Revisada por Aurora Boreal 💫
Atualizada em: 31.10.2024.
Ele fez a água doce e salgada de presente ao sol. Para a água, deu de presente as plantas, que dependeriam dela para sua sobrevivência. Desenhou os animais que cuidariam de seu mundo.
E dentre todas as suas mais belas criações, O Criador moldou o Homem.
Deu-lhe o dom do pensamento e diversas opções de sentimentos, para que pudesse amar o mundo como Ele amava. Criou-o para ser perfeito, sem falhas, mas notou que era incompleto. O Criador então percebeu o que realmente lhe faltava: companhia. E de sua costela, próximo ao coração, tirou sua melhor parte e o completou com a Mulher.
E para o Homem e a Mulher, O Criador ofereceu tudo: o calor do sol, o brilho das demais estrelas quando mais escuro, o fogo, a água, as florestas, os animais, o poder de conceber a vida.
O Criador deu-lhes o Paraíso.
Mas o Homem, não satisfeito com tudo que o Criador havia lhe oferecido, e seduzido pela própria ganância, lhe exigiu mais e mais. O Homem se tornou o caçador, se tornou o próprio criador de suas ideias, suas vontades. O Homem evoluiu e mudou o mundo, deturpou a criação e, aos poucos, perdeu sua conexão com Aquele que lhe deu o sopro da vida.
A Mulher, por outro lado, conectou-se a todas as criações, aprendeu a manusear o fogo, a água, a terra e o ar, amou os animais e protegeu seus filhos, assim como O Criador havia lhe ensinado.
Viveu em harmonia à criação, até que, advinda da costela do Homem, se viu obrigada a seguir seus pensamentos, suas regras e doutrinas, afinal, na visão do Homem, a Mulher era apenas um complemento à sua imagem.
Zelando sobre o mundo e tudo que O Criador havia lhe dado com tanto amor, a Mulher não contou ao Homem sobre os poderes que tinha e, até onde conseguiu, protegeu a Terra. Todavia, o Homem, dotado da inteligência oferecida pelo Criador, logo notou que sua conexão com toda a criação era muito mais forte.
Cego pela inveja e consumido pela raiva, acreditando ter sido traído pela própria criatura gerada através dos seus ossos e carne, que negara seguir suas regras, o Homem pôs um basta da única maneira que sabia, como caça e caçador.
Então, a Mulher na fogueira ele queimou.
O Criador, apiedado por seu sofrimento, aos pés da Mulher se ajoelhou, chorou e curou suas feridas e lhe prometeu, que Era após Era, concederia, se assim ela desejasse, o poder de se comunicar com cada uma de suas criações. E que se não lhe fosse conveniente, poderia seguir àquele que lhe dera a matéria prima, cuja dos ossos fora criada, o Homem.
A Mulher, marcada para todo o sempre pela crueldade que o Homem lhe infligiu, jurou ao Criador que amaria todas as suas criações. Prometeu-lhe através do tempo proteger o mundo de sua mais vil criatura.
“Cailleach”, O Criador sussurrou.
A bruxa, era como se chamaria agora. E a Mulher continuou guardando os segredos da Terra e sua magia, e escolheu entre suas filhas e filhos àqueles que continuariam seu legado.
A Bruxa foi queimada na fogueira incontáveis vezes, por amor e respeito à natureza e toda a criação divina, através dos séculos.
Adorou as estrelas, a lua, as águas, o fogo e as florestas. Os animais. O bom e o ruim. Ao próprio Homem e seus sentimentos, bons ou ruins.
E queimou. E queimou. E queimou…
Até os dias de hoje, quando fecha seus olhos à noite e sonha com seu Paraíso.
Uma raposa, clara como dia. Pelo macio, cauda longa vermelha como o fogo, escondendo-se entre as árvores. Me observando.
Brilhante sol, brilhantes todas as estrelas, no dia e noite.
Brisa do mar, brisa da floresta.
“Maeve”, eles sussurram. Eles chamam por mim. Eles me escolheram.
“Trrrrrrrriiiiiiiiiiiimmmmmmmmmmm”
Desperto em um pulo, maldito despertador!
— Ah, acordou a bela adormecida, estava prestes a te jogar um copo de água — diz a garota de cabelos escuros e ondulados, e ela não parece estar brincando, já que segura um copo de vidro com água até a borda, escorrendo um pouco pelas beiradas.
