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Revisada por Selene 🧚‍♂️

Última Atualização: Jul/2024

OBSERVAÇÃO

Os capítulos são alternados entre “Ela narrado pela Julia e “Ele” narrado pelo Dexter. Os dois protagonistas.




LIVRO 1

PRÓLOGO:

ELE ♂️

Enquanto uns culpam uns aos outros, fingimos que não existimos. Homens e mulheres. Até o The Red Price. Menos as crianças, que não sabem disso.

Ando com meus vans azuis pelo corredor fazendo barulho, com a mochila apoiada no ombro pelo braço bom. Nas vitrines honorárias, os 10 troféus de todos, os 10 anos do programa. Homens e mulheres estavam empatados. Alguns deles até estavam sujos de sangue seco para manter a memória viva. Quem será que venceria a décima primeira edição?

Tem uma garota ruiva olhando para mim. Ela estava aliviada em me ver, mas Julia olha como se fosse culpa dela. Ela olha para o meu gesso azul, tudo para eles era uma festividade. A cor diferente era só para mexer psicologicamente, como se estivessem se divertindo com o meu sofrimento. Eles iam fazer nós dois nos matarmos e só isso não bastava.

A garota tinha alguns band-aids cor-de-rosa nos dedos. Como lutar contra alguém que tinha se machucado? Antes disso, Julia tira meus óculos escuros de lentes redondas dos bolsos, como se estivessem protegidos e guardados durante o incidente passado. Tiraram meus óculos escuros que eu adorava usar. Não sei como ela conseguiu recuperá-los, mas quando Julia colocava algo na cabeça, ninguém conseguia impedi-la. Meu olho direito estava roxo, e queriam mostrar ele machucado, como um lembrete para os outros, com esse hematoma; como forma de tirar sarro e me torturar. Ela os coloca no meu rosto, e, quando se aproxima para me beijar com meu rosto em suas mãos, aparece um funcionário que grita o nome completo dela.

Se eu pudesse falar com ela...

Sinto um choque elétrico causado pela correntinha no meu pescoço. Um colar que era uma punição. O pingente, um cadeado que acende em azul, começa a piscar, alertando que eu estou próximo dela. Era uma luzinha em formato de coração. Julia engole o choro e solta a maçaneta da porta, saindo pelo lado oposto, mas antes dá uma batidinha na porta para avisar que eu cheguei. Ela estava cabisbaixa. O funcionário leva Julia Dean junto a outro para a casa das garotas. Ambos usavam uma bandana escarlate no pescoço sob o uniforme preto. Não dava para enxergar a boca de um deles. Ambos tinham microfones presos em uma de suas orelhas, como se estivessem se comunicando e ouvindo um "ponto" de voz na outra. Eles sussurram para Julia que o público está esperando. Tanto o setor dos garotos quanto o das garotas possuem visitantes, prontos para fazer suas apostas e avaliações. O jogo estava próximo. E algo me dizia que esse ano já estava óbvio que seria diferente. As especulações eram grandes. Eram os nossos últimos dias aqui. Estava próximo do jogo começar pra valer.

Ainda tinha alguns machucados no meu rosto por causa do que aconteceu ontem. Julia acha que isso é culpa dela. Ela diz isso com o olhar. Os olhinhos verdes que parecem brilhar só de olhar para mim agora estão marejados. E antes que eu possa dizer qualquer coisa, ela é levada novamente para longe de mim.

Entrei, e a primeira coisa que a psicóloga falou foi para eu me sentar, e depois disse algo que eu não entendi com clareza, por não prestar atenção. Essa é uma mulher de idade mais avançada, que eu e Julia conhecemos e que foi a única que nos apoiou secretamente; desde antes do programa começar. E que não fazia ideia que nós seríamos escolhidos para o The Red Price. Talvez, quando descobriu, logo se inscreveu para trabalhar no programa. Como se pudesse nos ajudar, talvez? Mas os fundadores do reality nunca souberam disso. Se soubessem, nunca permitiriam.

Ela me encara por um segundo, como as mulheres olhavam para os homens agora. Era quase instintivo da parte delas. Elas não controlavam esse olhar, só Julia, talvez. Porém, Julia consegue isso porque passou um tempo comigo. Me conhecendo e avaliando. Confiando em mim. Foi um processo.

Deve ser horrível ouvir os insultos que essa senhora deve ouvir, pelos garotos que vêm falar aqui. Ela é a única psicóloga que temos, porque muitos dos homens acham uma fraqueza, e, por isso, nos primeiros anos, foi designado somente um para todos que quiserem. Garotos ou garotas. Apesar do olhar pesado habitual, a senhora parece voltar a confiar em mim segundos depois. Mas era só olhar o meu estado atual; eu nunca faria nada disso. Não concordo com o modo como os homens tratavam as mulheres. Eu nem sei se era merecedor de uma delas. Porque agora, os homens não amam mais as mulheres, nem a mais ninguém. Somente a si próprios. A psicóloga me olhava como se estivesse me observando e avaliando.

Começo a falar. Uma das coisas que me atormentavam faz um tempo.

— Minha mãe uma vez me disse: ser um adolescente é uma montanha-russa. Nós nos machucamos, e o que eram arranhões na nossa infância se tornam verdadeiros problemas. Nunca sabemos lidar com eles. Quando eu fui crescendo, fui tendo um ataque de pânico.

— Eles voltaram com frequência? — pergunta ela.

— Sim! Só lembro do sangue dele na água. O preso vermelho que os próprios garotos fizeram com ele antes de começar o jogo. É doentio, torcer para alguém ser morto e matar outra pessoa. Minha mãe me falava que os prazeres violentos têm fins violentos. Quando eu descobri sobre o programa, eu soube disso. Nunca soubemos que, quando nos tornamos jovens adultos, deixando a infância, nós íamos trocar as espadas de madeira por armas de verdade. Ela falava muito sobre como o mundo era antigamente. A adolescência dela, como ela conheceu dois melhores amigos que um deles se casou com ela.

— O que sua mãe falava?

— Ela falava que a adolescência era uma euforia tanto para o lado bom quanto para o lado ruim. Somos entorpecidos em cada emoção, entramos em êxtase, que pode ser algo prazeroso ou doloroso. Achamos que tudo vai cair sobre as nossas cabeças. Mas, de repente, eles realmente caíram sobre todo mundo. Eu não queria estar aqui. E nem queria que ela viesse pra cá comigo.

— Quem é ela?

— Ela é a pessoa que mais causou curiosidade em mim. Todo mundo agora sabe. Ela é ruivinha e tem um senso de humor parecido com o meu. Foi a primeira garota que eu conheci. Em pouco tempo, eu me apaixonei. Mas amar ela dói. Ela disse que eu posso confiar em você.

— Foi isso que causou esse gesso em você? Dói como? Dexter Baltimore, você é filho da última mulher dos Estados Unidos e está escondendo tudo isso esse tempo todo. Achava que era impossível. Todas as mulheres de lá foram extintas. Alguém a amava muito para mantê-lo viva. Escondida de todos. Você e Julia então foram as últimas crianças nascidas, filhos do mundo antigo. Os últimos.

Me lembro do meu trauma. Fecho os olhos. E os meus pesadelos passam pela minha mente. No entanto, eu precisava colocar isso para fora.

— Meu pai biológico fez isso. Ele é o presidente. Não tinha como ele não descobrir. Fez para que eu não amasse de novo. Ele pegou um martelo e quebrou. Minha mãe achou que era a única mulher no planeta, morreu acreditando nisso. Ela nem desconfiava. Meu pai adotivo protegeu ela até o fim. Mas meu outro pai, que eu não considero, o Presidente Reed, meu pai biológico, não sabe que é o meu pai. Ele agora é o presidente. O meu avô ex-presidente, fundador da cidade dos homens, apagou as memórias dele quando eu nasci. Quase descobriu tudo. Fez uma lavagem cerebral. Estava desconfiado. Ben e minha mãe não estavam casados. Foi um deslize da minha mãe, quando meu pai adotivo desapareceu. Benjamim. Todo mundo achou que ele tinha morrido. Ele tinha ido lutar na Grande Guerra dos Sexos. Ele foi o pai que eu não tive. Ele sobreviveu. Queria ser filho dele, igual aos meus dois irmãos… meus meio-irmãos. Porém, eu fui mais parecido com Ben do que o Comandante Reed.

Paro de falar quando ela olha para alguma coisa que chama sua atenção. Algo em mim. Seus olhos escuros estavam com o olhar bem no meu gesso azul, que tomava conta do meu braço.

Ela olha novamente, curiosa talvez? Ela viu algo escrito em preto no gesso, mas não se importou com isso. A palavra ofensiva que os outros garotos escreveram no gesso, enquanto eu dormia no dormitório dos garotos. "A orientadora", como ela realmente era chamada, observou um detalhe que chamou a atenção dela. Um detalhe vermelho colocado sobre essa palavra. Que mudava totalmente o significado e era uma prova de um sentimento esquecido.

— Quem fez isso?

Ao invés de “Loser”, a letra vermelha se transformava em “Lover”. Era uma das boas coisas vermelhas. Assim como seu cabelo avermelhado. Não consigo acreditar nessa coisa do programa “O vermelho é bom!”. Eles endeusam isso o tempo todo. Porém, fica óbvio para todo mundo, e é meio constrangedor. Que o vermelho é o nosso sangue.

