Revisada por: Saturno 🪐
Última Atualização: 28/05/2025.Narrador’s P.O.V
— Essa é a última vez que isso acontece... — ela pontuou friamente, catando as roupas que estavam jogadas no chão do quarto.
Ele nada fez. Apenas encarava o teto, ainda meio inebriado por conta do orgasmo, mas concordando em pensamento que aquilo não deveria se repetir.
Oito meses depois
O outono decidiu abraçar a agitada Buenos Aires com mais intensidade naquele ano. Os dias estavam sendo agradavelmente frescos, mas, quando eles se despediam, as noites se impunham com a violência do frio, que certamente se intensificaria quando o inverno chegasse.
As folhas secas caídas das árvores formavam um imenso tapete pelas calçadas, misturando tons de laranja, vermelho, amarelo e cobre. As crianças se divertiam ao passar por cima delas, soltando risadas gostosas a cada “croc croc” sob seus pequenos pés. As mesinhas e cadeiras já não eram mais colocadas para fora na hora do café, as pessoas preferiam se recolher para o interior aquecido dos estabelecimentos, uma vez que escurecia mais cedo e o vento insistia em agredir qualquer centímetro de pele exposta.
Essa época do ano era ótima para os negócios, mas não gostava do outono, ou pelo menos tinha aprendido a não gostar desde o último. Ela conseguia um bom dinheiro de comissão vendendo quase todos os casacos da loja onde trabalhava, mas era mais afeita ao calor úmido e aos dias longos de sol do Brasil, onde o suor escorria pela pele e a brisa quente das tardes permitia que as pessoas ficassem conversando nas portas de suas casas.
O frio da estação se colocava como um potente adversário de sua voz, e a apresentação da noite passada no Perro Azul havia acendido um alerta em sua mente quanto a isso. constatou que precisaria de mais tempo de exercício vocal antes de encarar madrugadas geladas de cantoria, mas a agenda cheia de apresentações no El Vicio e em outros pubs não dava margem para descanso ou treino. Tudo o que ela fazia era colocar em prática o seu dom. Saía da loja e já caía no próximo trabalho, sem aquecimento nem nada, apenas começava a cantar e assim ia a noite toda.
Ao deixar o shopping naquele fim de tarde, envolveu o pescoço num cachecol grosso que pegou na loja, lamentando pelo desconto considerável que viria no seu próximo pagamento, graças àquela peça exclusiva de algum estilista de nome difícil. O cachecol tinha uma cor vibrante demais para ela, quase esquisita, mas esquentava como nenhum outro. Lá fora, o céu a recebeu com tons de rosa e laranja, e, por um momento, ela pensou que talvez o outono não fosse tão ruim assim.
O som de seus passos sobre as folhas despertava nela quase que a mesma sensação de divertimento que as crianças experimentavam. O “croc croc” era mesmo gostosinho de se ouvir.
sorriu, se achando uma boba. Vinte e seis anos de idade e ela rindo de folhinhas secas sendo esmagadas pelo seu coturno tratorado.
Os cafés estavam fechando e a cidade começava a se acalmar, com menos pessoas nas calçadas e mais silêncio no ar. O fato estava dado, a mulher precisaria voltar a se acostumar com a ideia de que o outono era mais do que apenas uma estação de mudança, já que, para ela, era também um lembrete constante do quanto estava distante das coisas que amava.
A estação do metrô estava lotada naquele horário, as pessoas falavam alto e andavam depressa. Ela, já acostumada com aquilo tudo, apenas agarrava a bolsa mais ao corpo e mantinha o celular guardado no bolso, evitando de ser roubada. O olhar fixo nos trilhos, esperando pelo metrô, era quase um reflexo de como seus pensamentos também estavam acostumados a se perder entre o vai e vem das viagens diárias.
Em outra época, ele estaria ali com ela, a abraçando de lado ou por trás, evitando que qualquer pessoa tentasse algo com a sua garota. não tolerava o mínimo olhar torto ou de desejo para o lado de , para ele, era como se o mundo ao redor fosse uma constante ameaça e ela fosse a única coisa que ele realmente valorizava. Ao menos, era o que parecia antes da relação entre eles começar a ficar turbulenta demais.
