Codificada por vênus. 🛰️ até o prólogo | aurora boreal 💫 do capítulo 1 em diante.
Atualizada em: 22/02/2025
“Você tem que enlouquecer para se tornar normal, porque somos nós que mudamos o mundo”
(MAESTRO, Seventeen)
(MAESTRO, Seventeen)
Diário do Ruby, Nova York, 18 de agosto de 2100.
A carcaça do que uma vez foi um rato de laboratório apodrece nas saídas de esgoto, destino final de tudo o que é imundo, descartável e desprezível. Depois de abrir-lhe a cabeça e tocar a maldita sinfonia até a demência ou morte por exaustão, o animal não serve mais, precisam de outro. E de outro, e mais outro, até todos os ratos do mundo serem dizimados e eles começarem a nos usar no lugar.
E eles usarão. O rastro que leva até a M.A.E.S.T.R.O é um rastro de sangue.
Eles disseram que nos ajudariam, que eram um ramo filantrópico do governo. Por causa deles, eu tive que ver a esperança brilhar nos olhos de crianças miseráveis e de pais aflitos apenas para assisti-la ser arrancada deles violentamente, assim como todo o resto.
A proposta de utilizar inteligência artificial em prol da população soava sedutora. A salvação viria com a tecnologia a nosso favor: controle das pragas que infestaram as plantações, mapeamento das novas doenças que surgiram, aprimoramento genético e, com tudo isso, o tão sonhado equilíbrio para um planeta estéril de solos inférteis. Tudo através da música. Cientistas descobriram que os organismos vivos reagem aos sons e que o arranjo certo das notas musicais pode estimular sementes a germinar mais rápido, ou até mesmo recondicionar e regredir células cancerígenas. Parecia bom demais. Todos os nossos problemas seriam regidos, como numa orquestra sinfônica, pelo grande maestro doutor Jeon , o neurocientista responsável por trazer ordem ao nosso caos.
No entanto, o governo desonesto e ganancioso estava mais interessado em outras notas. A música que eles prometeram, em vez de salvar, planejava cegar, ensurdecer e calar.
Controle cerebral. O real e cruel intuito.
Não demorou muito até que os poderosos percebessem que o projeto tinha potencial para se tornar uma arma de manipulação em massa e rapidamente esconderam o seu lado podre sobre a fachada brilhante e redentora do complexo M.A.E.S.T.R.O. O fascínio da solução gloriosa ludibriou a muitos, e àqueles que não conseguiu enganar, comprou-os, por um preço alto e sórdido. O governo sequestrou quem ameaçou abandoná-lo e silenciou quem ousou desafiá-lo.
Mas eu ainda estou aqui.
Essa cidade tem medo de mim, eu vi a sua verdadeira face. Eu sou o verdadeiro maestro.
E quando eu explodir as janelas daquele prédio e tudo estiver prestes a ir pelos ares, todos os políticos corruptos e todos os homens com as mãos sujas olharão para cima e gritarão: “salvem-nos!”
E eu sussurrarei:
Não.
Complexo M.A.E.S.T.R.O, 11:57pm.
— Não sei, doutor… Sinto que a resposta parece vir tarde. — Tiffany suspirou pesaroso com os dados que surgiam diante de seus olhos.
Mais um roedor caiu sem vida dentro do aquário e se sentou em sua cadeira, reprimindo o mesmo suspiro de sua assistente. Ele não podia trazer nenhuma nota de pesar com a ausência de sucesso, precisava continuar, tentar mais até encontrar o resultado tão esperado que outrora havia sido encontrado, porém se perdido.
— Vamos encerrar por hoje, doutor… — Tiffany ousou. Ela também estava cansada, precisava descansar, necessitava deitar o corpo em sua cama e encarar o teto. Talvez conseguisse pensar melhor assim.
Seu chefe, porém, não lhe encarou. Não ergueu o rosto para ver seus olhos pedintes, esperançosos de que ao menos uma noite naquela longa e exaustiva semana ele aliviasse a tensão e a presenteasse com uma simples folga ou tempo a mais de descanso.
— Você pode ir. — tirou o óculos redondo e de lentes grossas de seu rosto para limpar o vidro embaçado. — Tire o dia de amanhã de folga.
Imediatamente, Tiffany levantou. Sua felicidade foi tão instantânea, que não sabia como reagir. Tirou seu jaleco e apertou uma sequência nada convencional no ar, na tela holográfica de seu computador. Em segundos, tudo sumiu, se apagando como uma chama sendo soprada pelo vento. No momento em que ela se virou para abraçar , caiu em si, contendo seu corpo e envergonhando-se da sua infantil reação.