— Julia. Ela estava tentando me animar! Não pudemos nos ver mais até o programa começar. Mas ela deu um jeito. Ela não podia, mas teve um tempinho. Mas eu tive que lidar com o meu pânico sozinho. Essa foi a primeira vez que tive que lidar sozinho com isso. Eu sempre tinha os meus irmãos.

— Se você pudesse dizer alguma coisa para alguém que está lendo isso, se fosse escrito em algum lugar. Se eu tivesse permissão de escrever ou ouvir, ou assistir isso se alguém tivesse gravado. Do passado ou do futuro. O que você diria?

— Se você puder amar quem você ama, fique enquanto você ainda pode. Se você hipoteticamente estiver lendo ou ouvindo. Se nesse mundo dentro da sua cabeça você imaginou lendo isso. Se você sente que vai “explodir” com o que nós passamos, sentir que está à flor da pele. E você acha que isso é só mais um romance água com açúcar para agora mesmo, é melhor você desistir. Nada no nosso mundo acaba bem. Mas vou fazer o máximo para protegê-la.

— Que conselho você daria?

— Pegue o seu namorado ou namorada e use o seu tempo para fazer algo juntos. Tenha seu amor épico, enquanto vocês ainda podem. Amores no meu mundo não acabam de um jeito legal. Realmente, eles acabam com você. Nem tudo vai ficar bem no nosso mundo. Coisas podem nos machucar. De manhã, não estaremos sãos e salvos. Não sei se daqui alguns dias vou estar vivo. Quando o jogo começar, um de nós dois pode não voltar. E a sensação de perdê-la é pior que a sensação da martelada. Meu amigo teve que pagar o seu preço vermelho antes do tempo. Os outros garotos não estão animados em saber que eu sou um traidor também.

— Você teve crise de pânico? Por causa da morte de seu amigo antes do The Red Price começar? O seu amigo morreu. O que você sente sobre isso? Dexter, sinto muito que tenha de passar por isso. Mas eu quero te dar um conselho se você quiser, não desista. Estou quebrando todas as regras desde o começo. Porque acredito que homens e mulheres possam se dar bem algum dia.

— É como se a escuridão matasse sua luz e deixasse você preso no escuro. O The Red Price vai começar. E ele mexeu com tudo. Meu amigo foi morto. Vai ser substituído com toda certeza que eu já esperava e que realmente já está aqui, há poucos minutos ele chegou. Porque todos nós somos os pãezinhos de estimação dos adultos. Eu sinto que o The Red Price estivesse matando tudo. Tudo começou com o medo que pegassem minha mãe. O meu avô biológico nunca soube dela, aliás. Tudo piorou quando ela adoeceu e morreu. Tenho medo que a Julia morra. Tenho medo de perdê-la. Que ela morra. Porque eu quero que ela sobreviva. Não eu!

— Julia me contou que tem problemas para dormir. Você está bem agora?

— Sinto um constante medo de algo terrível acontecer. Que me mantém acordado. Já tive uma experiência assim. Quando menor, eu presenciei um confronto dos homens, que eu achava que estavam matando, para proteger a cidade dos leões da montanha. Agora sei que eram contra as mulheres. Eu sei agora que no dia seguinte, foi criado o Red Price. Para impedir que as duas cidades se matem. Eu fiquei preso dentro de uma salinha do zelador por causa de River. Ele me trancou lá. Ele é o babacão, desde criança. Ele está aqui no The Red Price. Eu não vi nada, mas eu ouvi. Mas meu pai de criação, Ben, me encontrou um tempo depois do combate. Ele tinha se limpado do sangue, da farda militar azul, mas mesmo assim eu percebi o que estava acontecendo. Eu fiquei lá ouvindo todo o som do combate. E isso me traumatizou. Agora tudo isso de novo vai voltar a acontecer. Então eu mal consigo relaxar. Porque os gritos que vou ouvir vão ser os meus. Se eu pudesse alertar as pessoas do passado, eu com certeza alertava. Não temos que matar uns aos outros.

— Fale sobre uma experiência negativa que te marcou!

— Lembro de quando minha mãe morreu, depois do funeral secreto. Lembro da lápide falsa, com um nome falso e masculino para a minha mãe. Fingimos que era um parente distante. Depois fiquei gritando a palavra "Papai" atrás da porta. Chorando. E ele não a abriu. Achou que eu estava chamando o meu pai de criação, ele nunca percebeu. Ou apenas ele finge, apesar disso ele nunca se importou. Parecia que era quase coisa lá fora, menos o seu próprio filho. Ele nem se esforçou para se lembrar, e diminuir a minha dor. Eu cresci sabendo que meu pai agora era um monstro.

— Você pode estar com hipervigilância ou algo do tipo!

— Se você confia em mim, por que não fala o que os adolescentes ou adultos deveriam fazer?

— Se você é um jovem ou adulto, e não pode ficar com quem você ama, me faça um favor? Lute por ela, lute por ele. Eu entendo. Porque essa é minha história, onde sangramos por amor. E os adultos acham que, por causa de sua doutrina, impede os jovens, porque não somos curados desse sentimento. O amor é um sentimento de causar uma revolta.

— O que você falaria pra quem pudesse te ouvir?

Retiro os meus óculos escuros, apresentando o hematoma no meu olho, que ela não tinha visto antes. Então eu a digo.

— Eu vou contar o que realmente significa o The Red Price…




CAPÍTULO 1:

ELA ♀️

Antes, existia um mundo totalmente diferente. Um mundo onde homens e mulheres viviam em paz.

Isso mudou.

Hoje, a guerra reduziu o mundo que nós conhecíamos até então. Homens e Mulheres passaram a se separar, gerando ódio no lugar que antes deveria ser amor, porque, segundo eles, o amor não apagaria todas as cicatrizes que as dores e mágoas causavam uns nos outros. Era como se todos estivessem com corações quebrados, pela forma como eram os problemas do mundo. O ódio tomou conta do lugar onde havia o amor. Sentimento de revolta causado por vários motivos. Desde as mães que abandonam seus próprios filhos até os país que causa violência às próprias mães. Pais e mães envolveram as crianças nisso. E, dessas crianças, surgiu a nossa sociedade décadas depois, da destruição do mundo que um dia chamamos de contemporâneo.

O amor romântico, entre homens e mulheres, virou uma nova forma de “Pecado”, porém sem qualquer ligação de religião. A um novo nível, mas que chamamos de “Pecado Original", que fez acontecer toda essa guerra. Entretanto, eu tinha uma grande paixão desde os meus cinco anos de idade. Uma paixão inocente, porém que eu poderia algum dia no futuro, morder o fruto proibido. Transformando nosso relacionamento em outro tipo de amor. Não só amizade.

Ele era um garotinho, meu único vizinho, Steve. Morávamos no fim da rua. Pelo menos minha antiga casa ficava lá. Nessa rua nós nascemos e crescemos, um atrás do outro. Onde ele ia eu ia atrás. Eu seguia as suas pegadas mesmo com minhas perninhas gorduchas de criancinha. Nossas mães eram melhores amigas desde sempre, desde que eu me lembro. A mãe de Steve sempre esteve presente na minha casa. O filho dela o chamava de Steph. Mas ele na verdade se chamava Steve. Steph tinha a pele avermelhada e era loirinho, usava óculos que me deixavam corada, de tão vermelha que eu ficava. Meu pai chamava eu de moranguinho quando isso acontecia. Por causa das minhas sardas e do meu cabelo avermelhado, que já davam essa impressão; porém, quando eu olhava para Steve, eu ficava realmente como um moranguinho. Além de que eu usava uma colônia infantil, com cheirinho de alguma fruta que, quando mudava o tipo, o Steph sempre notava. Eu não achava pessoas que usavam óculos legais, quem usava óculos pareciam metidas à sabe tudo, pela minha cabecinha de cinco anos. Steph já me ajudava nas atividades da escola, e eu também ajudava ele. Principalmente com leitura, pois Steph tinha um pouco de dificuldade com certas palavras. Quando ele se mudou para a escola que eu estudava, nós ficamos mais inseparáveis, porque Steph era a minha pessoa favorita no mundo todo.

Para a minha surpresa, quando era pequena e inocente, quando vi que Steve tinha que usar óculos, me apaixonei. Eu não achava muito bonito nas pessoas que usavam. Mas Steve era diferente. Sempre foi. Tia Lee, como chamava a mãe de Steve, tinha levado o filho para o médico com nome complicado, mas me apaixonei no mesmo instante por ele.

Naquele dia, logo depois de chegar da escola, minha mãe me viu tirando os jarros de flores cor-de-rosa da janela, e colocando um travesseiro neste lugar, o meu travesseiro favorito; que eu não dormia sem. Onde eu deitei minha cabeça e fiquei abraçada ao meu porquinho de pelúcia. Com os bracinhos em torno do pescoço do porquinho rosa de pelúcia, o Leitão da turma da turma do Ursinho Pooh. Abraçava com tanta força que parecia que eu estava enforcando o porquinho. Eu fiquei olhando para a janela do quarto de Steve. Foi a primeira vez de muitas. A janela do quarto dele ficava de frente para a minha. Lembro de abraçar o meu porquinho de pelúcia, suspirando alto, e depois meus pais me colocaram para dormir, algum tempinho depois. Eu ouvi falar na época que a irmã da Tia Lee tinha um filho que eu nunca conheci. Sempre quis perguntar se esse filho era parecido com o meu Steve. Tia Lee era uma Baltimore. Não o pai de Steve. Ele era um Martin. Tia Lee era como uma tia de verdade. De tão próxima da minha família.

