das flores nas pontas dos dedos, sempre com cuidado para não machucar aqueles seres vivos tão sensíveis.
O coração do deus batia forte por cada uma dessas coisas, das menores às maiores. Na mais divina adoração.
No entanto, dentre todos os sons existentes no Reino Eterno e conhecidos pelo deus em todos seus anos de vida, havia um que sempre arrancava dele o mais profundo e sentimental dos suspiros. Que fazia com que o sorriso repuxasse as pontas dos lábios, mostrasse os dentes e iluminasse todo o ambiente — sem que o próprio deus percebesse tal gesto.
Amos apelidou esse som como O som do amor, enquanto outros o chamavam simplesmente de A risada da princesa Arae.
Todos sabiam que o rei era capaz de sacrificar a própria vida para que aquele som continuasse a ser reproduzido por um longo período de tempo. Amos morreria em paz, sem arrependimentos, desde que Arae continuasse rindo.
Além de amar a risada da filha, o deus gostava ainda mais quando conseguia assistir a cena de Arae rindo. Ele se esforçava para guardar na memória divina a imagem perfeita, lembrando-se dela sempre que precisava de forças em meio a em algum momento difícil.
Pequenas rugas enfeitavam os cantos dos olhos bonitos de Arae toda vez que a felicidade tomava conta de seu interior. Os olhos ficavam estreitos e escondiam as írises marrons, ao que a cabeça era jogada para trás e o cabelo cacheado balançava enquanto uma das mãos tocava a barriga por cima das vestes. Tudo isso enquanto o som do amor fluía para fora entre os lábios grossos.
— Ela ri como você — Amos sussurrou para a esposa ao sentir o toque da rainha em seu braço. Sempre capaz de reconhecer Yemis através do mais singelo toque.
Depois de se banhar, Yemis não demorou a encontrar o marido exatamente no lugar em que ela desconfiava que ele estaria: parado no batente da porta do quarto da filha, olhando amorosamente para o interior do cômodo de cores claras para observar a princesa. Enquanto sorria, claro.
— E possui a sua beleza. — Sorriu a deusa, sentindo a mão do deus cobrindo a sua, sempre tão encantada pela semelhança física entre a filha e o marido.
Amos agradeceu ao elogio com um sorriso e um brilho intenso no olhar. Sentia-se honrado toda vez que apontavam sua semelhança com Arae, sendo esse o melhor elogio que poderia receber. Ainda que, para ele, Arae fosse tão linda quanto a rainha de pele mais clara que a sua, nariz arrebitado, lábios em formato de coração e cabelos ondulados da mesma cor do mel feito pelas abelhas.
— Eu sou capaz de tudo por ela. Por você. Por vocês — confidenciou o que a esposa já sabia, mas que Amos não cansava de ressaltar em voz alta para quem quisesse ouvir.
Beijou a testa delicada de Yemis, que fechou os olhos, aproveitando o carinho recebido.
Amos e Yemis se conheceram quando o branco ainda não cobria alguns fios dos cabelos e da barba do rei.
Foi durante uma reunião que aconteceu no Reino Vomor, o terceiro na hierarquia dos reinos, com os reis e as rainhas dos cinco principais reinos que integram o Universo Infinito. Amos foi para o encontro representando o Reino Eterno, sendo ele o sucessor ao trono que ainda era ocupado por seu pai, rei Illo, que não apareceu por questões de saúde. Enquanto Yemis acompanhou a rainha Brovara, sua mãe, representando o quarto reino, Yaven.
O príncipe do principal reino conquistou a princesa do quarto reino com sua atitude imponente e a voz firme, muito convicto do que falava, por vezes deixando todos os outros sem reação. Amos precisava se fazer respeitado pelos mais velhos que não colocavam fé nele, que sussurravam ser um erro que ele logo estivesse ocupando o cargo de rei. Diziam que Amos era imaturo demais, sonhador demais. Fraco demais. Era essa descrença em si que o fazia estar sempre com a coluna ereta, o caminhar forte e a cabeça erguida. Ele não podia ser fraco, não era. Muito menos imaturo ou sonhador. Amos apenas acreditava na melhoria e na harmonia entre os reinos, os povos, e se esforçava para que isso fosse possível. Foi essa crença de Amos na igualdade e na justiça que atraiu a atenção de Yemis.
Ao passo que Yemis capturou o coração daquele que viria a ser o rei do Reino Eterno, com o som de sua risada alta e o brilho encantador de seu olhar que juntos deixaram claro para todos quem ela era: a princesa — e, em breve, a rainha — da bondade.
Durante a reunião, eles ficaram em assentos distantes, mas foi depois da reunião que o primeiro encontro entre os dois aconteceu: Yemis estava no jardim de Vomor, observando a natureza viva daquele lugar quando Amos foi para o mesmo lugar a fim de fugir daquelas pessoas que o olhavam com tanto desprezo. A conversa, que começou com uma pequena discussão sobre qual tipo de flor era aquela de cor roxa, marcou o começo de uma história de amor.
Amos e Yemis casaram-se um ano após o primeiro encontro, em uma linda cerimônia que aconteceu no Reino Eterno e recebeu todo o povo do Reino Yaven e dos outros reinos que quiseram prestigiá-los. Foram abençoados por seus pais diante de todos, prometeram fidelidade até os restos de seus dias e juraram se amar pela eternidade que lhes era permitida. Juntos se transformaram no rei e na rainha do Eterno quando os deuses supremos chamaram pelo pai de Amos, transformando o rei Illo numa doce lembrança para aqueles que o conheceram.