Também pudera, Tiffany mal havia entrado para o programa de estágio da M.A.E.S.T.R.O e já tinha passado por muita coisa, um dia de folga era o mínimo que merecia e esperava.
— Bem… — deu um passo para trás, segurando o jaleco pendurado em um dos braços, com as mãos nos bolsos de sua calça de moletom. — Obrigada, professor Jeon. Eu… Eu acho que o senhor deveria ir para casa também. Está muito tarde… — mais uma vez tomou uma atitude ousada, tocando no ombro dele sutilmente antes de se virar e partir do laboratório.
Foi uma partida rápida. Logo, ele estava sozinho. E no momento que constatou isso, agiu pelo maior dos impulsos, levantando-se e arrastando o braço por cima da bancada cheia de itens altamente tecnológicos. Amostras, anotações, aparelhos de medições… Tudo o que estava em cima do principal balcão de uso do laboratório foi ao chão pela máxima da frustração de Jeon .
Tiffany estava certa com palavras tão duras.
Era tarde. Realmente era tarde demais.
Tarde para ele ir para casa, uma divisão muito longe no complexo relacionada ao lugar em que estava naquele momento. Tarde para ligar para Liam e garantir que ele estava bem, no geral, poderia fazer isso através de Scherzo, o assistente de inteligência artificial que tomava conta de toda a vida no complexo. Era tarde para muita coisa, inclusive tentar descobrir em que momento e em qual linha estava o erro de sua fórmula. Tarde para trazer de volta quem poderia ajudá-lo.
A Teoria Maestro não era dele, então como iria dar conta? Como iria conseguir recomeçar um projeto enquanto martelava em sua mente uma saudade tão recente, que parecia ser impossível desaparecer? Não tinha como e era, de fato, tarde demais. O que já havia sido quebrado levaria adiante muitas cicatrizes e, talvez, estas não iriam se curar nunca.
A dor em seu peito aumentava, não diminuía, a cada nova linha de pensamento seu mundo parecia comprimir lhe causando uma implosão. E a mínima suposição de um “e se” parecia enterrá-lo dentro do próprio martírio.
Foi ele quem a levou para dentro. Foi ele quem trouxe ela para o perigo.
E era tarde demais para tentar salvá-la.
Salvação essa que passou por seus dedos como a mais fina camada de poeira. Quando chegou, já era dolorosamente tarde demais, sua estava ao chão igual as coisas do balcão naquele momento, entretanto, ela não tinha mais luz nenhuma em seus olhos e, por mais que tenha se esforçado por Liam, seu sorriso não brilhava. Não tinha vida.
— Seja corajoso e cordial. — foi o que ouviu dela para o filho, enquanto ele estava petrificado no lugar, sem coragem de chegar perto e se deparar com a realidade.
Como poderia pedir uma coisa dessas a um garoto de seis anos que estava perdendo a mãe no meio daquele caos?
E como ele iria fazer para seguir em frente com Liam sem ela para lhe acompanhar?
Era tão tarde, que nenhum cenário aparecia em sua mente como uma forma de alívio para suas dores.
Em um bravo ato de coragem contra os pensamentos aterrorizantes que sua mente lhe trazia, se sentou em sua cadeira, passando a mão no ar como sempre fazia para trazer ao funcionamento sua tela holográfica. Em sua área de trabalho tinha um arquivo protegido pela forma mais segura que encontrou: seus olhos através das lentes grossas. Após a leitura, um vídeo se iniciou.
Ah, como ele se lembrava com tanto amor do dia de seu casamento.
— Fica quieto… Você não para de se mexer. — tentou soar brava, mas uma risada melódica seguiu sua fala.
— É que isso está apertado. Eu prefiro quando a gente não-
— Shh! — ela pressionou o indicador e o dedo médio sob os lábios de . — Estamos gravando, lembra? — apontou para a câmera atrás dos dois, com a mesma mão acariciou sua barriga. — Nosso pequeno Liam irá ver isso no futuro.
Com muito carinho e sem nenhuma palavra dita, se curvou brevemente para que pudesse alcançar a barriga da, ainda, noiva. Embaixo do robe de cetim branco, sentiu não só o toque físico dos lábios dele, mas também o amor que ele fazia questão de sempre colocar em prática. Fosse por meio de palavras, toques, gestos de carinho ou à sua maneira solícita, ela se sentia muito amada.
— Você já pode ir. Está tudo no lugar. — soltando da mão dele, a contragosto, se esticou rápida para deixar um beijo na bochecha de . — Eu preciso terminar de me arrumar. E você também.
— A gente não pode mesmo deixar tudo isso e fugir?
— Os noivos fugirem do próprio casamento? — ela riu. — Não seja dramático. Isso não combina com você.
— Estou ansioso. Quero partir logo para a lua de mel.
E um silêncio prevaleceu.