Quase todas as noites, eu só conseguia dormir depois que o Steph me pegava olhando para ele. A pequena Julys, como ele me chamava. Às vezes até conversávamos pela janela, gritando alto para que cada um ouvisse, mas acabava acordando os vizinhos. Eu ficava praticamente o tempo todo com o Steve, e, quando nos separavam, o que era muito difícil de acontecer, nós dois sempre ficávamos doentes, com algum probleminha que aparecia do nada. Então nossos pais perceberam que, para que nós estivéssemos bem, teríamos que ficar sempre juntos. Um seguindo as pegadas do outro.

Meu pai sempre dizia que o “amor” era algo como um presente de Deus, o maior de todos eles. A melhor coisa que ele poderia ter dado ao homem. Meu pai era perfeito e amoroso, sempre sendo paciente e gentil, o Sr. Leno Russo. Mesmo que eu fosse nova demais, sabia que eu tinha pais muito bons, diferente do meu melhor amigo desde o jardim de infância; ele não tinha. A família Martin. Martin era o sobrenome do pai de Steve. O Sr. Martin era alcoólatra e agredia a esposa. Meus pais não sabiam esconder isso muito bem. Tia Lee fazia de tudo para esconder as marcas das agressões do marido, e o pior era que o pequeno Steve nunca soube disso. Sua mãe tentava o proteger e mascarava tudo. Muitas das vezes em que seus pais estavam brigando o Steve corria para a casa dos meus pais.

Sua vida mudou de repente quando a pequena Julia e o pequeno Steve, estávamos no parquinho, para crianças pequenas, localizada bem no meio entre nossas casas. Era véspera de Natal, nós dois na casinha do escorrega, com as luzinhas de pisca–piscas e tudo. Naquela noite o Steve e eu estávamos conversando do que queríamos ganhar de presente do Papai Noel. Então nós dois ouvimos um grande choro, que deixaria qualquer criança assustada. A Tia Lee e minha mãe correram para onde eu e Steve estávamos. Elas eram melhores amigas durante a vida toda, só que naquela hora do nada. Olharam uma para outra como inimigas, e trocaram olhares como se não conhecessem mais. Como se fossem inimigas há muito tempo. Nisso tudo nos separaram, choramos um pelo outro, como sempre desde quando viramos amigos inseparáveis. A única forma inocente de amor romântico que eu tive.

Segundo a Sra. Lee Martin, tomávamos banho na mesma banheira quando éramos bebês. Ríamos quando o ouro ria, e aprendemos algo quando o outro também aprendia. Aprendemos um com o o outro nesses anos em que éramos inseparáveis. Naquela época, o meu cheirinho, segundo minha mãe, era o mesminho do Steve. Meu perfume saía de um aroma muito fácil e eu ficava com o cheirinho do sabonete de Steph. Do mesmo tipo de quando a gente tomava banho na mesma banheira. Nunca mudou. Quando nossas mãozinhas se desencontraram naquela noite e gritamos um pelo outro, foi quando tudo mudou. O mundo enlouqueceu.

Voltamos para dentro de casa, às pressas. Os Dean (minha família, minha mãe era uma Dean porém meu pai mudou o sobrenome invés da minha mãe mudar o dela) se preparam para fugir ou escapar de qualquer um que quisessem nos separar. Separar a nossa família. Várias famílias estavam sendo desfeitas. Aquela noite tinha sido a mais violenta e perigosa do último mês. As ondas segregadoras conhecidas como “Reformistas”.

Os Dean vestiam roupas de viagem, casacos de frio, algumas malas e mochilas. Coisas que nós achávamos ser importantes. Minha mãe colocou uma mochila da Minnie cor-de-rosa nas minhas costas, cheia de mantimentos e coisas do tipo. Tudo o que achávamos necessário; era o básico para sobreviver. Naquela hora, me lembro que Steve tinha a mochila do Mickey, que tínhamos escolhido juntos alguns anos atrás. Eu perguntei o que estava acontecendo para os meus pais. Na época não achava que os Dean guardavam segredos. Só que antes de entrar no carro, eu ouvi o som de tiros na casa ao lado. Algo que vou lembrar pelo resto da minha vida. Eu consegui, por sorte, pegar o meu leitão de pelúcia, e me senti como o leitão do desenho. Totalmente amedrontada. Quando ouvi os tiros, eu já sabia do que estava acontecendo, eu entendi porque o meu pai estava armado, ele e minha mãe. Era para eles se protegerem, para não separar nossa família.

A Sra. Dean, minha mãe, tentou me proteger, colocando suas mãos nos meus ouvidos, que sempre foram muito sensíveis; mas eu sabia que eram sons de tiros. Eu tinha ouvido com mais frequência do que uma criança deveria. O mundo estava tão louco, como se tivesse se tornado mais malvado do que ele já era anteriormente. Ou que já fora um dia. Meu pai era um xerife de uma cidade do estado da Califórnia, por isso ele era uma das únicas famílias que poderiam conseguir se defender. Eu perguntei tanto aos meus pais o que estava acontecendo na casa dos Martin… A Sra. Dean então me disse que a melhor amiga dela tinha se encontrado no prédio da cidade, no mesmo dia do pai de Steph no outro. Os pais de Steve, Martin Baltimore, adotaram uma nova causa de políticos muito “malvados”, segundo minha mãe, e que nós três iriamos fugir. Os pais de Steve resolveram se separar. Demorei para perceber o que aconteceu. Até que parte da minha inocência foi perdida durante aquela noite.

Minha mãe me falou que a Tia Lee, que não era nossa parente, não permitiria e nem queria deixar o filho com o marido, e, que agora, nesse exato momento, estavam lutando para ver quem iria ficar com Steph. A Tia Lee estava cheia de um sentimento de vingança; por tudo o que o pai de Steve fez ela passar. No início de dezembro, naves chamadas "arcas" estavam posicionadas sobre o céu da nossa cidade, iluminadas em vermelho durante a noite. Uma luz tão forte que não passaria despercebida. Meus pais ficaram muito apreensivos, e eu ouvia o que eles tentavam sussurrar. Eram palavras difíceis. Algo como não quererem se separar. Não conseguia imaginar o que poderia acontecer, tinha esperança que tudo ficasse bem. Que tivesse um final feliz. Então, naquela noite, quando vi o meu garotinho loiro correndo com a mochila nas costas, saindo de sua casa sozinho e completamente perdido, eu tentei gritar por Steve, o meu Steph, e meus pais não deixaram. Ouvi sons de pelo menos três tiros lá dentro da casa. Um atrás do outro. Apareceu um carro com um homem e uma mulher usando macacões azuis escuros, com símbolos diferentes nos braços. O carro apareceu do nada, segundo a minha cabecinha de criança. Um com o símbolo do masculino e o outro com o símbolo do feminino. Marte e Vênus. Que eu só descobri o que significava anos depois. Eles colocaram o garotinho dentro do carro, e então eu nunca mais vi Steph Martin. O único Baltimore que eu já conheci. Não sabia muito sobre a família de Tia Lee. Era como um mistério para mim.

Meus pais conseguiram nos tirar por pouco dos alvos dos separatistas. Eles ficaram unidos até quando puderam, mas quando tentamos sair da cidade, passando pela fronteira do México, meu pai foi morto, mataram ele. Bem na nossa frente. Tão rápido que a ficha não caiu na hora, e foi a primeira vez que presenciei algo como a morte. Junto de quem eu tanto amava. Sr. Dean levou um tiro bem no coração, por uma mulher mais velha de cabelos brancos. Deixando um buraco no vidro do carro. Tivemos sorte que o carro não capotou.

Nos tiraram do carro. E minha mãe e eu não tínhamos para onde ir. Estava nós duas perdidas. Totalmente paralisadas e em pânico. As duas com as mãos cheias de sangue do meu pai. Nesse tiro, bem no coração. Nós duas ficamos o tempo todo perto dele. Todo o plano da minha mãe e do meu pai não tinha funcionado. Fomos obrigadas a sair, a ir para longe do corpo dele. E de todo o antigo mundo que eu conhecia. Nós duas com as mãos vermelhas de sangue. Um preço vermelho que a minha família inocente pagou. E, nesse momento, fui obrigada a ser forte. Mãe e eu fomos levadas ao aeroporto, onde embarcamos nessas arcas. Aquele foi o chamado “Dia dos Estranhos”. Onde todos nós viramos um de alguma forma uns para os outros. Antes de tudo isso teve um ataque, uma semana antes. O ódio não é nem uma novidade para o nosso mundo.

Minha família tinha uma casa entre a Califórnia e o México. Era o meu antigo lar, e ainda sinto falta. Por mim nunca teria acontecido esse conflito sem noção. Nos EUA inteiro (o que ainda existia) teve vários garotos armados de dezessete anos que entraram em escolas, atirando contra as alunas, alegando que tinham partido seus corações. Como nenhum deles iria querer, eles mesmos foram até o prédio, o mesmo do Sr. Martin, e pegaram armas. Já que elas não queriam nenhum deles e eles também não iam querer elas. Se eles não tivessem elas, então ninguém teria.

