Revisada por: Júpiter
Última Atualização: 12/02/2025A felicidade ainda era a regra social, os bons ares de receber todos os queridos entes e amigos que ficaram perdidos por 5 anos inteiros não dava brecha para nenhum outro sentimento.
Ainda se lembrava da sensação de voltar. Assim como metade do planeta, fora levada pelo Blip. Para ela, nenhum tempo se passou. Quando piscou, já estava de volta, meia década depois.
Mas, há três dias, felicidade não era mais parte de seu vocabulário. O calor do sol não podia alcançá-la mais, pelo contrário, seu coração era coberto de uma névoa e desespero corrosivo.
dormia pacificamente, seu corpo abraçado pelo toque de seda de sua camisola e a maciez da manta aveludada que a cobria. Nunca teve problemas para dormir, muito pelo contrário. Ela era daquelas pessoas que, onde pudesse encostar, já conseguia cochilar sem muito esforço, era um de seus maiores prazeres na vida.
Para o azar daquele que se deitava ao seu lado, ele não tinha essa mesma benção. Não conseguia se lembrar do último sono de qualidade que tivera.
Às 3:33am, ele levantou de supetão em seu lado da cama. Estava suando, suas mãos trêmulas.
Enquanto seus olhos tentavam focar em meio à escuridão, ele sentia medo; era difícil se conectar à realidade de novo.
— James? — A movimentação acabara por acordar a moça.
— Droga. Me desculpa. — Ele descansou seu rosto nas próprias mãos. Sentia sua garganta seca e estava difícil engolir.
Toda noite, por volta deste mesmo horário, isso acontecia.
E, toda noite, ela fazia a mesma coisa.
Acendeu o abajur à sua esquerda e se arrastou pelo colchão até que conseguisse abraçar o namorado.
Ela passava carinhosamente a mão pelas costas desnudas de James até que ele se fincasse de volta ao presente.
Não demorou muito para ele conseguir olhá-la nos olhos, ainda no meio de sua crise de ansiedade.
Delicadamente, ela segurou as mãos dele e as posicionou sobre seu peito.
— Respira comigo? — Pediu, recebendo apenas um aceno rápido de cabeça.
E, como todas as noites, James fechou os olhos e focou toda a sua atenção no coração de , o ritmo em que batia. Sentia o peito dela se movendo quando respirava profundamente, segurava o folego e soltava o ar pela boca. Ele seguia. Até que estivesse de novo sob controle de sua própria mente.
Às vezes, parecia demorar uma eternidade. Às vezes, era mais depressa. E, às vezes, ele queria permanecer bem ali, junto à , para sempre, como se nada mais existisse.
E, quando percebeu, deu uma discreta e singular risada.
— O que foi? — perguntou, sorrindo também.
— É engraçado, eu tenho 106 anos e um braço biônico. Eu devia cuidar de você, não o contrário. — deu um riso contido, girando os olhos.
— Não preciso de cuidados. — Ela se levantou, saindo da cama e calçando suas pantufas. — Vou preparar o chá.
— Do que vai ser hoje? — perguntou.
— Lichia.
— Li- o quê? — ele sorriu.
Todas as noites, depois que ele acordava, lhe preparava um chá, na tentativa de tornar a volta ao sono mais fácil. E, apesar de saber bem do que se tratava, nunca perguntava sobre os pesadelos, sabia que James não se sentia confortável em contar.
Então ela fazia um chá.
A primeira noite que passaram juntos, James se sentiu mal por acordá-la e não queria que tivesse nenhum trabalho para fazê-lo se sentir melhor. Então ela inventou que queria provar novos e exóticos chás; que aquilo era por ela, não por ele.
A desculpa esfarrapada não enganava a nenhum dos dois, mas, aos poucos, aquilo se tornou uma tradição do casal. Toda semana, encontrava sete chás diferentes, podia contar nos dedos quantas vezes ela repetiu um. Eles tomavam juntos e conversavam sobre os mais diversos assuntos, escutavam a rádio da velha guarda até que James conseguisse sentir sono de novo.
E por nem uma única noite sequer ela se arrependia de tê-lo chamado para morar em seu apartamento em Cobble Hill.
E lá estava ela, no antigo complexo dos Avengers. Fora mais fácil entrar do que havia pensado.
Desde que Tony falecera, cada um dos remanescentes seguiu o próprio caminho, mas não esperava que o complexo ficasse abandonado. De fato, não encontrou uma única alma por lá desde que adentrou o lote.
Mas, caso alguém ainda estivesse por lá, não haveria problema. costumava ser uma das maiores agentes da extinta SHIELD, ficando atrás apenas da própria Natasha Romanoff.
Depois do blip, pensou que nunca mais teria de usar suas habilidades de espiã. Deveras, chegou a receber propostas de emprego em novas agências como a S.W.O.R.D e CIA, mas decidira que seu tempo no campo de batalha já havia chegado ao fim.
deixou tudo para trás por uma vida normal.
— Tem certeza? — James a encarava de olhos cerrados, meio incrédulo.
Ele não sabia se nenhum dos dois podia deixar a carreira de defensores para trás. Tudo o que James conhecia era a guerra. Mas queria ao menos dizer que iria tentar.
— É claro — ela sorriu, segurando a mão do companheiro enquanto caminhavam até um restaurante em seu bairro.
— E o que vamos fazer?
— O que a gente quiser — ela sorria. — Isso não é ótimo?
soltou sua mão e caminhou mais à frente, abrindo seus braços e girando no meio da calçada, observando o céu nova-iorquino.
James sorriu, imortalizando aquela imagem em sua mente. Aquilo quase parecia... felicidade.
voltou a se aproximar dele, parando bem em sua frente.
— Ei! — ela falou em um tom baixo. — Nós vamos ficar bem.
Naquela tarde, Pepper Potts contratara para um bom cargo administrativo em uma filial das indústrias Stark.
Em casa, gostava de fazer aquarelas, cantar, bordar, costurar. James achava que ela devia seguir para um campo mais criativo, mas não interferiria na decisão dela. Sabia bem que no momento não tinha como contribuir com as despesas e ela já começava a se preocupar em como iriam se manter.
tinha apenas 25 anos, James não queria que a vida dela — e deles, como um casal — fosse assim. Mas era.
O Blip havia tornado tudo mais difícil. Suas economias foram confiscadas pelo governo assim que sumiram da existência. Foi uma grande sorte ainda terem o apartamento intacto, ocupado por um outro jovem casal, que se prontificou a desocupar o imóvel por livre e espontânea vontade, em respeito por Bucky e terem lutado na linha de frente contra Thanos.
Apesar de a imensa cortina de vidro que circundava e iluminava aquela parte do complexo, em poucos minutos seria noite. teria de usar uma lanterna para encontrar o que viera buscar.
— Droga, droga! — Revirava com pressa as caixas do antigo depósito de Banner, a vista já ficando turva com lágrimas. — Eu preciso achar, eu preciso!
Os resmungos de consigo mesma logo ficaram mais altos e agressivos, tornando-se quase rugidos.
— Mas que inferno! — ela gritou, sem conseguir vencer suas emoções.
Era inevitável, tudo o que ela fazia há exatos três dias era chorar.
Naquele momento, a gravidade parecia exercer um peso exorbitante sobre seus ombros, a empurrando para o chão.
logo se sentou, cobrindo o rosto com as mãos, aos prantos.
Ela já nem se importava se havia alguém ali, não tinha forças para controlar os sons que eclodiam de sua garganta junto às lágrimas.
Sentia seu rosto quente e as pálpebras inchadas.
— Eu preciso encontrar, eu preciso encontrar, caralho! — exclamou em meio a seu abismo pessoal.
— Feliz aniversário, meu amor. — Não passava das 6 horas da manhã quando James adentrou o quarto com suas roupas casuais e uma bandeja em mãos.
não acordou de cara, expelindo apenas um grunhido e fazendo uma careta.
— Anda, eu fiz uma surpresa pra você! Não me deixe aqui com cara de bobo! — ele ria, sentando-se à cama próximo a ela.
Preguiçosa e vagarosamente, abriu os olhos para dar de cara com aquele homem forte, de pele clara e cabelos escuros.
Ela sorriu. Ainda era difícil acreditar que conseguiu para si um cara tão bonito. James preferia usar camisas de manga longa, mas isso não impedia que seu físico fosse bem delineado através das vestes.
Não importava quanto tempo passasse, ele tinha dificuldade em aceitar seu braço biônico. A disforia corporal era uma das coisas com as quais James lidava diariamente em silêncio. Mas amava cada parte dele, fosse de carne e osso ou vibranium.
— Bom dia, meu príncipe! — ela sorriu, sentando-se e fitando a cena.
O sol adentrava a janela do quarto, iluminando perfeitamente o rosto de James e realçando o azul celestial de seus olhos.
— Não me chame assim — ele disse, apenas. Odiava qualquer tipo de apelido que não fosse “Bucky”, o oficial, mas só os íntimos (lê-se Steve ou Sam) podiam usá-lo.
Ela sorriu, pegando uma uva em um dos pratos que havia na bandeja.
Não pôde deixar de notar o empenho que ele colocara ali: frutas frescas, dois croissants, ovos mexidos e suco de uva — seu preferido. E, além da comida, havia um buque de hortênsias azuis.
Eram as flores preferidas dela, mas muito frágeis. Não sobreviviam por muito tempo depois que eram arrancadas do caule. E James sabia bem disso. Planejou há algum tempo, convenceu o senhorzinho da floricultura de arrumar um buquê e entrega-lo lá pelas 5h da manhã, quando foi buscar.
pegou o buquê e o trouxe para perto de seu rosto, cheirando as flores.
Ele se sentiu em paz assistindo àquilo. Era um rapaz das antigas, gostava de presentear com flores, como via seu pai fazendo com sua mãe em sua juventude.
— Elas não têm muito cheiro — James comentou.
— Eu sei! — riu, cheirando-as mais uma vez.
De alguma forma, as flores tinham sido contaminadas por um pouco do perfume de Bucky, possivelmente enquanto ele as carregava para casa.
— Não entendo porque gosta tanto delas — comentou.
— Eu também não — confessou. — Desde criança sempre gostei, acho que porque são azuis. — Deu de ombros.
não mentira. Desde que podia se lembrar, aquela exótica flor azul a intrigava. Atualmente, ela tinha um motivo a mais para as preferir a qualquer outra: agora, olhando para as pétalas, ela pensava nos olhos azuis de James, a primeira pessoa que lhe deu um buquê de flores.
— De qualquer forma, são mais originais que aquelas rosas que você me deu a primeira vez que saímos! — provocou.
— Ei! Isso não é justo, não tinha como eu saber que estava saindo com uma garota maluca que gosta de flores incomuns. Rosas são clássicas, agradam qualquer uma.
— Ah, é, falou o cara que não saía com ninguém desde os anos 40! Realmente um especialista no que as mulheres gostam! — eles riram, James fez uma careta engraçada em resposta.
Ela pegou mais uma uva, encarando a bandeja sobre seus lençóis brancos e seu namorado atrás. Era o cenário perfeito.
James a encarou, já a conhecia quase com a palma de sua mão.
— Pode tirar a foto, eu sei que você quer — falou em um tom provocativo. — Não entendo o apelo de vocês, jovens, com fotos.
riu, pegando logo seu celular para fazer um book da comida.