Ao contrário do que diziam as más línguas, o amor entre Amos e Yemis crescia cada dia mais, transformando em nada qualquer dificuldade que pudesse surgir em suas vidas. E quando a rainha descobriu que um pequeno ser moraria em seu ventre por alguns meses, Yemis e Amos se descobriram capazes de amar imensamente outra pessoa que não um ao outro. Aquela pessoa que logo descobriram ser uma menina.
Arae foi para os braços do pai assim que nasceu, quando precisou conhecer o mundo que a aguardava ansioso. Amos e Yemis choraram ao ver a filha, sentiram seus corações explodirem diversas vezes e ainda assim continuarem batendo no mais divino amor. Prometeram que juntos iriam proteger Arae de todo o mal e que seriam capazes de tudo por ela.
A princesa foi apresentada a todos na manhã do dia seguinte ao seu nascimento. Todos foram até o castelo para presentear Arae, desde objetos valiosos até os mais humildes. Bênçãos e orações por sua saúde e vida também não faltaram.
Arae conquistou o coração de todos com muita facilidade, além de ter colocado Amos e Yemis aos seus pés desde o seu nascimento. O amor grande, forte e verdadeiro que os deuses sentiam pela princesa os tornava capazes de tudo por ela, pela sua felicidade. Para que continuassem ouvindo o som da respiração, da voz e, principalmente, da risada de Arae.
Por essa razão, naquela data que marcava mais um ano de vida da princesa, após o término da festa realizada no reino para que todos pudessem celebrar a importante data junto da família real — como sempre acontecia desde o primeiro aniversário de Arae —, Amos e Yemis estavam dispostos a realizar mais um dos desejos da filha.
O maior de todos os pedidos já feitos por ela.
Dariam para Arae o que tanto lhes era pedido desde que a princesa era pequena.
Sentindo que estava sendo observada, Arae deixou de lado os muito embrulhos que tinha a sua volta e olhou para os pais, que entraram no quarto da princesa. Eles a olhavam com admiração e amor.
— Uma princesa não deve sentar-se ao chão? — indagou sobre sua situação, sorrindo e erguendo uma sobrancelha em brincadeira para aqueles que era tudo para si.
As duas servas, que ajudavam Arae com os presentes, curvaram-se pedindo licença à família. Apesar de gostarem de ver de perto a relação e interação dos três, todos do reino sabiam respeitar quando os reis e a princesa precisavam ficar a sós.
— Certamente há quem diga que não — Yemis a respondeu, piscando para a filha, que mordeu o lábio inferior ao segurar uma risada.
— Principalmente diante do rei. — A voz firme não foi capaz de anular o tom descontraído e carinhoso.
— Ó, perdão, majestade! — Levantou-se com pressa, deixando cair os presentes menores que estavam em seu colo, curvando-se para o pai que não conseguiu conter a risada e o ímpeto de ir até a filha e puxá-la para um abraço. Amos beijou o topo da cabeça entre os fios cacheados.
— Tu podes tudo — assegurou em voz alta, sentindo as mãos da filha tocarem seus braços antes de abraçá-lo pela cintura e segurar as vestes. Os corpos próximos permitindo que ambos sentissem o calor alheio, os corações que batiam acelerados sempre que se abraçavam.
O amor que partilhavam era tão grande e intenso que seus corações pareciam não serem capazes de suportá-lo. Mas eram. Tanto de sentir quanto de aumentar de tamanho e intensidade.
— Tudo — Yemis reforçou, completando a fala do marido, beijando a testa da filha quando teve o olhar da princesa em si. Amos puxou a rainha para aquele abraço caloroso que tinha o tamanho ideal para comportar as duas mulheres de sua vida.
— Ainda não lhe demos o nosso presente, meu bem — murmurou a rainha depois de algum tempo aproveitando aquele momento familiar, sorrindo para Arae que abriu os olhos rapidamente e sentiu uma paz tomar todo o seu interior ao ter os seus orbes nos de Yemis.
Se Amos era a força que tornava Arae corajosa, determinada e prestativa, Yemis era a calmaria que a colocava na direção certa e a fazia se sentir leve a ponto de seus pés quase não tocarem o chão.
— Mais? Pois eu sinto que me presentearam o suficiente!
O abraço familiar foi desfeito para que os pais pudessem olhá-la de frente, com uma visão melhor do rosto bonito. Para que pudessem ver, apreciar, a reação da princesa.
— Somos capazes de tudo por ti — repetiu o rei, passando a mão na face da princesa. Observou os olhos castanhos o encarando em expectativa, ansiosos, indo dele para Yemis, e então voltando para ele. Amos sorriu. — Por isso, tu terás o que tanto nos pediu, Arae. Agora que tu és responsável por teus atos, desejos e vontades, lhe daremos o que tu tanto nos pedes desde muito nova...
— És chegado o momento de nos mostrar o que aprendeu com tudo que te ensinamos todo esse tempo, Malakai — soprou o apelido íntimo que usava para a filha desde o seu nascimento. A palavra tinha “anjo” como seu significado, e, na visão de Yemis não existia apelido melhor para ser usado com Arae. Uma vez que a princesa era, para a rainha, o anjo enviado como um presente dos deuses supremos.
Yemis segurou a mão da filha, guardando-a dentro das suas.
— Nós te daremos o teu mundo.