Nós passamos dias não indo para a escola, pelo medo, e eu quase tive crise de pânico. Apesar disso, eu e meu melhor amigo tivemos os nossos melhores dias, odiávamos ir pra escola e sempre tínhamos um ao outro. Éramos “colados” um no outro. Steph tinha a coragem que eu precisava e que era contagiante. Eu enfrentava todos os meus medos para ficar ao seu lado. Como o medo do escuro, quando eu deixei a luz apagada quando Steph veio dormir na minha casa naquela época. Mesma época em que descobri que o Steph tinha dado nome a um dos seus ursinhos de pelúcia. Só que com nome de menino, Julio de “Julia”. Passamos o dia todo fazendo castelinhos de areia, jogando água salgada da praia uns nos outros, fazendo até mesmo anjinhos de areia. Não imaginávamos que o mundo iria se tornar tão mal assim, o mundo sempre nos surpreende.

Steph tinha ciúmes do meu porquinho de pelúcia, porque queria estar comigo o tempo todo, igual a ele. Mas não podia. Éramos realmente inseparáveis. Era engraçado de se ver. Colhemos flores azuis, que ficavam perto das nossas casas, e que eram diferentes daquelas cor-de-rosa que eu tinha no meu quarto. E desenhamos nos nossos cadernos o futuro que juramos que teríamos juntos. Ele sonhava em se tornar um bombeiro nesta época, lembro da sua casa pegando fogo antes dele subir no carro. Era um fogo que ele não seria capaz de apagar.

Eu dizia que queria ser uma atriz, porque eu sabia mentir muito bem para a minha mãe. Era danada. Mesmo que meu pai soubesse quando eu estava mentindo, ele me ajudava na mentira. Porque eu era muito parecida com ele. Eu sabia mentir que nem ele, nunca foi pra algo maldoso e sim para evitar broncas da minha mãe. Eu interpretava muito bem. Possuía até mesmo os mesmos cabelos avermelhados. Dizem que as crianças ruivas são muito mais danadas do que o normal. Acho que isso pode ser verdade. O que, para minha mãe, foi difícil de lidar ao longo dos anos em que fui crescendo, pois parecendo mais com ele na personalidade e na cor do cabelo.

Eu e meu pai éramos inseparáveis. Éramos “grudados” um no outro, tão unidos que eu nunca tive problema nenhum com discussão alguma. Ou pelo menos não que eu me lembrasse ou que eles discutissem na minha frente. Apesar disso, sabia que eles se amavam. Às vezes, minha mãe até queria ter essa relação tão próxima comigo. Por termos essa conexão. Da mesma forma que ela tinha com o meu avô. Meu pai era a pessoa mais amável que eu conheci, e eu nunca conseguiria ser que nem ele. Apesar das minhas semelhanças, eu poderia parecer um pouco fria por não demonstrar meus sentimentos com clareza. Perder Steve foi a primeira coisa que me fez mais chorar na vida. E o meu pai foi logo depois.

E, desde então, nunca quis quebrar essa cúpula que me afasta das pessoas. Como uma redoma de vidro, uma barreira, um escudo de proteção. Se essa cúpula fosse frágil como o globo de vidro, eu com certeza me machucaria e sangraria em vermelho com os cacos. Era uma forma metafórica de dizer que eu não quero me machucar. Perder todo mundo e o mundo em que nasci acabou comigo. Eu odiava sentir qualquer tipo de dor. Aquela noite me tirou todos os homens mais presentes na minha vida. A noite em que todos começaram a se odiar.

O sonho do Sr. Dean sempre foi ter uma menina. E a única coisa que ele disse enquanto tentávamos fugir era que minha mãe cuidasse da garotinha ruiva dele. Independente do que acontecesse com ele, parecia, naquela época, que ele estava sentindo que estava próximo. Prevendo o que aconteceria. Pensando em todas as possibilidades possíveis. Foi quando isso aconteceu, e tudo na minha vida mudou. Meu pai morreu, os homens morreram.

Houve uma guerra, da qual os homens perderam. Agora, todos eles não existiam mais. Isso me deixava inquieta. No final, os homens foram culpados pelo conflito. Fomos levados em segurança até uma nova zona habitável, localizada no México. Onde justamente meu pai tentou chegar. E vi fundar a cidade chamada Mixica, a nova terra prometida. Diante dos meus olhos. Sabemos que as Américas tinham sido devastadas, e que o planeta estava cheio de radioatividade, sendo a América do Norte a única sobrevivente. A única América sortuda, se podemos dizer. Quando desci dos carros com a mochila cor-de-rosa da Minnie nas costas, minhas mãozinhas segurando com força nas da minha mãe assim como via meu pai fazer, não acreditei no que vi. Porque no fundo sabia que Steve estava morto. E somente um milagre poderia mudar isso. Os homens não existiam mais. Por essa razão eu tinha que parar de pensar nisso. A família Baltimore não poderia existir mais…




CAPÍTULO 2:

ELA ♀️

Eu pensei ter visto um demônio hoje. Eu vi um homem. Um garoto. Como isso é possível? Se todos os homens estão mortos? Era a única certeza que nossa cidade tinha. E como ele poderia ser um monstro, se ele era tão fofo? Por que ele se parecia tanto com um anjo? Se o nosso destino era nos odiarmos? Eu falhei nisso. Não entendo como algo tão parecido com um anjo possa ser tão mau. Falhei como uma garota, porque eu não consegui em hipótese alguma odiar aquele garoto…

Esta manhã eu acordei gritando. Eu abominei muito esse dia. O dia tinha chegado, mas meu coração ainda tentava colar os caquinhos. Eu sentia que ele, meu coração, estava roxo de tanto levar pancada. Acordei gritando para minha mãe correr. Para ela voltar para a nossa casa. Faz uma semana que minha mãe morreu. Hoje é o dia da cerimônia após o acidente, onde vou ter a permissão de vê-la pela última vez. As cinzas dela, na verdade. Onde vou fazer algo como uma forma de finalizar esse processo de perda. E sobrar apenas o luto para conviver a vida inteira. Temos uma tradição, nós, garotas amazonas, usamos branco sem nossas armaduras. Branco é a cor do luto. Hoje eu terei de usar um vestido branco com flores vermelhas bordadas. Nesse momento eu estava tirando as últimas medidas do vestido para a cerimônia. Em algumas horas vou apresentar o meu luto para todas. Representando tudo o que eu sinto em palavras. Sem querer a equipe da costureira me acerta com um alfinete, me fazendo sangrar. Mas eu não me importava mais em sangrar. Era um preço vermelho que eu não me importava de pagar. Não expressei reação alguma. Consigo esconder muito bem o que eu sinto. Meus cabelos ficaram presos, lavado com um óleo perfumado. O cabelo de uma amazona era algo sagrado para a nossa sociedade. Como um símbolo de nossa feminilidade. O óleo era de frutas vermelhas, que deixava quem estivesse perto sentindo o perfume. Eu teria que ficar descalça. Desde o dia que minha mãe morreu, não pude mais usar sapatos. Hoje terei de percorrer a avenida da cidade de Mixica, que é um grande anfiteatro, com uma espada nas mãos, até o palco onde devo fazer minhas condolências. A espada teria um papel importante que eu não me importava em fazer.

Quando ainda estou usando o vestido branco, na última prova antes do velório, vejo uma garota de cabelos castanhos avermelhados e olhos que fazem uma curva de uma lágrima. Ela é descendente de coreanos, sua mãe. E, para a minha surpresa, os olhos de Boo Park estão marejados.

Quando minhas serviçais vão embora, ela fala para mim quando me vê usando o vestido:

“Você daria uma noiva linda!”.

Como poderia? Se só existem mulheres e eu nunca estive a fim de uma? Além de que casamento na minha cidade é só assinar uns papéis. Eu simplesmente sorrio por gentileza. Ela é a minha melhor amiga neste mundo.

Sook, a Boo, me ajuda a tirar o vestido, enquanto me seguro para não chorar na frente dela. Tento parecer mais forte do que realmente sou. Carregando meu mundo por conta própria. E sem a ajuda de ninguém.

Sook percebe que estou usando uma pulseira prateada cheia de pingentes. Eram de todas as minhas recordações dos últimos 21 anos. Como um pingente do símbolo da “Coca-Cola”, agora extinta, e que fora substituída por uma garapa similar. Coca-Cola era a minha bebida favorita. Os pingentes da pulseira são de coisas do mundo antigo, como um pingente de ursinho do dia dos namorados que minha mãe ganhou do meu pai, porém encontrei alguns dias atrás nas minhas antigas coisas que me lembram ele. Guardo como um tesouro, um mundo que não dá mais para entrar. Apesar dele nunca ter sido perfeito. Minha mãe não guardava muitas memórias, somente eu. Eu era apegada ao mundo que eu conhecia. Um mundo que não existia mais. Entre todos os pingentes, o que mais me importava era um chaveirinho de coração roxo, que eu ganhei de Steve. Meu morto e querido Steve. Eu faria qualquer coisa para ver o rosto dele novamente. Mas isso é impossível. Já tive várias pulseiras ao longo do tempo. Era meu próprio museu do mundo antigo. Apesar disso, eu admirava a liberdade que as mulheres têm hoje. Só de lembrar, meu coração levou tantas pancadas esses anos todos. E minha perda repentina ele estava roxo. Assim como o pingente de coração de Steve. Meu antigo melhor amigo e amor de infância.