— Que horas são? — pergunto, ainda zonza pelo acordar repentino. Que sonho esquisito! Acho que nunca sonhei com nada do tipo, tantos elementos, tantas coisas a prestar atenção... O mais estranho é que lembro de tudo. O pássaro, a raposa, a natureza... É como se me chamassem, tenho certeza que ouvi meu nome, e não faz o menor sentido.
─ Tarde, tarde demais pra estar sonhando acordada! ─ A garota volta a falar, estala seus dedos próximo ao meu rosto, o que me faz pular outra vez.
─ Estou acordada, juro que estou ─ digo, já me pondo de pé. Encaro as duas grandes malas e suspiro. Merda! Como vou achar qualquer coisa rápido?
Abro o zíper de uma delas e pego a muda de roupa que está logo em cima, não vai dar tempo de escolher nada agora. Merda, merda, merda!
─ Isso vai acontecer todo dia? Porque se for assim, vou pedir para trocar de colega de quarto. — Ela ri, mas alcança o par de tênis Nike branco que está logo ao lado da cama. É claro, muito bom, logo no primeiro dia deixar uma ótima impressão. — Ava, a propósito. — Ela sorri e eu correspondo com um aceno, sorrio de volta e corro para a porta do banheiro.
─ Maeve ─ resmungo, quase sem ar. ─ Tenho dois minutos? ─ Ava olha a tela do celular e afirma com um aceno de dedão.
─ Dois, nada mais, nada menos ─ responde, com a voz firme. Concordo uma vez com a cabeça, a escova de dentes já em mãos e me tranco no banheiro. Me troco tão rápido quanto consigo, o suficiente para não correr o risco de vestir a roupa do avesso. Escovo os dentes mais rápido ainda.
Maldito sonho! Se eu não quisesse tanto saber tudo que aconteceria, talvez não tivesse dormido por tanto tempo e não me atrasaria para a primeira aula.
É meu primeiro dia aqui, suponho que seja o de Ava também, já que alunos do primeiro ano costumam dividir seus quartos nos dormitórios da faculdade. Quando cheguei na noite passada, a cama vizinha já estava preparada, mas a vizinha não estava aqui, então só fui dormir, o cansaço de dirigir os 500km de Yorkshire até aqui. Nem mesmo a ouvi entrar, deve ser bem discreta.
Não tenho tempo para pentear o cabelo ou para fazer uma maquiagem mais elaborada agora. Alcanço um gloss para passar no meio do caminho, bem como um rímel e um espelho de bolso, isso vai ter que servir.
Pego Ava no pulo. Está cutucando uma das caixas na estante de frente para a cama. Assim que me vê, ela salta para o lado, mas não diz nada, apenas segue até sua própria estante, se despede das suculentas na prateleira, com aquelas vozes que fazemos toda vez que encontramos um cachorrinho fofinho.
Já tinha deixado minha bolsa preparada na noite anterior, quase como se soubesse que me atrasaria. Nunca tive esse hábito, muito pelo contrário, fui criada para agir dentro das melhores maneiras da sociedade. Só que o maldito sonho…
─ Podemos ir? — ela me pergunta, um pouco impaciente. Eu não pedi para que me esperasse, mas agradeço mentalmente o seu gesto, pelo menos eu não me atrasaria sozinha. Jogo a mochila sobre um ombro e em menos de dez segundos, saímos para o corredor.
Nossos passos pelo campus são rápidos. Me lembro de ter vindo aqui apenas uma vez antes, quando era bastante pequena, nem mesmo me lembro o motivo, mas tenho certeza que me apaixonei. É óbvio que quando você é criança, o mundo todo parece grande demais, cheio de detalhes e colorido. E também é bem fácil se apaixonar por Dublin, o ar da cidade é quase... mágico.
─ Está preparada para visitar o Museu? ─ Ava pergunta, mas não tenho ideia do que está falando, que visita? Acho que ela nota a pergunta em minha expressão, pois logo continua: ─ Não olhou seu email? A professora O’Sullivan marcou logo de cara uma visita, o que é bem legal…
─ Hmm, pra falar a verdade, não sei nem mesmo qual a primeira aula, só estou te seguindo ─ comento, e sinto minhas bochechas queimarem. E se nem mesmo tivéssemos a mesma aula? Ainda que no primeiro ano a maioria dos alunos frequentem as mesmas classes, Ava poderia ter algo totalmente diferente agora. Mas ela solta um risinho anasalado que a faz parecer ainda menor e com um ar infantil, travesso. Ela deve me achar uma grande idiota, porque para de andar e se vira para o pátio do campus, agora um tanto vazio.
─ Bem, Maeve…
─ Quinn.