As lágrimas acumuladas pela emoção daquele dia tão especial desceram pelo rosto divino quando Arae ouviu a pequena frase dita por seu pai. O choro dela causou o de Amos e Yemis, que não conseguiram segurar as lágrimas diante do rosto molhado da filha. A felicidade genuína e quase palpável de Arae dava aos reis a certeza de que estavam fazendo a coisa certa, como já suspeitavam.
Yemis segurou o rosto delicado da princesa, secou as lágrimas com as pontas dos polegares e riu quando a princesa repetiu o gesto em seu rosto antes de abraçá-la apertado mais uma vez.
— Tu sabes que, antes de criá-lo, precisamos falar com ela — falou, ganhando um assentir emocionado da filha. — Mas tu o terás.
Arae ainda não sabia como reagir diante de tal informação, sentia seu coração batendo acelerado e as mãos suando. A felicidade que sentia era tão grande e fora de seu controle que fazia com que o poder da deusa emanasse dela, sem que fosse capaz de perceber. Uma grama baixa e verdinha nascera ao redor de Arae e seus pais, quando um vento refrescante balançou as cortinas da janela fechadas do quarto e tocou as peles dos deuses, balançando alguns móveis mais leves.
Arae abriu e fechou a boca algumas vezes em busca do que falar, sempre acabando por fechá-la sem dizer uma palavra. Mas não precisava. Eles sabiam de tudo. Sentiam também.
Amos deu dois passos para trás e, diante do olhar atento da filha, manteve erguidos o polegar e o dedo médio da mão esquerda para fazer uma linha vertical no ar e dali surgisse a espada dourada de dois gumes. O utar¹ apareceu no pulso do deus quando a lâmina afiada cortou a pele escura. Yemis logo repetiu o gesto do marido ao lado dele, segurando com maestria a espada pesada, com cuidado ao misturar seu sangue divino com o de Amos.
Arae sentiu o choro voltar diante da cena que observava em silêncio. A tez continuava a ser molhada por lágrimas salgadas quando chamou baixinho pelos pais que levaram os olhares para ela. Amos sorriu, ao que Yemis afirmou que estava tudo bem.
E sem que os deuses pudessem trocar uma palavra, seus joelhos dobraram e tocaram o chão num baque mudo, as cabeças baixaram. Não havia nada que Amos, Yemis ou Arae pudesse fazer para controlar seu comportamento diante da deusa que surgiu dentre eles após ser chamada.
A Senhora da Justiça era a deusa mais respeitada dentre todos os vivos e aqueles que já haviam partido. Era chamada de “senhora”, pois sua existência era anterior a de qualquer outro. Ela não habitava em nenhum dos reinos conhecidos, não possuía um lugar físico para chamar de seu, mas estava presente em todos os lugares — ainda que os olhos não pudessem capturar sua presença o tempo todo. Contudo, era necessário apenas uma palavra sua para que todos repensassem e a obedecesse, cedo ou tarde. Nada acontecia sem a autorização dela, sem que a deusa soubesse, sendo muito temida e conhecida por sua imparcialidade.
Todos os deuses tinham acesso a ela, podendo chamá-la quando necessário através do contato do utar com os gumes da espada dourada que fora feita pelas mãos da própria Justiça.
— Levantem-se — ordenou.
O tecido branco que protegia partes do corpo e a faixa longa que cobria os olhos da deusa eram balançados pelo vento que começava a se dissipar junto com a grama e os lírios. A presença da deusa era superior a qualquer outra, capaz de anular qualquer outro dom.
— Senhora — falaram em uníssono, de pé, com as mãos unidas diante dos corpos e as cabeças ainda baixas.
— Conseguiu a autorização de todos, rei? — perguntou a Amos que afirmou. — Não está mentindo para mim, está?
— Um rei não deve nunca mentir — assegurou. Vendo de perto a ponta da espada afiada da deusa em sua direção, próxima ao seu rosto. Apesar de sempre vendada, Justiça nunca errava sua mira. — Principalmente para a senhora.
Amos nunca mentia, não era de sua natureza.
Além de não gostar de mentiras, ele sabia bem quais eram os castigos para quem distorcia a realidade e criava uma história para lhe favorecer. Sabia, principalmente, que Justiça sempre descobria a verdade, pois a verdade sempre aparecia. E o castigo para os corajosos que mentiam para a deusa era o julgamento feito diante de todos e que tinha o veredito final dado pela própria Senhora, sendo este veredito: o tempo em que o farsante ficaria preso em uma das celas do Universo Sombrio. Longe de tudo e todos. Com tempo para repensar seus erros e se tornar alguém melhor.
— Tem certeza do que quer, princesa? — perguntou para Arae, que assentiu com a cabeça, nervosa, antes de colocar sua resposta num murmuro para que a deusa a escutasse. — E por que quer um mundo para chamar de seu?
— Porque eu não acho que seja justo sermos os únicos a existir nesse universo, Senhora — assegurou, erguendo o olhar para a deusa de postura imponente e que despertava um pouco de medo em si. — E para que o outro lado da balança também tenha peso.
Referiu-se ao objeto de ouro maciço que era segurado pela mão esquerda da deusa. A espada de Justiça representava o poder enquanto a balança era o equilíbrio do seu julgamento, do mundo em que ela fazia parte.
Justiça sabia que chegaria o dia em que um dos deuses, mais uma vez, insistiria na criação de um mundo diferente daquele que conheciam. De um mundo novo para o equilíbrio total do universo. E mesmo sabendo que deveria ser imparcial em relação a tudo e todos para que pudesse ser justa, a deusa não podia deixar de sentir uma pontada de felicidade dentro de si.
Estava feliz que fosse Arae quem fazia o pedido daquela vez.