Era um ponto delicado no assunto.
Quando decidiram que iriam se casar, na verdade, quando decidiu pedi-la em casamento durante a comemoração de um grande avanço na pesquisa da Teoria Maestro, sabiam que tudo deveria ser feito ali e nada fora. A lua de mel seria dentro da residência deles no complexo, o máximo que poderiam receber é uma demonstração da tão poderosa inteligência artificial ao reproduzir com perfeição a antiga Indonésia, onde sempre deixou claro ser uma opção para a viagem de casamento dos seus sonhos. Isso se tornou, aos poucos, delicado, porque sabiam que parte da catástrofe exterior, a distopia na qual viviam atualmente, era responsabilidade de ambos.
abaixou o rosto, soltando da gravata de com certo desânimo nos braços, as mãos escorregando pelo tronco nu do noivo, irradiando aquela melancolia por todo seu corpo. Além da culpa por eles, agora ela sentia pelo pequeno ser sendo gerado dentro de seu ventre; Liam não teria a mínima oportunidade de viver o que um dia foi fértil no planeta, o que um dia foi lindo e vivo. Só restou a ele reproduções tecnológicas de última geração, a realidade virtual e não prática. E tudo por culpa de um sonho dela.
— Me desculpa. — pediu num fio de voz. Com o indicador, ergueu o rosto dela. — Você sabe que se eu pudesse, tudo teria sido feito de forma diferente.
— Mas se fosse diferente, estaríamos aqui agora?
— Estaríamos. Apenas estaríamos. Em outro lugar talvez.
— Então não estaríamos, você sabe. — ela se esquivou, indo para outro lado, buscando qualquer coisa que a fizesse se distrair daquele momento.
Por outro lado, respirou fundo em culpa. Odiava quando tinha seus lapsos de contestações racionais até demais, com seus ideais por vezes malucos. “Tudo acontece da forma como tem que acontecer, não importa o quê, como, quando e onde”, ela dizia batendo os pés e sendo firme em suas convicções. E não importaria o que ele fosse dizer ou tentar mostrar para ela como uma forma de olhar diferente, era teimosa, acreditava naquilo e ponto.
— Amor, eu acho-
— Eu acho melhor você ir se vestir. Vamos nos atrasar. — permaneceu de costas para ele.
hesitou em continuar se aproximar dela, mas achou que era melhor dar espaço. Existia um milhão de coisas que poderiam estar passando pela cabeça da naquele momento, não somente sobre o casamento.
— Estamos bem adiantados graças ao seu senso de organização. Não vamos perder o pôr do sol programado… — ele tentou, mas ela continuou de costas para ele, mexendo nos pincéis de maquiagem usados há pouco tempo.
— Não estou falando sobre a cerimônia.
Agora, pela filmagem, conseguia ver que o tom dela era de tristeza e não grosseiro, como pensou no momento que ela lhe devolveu aquela resposta. Sem hesitar, ele se aproximou e deixou um beijo no topo da cabeça de . Seria melhor encerrar aquela conversa estranha.
— Eu te amo. — foi tudo o que disse.
Quando ficou sozinha, garantindo isso ao olhar pelo espelho e as imagens holográficas do que seriam câmeras no corredor da residência, se sentou na cadeira à penteadeira. De costas para a lente da câmera que estava disposta ali para filmar sua arrumação, a fim de manter uma memória, sua postura murchou ao curvar-se para frente. Bem baixinho, dava para ouvir o choro copioso dela e, devagar, os soluços fizeram com que seus ombros se mexessem.
Até ser um choro alto e doloroso.
Pouco tempo depois, se levantou, passando as mãos no rosto e endireitando a câmera para que a filmasse por inteira, agora em pé.
— Embora as coisas sejam diferentes agora, o amor que eu sinto pelo seu pai nunca mudou. — acariciando a barriga, disse serena, fazendo o caminho para seu vestido pendurado na porta do guarda-roupas. — A nossa história começou quando tudo isso aqui ainda era só um projeto. Apenas um rascunho de mentes capitalistas. Ele não sabe, mas… — tirando o robe, ela respirou fundo. — Eu acredito que estaríamos juntos ainda que não tivesse acontecido nada disso. Mesmo sem a M.A.E.S.T.R.O, seríamos eu e ele.
Sorrindo genuinamente, se vestiu. Seu vestido feito pela idealização de seus sonhos, passados através de uma inteligência artificial e confeccionado pela impressora 3D, encaixava perfeitamente em seu corpo. E, ainda que não fosse tudo no formato ideal, estava sendo como deveria ser.
— E, mesmo que sejamos só nós três no meio da sala, com o Scherzo sendo o buffet, sonoplasta, cerimonialista e tudo o que precisamos, ainda é perfeito, Liam. — outra vez acariciando a barriga, ela enfim sorriu.