“Sabe que dia é hoje?” Pergunto à Boo.

Boo vestia seus tênis de coelhinho e olhava para o chão. Olhando para os próprios sapatos, como costuma fazer quando está triste. Mas ela mesmo diz:

“Hoje é o funeral final da sua mãe e o aniversário de Steve Baltimore, se ele estivesse vivo”.

Boo me abraça, e me permito chorar na presença dela. Porém, rapidamente, nós descemos as escadas. Todas as fotos da minha mãe estavam cobertas por um pano branco. Essa semana as amigas da minha mãe e colegas de trabalho, já que minha mãe era a xerife, cuidavam de todos esses setes dias desde que minha mãe partiu. Essa era a cerimônia que eu participaria. Eu me tornaria a que levaria o sobrenome da minha família. Os Dean. E agora era somente eu. A não ser que eu quisesse ter uma filha no futuro, graças à nanotecnologia gestacional. O que eu não pretendo. Caso eu morresse em algum acidente, ela também passaria por isso. Hoje também é o dia em que me torno uma mulher. Não apenas uma garota. Quase isso. Apesar de eu ser muito nova para assumir o papel da minha “família”, vou me tornar responsável pelo meu sobrenome. Levar o legado, que muitos cochicham às vezes ou que simplesmente ignoram. Eu sou a última garota filha dos Estados Unidos a ter tido um pai. Um homem. Na minha vida eu tive duas grandes figuras masculinas, meu pai e o meu amor de infância, chamado Steve. Para mim, eles eram os únicos homens que eu conhecia, e sabia que não eram maus. O que passam nas escolas do novo mundo são como o sexo masculino fazia com as mulheres ao longo de toda a história. Todos esses exemplos tinham um final trágico para alguma mulher. A mulher sempre saía perdendo. Sempre machucada e murcha como uma rosa morta. Ou como uma que está no processo de apodrecer, cada dia mais próxima de morrer. Era um aviso para nós continuarmos não confiando naqueles que as machucaram tanto. Para não acabarmos apodrecendo e padecendo. Para que não tivéssemos esse fim. E de fato elas conseguiram. Agora somos o sexo mais forte, e o frágil não é mais o sexo feminino. Não foram as “frágeis” que padeceram. Todos os homens agora e desde muito estão mortos.

Todos os dias eu tenho sonhos, pesadelos muito reais. Onde eu morro ou alguém importante para mim. Seria isso presságio? Como se o destino de um Dean fosse a morte? Meus pais estavam mortos. E será que eu seria a próxima? Talvez eu já estivesse morta por dentro. Falta alguns meses para a prova que definiria minha vida. Definiria o meu futuro. A prova chamada de ”TRP”, que somente as mulheres mais velhas sabem disso, o significado de tais letras, que se descobre durante a prova. Esse significado. Porém eu teria que superar tudo isso. Sou mais forte do que o luto que sinto. Eu era uma boa amazona, a melhor das mais jovens há muito tempo. Apesar de ser a mais velha. Sabia distinguir minha vida pessoal do meu serviço a irmandade. Até acordar todas as noites gritando como ainda uma garotinha assustada. Aquela mesma garotinha naquela noite que perdeu o pai.

Sob os últimos degraus da escada, estavam todos os papéis de discursos que eu tentava escrever para a minha mãe. Todas essas tentativas. Tentativas fracassadas, frustradas, de uma garota que tenta todos os dias se manter inteira. E que carrega o próprio mundo para que ele não esmague. Nem machuque mais ninguém além dela mesma.

Boo Park me leva para o quarto de hóspedes, onde estão as caixas com recordações. Poucas, uma delas é o meu porquinho de pelúcia. A única caixa que é realmente minha. Nessas caixas estão coisas da minha mãe dos últimos dez anos que vou doar. Não sei como as outras não jogaram tudo no lixo, já que para elas isso poderia parecer cacarecos e coisas obsoletas. E, naquele momento, cercada pelo passado em tantas caixas, eu me senti em casa desde muito tempo. Meu pai falava que, apesar de nossos corações ficarem roxos por causa das circunstâncias, eles se renovam. Assim como nossos machucados, que ficam rosinhas com o tempo; deixando apenas uma cicatriz. Ele falava que fita adesiva consertava tudo. Tomara que isso também cure um coração perdido. Assim como ele fazia o Jeep dele sempre funcionar. Talvez o segredo do meu pai não fosse a fita adesiva. E sim o amor. O que ele colocava em tudo o que ele fazia.

Cada família de Mixica possui um símbolo. Cada família tem essa marca no piso da avenida. Todas as mulheres e garotas estavam usando uma flor vermelha de verdade. Todas elas. Essa flor era a favorita da minha mãe. Uma flor Dahlia. Uma flor com várias camadas de pétalas; como cachos. Todos os olhares estão em mim enquanto eu ando, segurando a espada da minha família. O símbolo dos Dean. Uma espada dourada com o cabo em formato de coração e com olhos de rubis. Tentava não tropeçar em meu vestido branco e cair ali enquanto caminho até o palco, onde estava o pote dourado com as cinzas da Sra. Dean. O vestido era em camadas, como ondas. Nelas tinham partes vermelhas que representavam flores, outra ali e outra aqui. Como um degradê entre o vermelho e o branco. As rosas do vestido tinham as formas bordadas, que faziam os cachos parecerem pétalas de rosa que davam uma impressão de flor, mesmo. Tinha uma foto da minha mãe, que foi descoberta do pano branco quando eu pus meu pé nessa avenida. Minha mãe tinha muitas sardas, como eu também tenho. Apesar disso, não puxei tanto a ela. Apenas a herança do meu pai. Minha avó paterna, eu era muito parecida com ela. Meu pai era o filhinho da minha avó paterna, que era a cópia piorada dela. De tanto aprontar, eu não fui diferente. O Sr. Dean era alegre, enquanto a sua filha é agora melancólica e solitária. Me segurava para não chorar ali. A presidente estava lá, ela era a melhor amiga da minha mãe. Ela fora o braço direito da presidente. Ela era a única que usava uma armadura, a armadura dela tinha no peito o formato de uma lua nova pontiaguda. E ela foi à guerra, a presidente mais jovem do México. Às vezes ela fala em espanhol, e todo mundo finge que entende. A armadura dava forma aos seus seios. Cabelo loiro e olhos de cores diferentes. Ela tinha heterocromia. Um castanho e outro azul. A presidente Luny estava com todas as suas apoiadoras. Porém, todas com ternos brancos bem acabados e semi novos, já que a morte em nossa sociedade é algo comum. Nós acreditamos sempre que acidentes acontecem. Apesar de todas não usarem uma armadura além da nossa presidente. Todas as mulheres usavam um elmo de gladiador, menos a presidente. Que tinha o cabelo solto e perfeito caindo sobre os ombros. Todas as colegas de trabalho da minha mãe levantaram as suas próprias espadas nas arquibancadas. A presidente usava uma coroa dourada com várias faces da lua. Que reluzia no início daquela tarde.

Enquanto eu carregava a espada da minha família até o palco, os meus pés descalços tentavam seguir em frente. Ao chegar ao palco, a presidente faz um discurso sobre como é uma honra morrer em prol da irmandade. Toco no pote das cinzas e seguro a mão de Boo. Era a hora de falar, mas eu era péssima em palavras. O bote era dourado com um rubi em formato de estrela. Esse rubi brilhava para dentro como se fosse algo eletrônico, não duvidaria se realmente fosse. “Eu pensei muito no que falaria aqui. Mas não encontrei palavras suficientes para descrever o que minha mãe era. Ela era a pessoa mais corajosa que eu já conheci…”. Não consigo terminar o discurso, minha voz trava, como um nó, não falo nada do discurso que passei a manhã inteira escrevendo com minha melhor amiga. Tento falar, mas a voz falha, como se estivesse com um engasgo e alguém houvesse roubado a minha voz. Solto o papel e seguro com força o pote de cinzas nas mãos. Boo Park pede para acelerar o processo. Eu já estava tremendo. O meu cabelo é solto pela presidente. Sinto o cheiro de frutas vermelhas tomando forma, era o mesmo cheiro da minha pele rosada. O perfume de frutas vermelhas, do qual meu cabelo foi lavado todos esses dias. Entrego o pote, me despedindo da minha mãe. Fecho os olhos, e na minha cabeça vem a imagem de meu pai. Fico ajoelhada em frente à presidente com a espada próxima da minha face, pego a espada e falo o protocolo de segurança.

O cabo da espada liga ao som da minha voz. Como uma inteligência artificial, na verdade.