— Se aproxime, princesa — mandou. Quando sentiu a presença da mais nova por perto, continuou: — Se tu queres dar o sopro que gera a vida — o prato direito da balança movimentou quando uma fumaça branca o pesou, deixando-o desigual em relação ao outro — é necessário que dê também o sopro da morte.
Arae arregalou os olhos e olhou para os pais.
Ela sabia que o mundo novo deveria ser diferente daqueles que conhecia; que os seres que nele viveriam não deveriam conseguir ver nenhum dos Reinos do Universo infinito, que não poderiam ser eternos e que deveriam seguir as leis de Justiça. Arae sempre soube que criar um mundo novo não significaria criar um mundo onde tudo fosse perfeito ou sem leis, e ainda assim estava disposta a criá-lo. Mas... ouvir de Justiça que, além de criar a vida, também deveria criar a morte, fez com que um gosto amargo tomasse o paladar da jovem deusa.
— Quer desistir? — Senhora perguntou.
E com toda coragem que havia em si e a certeza de que tudo ficaria bem, Arae negou.
A princesa se concentrou no que sabia a respeito de morte, sobre o que aquela palavra representava e todo o peso que possuía. Além disso, pensou e sentiu também o coração apertar e os olhos lacrimejarem quando sentiu a dor do luto, da partida. E enquanto as lágrimas desciam dos olhos da deusa e molhavam sua face, Arae assoprou em direção ao prato esquerdo da balança.
As cortinas do quarto se balançaram com o vento frio que tomou todo o quarto, fazendo com que todos os presentes se encolhessem e abraçassem o próprio corpo. Sons de passos foram ouvidos, e mesmo que os três deuses olhassem em volta em busca de onde vinham os passos, nada conseguiam enxergar. Os corações estavam apertados em pura dor, agonia... Até que uma figura sombria surgiu no meio do quarto.
A Morte estava ali.
Com uma capa preta lhe cobrindo o corpo enquanto o capuz escondia a metade do rosto, deixando somente a ponta do nariz e os lábios vermelhos à mostra.
Arae nunca sentiu uma presença tão forte em toda sua vida. Nunca sentiu tanto medo e tristeza também.
Com a criação de Morte, o outro lado da balança foi preenchido por uma fumaça preta, pesando-o e deixando-o alinhado com o prato que tinha o sopro da vida.
— Agora, assopre para criar aquele ou aquela que espalhará coisas boas em teu mundo, Arae — ordenou Justiça e moveu a balança de um lado para o outro, fazendo com que as fumaças evaporassem enquanto um tilintar soava.
Ao contrário do que sentiu quando precisou criar Morte, Arae quase chorou de felicidade ao se concentrar para sentir tudo aquilo que de bom já tinha experimentado em sua vida. Olhou para Amos e Yemis por alguns segundos e sentiu o peito aquecer e inflamar no mais puro Amor. E, então, assoprou.
O vento gélido criado por Morte deu lugar à brisa fresca que preencheu todo o ambiente. Borboletas coloridas começaram a surgir por todo quarto, voando em volta dos deuses, pousando uma no nariz de Yemis, que sorriu, encantada. Grama verde nasceu debaixo dos pés, e Amor surgiu ao lado de Arae que o olhou com os olhos lacrimejados.
Amor era tão linda. Tão preciosa.
— Não chore, mãe — pediu, pegando com a ponta do polegar a lágrima de felicidade que molhava a bochecha daquela que o criou.
Os trajes usados por Amor eram em vermelho e branco, em todos os tons das duas cores. O sorriso bonito que ela mostrou a Arae parecia com o dela, assim como os cachos do cabelo que estava preso num coque alto com alguns cachos soltos ao redor do rosto bonito. Suas írises tinham cores diferentes: a esquerda era vermelha enquanto a direita era branca, o que a tornava ainda mais bonita. A cor da pele macia era escura. E, ao seu redor, estavam as borboletas que antes sobrevoavam por todo o quarto e que agora se concentravam ao redor da deusa mais pura.
— Se o bem existe... — Justiça retornou a dizer, o significado das poucas palavras tirando do rosto de Arae o sorriso que repuxava os lábios. — O mal também deve existir.
Apertando o tecido do vestido que usava, Arae pensou em tudo o que mais detestava e a fazia sentir o sangue ferver de um jeito ruim. Se concentrou para sentir raiva, rancor... E quando julgou ser incapaz de sentir mais desgosto e ódio, assoprou no prato que balançou diferente das outras vezes.
O som arrepiante do guizo de cobras fez com que Arae, seus pais e Amor cobrissem os ouvidos numa tentativa falha de abafar o som. Mas era inútil, o guizo ficava cada vez mais alto à medida que escurecia dentro do quarto. Uma risada estridente soou ao fundo e todos se sentiram sufocados.
Ódio sorria, assistia feliz a agonia que seu nascimento causava.
— Olá, mãe. — O sorriso ficou ainda maior quando notou o olhar de Arae em si e percebeu que dos olhos da deusa saíam lágrimas de sangue. A língua dividida em duas partes na ponta passou pelos dentes brancos e então pelos lábios.
Arae não o respondeu, mas o olhar dela para Ódio o deixou satisfeito.
Amor ameaçou dar um passo na direção de Mãe, queria acalmá-la, mas a voz de Justiça o fez ficar onde estava.
— E se quer um mundo justo, deverá criar aquele que a ajudará a escrever a história de cada ser — orientou, balançando a balança que tilintou até que os pratos ficassem vazios mais uma vez. — Este deve ser capaz de sentir tudo aquilo que eles — referiu-se a Amor, Ódio e Morte — já são.