— Scherzo, congela. — pediu alto e foi obedecido pelo sistema. — Zoom. — outro comando atendido. — Ah, minha … — sentiu o peito doer, vendo a lágrima escorrida pela bochecha dela.
Observando o que aquilo tudo poderia significar, que ele não fazia ideia naquela época e tão vagamente agora, também sentiu seu rosto úmido. No instante que iria se entregar ao remorso e à saudade, porém, seu assistente Scherzo o alertou:
— Alerta vindo de sua casa, senhor Jeon.
— Liberado. — passando a mão no rosto e fechando a pasta que abriu, fazendo com o que o vídeo sumisse.
— Oi, papai. — a voz de Liam logo ecoou, surgindo em outro vídeo por uma mini holografia. Seu rosto inchado denunciava que acordou de mais um pesadelo. — Vem pra casa… Eu tive um sonho ruim. — manhoso, pediu.
A mensagem gravada finalizou e ele assentiu, olhando a hora.
É, realmente. Era tarde demais.
Jeon tinha finalizado mais uma grande e incrível jornada em Nova York, estava pronto para partir para seu próximo destino no país quando uma jovem sonhadora e com uma incrível pesquisa em desenvolvimento surgiu em sua frente após a última palestra depois de uma sequência bem-sucedida. A vida dele era para ser somente sobre isso, nada de novo, apenas as descobertas que já havia feito com a neurociência. Entretanto, tinha um tema de tese inovador: o uso da música como meio de manipulação neurológica. Uma pesquisa científica que só poderia ser levada adiante com ajuda da neurociência.
E ele não poderia negar. Nem a pesquisa, tampouco .
Ondas sonoras possuem dois extremos, ainda que produzidas em meios sólidos. Elas podem causar estresse ou sensações diversas de prazer. A física explica que o som nada mais é do que uma onda mecânica, a qual se propaga através de algum meio, sendo tridimensional ou longitudinal, transportando energia, mas não matéria. Entretanto, existe um limite humano em que a sua propagação é captada em velocidade e intensidade. O infra som é percebido pelos ouvidos humanos e o ultrassom está acima da frequência de vinte mil hartz.
A pesquisa surgiu de um questionamento qualquer da mente sonhadora de sua esposa: como seria a vida humana se não houvesse um limite?
Já naquela época — quase vinte anos antes — existiam estudos que podiam comprovar o uso total da capacidade cerebral humana, extinguindo o mito de que o cérebro só é usado em 10%. Contudo, entre usar e estar completamente desenvolvido pode haver uma linha tênue. Basta usar a exemplificação mais simples possível: o coeficiente de inteligência. Conhecido como Qi, ele é usado para medir o nível de inteligência daquele testado; mas não se pode julgar que alguém é melhor que outro por uma nota.
O Qi é apenas uma forma de encontrar deficiências em capacidades interpretativas, dizia .
E é nisso o que a neurociência poderia capacitar com a física das ondas sonoras. Em teoria, a propagação do som pode estimular, causar resultados. Se houvesse algo que pudesse ultrapassar o limite, ela buscava entender qual estímulo o ser humano receberia. Alguns poderiam dizer que seria impossível, mas o impossível se tornou, comprovadamente, uma mera opinião.
Não era algo que trazia arrependimento para . Foi a descoberta de uma vida, de poderes que a população poderia usufruir a nível catalisador, e, vendo pelos olhos dela, tudo tinha acontecido como deveria.
Quando admitiu a pesquisa de e levou para a Maestro, tudo tomou proporções impossíveis de serem narradas. Num dia estavam usando o laboratório didático comum da Universidade Maestro de Nova York (a NYMU: New York Maestro University), no outro estavam dentro do complexo científico, um lugar subterrâneo do qual jamais saíram. Naquela época, a política já era tão extrema, com seus conflitos capitalistas e territoriais, não demorando muito a haver um grande evento que levou parte da população à extinção. Não tendo somente a Teoria Maestro – nomeada oficialmente assim devido ao patrocínio da indústria – como carro chefe, a Maestro tinha inúmeros outros projetos revolucionários, mas todos usados de forma errônea.
A tecnologia, um oásis para os dias atuais no cenário distópico, se tornou grande fonte de poder. Mesmo sendo algo de controle, ainda assim tinha sua própria autonomia.
Nem nem tinham essa visão para o futuro. Ela sonhava em fazer melhorias na vida humana com a sua pesquisa; quando descobriu o que de fato estavam fazendo, já haviam se tornado marionetes de uma indústria tecnológica comandada por um ditador lunático. Logo, se tornou tarde demais. Nunca mais puderam sair do complexo, que ao longo dos anos foi se tornando imenso e detentor de várias camadas. Todos que ali entraram foram responsáveis por sua evolução e quase vinte anos depois tinham praticamente uma nova humanidade.