─ Bem, senhorita Maeve Quinn, seja bem-vinda à Dublin, Irlanda... Bem-vinda à Universidade de Dublin, imagino que estejamos no mesmo curso, Artes e Literatura... — concordo, mas meu olhar é inquisitivo, como ela poderia saber? ─ Não que eu tenha mexido nos papéis que estavam em sua cabeceira para saber... ─ Ava arregala os olhos ao me encarar, porque sabe que eu realmente a peguei no pulo, mas logo estou rindo alto, e ela me acompanha, porque eu não ligo nenhum pouco. Se vamos dividir nosso espaço, nada mais justo do que saber com que maluco podemos estar o fazendo.
Ela volta a caminhar e eu, obviamente, volto a segui-la. Mesmo que já tenha estado aqui antes, não haveria como saber para onde ir, eu devia ter, sei lá, uns oito anos. Isso foi logo antes de nos mudarmos para Yorkshire, na Inglaterra. Muito antes disso, minha memória é um borrão, não tenho praticamente nenhuma lembrança da minha infância.
─ Na realidade, eu nasci aqui... ─ afirmo. Ava se vira por um segundo, perplexa, mas não para dessa vez.
─ Não me diga…
No final das contas, não nos atrasamos tanto quanto imaginei. Outros chegam na sala depois de nós, e já estamos acomodadas em lugares mais ao fundo. Respiro aliviada por um momento, o que menos quero é chamar atenção, ainda mais logo de cara.
É sempre duro ser o “forasteiro” em um novo lugar, mesmo quando você não tem nada de especial. É ainda pior quando você é daqui, mas se sente como se não fosse. Essa coisa de explicar de onde veio, o que está fazendo, fazer com que te conheçam, não é para mim.
A senhora O’Sullivan deve ter uns sessenta anos, é mais jovem do que eu imaginaria a professora de História e Cultura Irlandesa, mas é muito bonita. Seus traços são fortes, tudo nela grita Irlanda e naturalmente estou curiosa para saber mais sobre sua carreira. Espero que seja tão boa quanto aparenta.
─ Isso, isso, sentem-se todos ─ ela diz, até mesmo seu sotaque é de um irlandês forte, Belfast talvez? ─ Como devem ter recebido em seu email, esta mesma tarde faremos uma visita ao Museu de Arqueologia... ─ Aspiro o ar com força. Ao meu lado, Ava ri tão discretamente que sequer notaria sua diversão se seus ombros não estivessem chacoalhando um pouco. ─ Como uma boa amante dos museus, acredito que começarmos bebendo direto na fonte é a melhor opção para captar a essência do que iremos trabalhar durante nossas aulas…
Não sei se a acho genial ou se é mais fácil acreditar que esteja tentando conquistar os alunos para que não lhe encham muito o saco até o fim do semestre. E parece dar muito certo, sua ideia deixa todos animados, eu nem mesmo consigo ouvir sua voz mais, apenas os cochichos ao meu redor.
─ A Irlanda está coberta de magia... desde sua história mais antiga até as culturas mais modernas... ─ Ela ergue sua voz, assim os burburinhos cessam. ─ Desde suas paisagens e as artes que as retratam, as músicas e até mesmo os legados... São famílias que carregam contos tão antigos quanto o mundo, contos estes que moldaram quem somos hoje, no que acreditamos... ─ Ela continua a falar, e falar, e falar, até que quase apago mais uma vez, como se apenas o tom da sua voz me pusesse em um tipo de transe. Para fora da janela, o tempo parece fechar e nuvens escuras se formam sobre todo o prédio.
─ Uuuhhh, parece que os O’Byrne estão voltando para a cidade... Logo vai chover… ─ Um rapaz, duas mesas à frente cantarola em um tom divertido, sua voz é baixa, mas posso ouvi-lo com clareza. Logo ao seu lado, uma garota muito bonita dá uma risadinha e concorda. Não faço ideia do que querem dizer, mas não parece boa coisa.
A aula continua e parece nunca chegar ao fim, mas assim que a professora anuncia o término e nos relembra da visita à tarde, no mesmo momento sinto falta da sua voz calma. Toda a ansiedade que senti na noite anterior se esvai, e isso logo na primeira aula, tudo parece muito bom. Não consigo parar de desejar que seja sempre assim.
E como o esperado, logo começa a chover, forte e abundante. Os pingos batem na janela e o barulho soa como se pequenas pedras fossem atiradas contra o vidro. É um som acalentador, me ajuda a ficar concentrada. Finalmente abro as caixas de mudança, não são muitas coisas, mas objetos importantes. Souvenires da Inglaterra, memórias antigas do lugar que é o único que realmente conheci como um lar.