— Falou o velho!
Depois, levantou-se e, em um passo, se aconchegou novamente, sentando-se no colo de James. Ele enlaçou a cintura dela com sua mão metálica, colocando a outra na parte externa da coxa da mulher, por cima do short de seu pijama.
Ela tinha suas mãos no rosto dele, acariciando sua bochecha.
— Eu te amo, sabia? — falou, simplesmente.
Tendo crescido num lar desfeito e colecionado traumas ao longo de sua vida que a levaram até a SHIELD, não sabia que o paraíso podia existir. Mas ele existia, e era qualquer lugar com James.
Ele uniu seus lábios, beijando-a calmamente, saboreando o momento.
— Que os 25 anos te tratem bem — ele sussurrou, mantendo suas testas coladas e olhos fechados, após findar o beijo.
Aquela fala veio com um certo peso, era perceptível.
— Quantos anos você tinha? — tomou fôlego e perguntou, sondando o terreno. James não gostava de falar sobre seu passado. — Quando você serviu com Steve...
Escolheu as melhores palavras que pôde. Não podia simplesmente falar “quando você supostamente morreu, mas foi torturado e modificado pela HYDRA”.
Mas ele sabia ao que ela se referia. A verdade é que todas aquelas coisas nunca tiveram um fim, ele as revivia toda vez que fechava seus olhos.
Constantemente pensava que nunca teria paz. Não, não era algo que o pertencia. Ele tinha momentos de calmaria. Como em Wakanda. Como agora, com ela em seus braços.
— Vinte e quatro — respondeu, sem querer prolongar o assunto e sem encará-la olho no olho. — Vamos comer ou não?
se levantou, voltando para seu lado da cama.
Obviamente sabia que ele era jovem quando tudo aconteceu. Mas saber que ele era apenas um ano mais novo que o que ela era agora?
Um menino do Brooklyn. Arrastado para a guerra do outro lado do oceano. Torturado. Usado. Céus, não queria nem pensar nas coisas que lhe fizeram!
Alguns minutos de profundo desespero se passaram. Sentia que já não havia mais líquido o suficiente em seu corpo para desperdiçar pelos canais lacrimais.
Um vazio parecia engolir sua alma. Por um tempo, tudo seria silêncio. Sua mente em branco, como se nada daquilo fosse real.
Em estado quase catatônico, seus olhos percorreram o local. Ali, próximo ao chão, encontrou uma caixa com o símbolo da Tecnologias Pym. Esticou seu braço e a arrastou para fora da prateleira.
Com as mãos trêmulas, abriu o contêiner, avistando logo aquele pequeno frasco vermelho.
Finalmente.
segurava uma sacola de papel cheia de suprimentos — incluindo sete novos chás exóticos — em uma mão, enquanto tentava destrancar a porta do apartamento com a outra.
— James! Abre aqui! — chamou, sem resposta.
Ela podia ouvir o toca vinil dentro de casa, ele não devia estar escutando, provavelmente tomando banho.
Seguiu tentando passar a chave na fechadura enquanto escutava as notas de Moonlight Serenade, de Glenn Miller, ecoando do outro lado da porta.
Tentou uma, duas vezes.
Até que conseguiu. Adentrou com um sorriso. Ela gostava da textura que os vinis traziam às músicas.
E aquele era um da época de Bucky. Um de seus preferidos.
Deixou a sacola na cozinha, pegando uma ameixa na fruteira. Em passos dançantes, dirigiu-se até a pia para lavar a fruta.
—James, já cheguei! — falou em um tom alto, imaginando que ele estivesse no banheiro.
Fechou a torneira.
Mordeu sua ameixa lavada.
Franziu o cenho e os lábios, estava ácida!
— James? — chamou novamente. — Quer que eu entre no banho com você, é? — brincou, provocativa.
Saindo da cozinha, deu alguns rodopios pela sala, embalada pelo jazz.
Dançando e comendo sua ameixa.
Rodopiou.
Uma.
Duas.
Três vezes.
Notou um envelope ao lado do toca vinil.
Se aproximou.
Firmou a ameixa em sua boca, para ter suas mãos livres.
Secou seus dedos melados de fruta em sua calça.
Pegou o envelope.
Abriu-o.
No mesmo instante, seu celular começou a tocar.
Ela devolveu a carta para a mesinha, procurando o aparelho.
Tirou a fruta de sua boca e olhou o ecrã.
Era Sam Wilson. Estranhou, Sam nunca ligava para ela.
— Alô? — falou, sentindo seu coração apertado sem saber bem o porquê.
— Eu sinto muito, . Eu não cheguei a tempo.
O mundo se silenciou. O que restava da ameixa caiu, de repente, ao chão.
— Sam? — Sentia sua cabeça latejar e suas pernas bambeavam.
Como suspeitava, não tinha o suficiente de partículas Pym para um salto. Mas já era o bastante, sabia o que fazer. Guardou-o dentro de seu sutiã e se levantou.
Refez o caminho que usou na entrada, mas, dessa vez, não estava sozinha.
— O que está fazendo aqui, ? — Aquela voz tão conhecida a chamou, vindo de trás.
Ela se virou.
— O que você está fazendo aqui, Sam?
Wilson deu uma boa olhada na garota. Ela estava péssima. Seu rosto completamente inchado e parecia não comer há dias.
— Pepper está preocupada. Você tem ideia do tanto de coisa que aquela mulher precisa cuidar? E no meio de tudo isso ela se preocupar com você quer dizer que a situação está feia.
— Eu estou bem — mentiu.
—...
— Eu estou bem! — mentiu novamente.
Sam respirou fundo.
— Eu sei o que você quer fazer, mas não vai conseguir — falou.
— Você não sabe disso. Não dá pra saber se eu não tentar.
sentia seu estômago quase em sua garganta. Não lhe sobrava muita força em seu âmago, mas se recusava a se sentir impotente. Ela precisava fazer aquilo.
— Eles destruíram o equipamento. Banner pegou mais das partículas para tentar salvar Natasha, mas não deu certo. Mesmo que você encontre algo, não tem como usar. É mais seguro assim.
— Bom, então porque você está aqui? — rebateu.
—Por você. Eu não vou te deixar passar por isso sozinha. Não vou cometer esse erro duas vezes.
— Não foi sua culpa, Sam. — A voz dela se desestabilizava. — Eu vou consertar tudo.
Sam precisou segurar o nó que se formava em sua garganta. Molhou os lábios e respirou fundo, encarando-a olho no olho.
— Ele está morto, — falou, sem a intenção de machucá-la.
— Não! — ela gritou, perdendo a cabeça.
— Bucky está morto.
— Não! Não! Eu vou resolver tudo, eu vou resgatá-lo! — ela gritava, caindo de joelhos no chão.
Sam correu para seu encontro, confortando-a. Deus sabe que ele queria chorar também, mas precisava ser forte.
Já era por volta das 20 horas quando Sam a deixara em sua casa.
Aquela casa vazia e fria que não era mais um lar.
Nas últimas horas, Sam a explicou de todas as formas possíveis e impossíveis que mexer com o tempo não era seguro e por isso os vingadores destruíram o equipamento.
Ofereceu-se para dormir em seu sofá, para que ela não precisasse ficar sozinha.
Mas negou. Disse que precisava digerir tudo antes de conseguir conversar com alguém.
Agora, sentada no tapete da sala, com um copo de água nas mãos, um semblante calmo e lágrimas que seguiam caindo sem que ela sequer percebesse, pôs a mão dentro de seu sutiã, pegando de volta o frasco com pouquíssimos mililitros do líquido vermelho.
Segurou-o bem dentro de sua palma, fechando a mão. Com a outra, pegou seu celular e discou o número de sua antiga amiga.
Após algumas chamadas, a inglesa atendeu.
— Simmons? Preciso de um favor seu e do Fitz. Eu preciso que vocês recriem a viagem no tempo com as partículas Pym.
Controlava sua respiração para, assim, controlar seus batimentos cardíacos e, com eles, sua vontade absurda de chorar.
Focava em tudo o que havia aprendido no treinamento de agente, mas a SHIELD era sua casa, e a equipe de Coulson o mais próximo que tinha de uma família.
Ela dobrava sua última jaqueta e a acomodava na mala aberta na beira da cama. Sentia o olhar indignado de Jemma Simmons — uma inglesa de estatura média, pele clara e cabelos castanhos, com um rosto usualmente extremamente amigável, que hoje se curvava em pânico —, parada à porta, a seguindo.
— Como consegue? — ela perguntou, de braços cruzados, com a voz um pouco embargada.
— Jemma... — se virou de costas para a amiga, tentando, com todas as suas forças, se manter neutra.
— Como consegue ficar tranquila? — A inglesa, diferentemente de , não conseguia segurar as lágrimas de rolarem. — Eu preciso saber! Preciso... aprender.
parou por um instante, pegando em mãos o porta-retratos da equipe — que ficava sempre ali, ao lado de onde dormia, para que fosse a primeira coisa que visse quando acordasse e antes de se deitar. Inspirou audivelmente. Colocou a foto na mala e a fechou.
Sentou-se sobre o colchão, finalmente encarando Jemma. Gesticulou para que a amiga se sentasse também.
Simmons se acomodou, de forma que a mala ficava entre as duas. Ambas olhando para a frente, sem forças para ter essa conversa olho no olho.
— A verdade é que eu não sei — confessou.
— Mas você teve o treinamento necessário, a Academia não me preparou para isso.
— A Academia não preparou nenhum de nós para isso — corrigiu , instaurando um silêncio devastador.
De um dia para outro, o mundo delas havia sido destruído. Tudo o que elas conheciam já não existia.
A SHIELD havia caído.
Presenciaram amigos se tornando inimigos e matando aliados bem na frente de seus olhos. E, em uma dessas, Simmons e Fitz quase se foram também. Ward, um de seus queridos colegas da equipe de Coulson, revelou-se parte da HYDRA e tentou matá-los. Fitz salvou Jemma, mas acabou com hipóxia cerebral fazendo isso.
O tempo que passaram no hospital poderia recuperar sua saúde física, mas as marcas daquele dia jamais seriam curadas.
Não conseguiam digerir toda a barbárie e escuridão que manchava o legado da agência a qual devotavam sua vida e juventude.
Para ambas as garotas, a SHIELD era muito mais que um emprego.
Jemma, juntamente com Fitz — um rapaz esguio de cabelos ondulados e louro-escuros, com pouquíssimas habilidades sociais —, foram os cientistas mais jovens a se formarem na Academia da SHIELD de Ciência e Tecnologia, prodígios que já eram observados pela agência desde muito cedo.
, por outro lado, não tinha nada especial para oferecer, apenas mais uma história de garota com lar conturbado como tantas outras; mas a SHIELD a acolheu e a deu esperanças, treinou-a desde os quatorze anos em um programa secreto que pretendia replicar o RED ROOM (o mesmo que criou a Viúva Negra), sem as partes macabras do Departamento X, e, obviamente, com o consenso dos pais, ou, mais especificamente, da mãe, em uma tentativa desesperada de protegê-la dos problemas de casa.
Mas só foi quando Coulson a recrutou que sentiu, pela primeira vez na vida, que tinha um lar.
E agora o estava perdendo.