Arae limpou o rosto com as mãos, livrando-se de seu próprio sangue. Limpou também seu coração de tudo de ruim que Ódio a fazia sentir. Respirou fundo e fechou os olhos, concentrando-se mais uma vez. Dessa vez, confiante de que teria a ajuda certa para coordenar o mundo novo e todos os habitantes. Confiante de que tudo ficaria bem.
Sorriu quando seu sopro se transformou em fumaça de todas as cores e ocupou os dois pratos da balança, os dois lados. Logo as cores foram se separando: as mais escuras e sombrias ficaram no prato do lado direito enquanto as mais claras e leves ocuparam o esquerdo.
Girassóis nasceram pelo quarto de Arae pouco antes de Destino aparecer. A pele alva fazia contraste com o tom alaranjado dos cabelos e das sardinhas que marcavam a ponte do nariz e as bochechas. A roupa era de tecido leve tons claros, enquanto a coroa prateada brilhava no topo da cabeça.
— Para que seja justa, ela não enxerga e possui audição limitada — explicou Justiça.
Arae olhou então para os olhos de Destino, surpreendendo-se quando notou as írises brancas como a neve. Entendia o porquê da filha ser daquele jeito. Entendia e julgava ser melhor assim.
Entretanto, a falta de visão e a audição precária não impossibilitaram Destino de alcançar a mão de Arae, que sorriu quando sentiu o toque suave.
Faria de tudo para que fossem grandes amigas, Arae prometeu em silêncio.
Seriam melhores amigas, Destino tinha certeza.
— Eu também estarei em teu mundo, princesa — Justiça afirmou. — E lembre-se: se o novo mundo ameaçar a existência do divino, ele sofrerá as consequências. A extinção da sua criação não deixará de ser uma opção.
Senhora foi embora tão logo, transformando-se em fumaça que se desfez no ar.
Arae olhou para cada um de seus filhos com um brilho amável no olhar; apertou a mão de Destino que ainda segurava a sua, sorriu para Amor que lhe sorriu de volta, viu Morte virar a cabeça na direção de Amos e Yemis antes de virar-se para a princesa, e ficou séria ao encarar Ódio que exibia um sorriso malicioso.
Amos e Yemis se aproximaram da princesa para abraçá-la apertado, dando a ela a confiança de que estava no caminho certo. E funcionou. Sentindo o calor corporal dos pais e o amor que vinha deles, Arae sentiu-se pronta para realizar o seu maior sonho.
Iria criar o seu mundo.
O criaria com todo amor e bondade que havia em seu ser... Que era muito.

🌎❤️

Levou um tempo até que Arae criasse o seu mundo.
Antes de fazer o mundo novo, a princesa visitou todos os reinos que havia no Infinito. Não queria fazer nada de qualquer jeito, limitado a sua visão de mundo e realidade. Foi atrás de inspiração, do que havia de mais belo para que pudesse reproduzir em seu mundo. Admirou a natureza; pegou folhas e flores, terra, e até mesmo um pouquinho das águas de alguns rios e mares. Conversou com moradores e perguntou a cada um o que achava da vida que levava, do lugar que morava e o que poderia fazer para torná-lo melhor — se fosse possível. Se reuniu também com reis e rainhas, até mesmo com aqueles que Arae sabia não gostar tanto de si e de seu reino; perguntou a eles se poderia colocar alguma característica do reino deles no novo mundo, como uma forma de homenageá-los. E, sem surpresa alguma, Arae recebeu respostas positivas.
Pois até os deuses tinham um pouco de egocentrismo.
Arae se concentrou em rascunhar e decidir qual seria a forma do novo mundo, como ele iria funcionar, além de pensar nas cores que predominariam e nas delimitações entre a água e a terra firme. Preocupou-se com detalhes importantes durante dias e noites, sempre pedindo as opiniões de Amos e Yemis. A princesa queria saber o que seus pais achavam de suas ideias, de como ela estava construindo cada pedaço de seu sonho que em breve se tornaria realidade. Amor, Destino, Morte e até mesmo o Ódio também eram consultados, suas respostas sempre arrancavam risadas e suspiros da mãe.
Amos e Yemis estavam tão animados quanto a filha na criação do novo mundo, e mais felizes ainda em ver a princesa empolgada com o sonho. Ajudavam Arae sempre que eram solicitados, precisando compreender que só poderiam ajudar quando a filha lhes pedisse ajuda. Aquele era o sonho de Arae, a realização dela. A princesa precisava agir por conta própria. Por isso, Amos e Yemis mantinham-se por perto da filha, sempre a postos para socorrê-la caso fosse necessário, mas sempre respeitando o espaço dela.
Entretanto, a ajuda de Amos e Yemis parou de vir quando Arae se deparou com um problema que não conseguia resolver...
Arae não sabia como iluminar o novo mundo, como delimitar nele aquilo que ela já conhecia como o dia e a noite. Não conseguia pensar numa maneira de criar uma luz forte o suficiente capaz de iluminar todo o mundo durante o dia e a noite. A deusa não podia pegar o sol e a lua do Infinito, isso não lhe era permitido. Poderia fazer igual, mas nunca os pegar e usar para sua própria felicidade sem se importar com todos que seriam atingidos com seu egoísmo.
Porém, a deusa não sabia como criá-los. Afinal, como se criar o sol e a lua?