“Esta espada pertence a Katy Ruby Dean. Essa espada será usada apenas por ela. É propriedade do seu clã. O clã estadunidense. Qual é o seu nome? Achamos semelhança com a voz da pequena Senhorita Dean. Faz alguns anos que essa espada não é usada. Temos no nosso histórico o histórico da família Dean. Todas as partes dessa família, apesar de serem agora apenas uma mulher e sua filha. Depois da exterminação do sexo masculino. Quem está falando realmente? Caso não seja algum truque, essa espada se auto destruirá. Quem é você, jovem amazona? Quem está falando?”

O som da multidão acaba. Como se todo mundo estivesse esse tempo todo aguardando esse momento. Eu estou na TV. Todo o nosso país, se poderíamos dizer, a nossa cidade inteira, está assistindo. Pela TV Artemis. As amazonas formadas estavam aqui, mas as em treinamento e em formação estavam em casa. Como uma forma de cerimônia que as jovens não tinham que enfrentar até elas perderem alguém. Era como algo sagrado para nós, uma cerimônia onde só as formadas fazem parte. Sook era a única a estar aqui, por pedido meu. Era uma exceção. Mesmo assim eu tive que insistir muito. Mais do que eu tinha permissão para tal.

Respondo tentando fingir que todo o mundo não estava me olhando. Os rubis estão ligados e soltam lasers sobre meu rosto. Como se estivessem tentando fazer uma leitura facial.

- Eu sou… Athenee Maxanna Julia Dean. Clã estadunidense. Família Dean. Herdeira da espada Scarlett III. Legado de uma amazona de auto patente. Patente de ouro olimpo. Prodígio da Woman-Arcadia, escola preparatória para formação de novas amazonas. Uma jovem amazona. Amazona em treinamento. A mais velha, dizem que sou a melhor amazona juvenil dessa nova onda de recrutas… executar minha ordem perante os que me assistem e me permitem, preparar modo branco. Ativar pedido de passagem de tocha… eu, Julia… quero pegar o que é meu por direito!”

“Há muito tempo que não te vejo, pequena. Pedido concedido. Preparando para ativar a lâmina. Qual é o código que pertence a Scarlet III, senhorita?”.

Era a voz de uma mulher imponente. Cada espada tinha a sua própria.

Suspiro e então falo. Algo que estava preso na minha garganta.

“Matriarcado!”

Os rubis vermelhos se iluminam, ativando a espada assim que a palavra acaba de sair da minha boca. A lâmina se ilumina como fogo. Com a sua habilidade máxima de destruição. Sinto as faíscas tocando minha pele, fecho os olhos e então corto o meu cabelo. As mechas ruivas caem sob o chão, deixando meu cabelo laranja-avermelhado até a altura dos meus ombros. Uma tinta vermelha cai deslizando pelo meu cabelo, manchando o vestido branco, o vermelho que para nós é sagrado. A tinta que simboliza o meu despertar para a Irmandade. O começo do TRP. O teste ou exame que nós conhecemos. Hoje eu fui escolhida para representar. Agora eu, com certeza, faria realmente parte do TRP deste ano. Quando me escolheram não dei muita importância, por causa do luto. Eu faria de tudo para o sobrenome da minha família não desaparecer. E agora sou considerada uma adulta. Forçada a crescer, ganhando agora esse papel. A tinta desce pelo meu vestido branco e percebo que isso transforma a parte de trás como se fossem asas. Descendo e gotejando pelo meu cabelo agora curto até minhas costas. Tudo em vermelho. Vejo eu mesma pela TV. As câmeras mostrando o que estava sendo transmitido. Ninguém conseguia saber o que eu estava pensando. Mantenho a minha cara carrancuda de sempre e tento pensar que não tem ninguém me olhando. Mesmo sabendo que não é verdade. Às vezes tenho a mania de achar as coisas mais fáceis se eu mentir para mim mesma.

Quando alguém morre, o cabelo de suas entes queridas é cortado como uma forma de expressar seu luto. Uma tradição. A tinta representa uma passagem. Uma etapa da vida de uma amazona. Agora eu tenho um legado a zelar. Essa tinta é usada nos preparativos para o TRP, onde uma aluna é escolhida para representar um prodígio, uma promessa dessa nova geração, uma nova leva de guerreiras para esse teste tão importante que dizem fazer as mulheres serem mulheres de verdade. Não vejo a hora de saber o que farei depois disso. Já que existe um antes e um depois do teste. Ninguém nunca mais é o mesmo.

Ao meu lado estava uma caixa. Um presente da presidente. Uma bota cor-de-rosa alta. Era o primeiro sapato que eu poderia usar, depois de ficar descalça todos esses dias, como pede a tradição.

Percebi pela primeira vez as fotos do palco, tinham o rosto do meu pai em todas elas queimadas. Totalmente estragadas. Como se ele fosse um erro da natureza. Uma aberração. Ao ver isso, sou tomada por uma fúria. A presidente explica para quem está em casa, as jovens o que tudo nessa cerimônia representou. E ela coloca um colar em formato de chave. Ou uma chave em um cordão. Não sei direito o que é exatamente. E nem eu quero saber. Só sei que ela sempre usa isso nessa época do ano. Todos os anos. Na verdade, todos os anos é uma chave diferente. Me pergunto para que ela serve.

“Maxanna Julia Dean, ou simplesmente a nossa Max de sempre, agora a mais nova mulher da irmandade, não mais uma simples garota! Seja bem-vinda, essa garota representou bem a nossa nação. Com a honra de iniciar os preparativos para o nosso exame nacional….”, antes que ela possa falar mais alguma coisa, eu olho a tinta vermelha e não vejo mais apenas tinta. Eu vejo sangue. O sangue do meu pai. A poça de sangue que estava em seu corpo. Assassinado. Para mim, eu estava coberta de sangue. Eu estava me sentindo como Carrie, a estranha. Que tinha acabado de sair do livro do Stephen King.

Eu saio correndo, rasgando o vestido. Deixando partes dele para trás.

Fico confortável com a roupa que uso debaixo deste pano pesado. Todas elas me escutam gritando.

“EU QUERO MEU PAI!”.

Mas, eu não me importo mais. Vou para o lugar onde sei que encontrarei paz. Porém, antes, passo em casa e retiro todo esse vestido detonado. Me limpo com o que eu posso no momento. Não pretendo ficar em casa. Estou ficando maluca com tantos pensamentos meus, lembranças do passado e vozes do que as outras mulheres falavam enquanto eu corria para longe do anfiteatro. Acho isso estúpido da minha parte por um momento. Mas eu não me importo mais com o que vão achar. Estou sozinha agora. Mas não na minha cabeça, então imediatamente corro para um lugar onde encontrarei paz por algum tempo.

Porém, antes de partir, deixo o chuveiro ligado para pensarem que eu estou tomando banho, pelo menos para disfarçar ou despistar para que não venham atrás de mim. Isso daria certo para quem chegasse aqui, pelo menos por um momento. Quando chegassem, eu já teria ido para um lugar onde encontraria silêncio. E onde eu poderia chorar em paz sem me importar. O meu lugar secreto. O deserto, as cinzas do mundo antigo. O lugar que eu desejei que não fosse destruído. Coloco a minha pulseira depois de lavar o meu cabelo e parto para o único lugar onde escuto as batidas de meu coração. Para lembrar que eu ainda tenho um. Passam pela minha cabeça as lembranças de cada pingente. Como eu senti falta disso. A pulseira é a prova de que aquele mundo era real, e não algo que eu inventei. Essa pulseira traz memórias desbloqueadas. Cheiros, sensações e sabores. Um mundo inteiro em uma correntinha só. Pingentes de coisas do mundo todo. Ou, como elas costumavam ser. Me vejo com o novo corte de cabelo e me estranho por um momento. Coloco um tiktak em formato de coração e me sinto menos estranha. Escolho um de coração, para inspirar o meu próprio metaforicamente a se manter inteiro. Me olho no espelho. Enquanto uma lágrima desce pelo meu olho direito, percebo que eu estava coberta minutos atrás pela cor vermelha, e que agora sou tomada pela cor de água das minhas lágrimas. Eu era cheia de cores antes. Agora estou desprovida delas. No meu visual tento esconder a cor das lágrimas, o vazio transparece pelo meu rosto. Desprovido de cor. A cor da verdadeira tristeza é a cor das lágrimas. Transparentes. É a única cor da melancolia. E transparente é a única cor que tem um gosto. O gosto amargo de uma lágrima.

Visto roupas que despertam alguma cor em mim, que mude meus sentimentos. O máximo que eu consigo é morder o meu lábio inferior, fechando os olhos e controlando minhas emoções; fazendo a cor transparente virar aquarela nas sombras da maquiagem que eu fiz em mim mesma, mas que já estraguei. Enquanto corro para longe dos limites de Mixica, não paro de pensar que eu estou parecendo uma rainha do baile triste. Visto na minha expressão um escudo para que eu não esmague ninguém com o meu mundo feito de problemas e mais problemas. Eu tenho que carregar esse mundo sozinha. Nada tira isso da minha mente.

O sol brilha na minha pulseira prateada. Após chorar por meia-hora, enxugo meu rosto com as mangas da minha camiseta xadrez rosa que estava aberta. Eu usava um top branco por baixo da camisa. Queria estar confortável, pelo menos era a minha intenção. Quando estou ouvindo as batidas do meu coração, sinto algo de parar os batimentos. Do nada escuto um som de um acidente. Um carro capota. Ele estava em alta velocidade. Um Jeep preto novinho e em perfeito estado. Fico surpresa, porque em Mixica não existe mais isso. Usamos cavalos. Fêmeas, na verdade, para nos locomover. Tínhamos tecnologia, mas era limitada. O carro fica pendurado de cabeça para baixo. A porta esquerda da parte do motorista estava tão destruída que, quando eu retiro a porta fora, não sinto nenhuma dificuldade.