Mas agora, na estação cheia, sozinha, ela não pôde deixar de sentir a falta daquela presença. Um peso estranho — estranho porque ela nunca se acostumaria e não porque não conhecia a sensação — lhe apertava o peito, enquanto o metrô finalmente chegava e ela se forçava a olhar para a frente, como se nada tivesse mudado.
’s P.O.V
Passei direto por La Boca e desci no bairro onde morava, Telmo. Eu ainda não havia me acostumado com o fato de que o outono recolhia as pessoas para dentro de casa mais cedo, o que resultava em uma calmaria estranha para um lugar tão cheio de animosidade como esse. Prestar atenção nesses detalhes só agora me faz perceber o quanto eu estava voltada para o meu próprio mundinho no outono do ano passado, quando tudo o que importava era ele.
era o tipo de cara que ocupava todos os espaços, até os que eu nem sabia que existiam. E, naquela época, eu estava tão cega, tão entregue, que nem reparei em como a cidade mudava, em como os bares ficavam vazios mais cedo, em como as árvores deixavam as folhas cobrirem as calçadas. Só via ele, o jeito como ele me olhava, como se eu fosse a única coisa boa na sua vida.
Agora, tudo o que restava era essa Buenos Aires mais fria, mais vazia, mais solitária. Eu ainda estava tentando descobrir como me encaixar de novo sem a presença dele, ditando o ritmo de tudo. A verdade é que fui tola ao acreditar que, no momento em que a gente rompesse de vez, eu conseguiria expulsá-lo da minha cabeça. Entretanto, ele continuava ali, dia após dia, mesmo eu desejando que ele tivesse partido simbolicamente também.
Com o mínimo de controle que eu tinha sobre os meus pensamentos quando se tratavam dele, o afastei — temporariamente — dali de dentro. Ao chegar ao portão de casa, vi Filipe escorado na mureta do outro lado da rua, em frente ao próprio apartamento. Acenei educadamente, e ele respondeu com um “E aí, ” numa entonação diferente da de quem te vê todos os dias. Ele parecia meio travado, como quem não sabia se devia ou não puxar assunto.
Percebi, pelo desconforto explícito no ato de desviar o rosto para o outro lado, que meu olhar tinha se demorado demais em cima dele. Mas também notei algo atravessado em sua garganta quando ele engoliu em seco, igualzinho às vezes em que aprontava alguma merda e ele se recusava a me contar.
Antes que eu pudesse questioná-lo sobre o que estava errado, Filipe já havia saído caminhando em direção a uma caminhonete velha no final da rua.
Empurrei o portão, que gemeu baixinho como sempre e entrei. A casa estava escura, só com a luz amarelada da cozinha escapando pela fresta da porta. Joguei a bolsa no sofá e tirei o cachecol do pescoço. Foi aí que senti mais uma fisgada seca na garganta, incômoda, como se algo estivesse entalado ali há dias e só agora resolvesse se manifestar.
Suspirei e segui até a cozinha, me encostei no balcão de azulejos descascados e peguei o celular do bolso, discando o número de casa no Brasil, já imaginando o sermão da minha mãe por eu “não cuidar da saúde”.
Ela atendeu no terceiro toque.
— Alô?
— Mãe, lembra aquele chá que você fazia quando eu estava ruim da garganta? De erva-doce com mel e aquele outro troço que eu sempre odiava o gosto?
Ela soltou uma risada do outro lado e, por um instante, foi como se eu ainda estivesse sentada na cozinha dela, enquanto ouvíamos o rádio tocar baixinho.
— Claro que lembro, filha. Quer que eu te passe agora?
Assenti, mesmo sabendo que ela não podia me ver.
— Manda aí. O frio aqui acaba comigo, tá foda…— Levei uma das mãos até a garganta, massageando ali.
E enquanto ela recitava a receita de cabeça, percebi o quanto eu sentia falta dessas pequenas coisas. Do cuidado genuíno, da sensação de estar em família, entre os meus. Da receita, estendemos a conversa para outros assuntos, a formatura da minha irmã, o namoradinho que ela tinha arrumado. E, pelo o que minha mãe dizia, ele parecia ser uma boa pessoa, o que era ótimo para cessar as preocupações dela. e eu já havíamos a preocupado demais com o nosso relacionamento no ano passado.
