Revisada por: Saturno 🪐
Última Atualização: 05/06/2025.Eu não te escuto rir assim desde que seu irmão morreu, Love.
A maioria dos sorrisos ou qualquer demonstração de felicidade genuína tem sido reservados para o Henry. Com as suas amigas, se é que podemos chamá-las assim, você é sempre contida, receosa em dizer a coisa certa no momento certo. Então, você se fecha e se envergonha antes mesmo de tentar. O que, sem ofensas, te faz parecer meio robótica, quase como uma típica mãe de Madre Linda. E eu já não te faço rir há muito tempo. Fomos domesticados, acontece.
A outra risada, no entanto, tropeça na sua de maneira contundente. Ela soa espontânea, divertida. Eu nem sei quem é ou do que vocês estão rindo, mas já estou me contagiando. Assim como Henry, que me olha, com alguns dedos na boca, e sorri. É um sorriso babado e sem dentes, a coisa mais bonita que eu já vi.
Só dá para competir com você.
Seus cabelos escuros moldam um contraste com sua pele caramelo, e o sorriso em seu rosto parece solto. Olhos de cartoon castanhos, um nariz arrebitado e um corpo que… Nossa. Principalmente vestindo a minha camisa.
Espera, por que você está vestindo a minha camisa?
Quem é você?
— Joe! — Love sorri para mim, levantando do sofá e se aproximando. Ela se curva para pegar a cadeirinha de Henry e aponta para outra pessoa na sala com sua mão livre.
— Oi, Henry. Senti saudades. — A estranha se levanta e acena para o meu filho, e ele mexe com um brinquedinho que está na cadeirinha animadamente. De onde ela o conhece?
— Essa aqui é a — minha esposa explica. — Eu te falei dela, se lembra?
Ah, claro. A amiga/primeira cliente. Também a única pessoa que não desperta raiva da senhora Quinn-Goldberg.
Porra, Love. Podia ter mencionado que ela era assim.
— Sua primeira cliente, claro. — Sorrio amigavelmente, e retribui com seus dentes brancos brilhantes. Como alguém parece tão bonita assim, sem nem parecer estar tentando? — É um prazer te conhecer.
Eu posso achar alguém atraente sem ser a Love, isso não quer dizer que eu esteja traindo-a, ou caindo nos velhos hábitos de novo, . Só quer dizer que você é bonita.
A morena estende a mão para mim e eu a agarro com sutileza. Minhas palmas formigam um pouco e você nem nota. Ou esconde muito bem. Esse é um brilho de curiosidade nos seus olhos? Também está pensando nisso?
— Prazer em conhecê-lo também, Joe. — Quando Adelina fala, as palavras soam diferentes em sua boca. Até parece que ela estava degustando-as antes de dizê-las. De onde será que ela é? — Brasil, por isso o sotaque.
Perceptiva e direta, gostei. Parece mais interessante a cada minuto.
Brasil, um país tropical da américa do sul. A crise política é um problema, mas ele tem uma cultura incrível e autores clássicos.
Eu me pergunto de quais autores você gosta, .
Isso é bom, não é? A própria Love disse que eu precisava de amigos.
Ela arqueia uma sobrancelha na minha direção, esperando que eu diga mais alguma coisa. Ainda bem que minha esposa está ocupada checando a fralda do Henry.
— Eu não… Desculpa se eu fui rude.
dá de ombros, afastando sua mão da minha. O toque já parece tão certo, tão familiar que nem noto que ainda estamos apertando as mãos até aquele momento.
Não, não. Para. A sua esposa está bem aqui. Não podemos ter outra Natalie.
— É normal ficar curioso. — Sua expressão leve está de volta em um segundo. Ela muda de humor tão rápido. Está acostumada com situações assim? — Mas te digo o mesmo que disse para sua esposa, vocês têm que ir em uma praia. Todo mundo nesse país parece pálido.
Não, Joe. Pare. Bom marido e bom pai, bom marido e bom pai.
— Ele deve estar precisando trocar a fralda. — Love se faz presente na conversa, erguendo o Henry em seus braços. Ela está com um nariz enrugado, do jeito que sempre fica quando nosso filho precisa ser trocado. Ela não parece zangada, irritada ou assassina. Então, acho que é seguro deixar aqui. — Eu volto já.