Eu faria muitas perguntas a essa garota ou mulher. Como ela tinha conseguido um carro e como ela foi tão estúpida de ter destruído algo tão raro? Era um Jeep militar zerado. Porém, tenho uma surpresa. Preso no cinto de segurança, de cabeça para baixo, estava um garoto. Só poderia ser. Nenhuma mulher teria esses traços. Quando ele abre os olhos por causa da concussão do acidente, eu tenho um susto. São os mesmo olhos que os de Steve. Mas não era o Steve. Não poderia ser. Ele estava morto, e se estivesse vivo não seria assim tão novo. Mas é uma cópia perfeita do Steve Baltimore. Toda a sua aparência. O mesmo cabelo loiro em ondinhas. Ele estava lento por causa da batida. Sonolento também, como se estivesse com dificuldade para pensar. De cabeça para baixo, ele tenta me beijar, como se estivesse em uma alucinação. Os nossos lábios ficam muito próximos. Era como se ele estivesse vendo uma garota pela primeira vez. Então, antes que ele pudesse fazer isso, eu o golpeei na cabeça, fazendo-o desmaiar.




CAPÍTULO 3:

ELE ♂️

Sinto gosto de sangue.

A primeira coisa que eu faço todas as manhãs é a causa do maior segredo da minha família. Seguro o pote de comprimidos na mão. Um segredo que ninguém pode descobrir. Esse comprimido é a salvação da minha família. Eu e meus dois outros irmãos. Pelo que sabemos todas as mulheres foram exterminadas no mundo, restando apenas uma cidade composta por somente homens. Graças à nanotecnologia, que foi aprimorada na Guerra dos Sexos. Espécies de máquinas que funcionam como ventres que geram bebês; que não precisam esperar nove meses para nascer. Porém, eu não fui concebido desse jeito.

O gosto do remédio que eu tomei queima na minha garganta. Exatamente como sangue espesso. Esse remédio faz os detectores da cidade dos homens, chamado de Endless (onde a babaquice é eterna), não perceberem os meus genes “femininos” herdados da minha mãe. Dizem que no deserto ao redor da cidade os animais radioactivos do sexo feminino são os mais perigosos. Se existisse uma mulher e ela tentasse entrar nessa cidade, ela ia ser percebida. Nesses últimos anos nada foi o mesmo. A guerra mudou tudo. E o maior segredo durante todos esses anos um dia foi a minha mãe. A última mulher dos Estados Unidos da América e do mundo inteiro.

Sim, eu tive uma mãe. A história é longa, mas, de qualquer forma, eu e meus irmãos fomos frutos de um crime para Endless. A última mulher que o mundo já viu viveu bem na fuça dos homens. Ninguém nunca descobriu esse segredo. Meu pai biológico era filho do presidente. Com os seus privilégios conseguiu esconder a última mulher, meus pais eram muitos jovens. Tinham a mesma idade que eu agora. Porém, minha mãe tinha dois garotos apaixonados (eram melhores amigos, como irmãos) por ela, uma só garota antes mesmo da guerra, sendo o meu irmão mais velho fruto de uma gravidez na adolescência. Meu pai biológico, Reagan, acabou perdendo ela por causa disso, o seu melhor amigo Benjamin tinha engravidado ela após os dois estarem embriagados por causa de uma festa e de terem dormido juntos. Benjamin assumiu a criança, meu meio-irmão chamado Chad, e constituiu uma família com minha mãe, antes de eu nascer. Minha mãe, Birdy Baltimore Angeles, aprendeu a amar Benjamin, e eles se apaixonaram de verdade. Meu avô materno não ficou muito feliz com a notícia do futuro que ele projetava para ela, que era tão arquitetado, e que não iria mais se cumprir. Não podia ser cumprido da forma que ele almejava. Porém, ele teve que aceitar. Só que Benjamin acabou sendo obrigado a se alistar no exército, como forma de punição egoísta do seu antigo melhor amigo Reagan, como forma de vingança. Ele mexeu os pauzinhos, por seu pai simplesmente ser o atual e último presidente dos Estados Unidos. Antes da Guerra dos Sexos. Durante os meses que Benjamin esteve na aeronáutica lutando contra a aeronáutica feminina, aconteceu uma batalha onde Ben foi dado como morto. Nesse tempo o meu pai se aproximou da minha mãe novamente e por está tão abalada, e de tão emocionada de ter revivido suas antigas memórias, sentindo de volta os sentimentos de quando ela era apaixonada por Reagan. Nessas semanas que passaram após Ben ter sido dado como morto, eu fui concebido. Porém, no dia em que Ben apareceu vivo, minha mãe descobriu a gravidez. Ben apareceu completamente coberto de cinzas. Minha mãe Birdy vomitou nos pés de Benjamin quando o viu, eles foram direto para o hospital do exército e eles descobriram sobre a gravidez. Ben era uma pessoa tão boa que me assumiu como filho. Porque o presidente não queria ter de jeito nem um neto. E principalmente um neto filho de uma mulher. Quando Ben foi para o exército, Reagan levou Birdy escondida para a base de comando masculina da guerra. Protegeu ela com os privilégios que ele tinha, mas tudo escondido do seu pai presidente. Era no final da guerra, por serem apaixonados pela mesma mulher. Reagan com seu poder de ser o “filhinho mimado do papai” e a inteligência do meu pai adotivo que era algo fora do normal. Conseguiram manter a minha mãe viva por anos. Algumas décadas. Como prova de amor até meu pai adotivo Benjamin, adotou os sobrenomes mortos na guerra, sobrenomes da minha mãe. Tanto Baltimore, quanto Angeles. Minha mãe vivia em Los Angeles desde sempre como uma eterna californiana. Minha família materna era toda de lá.

Já que todo mundo tinha que assumir novos sobrenomes, na inauguração da nova cidade. Um de guerra, “adulto” e outro “junior”, para seus filhos. Para seus descendentes e que são o futuro desta cidade. Os seus garotos precisam completar mais de 24 anos para se tornarem verdadeiros soldados. O fim da adolescência completa. Todos os meus irmãos são chamados de Angeles. Só podemos trocar para Baltimore antes da faixa etária, se passarmos no teste “TRP”. Que para todo mundo que faz é um mistério. Assim poderíamos assumir o título de Baltimore, se tornando os Novos Espartanos, antes do tempo tradicional. Servos da última cidade de todas. Tudo ia bem até meu avô paterno descobrir a existência do Chad, Reagan tinha poupado uma criança. Novas crianças só poderiam ser geradas após a fundação da cidade. Era essa a promessa do antigo hino da cidade, que meu irmão mais velho Chad Baltimore, falava que era horrível. Apesar disso, Reagan fez um acordo com o pai dele. Ele recebeu uma seringa com um líquido vermelho, como sangue, que o transformou no sucessor perfeito que meu avô tanto queria. Um homem completamente sem sentimentos. Frio e gelado, duro com um coração de pedra. Alguém impossível de chorar. Por que homens de verdade não choram, não é?. Pelo menos é o que dizem aqui. Porém Reagan como ato de amor não revelou a minha existência. Para me proteger. Isso foi o máximo que ele fez por mim em toda a minha vida. Porque minha mãe estava grávida de mim, talvez ele só quisesse salvar ela. Porque nem um remédio funciona totalmente, ela é a única coisa que ele ama até hoje. Por causa do acordo de Reagan com o presidente da recém cidade fundada Endless. Os bebês que nasceram nesta cidade de forma não natural, diferente dos meus irmãos, cresciam mais rápido do que os bebês normais. Quando Chad foi para a escolinha alguns anos depois, outros bebês já tinham praticamente a mesma idade corporal que a dele. Toda a documentação do Chad ter supostamente “nascido” em uma “incubadora gestacional” já estava pronta havia muito tempo. Documentos falsos. Nós demoramos mais para crescer por causa disso.

O gosto que eu sinto do remédio é tão parecido com o sangue, que eu imagino a morte em massa de todos os garotinhos que foram mortos na guerra. Gosto do sangue deles. Esse detalhe da nossa história não está presente nos nossos estudos. Existe uma alteração, de que todas as crianças não sobreviveram à guerra culpando as mulheres. Emitiram toda a ação criminosa que eles cometeram. Completamente sem coração. Alteração de informações. Essas informações falsas é o que nós jovens conhecemos como “verdade absoluta”, eu sei que são falsas por causa da minha mãe. Estudamos em nossos ipods de estudos da aula de história. Nós não podemos ler livros, e as únicas informações que precisamos aprender, e estudar, estão no ipod que recebemos quando estamos na escola. É um ipod parecido com o iPod shuffle porém em formato de maçã, que os garotos prendem na alça do suspensório do terno ou como eu na alça do meu violão. Nesse ipod há uma espécie de podcast ou áudio. Com o mesmo narrador e cheios de “informações” que somos obrigados a saber. Porém, não são verdadeiras de verdade. Sempre tem uma alteraçãozinha aqui e ali. Por causa disso, a música é muito importante na minha sociedade. Como a leitura era algo importante antigamente, antes da guerra. Praticamente todo mundo toca algum instrumento, mas as músicas são totalmente desprovidas de sentimentos amorosos. Sempre o mais neutra possível. Nada comparado às canções de amor. De um garoto para a sua garota amada. Ou algo do tipo.