Humanidade esta que era aprisionada por suas próprias criações.
A rotina era essa: trabalhar e descobrir. Descobrir para trabalhar.
Desde que o centro de pesquisas do complexo foi atacado pelos rebeldes, excluídos do lado de fora, que viviam lá em cima, na superfície destruída, não era mais o mesmo. Já não ligava mais se era manipulado ou não, ele queria apenas que a justiça fosse feita, mesmo que fosse por suas mãos. Afinal, a vida do seu grande amor havia sido ceifada por aqueles que eram contra a criação dela, logo quando estavam chegando nos cálculos finais. Então, sua rotina era redescobrir tudo e trabalhar, ir para casa e cuidar de Liam – ou ao menos tentar.
E ali estava ele, mais um dia dentro do laboratório, observando e anotando. Tentando um dia após o outro, revivendo todas as fases da teoria, desde o primeiro contato com a criadora dela.
— Professor, os diretores estão solicitando sua presença. — Tiffany girou a própria cadeira, engolindo a seco ao comunicá-lo. Nos últimos tempos ele não estava voltando muito satisfeito dos encontros com a diretoria.
Na verdade, dificilmente ele parecia satisfeito.
— Termine a rotação. Temos mais três tentativas. — tirando o jaleco e desativando todo seu equipamento de anotações com um simples toque no ar, ele deu as ordens.
A caminhada para outra sala segura não foi rápida nem demorada, foi normal. Seu jeito entediado com as cobranças dos diretores não mudaria mais, não agora que ele precisava se concentrar sozinho na própria pesquisa. Depois de certo tempo, se acostumou com a vida monopolizada que passou a levar, agora se sentia incompleto e isso o tornava um rebelde sem causa.
Logo que entrou em outra sala, igual a todas as outras com paredes e porta de vidro, selecionou uma sequência rápida no painel ao lado da entrada, para que o ambiente se tornasse compartilhado com aqueles que lhe chamavam. Do lado de fora, tudo ficava invisível para quem via, como se ele não estivesse ali e nem a representação digital dos outros.
— Professor Jeon! — Frank, o presidente da Maestro, logo lhe cumprimentou com sua animação nada verdadeira. Aos poucos, outras telas iam abrindo e revelando os outros membros daquele conselho.
Mas nem mesmo isso o abalava.
Quantas falsas verdades já haviam passado por ele até ali, não é mesmo?
— Presidente. — foi extremamente simples em seu cumprimento, cruzando os braços em uma clara demonstração do seu mais puro desinteresse. — No que posso ajudá-los?
— É uma honra tê-lo de volta, professor Jeon. Ficamos muito preocupados com o seu bem estar e… Bem, sabemos que o período de luto é algo que dura por muito tempo. — Selma, à direita do presidente, iniciou. — Saiba que sentimos muito pelo acontecido e não iremos sossegar enquanto não colocarmos as mãos nos responsáveis sobre isso.
— E na Teoria Maestro. — completou por ela. — Isso não está muito longe de acontecer. Talvez com ela completa possamos colocar um fim nesses rebeldes da superfície. É um dos grandes motivos de eu ter voltado ao laboratório antes do previsto.
— Novamente, sentimos muito, Jeon. — Frank usou um tom mais baixo.
sabia que tudo isso era da boca para fora. Ele não se importava, porém. Só queria concluir com seu objetivo ou então tudo teria sido em vão.
— Agradeço as condolências de todos. Mas nada irá trazer de volta. — embora doesse muito, por uma perda tão recente que era, ele acreditava que dizer isso em voz alta lhe faria bem. — Se não continuarmos, tudo terá sido em vão. Incluindo a morte dela.
— Sobre isso, precisamos saber em qual ponto estamos. Sei que retornaram ao trabalho há poucos dias, mas antes do ocorrido com a invasão rebelde, havia nos dito que tinha uma expressiva evolução. — Selma o encarou direta. — O quanto retrocedemos com a mor… Digo, perda dela?
— Preciso de mais duas semanas. — de forma assertiva, evitando olhar nos rostos de cada um deles, garantiu.
De uma maneira estranha, se sentiu vazio ao constatar que a regressão havia sido enorme. representava muito daquele trabalho, ela era a grande estrela.
E não só para a Teoria Maestro, mas também para a teoria da vida dele.
— Seu pai sabe que você está aqui?
— Eu só vim deixar o dispositivo de controle do Scherzo dele. — Liam se encolheu ao lado da mesa, respondendo Tiffany educadamente. Levou um susto ao ouvir a voz dela logo que colocou o pequeno envelope em cima da mesa que sabia ser de .