— Eu só... — começou, concentrando-se em manter o controle de sua respiração. — Tento me lembrar que Coulson é a SHIELD. A SHIELD que importa, o que deveria ser. Enquanto ele estiver aqui, temos um propósito.
— Não podemos fazer isso — disse Fitz, inquieto. — Não podemos!
Jemma pôs as mãos sobre as dele.
observava o casal no laboratório, sentada sobre a mesa de necropsia — equipamento padrão e, diga-se de passagem, bem banalizado depois que se passava alguns meses em missões. A imagem deles discutindo coisas científicas, com palavras que ela nunca sabia o que queriam dizer, era tão familiar que ela quase sentia vontade sorrir.
Fitz agora tinha barba e Jemma parecia também mais adulta, mas, ainda assim, era como estar de volta a algumas de suas memórias favoritas.
Entretanto, havia tanta dor em seu coração que curvar seus lábios em um leve sorriso seria impossível.
— É claro que podemos, Fitz. Você consegue recriar o equipamento em meia hora, eu replico as partículas PYM. — Jemma olhava bem dentro dos olhos de seu amado.
Apesar de ter perdido todo o desenvolvimento daquele relacionamento, não era estranho para vê-los como um casal. Todos meio que já esperavam que aquilo fosse acontecer. O amor deles era extraordinário, mesmo antes de eles próprios perceberem e admitirem um ao outro. Não existe Fitz sem Simmons, nem Simmons sem Fitz.
Assim como não deveria existir uma sem um Bucky.
— Disso eu sei, Jemma! É óbvio que conseguimos, a questão é: nós devemos? Não sabemos as implicações disso — Fitz indagava, irrequieto, nunca cortando o contato com Simmons. — Pode romper toda a coesão do espaço-tempo.
— Ou ela pode causar uma pequena alteração que só ela mesma, tendo presenciado a realidade corrente, perceberia — argumentou Jemma.
— São muitas variáveis. Ela pode acabar criando uma linha alternativa completamente nova! Eles lutaram contra Thanos, e se algo mudar e a humanidade for dizimada de novo?
— Não significa que isso destruiria a nossa realidade. Se ela é a viajante, é possível que eu e você e todos os outros no planeta sigamos inalterados, sem saber o que houve com enquanto ela cria uma realidade... variante, nascida a partir da nossa.
— Talvez tenha razão, Jemma — contemplou por alguns segundos. — Não sabemos como poderes maiores operam, mas o universo sempre se protege do absurdo. De alguma forma, tudo acaba correndo como tem que ser.
— É claro que tenho razão, Fitz. A viagem dos Vingadores aconteceu de forma linear, eles interferiram em alguma linha semelhante à nossa, que causou a volta de Thanos, mas a nossa linha seguiu intacta. Pode funcionar!
— E o simples ato de fazer o salto pode implicar que ela já o fez antes... O passado se torna seu futuro. O presente se torna passado! Mas ainda não sabemos o que de fato pode ocorrer com ela.
O casal discutia rapidamente diversas hipóteses que faziam a cabeça de girar, ela não estava muito preocupada com as tecnicidades da coisa, só... precisava fazer.
— Sei que estou pedindo demais a vocês — interrompeu, levantando-se da mesa e aproximando-se dos amigos. — Sei que podemos contar nos dedos quantas vezes nos vimos desde que eu... saí em missão quando a SHIELD caiu.
Fitz revirou os olhos.
— Quando você abandonou a equipe — corrigiu.
— Fitz! — Jemma o repreendeu.
sentia seu coração pesar. Fitz era o melhor amigo que ela já teve, mas quando conheceu James as coisas mudaram. Não se arrependia de suas escolhas, mas se arrependia de não ter estado com Fitz durante seu período de recuperação da lesão cerebral — que foi bem difícil e solitário, pelo que soube.
— Tudo bem, Simmons. Ele tem razão — se culpava. — Mas você é melhor que eu, Fitz. Por favor, não vire as costas para mim como eu fiz a você.
E, dessa vez, não conteve as lágrimas. Não desestabilizou sua voz nem nada, mas já não tinha força o suficiente para seguir seu treinamento com destreza.
E Jemma sabia que a amiga tentava manter a pose, tal qual fora ensinada, mas estava visivelmente um caco.
— Não, ele não tem — Jemma disse. — A única culpada nessa história toda é a HYDRA. Nós sabemos disso, todos sabem disso. James é mais uma vítima desse monstro, como nós já fomos por mais vezes do que podemos contar. — Olhou nos olhos de . — Tenho certeza que ele era um bom homem que merecia uma segunda chance.
mordeu o lábio inferior, levantando a cabeça e olhando para o teto, enquanto suas lágrimas rolavam quentes e rápidas. Ouvir os verbos sendo conjugados no passado não soava certo.
— Eu não tenho direito de pedir nada a vocês, mas ele é um homem bom. O melhor que já conheci. O que estou pedindo é exatamente o que vocês fariam um pelo outro — disse, apesar do nó em sua garganta quase impedir que qualquer som se fizesse.
Fitz olhou para , dos pés à cabeça. Nunca a tinha visto tão mal, nem mesmo naquela missão em que levara três tiros nas costas.
Em seguida, ele olhou para Simmons. Faria tudo por ela, sem hesitar. Desafiar o universo e qualquer lei da física para resgatá-la era quase rotina. Perdeu as contas de quantas vezes o destino tentou separá-los, das maneiras mais nefastas e inimagináveis. Mas eles sempre achavam um caminho de volta um para o outro, nunca desistiam.
O que sua amiga estava tentando era encontrar o caminho de volta para os braços de quem amava, mas não poderia fazê-lo inteiramente sozinha.
— Ela tem razão — Jemma disse baixinho, ainda segurando as mãos de Fitz.
— Eu sei que tem — ele concordou, dando um meio sorriso para sua amada. — Que se dane. Vamos fazer. Só espero que ele valha a pena.
abraçou os dois subitamente, soluçando em seu choro esperançoso.
—Tem certeza, Coulson? — agente Melinda May, a asiática baixinha que sempre se vestia toda de preto e quase nunca sorria, vulgo o braço direito de Coulson, o questionava.
Coulson tentava manter seu bom humor, sem demonstrar a preocupação que consumia seu interior, pegando a caixa de arquivos sobre sua mesa e dirigindo-se para fora de sua sala.
— Não, mas que outra alternativa eu tenho? Não temos muitos agentes em quem podemos confiar. Elas são as mais qualificadas para as missões.
O quarteto de ouro de Coulson — Fitz, Simmons, e Skye, os mais jovens e brilhantes agentes da SHIELD, que excediam as expectativas em suas áreas de atuação, o futuro da agência, que Coulson via quase como filhos, teria de ser separado.
Com Fitz ainda hospitalizado, delegou a Simmons que se infiltrasse na HYDRA, que estava alistando inúmeros cientistas que debandaram após a fatídica queda. , versada em combate e operações, investigaria o paradeiro do Soldado Invernal — arma chave da HYDRA e do secretário Pierce para derrubar a SHIELD, alguém que eles não poderiam se dar ao luxo de não saber o paradeiro.
Apenas Skye — sua protegida com maiores habilidades de liderança, ficaria ativamente na equipe, cooperando com times recém recrutados.
Coulson caminhou até o hangar do Playground — a base secreta do Fury de onde reconstruiriam ocultamente a SHIELD, com May ao seu lado.
— Simmons ficará bem, ela se adapta com facilidade e é a única inteligente o suficiente para esse disfarce — Coulson falava para May, mas os dois sabiam que ele estava apenas externando para tentar se convencer daquilo. — E foi treinada desde criança com os movimentos de combate mais eficazes que conhecemos, se alguém pode conter o Soldado Invernal, eu aposto nela. Ou em você, mas você já é figurinha carimbada da SHIELD, precisamos de um rosto que passe pela multidão.
— Está com medo de enviar duas crianças para os alvos mais perigosos da HYDRA. — Melinda conseguia claramente ler nas entrelinhas de tudo o que Coulson falava ou fazia. Não havia por quê fazer cerimônia, era assim que funcionava a relação deles.
— Precisamente — Coulson disse, apenas, enquanto seguiam caminhando.
— Devo lembrá-lo que nem uma das duas é uma criança e não deveria tratá-las assim. São capazes de muito mais que isso e ficarão seguras — May terminou, Coulson tentou guardar aquelas palavras em sua mente.
Ao chegar no hangar, encontraram Jemma e dispostas com suas malas e equipamentos, mantendo suas posturas firmes e profissionais.
Simmons sentia seu estômago gelar só em pensar no que teria de fazer. Infiltrar-se na HYDRA lhe despertava calafrios, ainda mais indo sozinha. E mais ainda por saber que elas estavam saindo em segredo, os únicos com autorização para saber eram os próprios Coulson e May. Não queria nem pensar em como Fitz se sentiria.
, no entanto, havia feito as pazes com a ideia. Como agente, sabia que nunca teria um lugar fixo no mundo, seria sempre de uma missão para a outra. Sob o comando de Coulson, entretanto, sentia-se inspirada e acolhida. Pronta para fazer o que fosse preciso.
— Senhor. Agente May — cumprimentou-os, com um aceno de cabeça, recebendo outro deles.
— May as levará no quinjet — Coulson instruía. — , seu destino será o primeiro. Instale-se e reporte. Aqui está o arquivo do Soldado Invernal — ele a entregou uma caixa de papel pardo que parecia vir da época da SSR e ser atualizada até hoje, dado seu peso —, estude-o, conheça-o, não o deixe a pegar de surpresa — assentiu. — Simmons, May lhe entregará a chave de um apartamento seguro para seu disfarce, assim que conseguir adentrar a base da HYDRA, reporte.
— Sim, senhor — Jemma disse.
Coulson as olhava, ainda receoso. Confiava nelas com sua vida, mas parte dele não conseguia vê-las além de sua tenra idade, sentia-se horrível em mandá-las para o perigo iminente.
As duas também o encaravam. Depois de um tempo na equipe, é impossível não começar a vê-lo como uma figura paterna. Coulson sempre priorizou a segurança de seu esquadrão e poupava-as de tudo que fosse possível. Sentiriam falta de não o ter mais por perto, assim como o resto da equipe e sua atmosfera divertida e afetuosa.
Os tempos agora eram outros.
— Algo mais, senhor? — perguntou, após alguns instantes daquele silêncio e vendo a cara quase engraçada que May fazia, franzindo os olhos para observar Coulson como se o aguardasse dar fim àquela conversa.
— Sim — ele disse. — Por favor, tomem cuidado. Não poderemos nos comunicar com frequência, então fiquem seguras.
sentiu, finalmente, que aquele seria o último contato com Coulson por algum tempo. Pôs a caixa de arquivos sobre sua mala e, de supetão, abraçou Coulson — que demorou a processar o gesto por alguns segundos, mas logo correspondeu.
seguia sentada na cadeira ao canto do laboratório enquanto observava Fitz trabalhar concentrado e em silêncio. Simmons havia saído para outro setor, a fim testar amostragens da réplica da partícula que acabara de desenvolver.
E, apesar de todo o caos em sua mente, não conseguia simplesmente não pensar em toda a mágoa que poderia ter infligido a seus amigos, que tão prontamente se disponibilizaram a ajudá-la.