Quando resolvemos encerrar a ligação, o céu já estava completamente escuro, carregado de nuvens cinzentas. Eu ainda precisava avisar a Ramirez sobre a minha falta, mas antes, peguei um copo d’água e fiquei ali, olhando a rua silenciosa pela janela. O gole de água gelada só fez a minha garganta se arranhar ainda mais. Bufei irritada e apaguei a luz antes de ir para a sala, onde acendi apenas o abajur de canto, aquele meio torto que eu prometia arrumar há meses.
Narrador’s P.O.V
deslizou o dedo pela tela do celular até encontrar a conversa com Ramirez. Escreveu rápido, tentando não pensar demais “Ramirez, desculpa avisar em cima, mas vou ter que faltar hoje. Dor de garganta desde ontem, piorou depois da apresentação no Perro Azul. Te devo essa.”
A resposta não demorou.
“Eu te disse para não cantar naquele lugar! Mas se cuida, minha garota. O El Vicio sobrevive sem você uma noite.”
Um meio sorriso escapou. Ramirez era como um porto seguro, um dos poucos. E, como toda âncora, também carregava lembranças. Bastou a notificação desaparecer para que a memória viesse, cheia de cores e sons de uma noite antiga demais pra doer tanto, mas que ainda latejava.
Foi num sábado abafado, quando o El Vicio ainda abria às três da tarde e terminava só quando o último bêbado decidia ir embora. não trabalhava na loja naquela época e ia para o pub cedo ajudar na preparação dos petiscos, ela passava horas na cozinha com Ramirez e a esposa dele, ouvindo as fofocas mais absurdas que rodavam por ali nas noites.
Depois de um bom tempo entre cheiro de óleo quente, cebolinha picada e as piadas de duplo sentido de Ramirez, subiu para o palco. E ali ela era outra. A pele negra reluzia sob a luz mal calibrada do El Vicio, o cabelo solto ou às vezes preso num coque bagunçado, o batom vermelho — sempre vermelho —, e a voz que encantava em meio ao barulho de garrafas e risadas. se transformava. Não tinha cansaço, não tinha confusão, só ela, o microfone e a música.
No entanto, algo naquela noite a desconcertou. Cantava uma música lenta e bonita, na sua língua materna, quando percebeu um grupo de quatro caras rindo entre si. Eles lançavam olhares a ela, faziam gestos de conotação sexual e emitiam sons que remetiam a primatas. Era uma clara demonstração de um ato racista e sexista.
O pub caiu num silêncio desconfortável. Só se ouvia o som dos copos e os cochichos curiosos das pessoas. encarou o grupo com o maxilar travado, pronta para explodir. Ramirez já vinha de trás do balcão, limpando as mãos num pano de prato, mas ela ergueu a mão, o parando.
A mulher abaixou o microfone devagar, com o semblante sério e sem desviar os olhos deles.
— Eu vou descer aí, quebrar a cara de vocês quatro e quero ver tentarem falar alguma merda quando estiverem com todos os dentes da boca arrebentados.
O português dela soou firme, grave. A plateia ficou dividida. Alguns encararam o grupo com desgosto. Outros, desconfortáveis, abaixaram a cabeça. E os quatro sujeitos riram com deboche.
não blefava, ela desceu do palco com o sangue fervendo nas veias que saltavam em seu pescoço. Um dos babacas da mesa se levantou, querendo mesmo que ela tentasse alguma coisa, estava com a mão coçando para encher a cara dela.
Foi quando um rapaz que estava mais ao canto se manifestou, se colocando na frente do cara racista no momento exato em que ia com tudo para cima dele. O estranho era alto, tinha os ombros largos e os olhos eram estreitos, asiáticos. O cabelo preto tinha um comprimento mediano e, não sabia ainda, mas aquele corte de cabelo ia se tornar parte da sua perdição.
— Senta. — A voz dele veio seca, o sotaque carregado, mas a ameaça era clara.
O outro homem hesitou. Por um instante, parecia que o corpo dele não sabia se obedecia ou reagia.
— Se encostar nela, vai sair daqui cuspindo os dentes… E eu vou adorar ver isso. — Soltou como um rosnado dessa vez.
O rapaz asiático deu mais um passo, a distância entre eles era de poucos centímetros, o suficiente para que só quem estivesse perto notasse o tremor leve na mão do valentão.