— Certo. Você precisa de ajuda pra voltar pra casa? — Tiffany endireitou o corpo, sendo mais serena com o menino. Ela não era muito boa com crianças e Liam exigia um pouco mais, visto sua perda recente.
Era um tanto desconfortável. Admirava o menino de seis anos conseguir ir àquele lugar depois do que viu.
— Não. — ele respondeu mostrando os dentes em um sorriso educado e ajustando o óculos no rosto. — Eu vou pegar o metrô. Consigo ir sozinho. Obrigado, Tiffany. — acenou, virando-se para sair.
— Avise quando chegar em casa!
— Aviso! — sem olhar para trás ele respondeu, completando: — Não precisa dizer a ele que eu vim aqui. Ele vai saber.
Não esperou qualquer resposta ou se importou com alguma, Liam continuou sua caminhada tranquila. Sabia que o pai iria repreendê-lo mais tarde por ter atravessado o complexo apenas para entregar algo que, com toda certeza, ele tinha reserva. Levar o dispositivo para foi apenas um pretexto da criança curiosa que ele era.
Sua curiosidade se fazia em saber até que ponto já estava tudo bem. Queria ver como o laboratório tinha ficado depois de ter sido destruído com sua mãe dentro; ele se lembrava muito bem daquele dia e andar por aqueles corredores de paredes de vidro com reflexos falsos o fazia se recordar mais.
Seria aniversário dela no próximo final de semana e Liam queria ir na feira de antiguidades que teria na quarta-feira anterior, ele e comprariam uma cerâmica bem feita e bem desenhada, assim como gostava e admirava. Saíram os dois pela manhã, ele não teria aula e tiraria o dia livre do trabalho; Liam não entendia, mas naquela semana ambos os pais estavam muito mais felizes, chegou a ouvir uma conversa deles sobre finalmente terem conseguido a sequência correta, que iriam apenas testar uma última vez. Ele só não entendia e nem sabia do quê.
O passeio com o pai foi um dos melhores que já haviam feito até então, com muito sorvete, jogos e risadas. Era um tempo de qualidade que Liam dificilmente conseguia ter com um dos dois por mais de algumas horas, ter durado praticamente o dia todo fez com que ele quisesse que aquele dia jamais acabasse. Estava próximo da noite – segundo o relógio e as manifestações tecnológicas das placas que compunham o céu dentro do complexo – e eles já estavam retornando, mas viu por seu Scherzo que ainda não tinha chegado em casa, então achou que seria legal ele e Liam irem buscá-la no laboratório, tendo a imagem dela sendo transmitida de lá.
Sempre muito fissurada em seu trabalho.
Para Liam, talvez no futuro, isso se tornasse uma memória importante, apesar de dolorida. Para , talvez não tivesse nenhuma outra cor, apenas preto, a representação do luto.
O laboratório estava todo revirado, os ratos objetos dos testes estavam em parte mortos, o restante corria de um lado para o outro em completa perturbação. As incubadoras de som estavam trincadas, fios cortados, partes do teto destruídas. Parecia que tudo poderia desmoronar a qualquer momento. E no meio de todo aquele caos confuso e violento estava , caída e extremamente fraca. Parte do corpo na incubadora.
Parecia que ela estava esperando alguém para se despedir. Ao menos foi essa a sensação do pequeno garotinho.
— Liam… — o seu sorriso foi mínimo quando viu o filho. Ao longe, embaixo de completo choque, ainda se acostumava com o que estava acontecendo, com o que via. — Meu filho…
— Mamãe? — já em desespero e ajoelhado ao lado dela, Liam tocava em seu rosto. — Por favor, mamãe, levanta…
— Tá tudo bem, meu amor. — com o máximo da sua força, ela tocou o rosto dele. — Prometa pra mamãe que você vai ser sempre um garoto muito gentil… Seja corajoso e cordial…
— Eu vou mamãe… Eu prometo… Levanta.
— Eu amo você e seu pai. Eu amo muito vocês dois.
O olhar dela se encontrou com o de . Ele se aproximava, mas a última coisa que conseguiu fazer antes que ele chegasse por completo foi segurar a mão de Liam. Quando seus olhos pararam vidrados numa só direção e seu peito parou de se movimentar pela falta de respiração, o choro de Liam aumentou, seu pedido incessante de que ela acordasse ecoavam por todo o ambiente.
Naquele instante, ele desejou que seu pai pudesse rebobinar tudo, fazer com que ele, inclusive, não entendesse nada. Mas mal ele sabia que também se sentiu da mesma forma.