Ela perdeu noites de sono pensando naquele problema, que parecia maior a cada dia que se passava. O desespero tomou cada parte do corpo da deusa que, durante uma das tardes quentes de verão, sentiu-se cansada de procurar por uma solução que não encontrava e por isso cogitou seriamente desistir de toda sua criação.
Então, determinada a desistir de seu mundo e prometendo a si de que só o criaria quando fosse capaz de dar forma a algo perfeito, Arae foi até o aposento do rei e da rainha a fim de informá-los de sua decisão. E para chorar no colo do pai enquanto ganhava o afago de Yemis também.
No entanto, quando chegou ao quarto dos pais, Arae estranhou não os ter encontrado de primeira, uma vez que as servas a informaram de que ali eles estariam. Ela sorriu ao ver Amor próximo à cama que pertencia aos reis. O filho de voz mais mansa sempre foi muito próximo de Amos e Yemis. E ao abrir a boca para questionar ao filho sobre o rei e a rainha, Arae sentiu um aperto ruim no coração ao ver Morte ao lado da cama.
Ainda confusa e recusando-se a acreditar no que tudo aquilo poderia significar, Arae caminhou por todo o quarto em busca dos pais. Os passos eram apressados e a voz trêmula chamava pelo rei e pela rainha. A procura se prolongou até a sacada e Arae quase derrubou a cortina quando a abriu apressada, com força e desespero demais.
Os olhos da deusa ardiam pelas lágrimas que acumulavam, as mãos tremiam e o coração batia forte e rápido demais.
Não demorou até que o rosto de Arae fosse molhado pelas lágrimas grossas e salgadas, quando os olhos escuros observaram o momento em que Morte ajeitou as luvas escuras que eram retiradas das mãos pálidas quando a deusa buscava almas.
Ódio aproximou-se do quarto em que a Mãe estava com os outros dois irmãos bem a tempo de ver Arae avançar sobre Morte, segurando-a pelo tecido preto da capa enquanto perguntava por Amos e Yemis em meio a gritos de dor e desespero.
Desespero pelo sumiço dos pais e pelo que a ausência deles poderia significar. E dor por saber que, provavelmente, Amos e Yemis foram levados pelas mãos de sua própria filha.
Ódio sorriu ao ver Arae desprezar a Morte.
Amor chorou lágrimas prateadas pelo mesmo motivo.

O rancor de Arae por Morte aumentou a cada dia, principalmente quando perguntava à filha pelos corpos de Amos e Yemis e não recebia nenhuma resposta. Arae também tentou buscar respostas com Amor que, assim como a irmã, nada dizia.
Por um longo período de tempo, Arae se manteve afastada da criação de seu mundo. Não tinha motivação ou forças para criar qualquer coisa, se perguntava como poderia criar um mundo fruto de seu amor se o que ela sentia estava longe de ser amor.
Arae se sentia perdida sem o abraço de Amos e a voz suave de Yemis para guiá-la. Abandonada por aqueles que mais amava. Estava frágil. Chorava dias e noites, não sabia o que dizer quando a perguntavam sobre os pais. Dizia que eles haviam desaparecido, e continuava a mandar centenas de homens da guarda real à procura do rei e da rainha, de qualquer pista que indicasse o paradeiro daqueles que Arae ainda amava com todo o seu coração. Porém, nada foi encontrado. Nunca.
Numa noite fria, Arae sonhou com os pais. O sonho foi tão real que a deusa poderia jurar que eles estavam mesmo em seu quarto, próximos a ela. Que o abraço recebido por Amos não foi fruto de sua imaginação. Além do abraço, também recebeu conselhos do pai e da mãe, que a beijou na testa e tocou a ponta de seu nariz ao sorrir e chamá-la pelo nome. Ouviu o pai a perguntar por que ela estava desistindo de seu maior sonho, por que se sentia abandonada se ele e Yemis sempre estiveram ali para ela. Se eles sempre deixaram claro de que eram capazes de tudo pela felicidade de Arae.
Sonhar com os pais — ou tê-los em seu quarto — era o que Arae precisava para voltar a si, sentir-se inteira novamente e se preencher de sentimentos bons. A deusa então voltou então para a criação de seu mundo. Se desculpou com Morte e Amor, afirmando que os amava (ganhou um sorriso tão bonito de Amor nesse momento), e prometeu confiar neles o suficiente para não insistir em algo que, ela já havia entendido, eles não podiam falar sobre.
Então, o mundo novo saiu da imaginação de Arae e se tornou real durante uma noite. Um espaço do Universo foi ocupado pelo sonho da princesa. O mundo era tão lindo, sua forma era graciosa e bela. Ele girava em torno de si mesmo lentamente, bem debaixo do olhar atento da deusa que se surpreendeu ao ver, além de seu mundo, um Sol e uma Lua surgindo e iluminando sua criação.
Quando a deusa colocou os dois primeiros seres humanos no novo mundo, Amor, Destino, Morte e Ódio os acompanhou para aquele mundo que Arae nomeou carinhosamente de: Terra.
Terra…
O mundo que nasceu do amor de uma deusa.

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Arae não era a única que amava a Terra e todos aqueles que habitavam nela.
Como era de se esperar, Amor nutria um carinho muito grande pelo mundo de Mãe. Achava lindo e especial tudo que havia sido criado pela deusa. Gostava, principalmente, das almas que ocupavam aquele mundo. Ficava andando pela Terra por lá e por cá, admirando cada vida e como Destino sabia escrever histórias tão lindas e outras nem tão bonitas assim. Ficava feliz quando percebia tanto de si em alguns seres, ficava triste quando encontrava tanta semelhança entre o irmão, Ódio, e algumas pessoas daquele novo mundo. Chorava quando Morte precisava recolher almas.