Então, sem muito ensaiar mentalmente, atreveu-se a chamá-lo:
— Fitz?
— Sim? — ele respondera, seguindo seu trabalho.
intimamente ficou até aliviada por ele não ter se virado para a fitar. O que tinha a falar não era fácil, e era melhor dizer para a impassível silhueta de costas que encarar os olhos de seu antigo amigo.
— Eu devia ter me explicado quando resolvi deixar a SHIELD. Vocês eram minha família. —Expirou audivelmente, fazendo uma pausa. — Será que pode me perdoar?
Agora, devido as circunstâncias, entendia mais que qualquer um no mundo o quão difícil era engolir uma partida brusca.
Pensara que sua decisão de deixar toda a vida que conhecia como agente fora arriscada e complicada, mas ela era a pessoa indo embora. Doeu por um curto tempo, ter seu mundo destruído; mas tivera seus motivos e a escolha se tornou nata, faria tudo de novo em um piscar de olhos.
Mas, ser a pessoa deixada para trás, isso sim é difícil superar. Todas as dúvidas que rondam e fazem alarde em sua mente, todos aqueles “e se?” perdurando sem respostas, na tentativa de encontrar um motivo para o outro partir.
Fitz parou por um momento. Pôs a minúscula chave de fenda sobre a mesa. Respirou fundo.
Finalmente se virou para encará-la.
— Você fez o que achou que era certo. Eu respeito isso. É o que nós fazemos, não é? — Ele esboçou um pequeno e discreto sorriso empático na direção de . — É tudo o que podemos fazer.
sorriu de volta, um pouco aliviada.
— Sabe que você é o melhor amigo que eu já tive, não sabe?
— Você precisa sair mais — respondeu, sarcástico, mas bem-humorado.
Fitz olhou pela divisória de vidro, enxergando Simmons à distância, trabalhando no outro compartimento.
— Não sei o que eu faria sem ela — confessou, logo voltando a fitar . — Só posso imaginar o que você está passando. Sinto muito.
“Vigie. Não se envolva.”
As ordens dadas por May quando reportou o status da missão ecoavam todos os dias na mente de .
Há exatas três semanas e dois dias, o quinjet pousara na Romênia, deixando-a em um campo aberto na região de Crețuleasca, uma área ruralista próxima à capital Bucareste.
A SHIELD não era mais uma agência oficial, de fato, não tinham mais recursos suficientes para missões dispendiosas. Tudo o que Coulson pôde oferecer à fora uma caixa recheada de arquivos, com todas as informações que se tinha sobre o Soldado Invernal, e um nome, só recentemente descoberto, que dava rosto à todas as atrocidades: James Buchanan Barnes.
Pela primeira vez em muito tempo, estava sem a companhia da estimada equipe — e ainda agindo às margens da lei, agora que não tinha mais permissões de estado para trabalhar. Precisava ser duplamente cuidadosa.
Sondou a área por pistas sobre o paradeiro do alvo, o que demorou mais do que o esperado.
No primeiro dia, teve de acampar na mata, mas não podia chamar atenção. Dormira no topo de uma árvore, enfrentando, com grande dificuldade, a fome, o vento gélido e a baixa temperatura sem poder acender uma fogueira.
Mas a Academia a havia preparado para tudo aquilo.
Rastreou o inimigo até a cidade de Bucareste, de onde reportou a primeira vez.
“Vigie. Não se envolva.”
A cidade parecia meio perdida no tempo para . Seus edifícios, todos meio decadentes, combinavam com o cinza dos céus e contrastavam com a simpatia de seu povo.
A boa notícia era que o país, relativamente recém inserido ao regime capitalista, era muito favorável a imigrantes e expatriados; o baixo custo de vida e a falta de interesse sobre o histórico de quem chegava facilitaram a instalação de , que se alocou em um apartamento em zona estratégica para circular pela cidade em prol de sua missão.
A má notícia era que, da mesma forma, o assassino letal e aprimorado que destruiu a SHIELD obviamente sabia bem para onde estava indo e também já deveria estar bem instalado.
Assim que se familiarizou com o traçado urbano, passava seus dias de tocaia escondida em telhados e terraços, e suas noites devorando os arquivos do Soldado Invernal. Precisava se preparar, memorizar todas as informações, encontrar seus pontos fracos.
Se Steve Rogers saiu ferido após um encontro com ele, não podia se dar ao luxo de não se precaver o máximo possível e usar todos os recursos que lhe foram dados.
“Vigie. Não se envolva.”
Com seus esforços e o passar dos dias, era questão de tempo para que finalmente o encontrasse. E ela o encontrou.
Em uma tarde de terça-feira, no oitavo dia desde que iniciara a missão, ela o viu.
Em uma igreja próxima ao centro histórico da cidade, se posicionava estrategicamente na torre sineira. Com seus binóculos tecnológicos da SHIELD, ela observava o movimento sem ser vista pelos pedestres.
E foi assim que, de repente, ela o encontrou. Pensou que sua visão pudesse estar lhe pregando uma peça, mas ativou o scanner facial do aparelho. Era ele.
Passeava pela rua quase despreocupado, se misturando com os cidadãos.
Furtiva, ela o seguiu até uma feira dobrando a rua.
Lá, na frente de um estabelecimento que pareceu um pequeno bar, ele fez contato com um homem de idade, de quem o scanner facial não apontou nenhuma ficha criminal. O super soldado se dirigiu para a lateral da loja, onde passou a descarregar caixas de um caminhão e as acomodar dentro do bar. Ativou o raio-x de seu binóculo para descobrir o conteúdo: aparentemente, bebidas alcoólicas comuns.
O homem mais velho que abordara anteriormente o entregou um pouco de dinheiro. Barnes sorriu e caminhou pela feira.
Fez uma nota mental de tudo o que ele comprou: um peixe fresco e algumas frutas diversas. Coisas diabolicamente normais.
Ao fim do dia, acabou por descobrir onde o alvo se escondia: seguiu-o até um prédio antigo e acabadiço em uma região mais humilde da cidade.
Jornais colados sobre o vidro impediam a visão das janelas, mas, apesar de tudo, aquele não parecia um local de tocaia, um esconderijo até o próximo atentado. Crianças pulavam corda na frente da entrada e mães se sentavam nos degraus de acesso, as observando. Aquele parecia um lugar onde se mora.
“Vigie. Não se envolva.”
A rotina dele era sempre a mesma. Trabalhava informalmente para pessoas diversas, realizando tarefas braçais por alguns trocados. Comprava seus mantimentos. Às vezes passeava um pouco, andava de trem, parecia se perder em pensamentos. Voltava para casa.
Ela lia os arquivos, sabia o que ele era capaz de fazer. As pessoas que matou a sangue frio, o mal que fizera sem o menor escrúpulo ou remorso. Céus! Ele destruiu a SHIELD e, com ela, tudo pelo que dedicara sua vida; ele era a arma mais poderosa da HYDRA.
Mas, de alguma forma, durante as três semanas e dois dias, ele parecia perigosamente... normal. Algo não fazia sentido.
“Vigie. Não se envolva.”
Três semanas e três dias. , de tocaia em um terraço próximo à feira, o observava.
Mal dormira na última noite, relendo pela milionésima vez os arquivos da SHIELD.
Por que razão aquele homem parecia tão inofensivo?
“Vigie. Não se envolva.”
Precisava chegar mais perto, precisava investigar por si mesma. Havia algo faltando nas informações que lhe foram dadas.
Ficar só ali parada de tocaia, o vigiando à distância, não iria solucionar seus questionamentos.
“Vigie. Não se envolva.”
Precisava se aproximar mais.
“Vigie. Não. Se. Envolva.”
desceu do terraço e se misturou aos outros que aglomeravam a viela.
Vigie!
Caminhou no meio da feira. Com tantas pessoas indo e vindo, não seria estranho se ela não o conseguisse encontrar. Mas ela o vigiara tanto, que já poderia reconhecer a silhueta de Barnes em qualquer lugar.
Não!
Avistou a figura de costas, escolhendo algumas maçãs na barraca logo à frente. Era estranho vê-lo tão de perto, mas ela tinha um plano.
Se!
Com toda a confiança e tranquilidade do mundo, se encaminhou para a tal barraca, apressada, esbarrando de propósito em seu alvo.
Envolva!
— Desculpe! — ela falou ao encostar bruscamente nele, pronta para qualquer que fosse a reação violenta que o super soldado teria.
Mas ele se virou, encarando-a bem dentro dos olhos e sorriu.
— Não tem problema — disse, gentil.
Tarde demais. já estava envolvida.
— É só isso? — perguntou, observando o equipamento que Fitz ajustava em seu punho.
Parecia uma luva com uma pulseira metálica embutida, mas em vez de ficar no pulso, se encaixava entre seu polegar e a primeira dobra dos demais dedos, enlaçando-se por todo o contorno de sua mão. Era da cor grafite e tinha quatro botões; três deles ficavam no dorso de sua mão, abaixo de um pequeno visor onde se via uma data e coordenadas, o outro, um pouco maior e na cor roxa, se localizava na lateral onde ela poderia ativar com o polegar.
— Os Vingadores construíram uma parafernália gigantesca no complexo e você me dá uma luva? — ela continuou, sorrindo.
— Você lembra o tamanho dos primeiros celulares e como eles diminuíram rapidamente? — Fitz respondeu, ainda ajustando a luva na mão de . — Conhecendo a engenharia da máquina, não é difícil melhorá-la.
Jemma os encarava bem de perto, com um olhar compassivo e ansioso. Ela estava preocupada, mas tentava esconder.
— Acha que não vai dar certo? — percebeu a hesitação da amiga e a perguntou, buscando seus olhos.
— Não é isso, eu sei que vai — disse, sem um pingo sequer de dúvidas em seu trabalho.
— Mas as preocupações ainda são válidas — concluiu Fitz, soltando a mão de e se afastando para guardar suas ferramentas de precisão.
Jemma se aproximou com uma caixa de ampolas com as partículas recriadas, entregando-as à amiga, estendendo-lhe um olhar sincero e um meio sorriso.
— Já sabe para onde vai? — perguntou, baixinho.
— Eu tenho algumas ideias em mente.
Fitz voltou a se aproximar, explicando os pormenores do funcionamento do aparelho, como programá-lo e onde inserir as ampolas.
ouviu tudo atentamente, agradecendo-os e se despedindo por fim.
Jemma e Fitz se encararam, aflitos, até que Simmons tomou coragem e falou:
— Tem certeza que não quer ajuda? A gente pode ficar aqui, acompanhar o salto, saber se voltará bem...
— Não precisa — falou logo, altiva. — Eu realmente tenho que fazer isso sozinha. Além disso, já fizeram demais por mim.
A contragosto, os amigos acabaram concordando. Com um abraço, se despediu e seguiu seu caminho.
Pegou suas chaves, seu carro preto se misturando à escuridão noite adentro enquanto dirigia quase sem rumo. Precisava sair de Nova York, memórias demais sondavam cada quarteirão e olhos familiares poderiam encontrá-la pela multidão.
Formulando melhor o plano conforme viajava, decidiu ir para Nova Jersey. Tomou o cuidado de pegar o caminho mais longo, pela ponte de Williamsburg; não suportava a ideia de sequer ter a ponte do Brooklyn ao alcance de sua vista.