─ Ah fofinhas, eu sinto muito que o Sol se foi, mas prometo que ele logo volta... ─ Ava conversa com suas plantinhas, novamente com aquela voz infantil que para muitos pode soar quase irritante. Ela acaricia as folhinhas e o vasinho de cada uma delas. Acho a coisa toda muito engraçada e não consigo controlar uma risada baixa. Ava se vira para mim, os olhos grandes cheios de curiosidade, quase como se quisesse entrar em minha cabeça e descobrir meus pensamentos.
─ Você gosta bastante das suas plantas, não? ─ pergunto, desviando meu olhar novamente para o conteúdo das caixas. Minha pergunta é retórica, claro. É bem óbvio que ela ama suas suculentas e florezinhas, já que tem várias delas espalhadas por todo seu espaço do quarto.
─ Oh, elas não são minhas plantas, são minhas irmãs... ─ me explica, como se eu tivesse oito anos de idade novamente. ─ Você deveria ter algumas também, ajudam muito na energia…
─ Muito obrigada, mas acho que vou passar ─ resmungo da forma mais educada que consigo, contudo, ela continua me olhando, como se esperasse uma explicação. ─ A última plan... irmã verdinha que tive, acabei matando... se eu apenas pudesse ter água nos dedos... ─ argumento. Ava solta uma risadinha fungada, como se tivesse a resposta para isso, e mesmo assim, não tivesse a menor intenção de me contar.
─ Acho que devia tentar de novo, pode se surpreender... ─ ela diz, depois de alguns segundos em silêncio, sussurrando para suas “irmãs”. Ava não parece o tipo de pessoa que consegue ficar calada muito tempo, e se precisasse, começaria a se remexer no lugar, como uma criança que precisa ir ao banheiro urgentemente.
─ Claro, quem sabe em outro mom... ─ Antes que possa argumentar, ela me entrega uma das suas suculentas, é pequena e fofa, e já sinto muito por saber que vou deixa-la, não intencionalmente, morrer. ─ Oh, você diz agora ─ ela concorda com a cabeça, num aceno agitado e com um largo sorriso nos lábios. ─ Obrigada, eu acho ─ agradeço, de um jeito contrariado. Não é que eu não goste da natureza, só acho que talvez ela não goste tanto de mim de volta.
De qualquer forma, coloco a planta sobre a escrivaninha, bem ao lado do laptop, onde a luz da janela bate com mais claridade. É, até que é bem bonitinha.
─ Viu só? Já sabe que suculentas são as melhores amigas do Sol... é um começo, assassina de plantas ─ ela diz, divertida e eu rio em resposta. Ava parece uma ótima pessoa, fico feliz por tê-la como colega de quarto. Isso tudo poderia ter começado de um jeito muito, muito pior. Talvez eu tenha mais sorte do que juízo.
Tiro os últimos livros da caixa, aliviada. Depois disso, só precisarei colocar as roupas nos devidos lugares, e os calçados, então terei o restante do tempo livre até que precisemos nos encontrar com o grupo que irá ao Museu…
─ Acho que é meio idiota supor que gosta de ler... ─ Ava indaga, apenas dou de ombros. Ela não está totalmente errada.
─ Para falar a verdade, eu prefiro desenhar, mas ler é muito bom... ─ comento com um suspiro, e noto que ela percebe o caderno de desenhos sobre a mesa. O alcanço antes que ela o faça, e quando a olho mais uma vez, me encara quase como um cachorro pedindo um pedaço do seu sanduíche.
─ Vai me mostrar um dia? — ela questiona, como se nem mesmo se importasse com o limite de espaço entre nós. Mal nos conhecemos, não tenho motivos para abrir minha mente e, consequentemente, meu caderno de desenhos para ela. É muito íntimo.
─ Alguém já te disse que você é exageradamente curiosa? ─ indago, e me arrependo no mesmo momento. Não quis que soasse como grosseria. Eu me preparo para pedir desculpas, mas minha nova amiga dá uma piscadela, voltando para o seu lado do quarto.
─ Só todo mundo que conheço... ─ Ava conta nos dedos, balançando os ombros.
Me olho no espelho uma última vez. Tive um pouco mais de tempo para me preparar agora, e não me sinto tão desleixada como me senti pela manhã. Aliso a calça jeans e a jaqueta branca de nylon. Meus cabelos estão penteados e consegui passar um pouco mais de maquiagem. Espalho um pouco de blush pêssego nas bochechas, além do batom vermelho e rímel preto.