Almas que, antes de irem para a Terra, ficavam no Jardim das Almas, uma parte do Reino Eterno.
Amor ia lá todos os dias, observava as almas à distância. Como fazia naquele exato momento...
Os pés descalços na grama verde enquanto os cachos tocavam seu rosto ao serem bagunçados pelo vento. A risada de Amor atraiu a atenção de uma das almas que estava reunida com as outras.
Aquela alma que o virou-se na direção de onde ouvira o som da risada, era uma das preferidas de Amor.
Amor criou aquela alma e a outra junto com Mãe e Destino, e ficou feliz quando pôde escolher ela mesma quais nomes teriam quando fossem para a Terra.
Duas almas tão especiais que tinham os tons do Amor predominando em suas essências, que brilhavam assim como as outras, mas que se destacavam com facilidade diante do olhar do deus apaixonado.
Amor sorriu quando a segunda alma que fazia par com a que ouviu a risada do deus, aproximou-se rapidamente. Em meio a tantas almas daquele jardim, aquelas duas estavam sempre juntas.
— Eu falei que ela estaria aqui. — A voz impaciente de Ódio despertou Amor, que se virou para olhar o irmão. — Admirando de novo? Você não cansa? — perguntou, sem realmente querer saber a resposta que já conhecia, pois ouvira vezes demais, e sempre ficava enjoado quando a ouvia.
Ódio achava Amor melosa e imatura demais. Eram realmente opostos. Precisava confessar que Arae havia feito um trabalho perfeito ao criá-los.
— Deixe-a — Destino pediu, apaziguando a briga dos dois deuses, como sempre fazia. — Logo, elas vão para a Terra — informou por alto, sorrindo quando sentiu um olhar em si e soube que era Amor quem a olhava. Ninguém seria capaz de transmitir tanta ternura no olhar, além de Amor.
— Você sabe que eu não posso informar — respondeu quando Amor a segurou pelos ombros e perguntou mais detalhes da ida das almas para o novo mundo, queria saber tudo o que aconteceria com elas. Queria estar por perto. — É segredo — lembrou à irmã, que agora apertava o rosto de Destino, forçando um biquinho nos lábios da deusa.
— Você sabe que Amor é curiosa. — Morte aproximou-se dos três com seus passos firmes, mantendo uma distância que julgava saudável daqueles que eram barulhentos demais em sua opinião. Ela preferia o silêncio.
— Isso é verdade! — apontou, orgulhosa, feliz por sua irmã saber tanto sobre si.
— Eu não sei o motivo de tanta felicidade... — Ódio cruzou os braços diante do peitoral, os fios negros do cabelo estavam maiores e por isso quase cobriam os olhos do deus.
Os trajes usados por Ódio tornavam-se mais parecidos com aqueles que os humanos usavam à medida que o deus passava mais tempo na Terra, próximo aos mortais. As peças divinas e compridas vez ou outra desapareciam e davam lugar para calças pretas de couro, camisas sociais com os dois primeiros botões abertos e sapatos escuros. Os tons escolhidos por Ódio ainda eram os escuros. O corpo do deus também mudou desde que ele começou a frequentar a Terra; os braços estavam mais fortes e pareciam com os de alguns humanos que iam para um lugar chamado academia. No começo, Arae não gostou da mudança visível do filho e o pediu para que não usasse aquelas roupas e aparência mundanas quando voltasse para o Reino Eterno, mas, esperto como sempre fora, Ódio soube silenciar os pedidos da deusa. Afinal, se Arae amava o mundo que ela mesma criou, por que o filho dela não poderia se parecer com aqueles que também eram criações de Arae? Ou será que a deusa não amava tanto assim sua criação?
— Você não sabe se elas vão realmente se encontrar lá embora... — prosseguiu, referindo-se às duas almas e sua ida para a Terra, ao destino delas naquele mundo.
— É claro que vão se encontrar — Amor sussurrou, certa do que dizia, e muito chateada que o irmão estivesse outra vez implicando consigo e com a história daquelas duas almas. Ódio sabia o quanto elas eram importantes para Amor. Talvez fosse por isso que implicasse tanto... — Eu sinto.
— Eu também sinto que não vão — provocou ainda mais, sorrindo com as pontas da língua molhando os lábios bonitos.
— Destino... — chamou pela irmã ao se esconder atrás da deusa de cabelos laranjas, segurando com delicadeza o tecido fino das vestes claras.
— Quer apostar? — Ódio questionou, debochado, inclinando-se na direção de Amor, que se encolheu. — Quando aquelas duas almas ocuparem cada uma o corpo de uma mulher e a outra o corpo de um homem, e forem para a Terra... Elas não vão se encontrar e viver uma linda história de amor.
— Vão sim! — gritou, exasperada, praticamente pulando para perto de Ódio, que sorriu mais largo ao ter o seu objetivo alcançado. — Vão porque e se amam! Porque eu os criei junto com Mãe e Destino! Há muito de mi...
— Oh, vejo que até as nomeou... — interrompeu a irmã que continuava falando como as duas almas se amavam, o quanto de si havia nelas e listando motivos que as fariam viver uma história bonita no novo mundo. — Que patético.
— Ódio... — Destino chamou pelo deus, que a olhou. A deusa sentia a mágoa de Amor dentro de si e a felicidade de Ódio também, às vezes Destino não gostava de sentir tudo o que os irmãos sentiam. Doía. Era cansativo. — Pare.