De forma infantil e irracional, demonizava o monumento: aceitar coexistir com a ponte do Brooklyn agora seria como aceitar a perda dele, como se o objeto arquitetônico inanimado fosse o culpado pela partida, por toda a dor, pelo oceano de sentimentos não processados em seu peito que a asfixiavam. Seria como aceitar que ele estava fora de seu alcance.
Mas, de alguma forma, fez seu caminho até o Parque Alpine — o camping administrado pelos Escoteiros da América. Apesar de fechado e vazio, algo ali parecia torná-lo o lugar certo para o que precisava.
Os faróis de seu carro eram a única fonte de luz no estacionamento. Virou a chave na ignição, desligando-o. Tentou tomar fôlego, sabendo que a tremedeira em suas mãos nada tinha a ver com o frio daquela madrugada. Recostou a cabeça no volante e fechou os olhos.
As lembranças de dias melhores com um James sorridente eram tão vívidas em sua mente que quase podia tocá-lo. Ele costumava dizer que Alpine era um bom nome para um bichinho de estimação, um que eles nunca chegaram a ter. E, às vezes, dizia também que, se tivesse filhos, adoraria levá-los ao acampamento; com sorte, eles iriam acabar querendo se tornar escoteiros e se espelhariam em Steve, Sam, ou... .
Era estranho pensar nisso agora. Nunca chegaram a conversar sobre filhos de verdade. Mas a imagem daquele James era a quem ela se agarrava, um James que ousava pensar no futuro, com grandes ou pequenos planos, seja adotando uma gatinha chamada Alpine ou tendo filhos, ela segurava firme na infame hipótese de que algo nele queria... ficar.
E por isso ela estava pronta para o combate.
Ergueu seu rosto, ligou a luz interna do carro e esticou-se para abrir o porta-luvas, na intenção de pegar o equipamento recém entregue por Fitz e Simmons. Mas seu coração pareceu ir à garganta quando seus dedos esbarraram em um pacote plástico.
Trouxe sua mão para o peito em um susto, a cobrindo com a outra, como se tivesse levado um choque. Tinha esquecido que deixara, também no porta-luvas, o pacote entregue pelo legista com os pertences de James.
Tentou se recompor, não era hora de desmoronar. Mais cedo ou mais tarde teria de lidar com isso, não poderia apenas deixar o pacote escondido para sempre.
Com o corpo todo tremendo, retirou o saco hermético do compartimento.
Com a visão turva, abriu-o, removendo dele um único item: a dogtag, ou colar militar de identificação, de James.
Segurou-o com força bem dentro de sua palma, fechando-a e trazendo-a para perto da boca, como se fosse abafar seu choro de irromper.
Respirou fundo, contou até dez mais de dez vezes. Lembrava de seu treinamento de agente.
Notou que havia apenas uma plaqueta no cordão. Indagou onde a outra teria parado. Sabia muito bem que aquilo era bem mais que um simples colar para Bucky, se o legista o perdeu, ela o faria se arrepender.
Mas, por enquanto, tinha mais o que fazer.
Trouxe a placa de metal gelado para seus lábios, beijando-a rapidamente para, em seguida, transpassar o colar por sua cabeça, escondendo-o dentro de sua blusa.
Após meses do Blip e de ter se comprometido a uma vida normal, trajava mais uma vez seu uniforme clássico de super espiã. Não muito diferente daquele que costumava usar na SHIELD anteriormente, era um macacão preto de tecido tecnológico leve, justo ao corpo para facilitar a movimentação, coldres com várias tiras nas costas, cintura e pernas, acomodavam lâminas e armas; nos pés, suas botas de solado anti-impacto permitiam que caminhasse sem ser percebida; nas mangas de seu traje ainda se via o famoso “A” da logo dos Avengers, mesmo que o grupo — ou o que sobrou dele —, possivelmente não se fosse se reunir nunca mais depois de Thanos.
Sentiu o vento gélido bater contra seu corpo e suas pernas amolecerem de repente. Havia muito em risco, fragilizada, não conseguia conter o nervosismo.
Com a lanterna dos pulsos de seu traje ativa, caminhou mata adentro até que não visse mais trilha ou sinais humanos. Não podia ser perturbada ou vista e todo cuidado era pouco.
Quando tudo o que lhe cercava eram árvores e a própria escuridão, parou.
Aqueceu seu corpo com rápidos alongamentos e sua mente com a confiança de que não falharia. Tentava se convencer de que era só mais uma missão, e ela não chegou aos Vingadores com um histórico de falhar em suas tarefas.
Contou até dez, tomando controle de seus batimentos e emoções mais uma vez.
Era agora ou nunca.
— Até o fim — repetiu em voz alta a promessa que um dia fez a James, rapidamente programando o equipamento em seu punho com a primeira data e local que lhe viera à mente.
Fechou os olhos com força, mas ainda podia ver uma luz forte por detrás de suas pálpebras. Seus ouvidos doeram como se tivessem pegado pressão em um avião. Sentiu seu corpo inteiro vibrar em uma frequência estranha, como se tudo formigasse e cada partícula de cada célula nela se agitasse.
E, de repente, silêncio.
Já não era tão frio.
Tudo em seu corpo parecia de volta ao normal, mas sentia que seus arredores haviam mudado. Arriscou abrir uma de suas pálpebras — que mantinha fechadas com tanta força que franziam todos os músculos do rosto — primeiro.
Ainda via árvores, mas eram iluminadas por um poste.
Com os dois olhos abertos, olhou ao redor. À sua frente, uma estrada de terra e uma cerca com uma câmera.
Um sentimento de euforia a entorpeceu de uma vez.
— Fitz, Jemma, seus gênios do caralho! Vocês conseguiram! Realmente conseguiram! — disse, empolgada, enquanto um sorriso incontrolável rasgava seus lábios.
Conferiu novamente seu aparelho, Fitz deu um jeito para que mostrasse as horas de onde estivesse.
Eram exatamente 18 horas e 55 minutos.
— Merda! — resmungou.
Precisava se esconder depressa.
Havia lido tantas vezes os arquivos do Soldado Invernal que, mesmo agora, anos depois, sabia quase de cor a maioria dos eventos em que ele se envolveu. Este, sendo um dos mais notáveis, estava gravado na mente dela como uma tatuagem.
E tinha poucos minutos antes de acontecer.
Agachou-se atrás de um arbusto. Desde o salto, não cruzou o campo de visão da câmera.
Nos cinco minutos seguintes, ponderou o que exatamente faria. O que ela poderia fazer?
Lembrou-se de Fitz dizendo que não conheciam as implicações de se mexer com a linha do tempo.
Talvez devesse se ater a não alterar tanto as coisas. Talvez devesse se importar com a linha do tempo que levou Bucky a tirar a própria vida.
Mas ela se importava?
Exatamente às 19 horas e 01 minuto, ouviu um carro se aproximando.
Era agora.
Não dessa vez.
Parecia ocorrer em câmera lenta, cada segundo durando horas.
Assistiu, sádica e atentamente, o homem ensanguentado sair da porta do motorista, caindo ao chão e retorcendo-se em dor: Howard Stark.
Sua mente corria à mil, mas não tinha tempo de questionar a moral do que fazia.
Microssegundos depois, uma figura sombria em uma motocicleta parou ao lado do carro.
Qualquer outra coisa na mente de se esvaneceu. Seus olhos se vidravam em cada movimento dele.
É hora de agir! — ela pensava, mas seu corpo não parecia corresponder.
Permaneceu imóvel, em choque.
— Por favor, ajude! — Stark clamava, sua voz fraca e debilitada. — Ajude minha esposa!
Bucky se aproximou dele à passos normais, não se notava qualquer tipo de hesitação.
Ele se inclinou minimamente, puxando Howard pelos cabelos, o fazendo ver seu rosto.
— Sargento Barnes?
Faça algo! Faça algo! — O estômago de foi à boca, mas não podia se mover.
Em silêncio e sem sequer piscar, assistiu de camarote o homem que amava assassinar um senhor indefeso.
Ele sequer esboçou qualquer emoção.
— Howard? — Pôde ouvir a voz feminina e madura, confusa e sem muita força, chamar, de dentro do carro.
sabia de cor a sequência dos fatos. Depois de estraçalhar o crânio de Howard com seu punho de vibranium, acomodaria o cadáver de volta ao banco, forjando um acidente. Daria a volta e, sem muito esforço, sufocaria Maria Stark. Mas não eram mais só dados escritos em um arquivo sem rosto e sem nome, ver aquilo se desenrolar bem em sua frente revirava cada fibra em seu corpo, arrepiava cada fio de cabelo e fazia sua espinha gelar de cima a baixo.
— Chega! — gritou, sem conseguir mais se controlar.
Anos de treinamento, anos de combate, nada a preparou para o que quer que fosse aquilo.
se levantou, revelando-se finalmente de seu esconderijo, caminhando em direção a ele.
O Soldado Invernal nem sequer vacilou. Apenas olhou em volta, escaneando sua próxima vítima: a mulher em traje táctico preto que não deveria estar ali.
Afrouxou a compressão que impunha na traqueia de Maria Stark ao sentir a vida se esvair de seu corpo. Sua visão estava fixa na estranha e hesitante figura que o encarava perto das árvores e vinha se aproximando.
Em questão de segundos, viu Bucky se aproximar a passos largos. Conforme se aproximava, sob a única fonte de luz ali, tudo ganhava forma: seu traje de tecido grosso, cheio de amarras e armas, as botas de combate, o braço biônico totalmente à mostra e os cabelos, longos como quando o conheceu em Bucareste...
Finalmente, o tinha de volta ao alcance de suas mãos.
Por um momento, fraquejou. Sua mente cheia de ansiedade e confusão era barulhenta demais para processar a situação por completo. Ela só queria abraçar o homem que amava mais uma vez.
Mas quando ele chegou perto o suficiente, tentou acertá-la com um gancho de direita. Por um reflexo, conseguiu desviar e acordou de seus devaneios, voltando seu foco para o momento. Agachou-se e o acertou com uma rasteira, fazendo-o desequilibrar só o suficiente para ela se afastar dois passos.
— James! James, me escute! Esse não é quem você é! — ela dizia, firme e rapidamente, preparando-se para desviar dos próximos golpes.
O Soldado Invernal não esboçou qualquer reação. Seguiu tentando golpeá-la enquanto ela apenas se defendia e esquivava.
Em uma sequência ágil de movimentos, o adversário tentou acertá-la com a mão direita enquanto alçava a esquerda nos quadris de , sacando uma lâmina de seu traje e tentando feri-la com sua própria arma.
bloqueou o ataque posicionando seus antebraços cruzados como em um “x” frente a seu rosto, sentindo neles o impacto agressivo do braço de Bucky. Ele forçava sua dominância, empunhando a lâmina enquanto usava toda sua força, firmando seus calcanhares e joelhos, para manter a posição.
Mas havia um limite até para ela. Não sabia se ele intencionalmente pegara seu equipamento para lhe humilhar, mas, seja como for, irritou-a.
Até o momento, ela seguia uma conduta defensiva, mas, no impulso, viu-se liberar de uma vez toda a força que empunhava, fazendo com que o Soldado Invernal oscilasse para frente enquanto ela o driblava pela lateral em um lance hábil e felídeo. E antes que se desse conta, como que por instinto, partiu para um ataque ofensivo.