Ao contrário do que se imaginava e totalmente fora da sua compreensão – Liam podia ser mesmo muito inteligente e ter sempre ouvido os conselhos e orientações de sua mãe, mas ainda assim tinham coisas que ele não entendia muito bem, o que podia ser bom –, não demorou a voltar para o laboratório. No começo, seu pai parecia completamente perdido, até mesmo em como fazer o café da manhã. Por via de regra: Scherzo não se metia nessas coisas, havia um limite de segurança. E agora ele estava ali, curioso do porquê era tão importante.
Algo dentro de si crescia como uma repulsa, ao ver que tava tudo de volta no lugar. Ele não entendia o que estava sentindo, mas conseguia mensurar o incômodo.
De tão desfocado, Liam acabou se perdendo. Por segurança, seu Scherzo o guiou para o local próximo ao seu pai. O que não foi exatamente uma boa ideia. Sem qualquer barulho, estava diante da conversa de com outras pessoas que ele não conhecia visualmente, apenas por vozes familiares. Já tinha escutado aqueles mesmos timbres em dizeres firmes para seus pais, fazendo sua mãe parar de sorrir após conversas estranhas que fugiam da sua capacidade de entendimento.
— Preciso de duas semanas.
Desta vez a insegurança veio ao ouvir seu pai dizer.
— Não perdemos muito da evolução. Estamos quase na frequência correta. — ele entoava um tom totalmente diferente do que Liam estava acostumado. — Falta pouco.
— Perfeito! — uma mulher disse.
— Eu gostaria de saber uma coisa… — ajeitou a postura e o óculos. — Quando vamos responsabilizar quem fez o atentado e tirou a vida dela?
Isso Liam estava entendendo. Estavam falando sobre sua mãe. Se sentiu ansioso, esgueirando-se pela porta de vidro. Mais um pouco e ele sairia correndo dali.
— Estamos trabalhando nisso, professor Jeon… — um outro homem se manifestou. — Sabe como esses rebeldes são difíceis de conter… Mas estamos dando o melhor que podemos.
— Sim. Assim como estou dando o meu melhor aqui dentro. A vida dela não pode ter sido ceifada em vão.
— E não será, professor. Isso a M.A.E.S.T.R.O lhe garante.
Parecia que Liam havia escutado sua mãe lhe dizer seriamente “xeque mate”. Quando jogavam xadrez, enquanto ela o ensinava, não existiam risadinhas ou gestos carinhosos, toda partida seria sempre levada muito a sério.
A ansiedade que lhe ocorreu no meio do que estava ouvindo apenas aumentou. Era uma lembrança da qual ele não gostava muito, talvez a única coisa que lhe fazia ter medo de sua mãe. Ela era sempre muito exigente com esse jogo, toda vez dizendo que era para estimular sua mente a ser mais lógica, criativa, concentrada e de boa memória.
Mas era torturante perder todas as vezes e receber seu olhar de reprovação.
Um sentimento que se assemelha ao mesmo que estava tendo pelo tom vingativo de seu pai. Dentro da sua ingenuidade, Liam sabia que aquilo que seus pais vinham projetando para aquele lugar não era de todo o bem. Ele sentia medo e queria fugir, como se pudesse entrar numa nova dimensão e fingir que sua vida não havia se tornado aquela.
A frustração era tão grande, que quando entrou em sua casa, Liam odiou ver toda aquela decoração. Deveriam mudar, a vida não havia seguido? Então por que manter os móveis no mesmo lugar? A mesma cor sendo refletida na parede? Os mesmos quadros!?
Por que deveriam continuar do mesmo jeito se do lado de fora tudo já havia voltado ao “normal”?
Até mesmo seu pai estava vivendo naquele laboratório outra vez.
Quando entrou em seu quarto, buscou rapidamente por seu Scherzoplay interativo. Iria escolher qualquer uma das realidades utópicas que tinha disponível no catálogo e esquecer todo o resto que mal compreendia, mas que o frustrava mesmo assim. Porém, estava sem bateria. Saiu tão apressado e esqueceu de colocar no carregamento por indução. Agora teria que escolher outra coisa para centralizar seu foco.
Se jogou na cama, remoendo tudo o que viu e ouviu, até se sentir entediado com sua própria solitude e ignorância dos fatos – era terrível não entender, mas ter sentimentos tão profundos. Depois de um tempo olhando para o teto, revirando na cama como o ponteiro de um relógio, estava de cabeça para baixo e corpo para cima, quando enxergou o pequeno aparelho do tamanho do seu celular jogado no chão em um canto de seu quarto.
Foi o desbloqueio de uma lembrança legal quando se levantou para pegá-lo.
— O que está fazendo, mamãe?