─ Parece outra pessoa... totalmente diferente dessa manhã... ─ Ava brinca, eu reviro os olhos em resposta. É tão engraçado que nos conheçamos há apenas algumas horas, mas é como se ela estivesse presente durante toda a minha vida, como se fosse minha amiga desde sempre.
Em outros casos, jamais permitiria que alguém fizesse uma piada assim tão pessoal sem conhecê-la de verdade. Mas com Ava não me sinto nada desconfortável, é apenas uma brincadeira boba de duas amigas de verdade.
─ Você também está um charme, sabia? Parece uma pequena samambaia... ─ respondo, querendo fazer piada com seu look. Ela veste uma jaqueta verde grossa e uma blusa de lã escura por baixo, sua calça também é de lã preta, apertada nas coxas bem torneadas. Suas botas estilo Ugg também são verdes e não consigo deixar de pensar em como ela realmente gosta da cor, que parece combinar com ela em perfeita harmonia.
A garota para por um momento para me encarar, a mão segurando firme o trinco da porta. Por um segundo, acho que passei do limite com a comparação e já me preparo para pedir desculpas, mas ela gargalha alto, jogando a mochila nas costas antes de sair do quarto. Poucas horas, e ela já me fez sentir em casa por completo, o que é ótimo, pois a realidade que vinha imaginando nos últimos tempos estava bem distante disso. E não porque não acho que sou capaz de fazer amigos rapidamente, só é bem curioso.
─ O que achou do campus até então? ─ Ela muda de assunto tão rápido que me surpreende, e fico um pouco aliviada de não ter ficado chateada com as piadinhas sobre planta e gostar de tudo verde demais. Ou, talvez, o assunto seja delicado para ela e eu esteja pegando no pé demais.
─ É muito bonito... A arquitetura clássica me faz sentir como em um conto de fadas... — explico para ela, que acena com a cabeça em concordância. ─ Mas é diferente de como imaginava, de como lembrava quando era criança... ─ continuo, tentando pescar alguma memória no fundo da mente. Apesar de ter contado para ela que havia nascido aqui, não expliquei o porquê de termos deixado Dublin para trás.
Até meu nascimento, Brigid e Keegan Quinn eram quase nômades, montavam o que chamavam de “acampamento” por não mais que uns poucos meses em novos destinos e, mesmo antes da minha chegada, já tinham morado em quase todos os continentes. Planejavam ir para a Nova Zelândia quando meu parto aconteceu. Só aí decidiram voltar para Dublin, sua cidade natal, para que eu fosse educada como foram por seus pais também. Só que quando completei oito anos, receberam uma proposta de trabalho irrecusável, em Yorkshire, onde moramos até agora. Aparentemente, com uma criança nos braços, comida rapidamente se tornava mais essencial do que novas aventuras.
Cresci em meio às suas histórias mágicas sobre elfos e fadas, sobre criaturas que nem mesmo tinha ouvido falar antes, desde os kappas no Japão, as mulas sem cabeça no Brasil, até os wendigos do Canadá. Por onde eles passaram, coletaram fábulas e lendas o suficiente para sempre ter alguma nova para contar antes de me colocarem para dormir.
Mas nunca, jamais, vi seus olhos brilharem tanto como quando falavam da Irlanda. Talvez por ser seu lar, seu berço, ou então... Agora, com meus pés contra a terra escura e o ar gelado abraçando meu rosto, consigo entender perfeitamente o porquê de nunca ter pensado duas vezes antes de escolher onde estudar. A Irlanda sempre seria o meu verdadeiro lar.
─ Dublin é do caralho mesmo. ─ Ava me faz despertar e eu gargalho alto antes de voltarmos a andar até o ônibus que nos aguardava em uma das entradas do campus.
Somos recebidos pela Senhora Sikora, a diretora do Museu, que nos aguardava na porta principal da frente do prédio, encolhida embaixo de um guarda-chuva estampado com a foto do museu em um dia ensolarado, o que é bem irônico, já que seus pés estão tão ensopados quanto a barra das suas calças.
─ Ah bem-vindos, bem-vindos... vamos entrar todos e escapar do choro divino... ─ ela diz enquanto nos entrega saquinhos para guardarmos nossos próprios guarda-chuva. Encaro Ava no mesmo segundo e ela parece segurar a risada, tenho certeza que pensamos a mesma coisa. Choro divino??