— Fale comigo, caralho! — implorou, finalmente acertando um soco no maxilar do adversário.
Ele parou por um milésimo de segundo. pensou que enfim a ouviria.
Mas a reação foi bem diferente: o Soldado pareceu encarar a luta com menos paciência.
E em uma execução certeira, agarrou o pescoço de com sua mão de vibranium, imprimindo ali uma força absurda.
Ele a empurrou até que suas costas encostassem no tronco largo e áspero de uma árvore, encurralando-a e erguendo seu corpo a uns trinta centímetros do chão apenas com a força de seu braço, como se ela não fosse nada.
pôs as próprias mãos sobre o pulso e os nós dos dedos metálicos de Bucky, tentando se desvencilhar do aperto.
Sentia sua cabeça e olhos latejarem enquanto seu rosto esquentava com sangue se acumulando, sem circular. Tentava puxar ar, chutá-lo, mas nada adiantava.
Sadicamente, naquela posição, um feixe de luz do poste atravessava perfeitamente as frestas entre as copas das árvores, iluminando bem o azul dos olhos do homem que a sufocava.
Pareciam vazios, diferentes. Mais escuros, até.
Ou talvez fosse a forma como ela o via que estivesse mudando naquele singular momento.
Ele não exprimia qualquer emoção, agia de forma automática tal qual uma máquina de matar.
Foi quando percebeu: apesar de fisicamente à sua frente, James estava fora de alcance.
Com um último suspiro, ergueu sua mão esquerda bem em frente ao rosto de James. Ele encarou o delicado equipamento com certa confusão, como se tentasse precipitar o que aquilo faria. Mas quando ela apertou o botão roxo com seu polegar, o Soldado Invernal presenciou apenas uma luz absurdamente forte o cegar enquanto um som agudo fez seus ouvidos zumbirem.
Jogou-se de costas no chão, cobrindo os próprios olhos.
Quando conseguiu abri-los de novo, não havia mais ninguém lá além dele e dos corpos de Maria e Howard Stark.
Roboticamente, prosseguiu com sua missão. Levantou-se, caminhou até o porta-malas do carro, abriu-o. Encontrou dentro de uma maleta o que viera buscar: ali estavam as ampolas de vidro contendo um líquido azul.
Em posse do sérum, montou em sua motocicleta e cruzou a estrada noite adentro.
Parque Alpine, Nova Jersey, 2023
sentiu suas costas e cabeça colidirem com o chão abruptamente. Desesperada e audivelmente, puxou ar para seus pulmões, abrindo a boca o mais largo que conseguia.
Seu corpo se encontrava em uma luta síncrona entre tossir e tentar recuperar o fôlego. Sua garganta formigava, parecendo tão seca quanto as areias de um deserto.
Tinha escapado por muito pouco. Não estava preparada.
— Não, não, não! — esbravejou, ainda jogada sobre o chão, arrancando pedaços de grama ao cerrar seus punhos. — Inferno!
Um misto de sentimentos consumia seu peito.
Raiva.
Como pôde fazer algo tão estúpido? Como pôde fazer um salto temporal sem pensar em um plano? O que ela achou que aconteceria? Ele apareceria e ela o convenceria de que o Soldado Invernal é só um programa da HYDRA e ele voltaria a ser o cara que amava?
Humilhação.
Como pôde fracassar? Como pôde ser tão inútil num combate? Em tantos anos como espiã, nunca lutou de forma tão vergonhosa. Ela havia de fato tentado ou deixara seus sentimentos débeis tomarem conta de seu melhor juízo?
Dor.
Como ele podia estar lá e ao mesmo tempo não estar?
Confusão.
Ela finalmente conhecera o lado que James se esforçava em ocultar. E não sabia como digerir isso.
Angústia.
Ele quase a matou... E ela não fez muito para impedir.
se levantou, marchando, furiosa, até o próprio carro. Toda aquela neblina em seu coração parecia culminar em uma explosão de uma raiva ardente.
Ao adentrar o veículo, bateu a porta com tanta força que sentiu tudo balançar.
Pressionou o botão para ligar o rádio, por pura força do hábito, mas com uma brutalidade excessiva.
Bateu a cabeça sobre o volante e gritou sons ininteligíveis que eclodiam de sua garganta, com cada partícula elétrica que lhe restava.
Sem querer, vislumbrou o próprio reflexo no espelho retrovisor. Tentou se recompor o máximo que conseguia, que, naquele momento, não era sequer perto do suficiente.
Ainda era madrugada. Girou a chave na ignição e fez seu caminho de volta para a cidade, em meio a soluços e com a vista embaçada, tentando fazer algum sentido de tudo que acabara de vivenciar.
Estacionou em frente ao seu prédio. Ao desligar o carro, ficou parada por alguns segundos, olhando para as sombras na rua vazia.
Tudo estava errado. Queria poder se sentir vazia também, mas sentia muito e muitas coisas ao mesmo tempo.
Ele os matou. Indefesos. Bem frente a seus olhos.
Que tipo de monstro faria aquilo sem demonstrar qualquer arrependimento? Ou, ao menos, uma ínfima e minúscula faísca de humanidade?
Finalmente, desceu do veículo, meio atônita, meio voraz.
Nada. Ele não demonstrou sentir nada. Pensou o conhecer com a palma de sua mão, mas quem encontrara aquela noite era um completo estranho.
Ainda podia sentir a superfície fria e metálica em torno de seu pescoço, comprimindo-o. Estava assustada.
Era terrível vê-lo naquele estado. Aterrorizante pensar em todas as coisas que fez. Todas as coisas que ela sabia que ele tinha feito, mas nunca o tinha visto fazer.
E enfim tudo tomava forma. Não importa o tanto de atrocidades que ela já tenha visto em missões, ver alguém que se deitava ao seu lado todas as noites cometendo assassinato a sangue frio era muito pior que todas elas.
Adentrou o edifício sob um caminhar pesado e agitado, subiu os degraus sentindo seu peito arder e a respiração acelerar, ficando cada vez mais escassa, difícil, laboriosa.
Ar.
Ela precisava de ar.
Tem ar por toda parte, por que não consegue simplesmente respirar?
Ar!
Inútil em combate, inútil até para algo tão simples quanto encher os pulmões!
Sentia-se comprimida, sufocada, claustrofóbica. Abriu o zíper de seu traje enquanto ainda atravessava o corredor.
Estava tão alterada que mal pôde inserir as chaves na fechadura de casa. Suas mãos tremiam. Xingou o universo no timbre mais baixo que conseguiu, enquanto batia as chaves na porta até acertar.
Finalmente, adentrou.
Fechou a porta atrás de si, tratou de remover as botas e livrar-se da parte superior de seu macacão, como se fosse aliviar a tensão que carregava nos ombros, como se fosse magicamente conseguir respirar melhor assim.
Mas não conseguiu.
Escutava seu coração batendo em seus ouvidos, alto, rápido, violento.
Jogou as chaves no aparador sem o menor cuidado. Com pressa, dirigiu-se até a sala e ligou o maldito toca vinis. Serviu-se de um copo do whisky de James que ficava ao canto junto a outras bebidas.
Sentou-se no tapete felpudo, escorando suas costas no sofá.
Fechou os olhos e inspirou, o mais profundo que conseguiu, concentrando-se.
E expirou.
Repetiu o gesto contando até 5 em sua mente para cada inspiração, depois mais 5 para cada expiração.
A velocidade do mundo parecia começar a voltar ao normal.
Mas sentiu a dor repuxar os músculos em seu pescoço. Franziu o cenho em reflexo. Passou a mão gentilmente pela extensão do maxilar até sua clavícula, findando por tatear o cordão que carregara durante toda a noite e agora parecia asfixiá-la.
Ela o removeu em um gesto rápido, como quem se protege de um choque, como se livrasse o pescoço de um nó de forca. Transpassou-o por sua cabeça, mantendo-o em sua mão direita enquanto segurava o copo com a esquerda.
E finalmente seus olhos contornaram de novo as letras do nome dele naquela plaqueta.
Seu corpo todo estremeceu.
James Buchanan Barnes.
Levou o copo à boca e tomou um gole do whisky. Sentiu sua garganta queimar por dentro acompanhando o caminho do líquido, ao mesmo tempo em que seus músculos machucados e pele avermelhada doíam por fora.
Em algum lugar, dentro daqueles olhos vazios, estava James. O seu James, não a arma da Hydra.
Pela primeira vez, sentiu em seus ombros uma parcela do peso que Bucky havia carregado pelos últimos 70 anos.
E percebeu que, apesar de tudo, ainda o adorava. Mesmo quando o Soldado Invernal tinha as mãos ao redor de seu pescoço.
A campainha soava pelo apartamento pela terceira vez quando finalmente ousou abrir os olhos.
A luz do sol adentrou direto das janelas da sala para suas retinas, forçando as pálpebras a se fecharem com força.
— James, atende a porta — ela murmurou, ainda meio adormecida.
Mas a realidade não era tão gentil a ponto de deixá-la voltar para seus sonhos onde nada de ruim nunca acontecia.
Assim que proferiu a frase, recobrou a consciência completamente. Não havia mais ninguém ali para atender a porta.
Olhou em volta e se deu conta de que acabara adormecendo ali no chão. Seu corpo inteiro podia sentir as consequências disso, principalmente sua coluna.
— Droga — muxoxou.
Encontrou a garrafa de whisky quase vazia na mesa de centro. Seu estômago se revirava tanto quanto sua cabeça. Precisava de uma aspirina.
A campainha soou mais uma vez.
Com a vista ainda meio turva, levantou-se. Quem diabos poderia estar ali em um dia como aquele?
Caminhou, sorrateira, até o olho mágico da porta de entrada.
Reconheceu a silhueta bem definida e o rosto preocupado de Sam Wilson do outro lado.
— Merda, merda, merda! — sussurrou, olhando o próprio reflexo no espelho acima do aparador, à sua direita.
Cabelos desgrenhados, olhos inchados e ainda trajava seu macacão táctico. Bom, quase. As calças ainda estavam no lugar, enquanto a parte superior se pendurava pelo seu quadril, deixando totalmente à mostra sua barriga, sutiã e... Pescoço com um hematoma roxo avermelhado e gigantesco.
— , está aí? — Pôde ouvir Wilson chamando, sua voz abafada pela porta. — Eu trouxe café.
Uniu as sobrancelhas e suspirou, pensando no que fazer.
O apartamento estava todo um caos, também. Botas, equipamentos e embalagens de comidas que ela sequer se lembra de ter pegado.
Estalou os lábios. Não havia muito como contornar a situação, a melhor saída seria ser honesta.
Mas não sobre tudo.
— Sam, eu não vou mentir pra você — disse, ainda próxima ao olho mágico. – Eu não estou vestida e acabei de acordar. Você pode me dar mais dois minutos?
Wilson sorriu, expelindo ar pelo nariz e balançando minimamente a cabeça, divertido.
— Claro! Eu espero.
recolheu seus coturnos e as luvas temporais enquanto fazia o caminho de seu quarto quase correndo.
Retirou por completo seu traje, jogando tudo dentro do armário e procurando algo para vestir que pudesse cobrir os ferimentos.