— O que pensa que tá fazendo?! Eu posso muito bem cuidar disso sozinha, viu? Arregaçar a cara de um homem nunca foi problema pra mim — se pronunciou.
— Ao menos deixa que eu seguro e você bate, hm? O que acha? — ele respondeu por cima do ombro, sem se virar.
Ramirez apareceu antes que o El Vicio se tornasse palco de trocação de socos. Ele separou os dois homens prestes a se atracarem, colocando abaixo toda a tensão do pub.
— Eu adoraria ver os quatro imbecis com a cara inchada e escorrendo sangue, mas aqui dentro do El Vicio não é lugar pra isso — falou o dono.
abriu a boca, incrédula.
— Mas isso não significa que eu não vou enfiar uma faca em vocês se ousarem a passar na frente do meu estabelecimento.
Os quatro murmuraram algo entredentes, levantando as mãos como se estivessem cansados da confusão. Saíram tropeçando entre as mesas e um deles derrubou uma cadeira no caminho, mas ninguém se prestou a colocar no lugar.
respirava forte, a boca estava seca e os dedos ainda se encontravam fechados em punho. Antes de cuidar da sua menina, Ramirez encarou o asiático.
— Valeu pela força, cara — murmurou, um tom respeitoso na voz.
O rapaz apenas assentiu, seu maxilar estava travado, como se também tivesse engolido mais veneno do que gostaria.
se virou para ele, estava acesa de raiva e curiosidade.
— Quem é você, hein? Eu não pedi ajuda nenhuma!
Ali foi a primeira vez que ele sorriu de jeito debochado, olhando diretamente para seus olhos. Mesmo de cabeça quente, ela não pôde ignorar o quanto ele era bonito.
— . Se isso te interessa…
— Se acalma, pequena… Se ele não entra na frente, isso ia terminar mal. — Ramirez a abraçou, fazendo com que ela deitasse a cabeça em seu peito.
continuava com os olhos fixos no tal .
— Você tá bem? — Ramirez perguntou.
Ela apenas murmurou um ‘não’, fechou os olhos e deixou as lágrimas caírem. continuava observando a cena, sentindo um aperto no peito. Em parte, conseguia compreender a dor dela, ele mesmo já tinha enfrentado diversos atos de xenofobia no ocidente.
Mais tarde, ainda naquela noite, após Ramirez decidir fechar as portas mais cedo, vestiu seu pesado casaco de couro e saiu para fumar na rua. Acendeu um cigarro com a ponta dos dedos sujos de tinta preta do microfone e deu a primeira tragada, como se aquilo pudesse apagar o gosto ruim da noite.
— Olha, eu achei que você ia me agradecer por salvar a sua cara.
Ela deu uma tremidinha de susto, mas disfarçou em seguida. Não tinha visto que o rapaz asiático estava do outro lado da rua.
— Mete a cara numa briga que não era tua e ainda fica se achando! — ela rebateu, soltando a fumaça devagar.
Ele riu calorosamente e atravessou para onde estava, tirando um cigarro do bolso da própria jaqueta e pedindo para que ela acendesse com o seu. Ela arqueou uma sobrancelha, mas aproximou a brasa da ponta do cigarro dele.
— Pra alguém que tava prestes a esmurrar quatro marmanjos, até que ficou bonita toda nervosa.
Ela bufou, mas não conteve um meio sorriso torto.
— Você já não deveria ter ido embora?
mudou sua posição, ficando escorada de lado na parede de tijolos vermelhos, de modo que ficasse de frente para . Os olhos dele fizeram o caminho do colo desnudo até a face de expressão cansada dela.
— Estou indo. — Ele sorriu fechado, antes de levar o Marlboro até os lábios. — Toma cuidado por aí, pequena. Nem todo mundo vai ser covarde o suficiente pra tremer igual aquele cara — ele murmurou, antes de começar a se afastar.
o observou dar alguns passos e, no impulso, soltou:
— !
Ele se virou, levantando as sobrancelhas.
— Eu bato. Você segura.
abriu um sorriso mais largo dessa vez, acenou com a cabeça e desapareceu pela esquina. soltou um suspiro curto, apagou o cigarro na parede e começou a andar, mas não conseguiu evitar de pensar no jeito que ele tinha sorrido e no olhar tranquilo que deixou pra trás.