Por causa da chuva, não conseguimos aproveitar a fachada do prédio de verdade, o que é uma pena, pois parece lindíssimo. Com a entrada circular de pedras, seu estilo vitoriano é imponente e impressiona, colunas e portas detalhadas, imensas, por todo o prédio. Assim que pisamos do lado de dentro, fico surpresa, é tão bonito quanto o lado de fora, a cúpula no alto do teto é chocante, bem como os desenhos em mosaico no chão. Me sinto aconchegada, tenho certeza que esse foi o motivo pelo qual escolhi seguir essa profissão.
─ A coleção do Museu Nacional começa com suas peças resgatadas no século 19, advindas desde o período pré-histórico até o período medieval... ─ Sikora começa a nos explicar sobre o lugar, enquanto se dirige às amplas alas de exposição. ─ Armas, ferramentas de pedra, bronze e aço... tumbas do período neolítico. ─ Ela aponta para alguns expositores, onde através do vidro podemos enxergar o que ela apresenta.
Está claro que o intuito da Sra. Sullivan é nos mostrar como era a vida do homem irlandês antes e depois da Idade do Ferro, quando os celtas chegaram na ilha, povoaram o lugar e estabeleceram sua cultura em seu novo lar. Como ela mesma disse, beber da fonte.
─ Algumas das armas são datadas mais de sete mil anos antes de Cristo, punhais e joias feitas de âmbar e como podem ver... ─ Ela aponta para um dos expositores. ─ Caldeirões. ─ Ava me cutuca, acho que sua careta é para ser misteriosa, mas preciso me segurar para não rir alto e acabar atrapalhando sua explicação.
Seguimos por mais uma seção, as colunas adornadas separam a maior parte das alas. Sikora para em frente a mais expositores, e dentro das caixas de vidros, estão pedaços enegrecidos que logo consigo identificar. São corpos humanos, retorcidos e mal embalsamados. É um tanto bizarro.
─ Essa é “Realeza e Sacrifício”, os corpos foram encontrados da forma que veem aqui, são datados de mais de três mil anos atrás... e como podem notar pelas partes enegrecidas, é porque não foram sepultados com técnicas de mumificação como os egípcios faziam ─ ela explica, como se pudesse ler meus pensamentos. É bem provável que a mesma dúvida estivesse plantada na cara de todos, por isso foi fácil explicar. ─ Os corpos foram preservados por causa dos minérios do solo pantanoso, e as teorias contam que pela posição em que foram achados, o que veem aqui são sacrifícios humanos... ─ Noto com o canto dos olhos alguns alunos levarem uma mão à boca, cobrindo-a, apavorados. Acho quase divertido, até mesmo porque sacrifícios não são nada surpreendentes por aqui, ou não deveriam assim. Para mim, nunca foi um segredo, meus pais nunca deixaram essa informação de lado porque eles mesmos costumavam dizer que tudo que aconteceu era de extrema importância para construir a história que temos hoje.
Não houve sequer um período da história, desde que o mundo é mundo, onde o homem não acreditou em um deus, seja esse qual quisesse. E desde o princípio, o homem supôs que se fizesse oferendas para seu deus, teria uma terra melhor, uma colheita melhor, saúde para que seus filhos vingassem. Seja o que fosse, os sacrifícios não deveriam surpreender ninguém, nem mesmo os humanos, não quando se tinha tão pouco conhecimento sobre tudo.
─ Aqui estamos, nas minhas preferidas... ─ Sikora se anima, seus olhos brilham de verdade, é fácil perceber a paixão que tem ao falar sobre o Museu e toda a história que suas peças contam. ─ Poder, Trabalho e Oração... bem, acho que está bem óbvio o que cada uma das alas irá apresentar... ─ Ela ri baixinho, achando graça. ─ Armas, joias, livros e outros tesouros de famílias influentes, utensílios de trabalho e também objetos religiosos... aqui fugimos da cultura celta e partimos para um mundo moderno. Estamos falando de 1150 a 1550 ─ explana, enquanto nos deixa aproveitar para namorar cada um dos objetos através do vidro.
Cada uma das peças parece contar uma história, e se fechar os meus olhos, tenho quase certeza que seria capaz de ouvir seus antepassados através do ferro pesado. Antes da Irlanda ser Irlanda, muitos tentaram tomar suas terras, mas o povo celta conseguiu manter o território e desenvolvê-lo sem deixar com que, ao longo do tempo, suas histórias se perdessem.