Liam puxou um banquinho, sentando-se ao lado de sua mãe dentro do laboratório. Estavam esperando seu pai retornar de algo que foi fazer com um dos alunos e aí iriam para casa. A bateria do Scherzo de Liam tinha acabado, agora ele estava entediado e também já havia finalizado suas tarefas letivas, restando ao pequeno se entreter com o que sua mãe estava fazendo.
— Construindo uma cidade. — desviou o olhar da tela para explicar a ele, garantindo que o filho estava sentado corretamente, sem perigo de cair. — Quando eu era mais jovem e o mundo era diferente do que é hoje, existia um jogo chamado “Seventeenth Heaven”, lá você podia montar uma cidade da forma que quisesse. Nunca fui boa nisso, mas seu pai era.
— Posso ver, mamãe? — esticou mais o pescoço.
— Claro que pode. — lhe entregou o aparelho que segurava. — Um dia, se você quiser, pode jogar também. Seu pai me dizia que jogar esse jogo era como criar uma nova realidade e viver dentro dela.
— Como quando eu entro na selva pelo Scherzoplay?
soprou um riso nasalado, negando.
— Não. Esse é diferente, Liam. — se virou para ele. — A gente usa esses botões para gerar os movimentos e nessa tela aparece todo tipo de informação. Você manipula tudo por aqui, daqui de fora mesmo.
— Que legal! — mesmo não parecendo tão empolgante quanto poderia ser, Liam manteve sua empolgação. — E eu posso colocar ele no meu dispositivo?
— Não, filho. Esse é um aparelho próprio. Seu pai ia jogar fora, mas eu guardei. Ele pode ser seu agora.
— Sério? — os olhos dele brilharam.
— Sério! — o sorriso de foi murchando automaticamente pelo pensamento a qual foi acometida, e um suspiro longo e pesado liberou seu peito.. — Quando você se sentir pressionado e confuso, pode ligar ele bem aqui — mostrou ao menino onde ficava o botão. — e pronto. Só escolher o que fazer. Pode ser uma forma diferente de mudar o foco.
Na memória de Liam, somente agora ele conseguia ver que a mãe estava com o semblante preocupado. Se tivesse percebido antes, teria perguntado o porquê daquilo lhe causar tanta preocupação. Agora era tarde demais.
Ele estava focado demais na nova descoberta.
— O que é isso? O Complexo? — virou a tela para ela.
— Sim! Seu pai tinha feito até aquela fronteira. — passou o mapa para que ele pudesse ver. — E depois eu criei uma maquete do complexo. Mas precisa completar. E é um segredo, ele não sabe que eu não joguei no lixo. Não pode contar para ele.
Liam assentiu.
— Isso ficou igualzinho. Eu posso andar por todos esses lugares do mapa? Posso finalizar ele?
— Pode sim. Ali do lado de fora do Complexo tem uma cidadezinha chamada Meanietown. Tem coisas legais e vizinhos bacanas.
— Esse jogo é online?
— Acho que sim. — ela deu de ombros.
Talvez, pensando bem agora, já naquele dia as coisas estavam fugindo dos planos de sua mãe.
Voltou para a cama, se sentando enquanto esperava o aparelho ligar. Quando a tela inicial apareceu, ele sorriu, ainda funcionava.
Pouco tempo depois que sua mãe lhe deu o jogo, Liam saiu desbravando o complexo e acrescentou tudo o que faltava no mapa, fez isso até não ter mais o que colocar e perder a graça. Sentia que não tinha mais o que fazer, apenas se ele criasse algo do zero, mas não teve essa vontade. Para gastar seu tempo e trocar a energia ansiosa para outra coisa, Liam ficou fazendo as missões simples que tinham no jogo, que ainda restavam, até encontrar o lugar por onde podia ir para a cidade mencionada por sua mãe.
— Meanietown. Parece nome de urso. — riu fraco, entrando pelo portal do jogo. Agora estava um pouco mais calmo também.
Tão calmo, que não havia visto o tempo passar. Estava começando a nova etapa quando ouviu o Scherzo doméstico anunciar que ele estava no quarto, provavelmente para seu pai. Por medo, jogou o aparelho para debaixo de sua cama e se ajeitou na cama, fingindo que estava dormindo. entrou lentamente e beijou o filho, antes de sair e apagar a luz. Quando a porta se fechou, Liam tentou voltar ao jogo, mas o aparelho havia travado e ele não conseguia mais.
Optou por olhar para o teto e tentar pensar que em algum momento tudo seria apenas um sonho, até mesmo que estava preso no seu Scherzoplay interativo.
Ou seria tarde demais esperar que algo fosse diferente?
Continua...
Nota da autora: Olá! Essa história está sendo escrita por três autoras e as atualizações podem demorar um pouco. Esperamos que você goste e comente sempre que possível. Com carinho e com loucura, Daphne M, Ilane CS e M-Hobi.
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