Eu tomei o comprimido, tenho que fazer isso todos os dias. Porque eu sempre quis e quero proteger a minha família.

Porém, eu sou considerado por muitos um rebelde sem causa aos outros garotos; por exemplo, eu aproveito o ipad para ouvir músicas, entre todas elas, canções de amor, como aquelas que existiam no mundo antes do meu, já que esse tipo de música não era permitida. Claro que eu ouvia em meus fones de ouvido azuis, graças a um ipad antigo que pertencia a minha mãe. Um cor de rosa que estava saindo a cor de tão surrado, que cresci ouvindo músicas por ele. E quando ganhei um no ensino médio eu peguei todo o acervo de música dela. Do ipad que estava em uma das caixas no porão daqui. Minha mãe era uma romântica incurável. Eu tinha um apreço por canções de amor, assim como ela. Mesmo depois de sua morte eu vivia cantando, quando ninguém estava por perto. E se descobrisse isso no meu ipod, eu ficaria de castigo por um longo entediante tempo. Já que meu pai secretamente é o presidente agora, sucessor do meu avô, ele não pode fazer nada contra mim, já que ele prometeu ao meu pai Ben. Antes dele morrer em um acidente no deserto anos atrás, que cuidaria de mim e dos meus irmãos. Como um tutor. Porém ele só aceitou isso porque, eu e meus irmãos íamos revelar toda a verdade sobre como ele conseguiu a presidência, para todo mundo caso ele não concordasse. Para Endless ele era um santo. Da forma que seu meu avô queria, o temido Ancião general Reed. Que morreu há muito tempo atrás logo após ver a conquista do filho, não sei se meu pai deu um fim nele. Ou se ele realmente morreu de causa natural. Agora o único Reed que existe é ele. E… eu.

Apesar disso, eu nunca iria querer ficar nessa posição. Nunca quis a presidência e ninguém nunca vai saber que eu sou seu filho. Apesar de existir um boato sobre existir um filho dele, que é criado secretamente a pão de ló. Eles nem imaginam que sou eu, o garoto mais rebelde e problemático da Arcádia Senior. Completamente considerado… como eles chamam? Mal comportado. É uma escola preparatória e ensino médio para os Fututos Novos Espartanos. Vivemos em uma sociedade completamente militar. E o pior de tudo é que ninguém pode confiar em ninguém. Já que todos se aproveitam uns dos outros. E querem ser melhores do que os outros. Nunca quero estar naquele trono de ossos de todas as mulheres do mundo e nem ser um robozinho do meu pai. Como todo mundo daqui é.

Depois que passei esse tempo todo olhando para os comprimidos dentro do frasco vermelho, com a etiqueta disfarçada de remédio para dor de cabeça, percebo que minha camiseta cinza com o símbolo da NASA está surrada de tanto usá-la. Acho irônico usar uma camiseta da NASA e perceber que estamos todos presos ao céu. Vivemos em naves que abrigam praticamente todos os últimos garotos da Terra. Uma “nave-mãe” para cada família. Digo isso mesmo que meus outros colegas odeiem palavras que representem algo no feminino, que de alguma forma caracterize uma mulher.

Minha mãe viveu todos os seus dias presa nessa nave. Ela se chamava Birdy, um nome que remete a pássaro, e morreu presa nessa nave, assim como um passarinho na gaiola. Ela não podia sair e mantivemos esse segredo. Porém, minha mãe, a Sra. Baltimore, morreu por causa de uma doença após passar tantos anos confinada. Anos depois do nascimento do meu irmão mais novo, meu meio-irmão, Adam Baltimore. Eu era o filho mais apegado à minha mãe, e ela sempre me falava que escolheu esse nome para mim, “Atlas”. Porque nesses anos todos ela segurou o mundo para todos que amava, como Benjamin, Reagan, Chad e eu. Eu era o único filho dela que parecia mais com ela. Na nossa última conversa, ela me disse: “Está tudo sobre os seus ombros agora, meu Atlas!”. O mundo sempre esteve sobre os meus ombros após aquele dia, porque meu mundo era Birdy Baltimore. Perder meu pai adotivo, que eu queria tanto que fosse meu pai de sangue, doeu demais. E eu me tornei a figura paterna que meu “tutor” deveria ser. Porque para mim, Atlas Dexter Baltimore Angeles, o meu pai Benjamin é o meu pai de verdade. Sempre vou querer que ele fosse. Junto ao meu irmão Chad, cuidamos do nosso irmão mais novo, que está se preparando para entrar no ensino médio este verão.

Vejo na minha TV da nave, no canal “TV Apolo”, o canal do governo, que o clima para os adolescentes e jovens adultos está parcialmente permitido. Temos chuvas de radiação, uma chuva roxa terrível. Por causa da radiação, os jovens ficam confinados em naves em “quarentenas eternas”. A radiação é mais perigosa para os Baltimores. Apesar de fazer mal a todos os jovens, por termos sido gerados como antigamente, não temos muita proteção extra, como as reformulações do DNA dos outros garotos. Então, eu e meus irmãos somos como os “asmáticos” em relação à radiação. Precisamos também de uma bombinha, que eu nunca descobri por que sempre era da cor azul, se precisarmos passar muito tempo lá embaixo. Carregamos sempre com a gente. Raramente os que nasceram de forma artificial precisam de bombinhas. Na verdade, acho que são somente eu e meus irmãos. Só podemos ser imunes à radiação após o “EXAME TRP”, onde somos considerados parte dos “Irmãos de Esparta”. Nós e todos os garotos sofremos muito com essa radiação, como uma forma de passar de jovem adulto para adulto, de pequeno homem para grande guerreiro. Ser adulto aqui geralmente é ser uma marionete do meu pai. E eu não vou dar esse gostinho a ele.

Pego meus pincéis na minha sala secreta de pintura para lavá-los, enquanto encaro uma tela em branco procurando uma inspiração para uma nova pintura. Eu gostava de pintar coisas que existiam no antigo mundo. Muitas das minhas pinturas representam personagens femininas, como uma forma de nunca esquecer como elas são. Além de logicamente super heróis. Todos os dias eu fazia exercício de barra no ferro do teto da nossa nave. Uma mão na “barra” e a outra em um quadrinho, especialmente os criados por Stan Lee. Eu nunca treinava a garra sem está lendo um quadrinho. Todos os dias. O meu pai adotivo Benjamin tinha quadrinhos em segredo que acabaram ficando comigo e que eu cresci lendo. Mesmo que fosse extremamente proibido até mesmo a leitura de quadrinhos, principalmente por representarem figuras femininas.

Eu vi que esqueci um pincel em um pote de tinta vermelha, não sabia como ela ainda não tinha secado totalmente, tendo que pegar o pincel para lavá-lo também, porém ele escorrega da minha mão e cai na tela em branco novinha. Os pingos da tinta no pincel mancham a tela em vermelho, exatamente como se fossem pingos e rastros de sangue. Lembro do sangue das mulheres e de tantas crianças inocentes mortas, por causa da guerra. Fecho os olhos tentando mudar a imagem, até escutar o som da nave tocando um “alarme”, na verdade mais um aviso para quem está dentro. Hoje estou sozinho. Adam está fazendo uma visita com Chad e passando um tempo com ele, porque Chard estava com saudade de Adam. Ele passou a maior parte no quartel, desde escolheu se alistar. Adam depois da morte de nosso pai virou como nosso “filho”. A gente virou uma figura paterna para ele.

O aviso da nave era como sinos, mais para guizos de coleiras de gato. Cada “aviso” tinha um diferente, já que a nossa sociedade era bem musical. Noto que sinto a nave descer para alguém poder entrar. Não sei exatamente quem é enquanto tranco meu estúdio de pintura/arte. Mas não dá tempo de limpar as minhas mãos da tinta. Vejo meu pai biológico, com os seus óculos de lentes redondas na cor vermelha; ele sempre usava todos os dias o mesmo tipo de óculos, mudando apenas a cor. Em diferentes épocas do ar.

Escondo minhas mãos, colocando-as para trás.
— Dexter, vim trazer os seus remédios. As pílulas malditas que vocês me obrigam a produzir. Você sabe que ninguém pode descobrir ou saber sobre o que combinamos.

Ele coloca o pote sobre a mesa, largando como se estivesse sendo obrigado. E de fato estava. Não ia deixar ele me transformar em um soldadinho da América (o que restou dela), como todo mundo.

Ele ajusta os óculos redondos do rosto e vai embora. Sem dizer nem um “Adeus”. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa. Nunca senti tanta falta de Ben como agora.
As minhas mãos podiam estar coloridas por causa das tintas, mas nunca me senti tão em preto e branco. Seja bem-vindo a Endless, a cidade dos homens que não possuem um coração de carne sequer.



Continua...


Nota do autor: "Aprenda antes que seja tarde demais!" - Reunião do conselho no final da Guerra dos Sexos 💙💗


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