— Tudo bem. — Levantou as mãos em uma falsa desistência. — Não quero fazê-la chorar, irmãzinha. — Apertou as bochechas de Amor, que se afastou do irmão. — Mas, se tem tanta certeza de que e se amam... — disse como quem não queria nada, mesmo que quisesse tanto. Usou do nojo para pronunciar os dois nomes, e Amor percebeu isso, assim como Destino e Morte, que estava quieta ao canto.
— Não...
— Eu te desafio — dirigiu-se a Amor, ignorando Destino, que o chamava para repreendê-lo novamente. — Se há tanto de você naquelas duas almas, se tem tanta certeza de que elas vão ficar juntas porque o que há nelas é forte o suficiente para isso... Então, nos mostre sua força.
— O quê? — Amor perguntou, confusa, sentindo as borboletas ficando agitadas em sua barriga.
— Se o que há nelas é tão forte a ponto de te dar a certeza de que elas vão se amar não importa o que aconteça... — Fitou as írises vermelhas e brancas, tirando um dos cachos da frente do rosto da irmã que, Ódio precisava admitir, era linda. — Prove.
— Isso não pode acontecer.
— Ninguém vai ficar sabendo. — Virou-se para Destino, prometendo. — Apenas nós quatro. Um segredo nosso. Segredo de família.
— Amor... — Destino chamou pela irmã que estava interessada demais nas palavras de Ódio. Inclinada a aceitar o que lhe era proposto.
— Eu vou provar! — afirmou depois de intercalar seu olhar entre o irmão a sua frente e as duas almas mais longe.
— Vamos fazer assim... — Apoiou o queixo na mão direita, pensou um pouco e continuou: — Aquelas três vidas na terra. Nas três primeiras, elas vão se encontrar e ficarão juntas por um tempo, antes de terem seus sentimentos testados por Destino, Morte e por mim. E ao final de cada vida, elas vão ter que voltar ainda se amando e sendo capazes de se reencontrar na próxima vida.
— Tudo bem...
— Destino vai separá-las, eu vou fazê-las se odiarem e Morte vai tomar uma delas pela mão.
— Não me coloque nisso — Morte sussurrou, mas sua voz sempre baixa pouco foi ouvida quando a de Amor soou junto:
— Mas, se elas seguirem se amando depois de tudo isso. Depois de toda essa crueldade... Elas vão voltar para a Terra e serei eu a guiá-las!
— Como quiser. — Deu de ombros e estendeu a mão para Amor, que apertou a sua, selando assim o acordo feito entre eles. A aposta. — Se não vão ajudar, então não atrapalhem. — Virou-se para Destino e Morte. — Ou, melhor, atrapalhem — corrigiu e riu sozinho de sua frase.
— Isso não está certo. Não vai dar certo. — Destino suspirou. — E como vocês vão fazer para reencarná-las? Sabem que fazer isso não é tão fácil assim, que depois que Morte faz a busca pelas almas, elas só voltam para a Terra se tiverem algo pendente a ser resolvido. E que...
— Vamos usar isso. — Ódio segurou o pulso direito de Amor com certa agressividade, arrancando um grito de dor da irmã, irritada por Destino estar atrapalhando seus planos. Sua brincadeira. — Vamos usar dessa linha. — Apontou para o anel de linha vermelha que havia no dedinho de Amor, o anel havia sido um presente de Amos, Yemis e Destino, antes do sumiço do rei e da rainha.
— Não, isso não.
— Vamos pegar essa linha e amarrar nas duas almas, ligando uma à outra — continuou, ignorando tudo o que Destino falava. — Quando a Morte precisar buscá-las, vamos dar um jeito de deixar algo em aberto na vida delas na Terra para que possam voltar sem problemas. Em novos corpos. Com novas vidas.
Um dos poderes mais fortes de Ódio sempre foi sua capacidade de fazer qualquer um acreditar que as soluções erradas propostas pelo deus eram as corretas. Amor, por outro lado, tinha o dom de oferecer soluções corretas para qualquer problema. Sempre com muita cautela e cuidado, bem ao contrário do irmão. Entretanto, Ódio usava de seu outro poder e confundia a irmã o suficiente para que ela acreditasse nas soluções apresentadas pelo deus...
— Feito! — Amor concordou com a solução apresentada pelo irmão, tudo parecia fazer sentido e ser muito fácil. Na verdade, naquele momento, a deusa não se preocupava muito com os detalhes. Amor só queria que as duas almas tivessem uma bela história na Terra.
Ódio sorriu ladino quando viu a irmã morder o próprio braço com força o suficiente para que o utar manchasse a pele. Ele repetiu o gesto da deusa e elevou o braço acima do dela. Juntos esperaram até que o utar de Ódio pingasse em cima ao de Amor, selando de vez a aposta divina.
Destino e Morte ficaram em silêncio.
Destino não gostou de nada daquilo e Morte sentia-se indiferente. Ambas sabendo que não havia nada que pudessem fazer para impedi-los e acabarem com aquela aposta. Não conseguiriam interferir naquilo que cedo ou tarde seria descoberto.
Assim como todos aqueles que conviviam com os deuses, Destino e Morte sempre souberam que Amor e Ódio eram mais parecidos do que julgavam ser. Por isso não podiam ficar muito tempo juntos, pois alguma coisa sempre dava errado.

Informações: Utar¹ é o sangue dos deuses. Cor: azul escuro. Características: se transforma em metal depois de coagulado.



Continua...


Nota da autora: Sem nota.

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