─ Venham, quero mostrar-lhes as nossas peças mais importantes... ─ Sikora nos chama, e assim que a alcançamos, ela aponta com orgulho para um bonito e grande cálice de diferentes metais, base de prata, mas decorado com ouro e bronze. ─ O Cálice de Ardagh deste lado... uma verdadeira obra algo-saxã irlandesa, de um artista que não mediu esforços para usar de diferentes técnicas. Lindíssimo, não? ─ Concordo com um aceno, assim como outros alunos. Até mesmo Ava parece interessada, ela encara o objeto no expositor do outro lado da sala, seu olhar fixo e concentrado.
─ Ah, sim, e aqui está outra belezinha... ─ Sikora também nota seu interesse no objeto próximo. Ela segue até a caixa de vidro e a sigo, com outros em seu encalço. Dentro do expositor está um broche, é pequeno e tão delicado, os entalhes são minuciosos, de prata maciça. ─ O Broche de Tara... ─ ela quase sussurra, seus olhos firmes no fino objeto. ─ Foi supostamente encontrado em 1850 por uma mulher... supostamente por camponesa e seus dois filhos, que afirmou ter achado a caixa, com o broche dentro, enterrada próximo à praia... ─ A diretora do Museu dá de ombros, como se nem mesmo ela acreditasse na história. ─ O certo é que tal camponesa entregou a peça para G. & S. Waterhouse, o joalheiro de Dublin na época... Ele já colecionava e restaurava outros artefatos de origem celta... muitos dizem que o broche foi feito em diversas partes, com muito mais decorações do que este que vemos. Peças essas que sumiram de forma misteriosa ao longo do tempo, mesmo antes de chegar à nossa coleção.
─ Seu sobrenome não é Waterhouse? ─ pergunto à Ava, que ainda parece distraída, os olhos grudados no objeto como se estivesse hipnotizada. Ela concorda com a cabeça, mas não diz nada. Estou curiosa, quero lhe perguntar se o objeto pode ter qualquer ligação com sua família, mas não quero interrompê-la agora, não quando está tão concentrada.
─ A verdade é que muitos dizem que a camponesa que entregou a peça para G. & S. era, na realidade, uma feiticeira disfarçada, com receio de ser descoberta e presa pela posse do objeto, que não considerariam pertencente à uma mulher de vida simples... viriam depois ligá-la com suas crenças e a executariam por bruxaria... ─ Sikora conta, os cotovelos apoiados em um corrimão de metal. ─ Ainda que em 1800 a fogueira não fosse mais comum, o povo pagão ainda temia que houvesse um novo julgamento das bruxas, como em Salem, nos anos de 1600... Enfim, aos que se interessam pela arte hiberno-saxônica, iluminuras celta, com um pezinho no romantismo, recomendo que visitem a exposição em parceria com a Galeria Nacional. É na sala seguinte... — Ela pisca um olho e acena com a mão sem direção específica, nos agradecendo pela visita.
─ Isso foi... uau... ─ assovia Ava, ao meu lado. Ela finalmente parece ter recobrado sua sanidade, mas antes que dispare minha pergunta sobre o broche, ela se apressa em andar. Logo, percebo que talvez ainda não seja o momento mais apropriado para falar sobre o assunto, talvez seja algo sensível, afinal de contas, ainda não nos conhecemos o suficiente, não sei tudo sobre ela. ─ Acho que vou dar uma olhada nessa tal exposição. O que acha? ─ a garota pergunta, já caminhando para o lado que Sikora apontou como o da galeria em específico, concordo com um aceno e a sigo.
A ala é ampla, como as outras, todavia, o espaço é mais vazio, já que não há expositores ocupando o meio da sala, apenas quadros e gravuras pendurados. Vejo Francisco de Goya de um lado, Gustave Doré de outro. Muitos quadros de William Turner, com suas luzes tão fortes, a ponto de serem quase violentas à olho nu. No fundo, um quadro de William Blake, onde o diabo parece observar Adão e Eva se apaixonarem.
Mas é bem no canto da sala que vejo uma pintura que me faz estancar os pés no chão. Os cabelos vermelhos e a pele clara como a luz da lua, as roupas simples e delicadas, o chapéu. Sou pega de surpresa como nunca antes, e é como se não pudesse respirar enquanto encaro a mim mesma, gravada para sempre na moldura. Por um minuto, é como se pudesse sentir o cheiro forte da tinta a óleo enquanto o artista marcava todos os traços no tecido. Sinto como se encarasse um espelho, há centenas de anos.
Não pode ser eu ali, não faz sentido. É surreal!