No entanto, a única coisa que encontrou e serviria ao propósito fora uma camisa de gola rolê cinza azulada, que Bucky usara em algumas missões, debaixo de suas jaquetas. E é claro que ele havia arrancado uma das mangas durante a ação.
— Ótimo. — girou os olhos, vestindo depressa. Não podia deixar Wilson esperando para sempre.
Colocou também uma legging qualquer, a primeira que avistou em sua gaveta.
Se dirigiu de novo à entrada, checando sua imagem no espelho uma última vez. Tudo coberto. Perfeito.
Girou as chaves e depois a maçaneta, revelando um Sam Wilson, como sempre, muito bem alinhado, de calça jeans escura, camisa mostarda e jaqueta esportiva cinza. Ele sempre mantinha barba e cabelos bem cortados, e cheirava a colônia masculina amadeirada. Segurava um suporte de papelão com dois cafés em uma das mãos, enquanto apoiava a outra no arco da porta.
Mas, ao finalmente recebê-lo, Sam deu de cara com uma desgrenhada, vestindo um suéter folgado que tinha uma manga só. Sabia muito bem que poderia encontrá-la em situação difícil e se preparou durante todo o caminho até o prédio para confortá-la.
Mas com aquela imagem, não conseguiu se controlar. Sam Wilson soltou uma risadinha.
arregalou os olhos. Ele mordeu os lábios, se segurando.
— O que foi? — ela perguntou, curvando as sobrancelhas.
Ele respirou fundo antes de responder. Constatou que ela cheirava a álcool, muito álcool.
— Estava só me perguntando qual o clima real: frio ou calor. — Apontou para o braço coberto e depois para o desnudo de .
— Sam! — sorriu, repreendendo-o, com um ar divertido em meio a seu desterro. — Desculpe, não pude resistir — falou enquanto dava espaço para que ele adentrasse ao apartamento. — Então, estamos fazendo mais uma declaração fashion?
Estava tudo meio bagunçado, mas era compreensível. A visita não era tão gratuita assim, Wilson queria saber o que ela precisava e, com sorte, convencê-la a sair um pouco para respirar um ar que não fosse impregnado de lembranças com Bucky.
— Você acreditaria se eu dissesse que um guaxinim fez isso? — tentou fazer graça, chutando uma embalagem vazia de salgadinhos para o canto.
— Só se for uma guaxinim bem alta com uma preferência diferenciada por álcool.
estalou os lábios, chegando à sala e se jogando no sofá, sinalizando para que Sam se sentasse também.
— Eu... — respirou fundo, massageando suas têmporas com a mão esquerda. — Eu estou tentando, Sam. Deixar a bagunça na minha cabeça ocupar essa casa é a coisa menos destrutiva que eu poderia estar fazendo.
Ela despejou aquilo de uma vez, sem filtros. Não costumava ser assim, não se queixava, era organizada. Os dois sabiam disso.
— Isso foi estranho — corrigiu-se logo. — Podemos fingir que eu não disse nada?
Sam a analisou, rapidamente. Não precisava dizer o quão óbvia era a falta que Bucky fazia a ela, nem esperava que processasse a perda tão cedo. Mas havia algo errado ali, só não sabia o quê.
— Não, não podemos. É importante falar sobre isso, . É por isso que estou aqui — disse gentilmente, encontrando os olhos dela.
Wilson acomodou o suporte de papelão sobre a mesinha de centro, retirando o que dizia “caramel latte” e o oferecendo para a amiga, e o de café puro para si mesmo.
tomou o copo em mãos, soprando dentro do pequeno buraquinho na tampa.
— É o discurso sobre carregar a dor numa carteira de novo? — soltou o ar pelo nariz. — Sabe que já passou essa pra metade dos Vingadores, não é? Eu e Nat recitávamos casualmente sempre que dividíamos uma cartela de analgésicos.
— Bom, então eu não vou mais falar! — Sam arregalou os olhos, fingindo estar ofendido.
E por um momento, eles riram. Riram de verdade, como se o único tempo que importasse fosse aquele ali, sem passados amargos e futuros incertos.
Por um momento singelo, o calor e a doçura do latte de caramelo alcançaram o interior de e a atmosfera da sala de estar. Era bom ter Sam por perto, era bom não estar sozinha.
Mas aos poucos a realidade os atingiu. Lembraram-se de Natasha, outra perda com a qual mal puderam lidar.
Após a batalha final com Thanos, se agarrou com tudo na única coisa que podia, a melhor coisa que já fora sua: James.
E todas as memórias e as alegrias que ele semeara se tornaram flores em seus pulmões, a impedindo de respirar.
pôs a mão sobre a gola do suéter, em um reflexo. Por fora sentia a maciez da malha, ao acariciá-la ainda podia despertar as notas do perfume que ele usava, amadeirado e marcante com um fundo cheio de frescor de rosas e bergamota; por detrás do tecido, seu hematoma, a dor sensível ao toque.
Afastou a mão ao perceber que havia se perdido no tempo de novo. Ela se dissociava com facilidade, sem aceitar o presente que acabava por se submergir em memórias.
— ...como ele era? — sussurrou, com medo de soltar aquilo em voz alta para o universo.
— Como quem era? — Sam a encarou, no fundo sabendo do que se tratava, mas ensaiando como abordaria esse assunto.
— Você sabe... o outro dele. — não conseguia sequer dizer o codinome do adversário sombrio com quem lidara na última noite. Olhava para o copo em sua mão, a fim de evitar contato visual.
Sam coçou a nuca, respirando fundo e roteirizando o que dizer a seguir.
— Não era ele, . Você sabe disso.
— Não, eu não sei. Eu nunca o vi em ação de verdade. — Fitava Wilson, obstinada. — Quando o conheci, ele já se lembrava e eu ainda não estava na equipe quando toda aquela merda com o Zemo aconteceu. Eu pensava que o conhecia, Sam, mas eu nunca o conheci inteiramente — começou a falar mais rápido e espiralar, quando Sam a interrompeu.
— Isso porque ele morria de medo que você o visse como Soldado Invernal.
franziu as sobrancelhas, aquilo não fazia sentido.
— Do que está falando?
— Bucky. Ele não queria que você soubesse detalhes disso. Caramba, , ele não tinha medo de nada, mas dava pra ver o pavor nos olhos dele quando o assunto vinha à tona.
— Mas por que, Sam? Eu sou a única que deveria conhecê-lo por completo e sou a única que não teve a chance.
— Porque ele te amava mais do que qualquer outra coisa — falou, simplesmente.
— Mas eu prometi que ficaria com ele, porra! Eu amo cada parte dele e nada jamais mudaria isso, por que ele não se abria comigo?! — A voz de se embargava ao mesmo ponto em que seus olhos se enchiam de novo de lágrimas e seu peito de questionamentos.
— Ele não queria arriscar isso. — Sam pôs a mão no ombro da amiga, seu polegar a acariciando gentilmente. — Ele pediu pra gente não falar em detalhes sobre a queda da SHIELD ou a situação com Zemo com você. Não se abria muito comigo também, mas pediu ao Steve, que me repassou o recado.
— Ele não me deu a chance de entender, de o conhecer por inteiro — falava, inconformada. — E agora tudo o que me resta é tentar pintar essa imagem dele com as migalhas confusas que mal recebi em todos esses anos.
— Não é isso, .
— O que é, então? Em algum lugar lá dentro, era ele sim! E ele não me deu a chance de lidar com isso, de ajudar, de fazer algo!
— Não tinha o que fazer! — Sam aumentou o tom, apenas para abafar a confusão de , que o encarou, em choque. — Não tinha o que fazer, . Você acha que não teríamos ajudado se soubéssemos como? Se tivéssemos um contra-programa, ele não teria sido congelado de volta em Wakanda. Ninguém tinha uma resposta e ele era refém da própria mente.
— Eu só... queria ter feito algo. Acho que estou tentando preencher esse vazio com memórias novas sobre ele. Mas não é justo pedir isso a você, me desculpe — confessou, mesmo que parte daquilo fosse uma grande mentira.
Ela precisava saber quem ele era porque, bem, precisava fazer algum sentido do que viu na noite anterior.
Sam respirou fundo, pensando se deveria seguir a vontade de Bucky. Mas ela precisava daquilo.
— Não o conheci muito antes de você — começou, fazendo com que o encarasse, atenta, no mesmo instante. — Foi quando descobrimos sobre o Projeto Insight. Estava com Steve e Natasha, levávamos o Sitwell junto porque tínhamos um plano para derrubar o algoritmo. Foi quando o vi pela primeira vez. Não por inteiro, na verdade. — Sam sorriu. — Lembro de escutar o vidro se quebrando e ver Sitwell voando para longe pela janela. Depois o sujeito simplesmente arrancou o volante das minhas mãos. Dá pra acreditar nisso?
deu uma leve risada. Seus olhos se enchiam de lágrimas saudosas, mas era bom ouvir outra pessoa falando sobre James, e a forma como Sam falava era cheia de humor, mesmo de uma situação tão arriscada.
— Não me admira que vocês tenham tido problemas pra se acertar — ela disse, um sorriso no canto dos lábios.
— Problemas? Eu odiava o cara! — Sam riu. — Foi a pior primeira impressão do mundo! Bucky destruiu o carro, em poucos segundos estávamos todos deslizando pelo asfalto sobre a porta arrancada! Os três marmanjos abraçadinhos sobre uma porta.
Eles riam, verdadeiramente. Era como se Bucky ainda estivesse ali, através das memórias de Sam.
— Sinto falta de vocês — confessou baixinho, enquanto se esticava para colocar seu copo de volta na mesinha, mas Sam a ouviu alto e claro.
— Também sinto, todos os dias — Wilson disse, saudoso, soltando a tensão de seus ombros, livrando-se também de seu copo de café quase completamente cheio.
Não se passava um dia em que ele não pensasse no grupo, por algum tempo, um ao outro era tudo o que tinham. Mas a vida tem formas estranhas de mudar as coisas. Steve, Natasha, Bucky, Visão. Do antigo time, só restavam agora , Wanda e, bom, ele mesmo. Sendo que de Maximoff não se tinha mais nem notícias.
Certo que Wilson ainda tinha sua irmã, sobrinhos e alguns amigos. Mas, de muitas formas, não era a única que se sentia sozinha ali. Ainda não tivera tempo também para digerir o rumo que tudo havia tomado.
— Eu o vi na televisão... — respirou fundo e tentou formular algo, como se captasse os pensamentos do amigo. — Walker, vangloriando-se por ter derrotado os apátridas, exibindo o escudo como se fosse dele.
E rapidamente a tensão voltou para os ombros de Sam.
— ... — tentou repreendê-la, não queria falar sobre aquilo.
— Por que deixou ele tomar os créditos por tudo, Sam? — questionou, meio indignada. Não gostava nada daquele sujeito se denominando o novo Capitão América. — Foi você quem os deteve...
— ! — Sam a interrompeu, novamente implorando para não seguirem aquele assunto.
— Foi para você que Steve deu o escudo. Por que deixa aquele imbecil desfilar por aí com o título?
— É mais complicado que isso. Como você acha que seria se fosse você? Hein? — Estava exausto daquele tópico, majoritariamente porque ele mesmo se questionava a respeito toda vez que dava o azar de encontrar com alguma propaganda de John Walker, o Novo Capitão América, pelas ruas.
entendia o que ele queria dizer. A América não estaria pronta para aceitar uma mulher assumindo o manto, assim como não estava para aceitar um homem negro. Sabia do peso que aquele símbolo carregaria para qualquer um que seguisse Steve. Mas não suportava ter de engolir aquilo, simplesmente.
— Seria uma merda, sinceramente — ela o encarou, séria. — Mas não fui eu quem ele escolheu, Sam.
— E o que quer que eu faça? Tire o escudo dele à força? E depois?
— Eu não sei — confessou. — Mas, se algum dia decidir dar uns bons socos naquele sujeitinho intragável, conte comigo. — Permitiu-se sorrir, mas Sam não acompanhou mais o tom bem-humorado.
Aquela ainda era uma história muito mal resolvida, mas tentava fazer a própria paz com a decisão que o governo tomou entregando o manto a outro – um que sequer chegou a conhecer Steve. Isso envolvia questões muito maiores que ele ou Rogers. A bandeira era pesada demais para se balançar, e o escudo infelizmente representava mais que só o legado de seu melhor amigo.
— James ficou puto, sabia? — prosseguiu, com o silêncio do amigo. — Ele acompanhou toda a questão dos Apátridas pelos jornais. Ficou puto com o governo, com Walker... com você. Por deixá-lo assumir tudo sem fazer nada. Era tudo sobre o que ele falava, eu nunca o tinha visto tão incomodado com algo. Ele nunca me disse com todas as letras o motivo, mas não é difícil imaginar. Aquele escudo é tudo o que sobrou do Steve, do tempo deles, do motivo pelo qual ele deu a vida.
— É claro que ele não entenderia. — Balançou a cabeça minimamente, sem fitar a garota. — Mas, sinceramente, pensei que você iria.
— Eu entendo. Mas não gosto, nem um pouco.
— Também não gosto, mas as coisas são como são.
se surpreendeu com a postura de Wilson. Ele sempre fora a pedra firme que segurava o astral de todos, incluindo até, por vezes, de Steve Rogers.
Metade do universo foi salva, mas aqueles que lutaram por ela jamais seriam os mesmos. Cada um tentou lidar do próprio jeito, da melhor forma que podia.
— Mas não precisam ser.
Wilson conseguiu captar aquela energia caótica surgindo de novo no timbre dela, já sabia bem do que se tratava.
— Já falamos sobre isso, .
— Não falamos não. Não de verdade — insistiu, virando-se para o encarar com firmeza e sua atenção total.
— Está bem. Digamos que você volte no tempo, o que vai fazer? Já pensou nisso? Ele nunca poderia ter uma vida normal. — Olhou-a bem dentro dos olhos, tentando trazer alguma razão para ela. — Diga, apagar seu sobrenome, documentos e qualquer histórico da sua infância curou todos os seus traumas, Eclipse?
Sentiu seu peito gelar por um segundo. Ouvir de novo, depois de anos, seu antigo codinome fez o coração de perder uma batida. Mas aquilo não era sobre ela. Não era hora de pensar em suas cicatrizes e jornada dolorosa. Então ela apenas ignorou.
— Vou resgatá-lo da HYDRA antes da queda da SHIELD. Ele só precisava de mais tempo para se tratar, eu sei que ele iria conseguir eventualmente. — Seus olhos se enchiam de lágrimas, que começavam a rolar quentes pela pele de seu rosto, mas sua feição e voz não se afetavam nem por um microssegundo. Estava certa daquilo.
— Tempo era tudo o que ele não precisava, — Sam disse, assertivo. — Ele e Steve sempre estiveram deslocados aqui.
Sam conhecia o peso daquela dor que ela carregava, sabia bem que a negação era um dos estágios do luto, talvez o mais complicado de se superar. Perder alguém, ainda mais da forma que Bucky escolhera partir, era inexplicavelmente excruciante e impossível de se compreender. Mas ela queria ir contra o único princípio inabalável do universo: a morte. Aquilo era demais para se conceber, precisava fazê-la voltar aos eixos e perceber a gravidade do que desejava, mesmo que para isso precisasse ser duro com uma pessoa em crise.
— E você acha que eu não estou? Estou há menos de uma semana em um tempo que não pertenço. Não sem ele. — Finalmente aumentava sua voz, as emoções começando a tomar conta de seu melhor juízo.
— É muito arriscado, não se pode reverter a morte, você precisa deixar essa ideia para trás!
O coração da garota batia rápido dentro do peito, tanto que podia senti-lo pulsar em sua cabeça. Ela já não conseguia filtrar as coisas que faziam alarde em sua mente antes de verbalizá-las.
— Se Steve pôde fazer pela Carter, por que eu não posso pelo Bucky?! — esbravejou, levantando-se do sofá no ímpeto e encarando Wilson com os olhos em chamas cheios de uma irresignação ardente.
— Não vá por esse caminho! — Sam se levantou também, insistentemente tentando argumentar com ela. — Você está se perdendo em coisas que não cabem mais discutir. É diferente e você sabe!
— Ah é? E por quê? — Continuava a falar alto, as lágrimas correndo rápidas e suas mãos tremendo enquanto gesticulava. — Por que Steve mereceu? Por que ele lutou contra Thanos? Por que na vida inteira ele só conheceu a guerra? Adivinha só, EU TAMBÉM. Então me diz por que é que ele pode e eu não, Wilson!
— Escute a si mesma, ! Os Vingadores fizeram um salto no espaço-tempo para salvar metade do universo e você quer arriscar isso por uma única pessoa? — Sam aumentou a voz para sobrepor a dela.
pausou por um momento, sugando o ar com uma inspiração profunda e soluçada pelo choro.
— Você acha que eu me importo com o resto do universo? Ele é o meu mundo! — gritou a plenos pulmões.
Já não ligava para mais nada. Não ligava para o que Sam iria sentir ou se aprovava o que fazia.
Wilson apenas a encarou, se encolhendo um pouco. Não sabia mais o que dizer. Não sabia como ajudá-la ou tirar aquela ideia de sua mente. Mas o equipamento foi destruído, ela não poderia de qualquer forma concluir uma viagem no tempo. Estava se agarrando a um sonho febril forjado na escuridão do luto.
— Quando você estiver pronta eu estarei aqui — falou firme, mas calmo, dirigindo-se para a porta. Decidiu que o melhor a fazer era dar algum espaço para ela.
se virou, erguendo os braços e pondo as mãos sobre a testa e cabelos, imprimindo um pouco de força sobre a própria cabeça.
Tudo parecia girar.
— AAARGH! — Canalizou toda a raiva, tristeza e dor, deixando que um grito se chamasse à vida através de sua garganta.
Se aquela conversa servira de algo, fora para motivá-la ainda mais em sua missão. Nada mais importava, afinal, ela não tinha nada a perder.
No impulso, pegou o copo de café que Wilson lhe trouxera e o arremessou na parede, o líquido se espalhando em gotas por todo o lugar, incluindo seu próprio rosto e braços.
Moveu o pescoço pela sala, checando até onde as manchas se espalharam.
Seus olhos encontraram, sem querer, a forma retangular daquela carta ao lado do toca-discos, completamente intacta, limpa, imaculada. Não tinha coragem sequer de tocá-la.
Mas se tudo desse certo, ela jamais precisaria.
16 de Dezembro, 1991
— Relatório da missão. — O homem grisalho fardado de pé encarava o Soldado Invernal sob a pouca luz do ambiente sem janelas, falando russo.
Ele se encontrava sentado em uma cadeira de contenção, seus braços e pernas presos por barras de ferro. Já o haviam despido de seu traje de combate.
Ao lado dele estavam mais dois homens de uniforme militar e boinas vermelhas, eram de menor patente, garantindo a segurança do mais velho. Um deles segurava uma prancheta, anotava informações, a arma no coldre na cintura. O outro, ativamente com uma arma a postos, o dedo no gatilho, atento a cada movimentação do soldado, mesmo que estivesse preso.
Não entendia para quê tudo aquilo, pareciam temê-lo, mesmo que não tivessem motivo para isso.
Se quisesse feri-los, poderia facilmente arrancar aquela contenção já oxidada com seu braço de vibranium, acertar dois deles com a própria cadeira, esmagar a cabeça do último. Mas por que faria isso? Tudo o que ele conhecia era aquela organização, não se questionava, a obediência era recompensada.
Havia um propósito para ele, e ele simplesmente seguia.
— Relatório da missão! — o general repetiu a ordem, encarando-o, as rugas de sua testa se intensificando.
— Alvos eliminados sem incidentes. A morte será declarada como um acidente automobilístico — o homem com a prancheta tomou a frente, respondendo.
O Soldado Invernal não era de falar muito, não era exigido ou aceito que falasse além de seus relatórios. Mas a missão daquele dia o surpreendeu com algo inesperado. Algo que o deixou confuso.
— Havia uma mulher. — Sua voz rouca se fez ouvir pela cela.
O general encarou o Soldado Invernal com ferocidade.
— Está falando de Maria Stark, senhor — o subordinado da prancheta novamente tomou a frente, uma gota de suor escorrendo de sua têmpora, prevendo a reação negativa do superior se qualquer dúvida a respeito do sucesso da missão fosse despertada.
O Soldado encarava o general de volta, os olhos vazios. Ele não o conseguia intimidar, por mais que tentasse, e aquilo abismava o velho russo.
— Ela me chamou de James — prosseguiu, esperando que o homem em sua frente tivesse alguma reação, desse alguma pista do que aquilo significava.
Mas simplesmente o viu virar o pescoço no mesmo instante para o subordinado. Seus ombros meio tensos. Parecia também querer algum esclarecimento.
— O velho Stark deve ter mostrado fotos, contado sobre a Guerra — o homem da prancheta concluiu. Pareceu convencer.
— Deve estar certo. — Voltou a encarar o Soldado Invernal, como um bicho de zoológico irascível, curvando-se para pôr o rosto bem perto dele, observando qualquer micro-expressão. — Deixou algum remanescente na cena antes de retornar? — perguntou.
— Não — respondeu sem hesitar. Não entendia o que havia ocorrido, mas, de alguma forma, aquela mulher se desmaterializou na sua frente. Não estava mais no local. Fora eliminada.
— Excelente. — O general se reergueu, dando as costas e seguindo para a porta da cela. — Reiniciem-no de qualquer forma. Apenas Implantação Mental, não podemos colocá-lo em êxtase ainda.
E assim que saiu, os dois subordinados se encaminharam até James Buchanan Barnes, que não sabia nem o próprio nome, o recostaram na cadeira, empurrando seus ombros. Barnes abriu a boca como um animal treinado, para que colocassem a proteção em seus dentes — o que era relativamente novo.
Ele sentia tanta dor que comprimia o maxilar com força e acabou danificando os próprios dentes, a HYDRA teve de substituí-los para garantir que pudesse se defender também mordendo adversários em combate, caso fosse preciso. Precisavam manter seu brinquedo intacto e lustrado, em pleno funcionamento.
Com o protetor já na boca, os homens desceram a máquina infernal e a encaixaram na cabeça de Barnes.
Qualquer lembrança que não fosse útil à HYDRA, como a da mulher de preto que encontrou na mata, logo fora apagada.