─ An cailleach. ─ O rapaz que ouvi falar sobre a chuva mais cedo também admira o quadro, um pouco mais à frente de onde estou. Ele sussurra as palavras com espanto, antes de se virar para mim. Seu olhar não desvia dos meus enquanto parece pensar, mas não faço ideia no quê, ao não ser o fato bizarro de que a pintura se parece muito comigo. Então, de repente e sem explicação, ele dispara para fora da sala, com a mesma garota da aula logo em seu encalço.
─ Cailleach… o que isso significa? ─ questiono mais a mim mesma do que qualquer outra pessoa. ─ Tenho a impressão de ter ouvido isso antes…
─ A Cailleach é a mãe anciã... ahm... das bruxas, ela é considerada a deusa maior entre os gaélicos modernos... ─ Ava lê o papel ao lado do quadro, que explica sua origem e significado principal. Nem mesmo havia notado sua presença, ainda me sinto absorta com o susto que levei ao ver a pintura. ─ Sabe o que é engraçado, alguns descrevem a Cailleach como uma bruxa de um olho na testa e feia pra cacete, nesse quadro ela é só parece…
─ Bizarra ─ completo, antes que ela termine. Não sou cega, sei que a mulher no quadro tem exatamente a minha cara, ou eu tenho a cara dela, tanto faz. Mas ouvir isso em voz alta vai fazer parecer real demais, então prefiro não ouvir. Até porque, no fim das contas, é só bizarro mesmo. ─ Podemos ir? ─ pergunto, pois acho que não aguento mais ficar aqui e encarar a pintura, já peguei duas pessoas me olhando e comparando com o quadro. Estou enjoada.
─ Claro, vamos, bruxinha... ─ Ava brinca e anda rápido em direção à saída, provavelmente na espera de que eu vá bater nela, ou xingá-la, talvez. A alcanço rápido, com um leve empurrão no braço. Logo, estamos rindo e já quase esqueci o quadro esquisito da Maeve de outras eras... ─ Sabe, dizem que o significado gaélico de Cailleach é velha, anciã, idosa... como estava na descrição, mas acho que faz muito mais sentido a versão do irlandês antigo... ─ E então ela volta a falar sobre o assunto, precisava? ─ Caillech significa véu... então faz sentido, se ela realmente era uma bruxa, não poderia sair contando pra qualquer um, era muito perigoso... então se esconderia por baixo de um véu. Entende? ─ questiona, mas não presto muita atenção no que diz. Meu olhar segue direto para o casal que ficou tão apavorado com o quadro da bruxa.
─ Quem são os pombinhos? ─ Minha voz soa tão curiosa que quase treme. Me viro para Ava, os apontando com discrição. ─ E como diabos você sabe tanto sobre essa história de bruxaria? ─ Ela ri, alto demais para um Museu, algumas pessoas chegam a virar suas cabeças para nos encarar. Eu me encolho, mas Ava me puxa um pouco para o lado, seus passos destemidos.
─ Primeiro, minha família é antiga, os Waterhouse já estão aqui faz um tempo... ─ ela explica, e me lembro de que ainda quero perguntá-la sobre o broche. ─ E não, eles não são um casal. O cara, Sean... bem, ele é bem idiota, mas eu acho que isso dá pra notar só de olhar pra cara dele. E a Rebecca, bem... é a Rebecca, muito por fora e pouco por dentro.
─ Como os conhece, se também começou a estudar aqui agora? ─ indago. Meu tom de voz é baixo, pois admiro os dois de longe e não quero que notem que falamos sobre eles, pelo que Ava diz, não parecem pessoas tão legais assim, como já tinha previsto antes só pela encara que levei do tal Sean.
─ Família antiga, Maeve, você vai se acostumar... ─ Ela dá de ombros, como se não se importasse com isso. Acho surpreendente, se fosse eu em seu lugar, parte de uma família importante, é bem provável que estivesse entre os dois agora. ─ Frequentamos o mesmo clube, não é nada demais... E bem, eles não são o pior, você ainda não conheceu a terceira ponta do triângulo dos horrores…
─ E quem seria essa pessoa? ─ pergunto, entre risos, mas com um pouco de receio também. É como se esse terceiro indivíduo fosse o próprio carrasco de todos os meros humanos.
─ Ronan. O’Byrne... ─ murmura em resposta, como se somente a menção ao nome fosse um pecado. E é aí que me lembro do casal do pop citando seu nome mais cedo bem quando o tempo estava fechando e arruinando nosso bonito dia.
Oh, esse O’Byrne então!