Assim, minha esposa sobe pelas escadas. Só que todo o meu foco está em você. Eu quero saber mais. Qual seu sobrenome? Por que se mudou para cá? Qual sua comida preferida?
Por que está com a minha camisa? Está usando um sutiã por baixo?
A Becky nunca usava, já a Love, sim.
E você, ?
— Joe! — ela me chama, me tirando do transe em que a mesma me colocou.
— O quê?
— Eu perguntei, e você? — Adelina cruza os braços embaixo dos seios. Sem sutiã então. — De onde você é?
— New York.
Assim que respondo, volto o olhar para o seu rosto. Não quero que pense que sou um tarado. continua com os braços cruzados, seus olhos semicerrados ao me encarar. Mesmo que tenhamos acabado de nos conhecer, eu tenho certeza de que ela saberia se eu mentisse.
Onde aprendeu a ser tão atenta e desconfiada, ?
— Por que alguém de New York iria se mudar pra cá?
Desafiadora. Intrigante. Sagaz. Inteligente. Sempre com uma resposta na ponta da língua.
— Por que alguém do Brasil iria se mudar pra cá?
Ah, . Só você poderia me tirar da monotonia de Madre Linda.
— Touché. — Ela ri abertamente, me oferecendo uma piscada brincalhona.
Mas quem é você?
Em sua cidade natal, tudo parecia se encaixar sem esforço, como palavras-cruzadas de domingo, ou a receita de um cupcake de mirtilo. Era tão fácil, tão natural. Seus amigos, seu trabalho. A única coisa que arranhava suas entranhas era o sentimento de estar sentindo falta de algo, como se tivesse esquecido sua alma sentada em Venice Beach. Então, Joe Goldberg entrou em sua vida de um jeito tão suburbano e doce, e naquele momento Love simplesmente soube que ela tinha achado o seu mapa para a plenitude. Alguém que a entendia, alguém que poderia ver seu lado bom e ruim e ainda assim a querer, a amar. Alguém que estaria disposto a fazer qualquer coisa pelas pessoas com quem se importasse, porque ele entenderia que o trabalho de quem ama é proteger, seja com mãos manchadas de vermelho ou não. Alguém que se tornaria parte da família.
Só não contava que Madre Linda era o inferno mesmo com todos os anjos ao seu lado.
Todos pareciam sempre estar julgando-a e nem ao menos tinham a educação de esconder ou serem amigáveis à primeira vista. Cortesia costumava ser um reflexo onde ela morava, principalmente com os eventos exagerados dos seus pais. Aqui, eles só eram grosseiros, meticulosos, abutres que acenavam antes de espionarem o seu jardim por carne fresca. Aquela gente parecia se hidratar com lágrimas alheias.
Então, sim, o sol de Los Angeles era confortável e aquecedor.
Mas o de Madre Linda queimava.
Assim como tudo naquela cidade. O sol estava em uma distância segura e perto o bastante para afetar o seu dia a dia, queimando e explodindo em si mesmo, enquanto respingava suas ondas de calor em qualquer planeta vizinho sem nem se importar.
Ei, talvez seja por isso que as pessoas ainda não tenham entrado na confeitaria, certo? pensou para si mesma, suspirando exaurida. Talvez.
Se enganar estava se tornando cada vez mais complicado ultimamente. Não só pelo total descaso de Joe, mas por todo o esforço que ela estava tendo para fazer seu casamento funcionar de novo. Love não tinha mais o seu irmão para desabafar, sua mãe estava sempre ocupada e só aparecia para passar alguns minutos contados com Henry, e seus amigos estavam há aviões de distância.
Pelo menos ela tinha a terapia e a ameaça da Natalie estava fora do jogo.
Os pensamentos da confeiteira, assim como a limpeza das vitrines dos doces, foram interrompidos por uma visão conhecida: Sherry. Aquela mulher era de longe a pior pessoa daquela cidade, sempre dando um jeito de dizer algo condescendente e ofensivo com um sorriso. Ainda assim, a raiva que a senhora Quinn-Goldberg sentia da morena era empurrada para baixo, fazendo a vontade de ser aceita sobressair.
Love sorriu para ela, acenando animadamente dentro da sua atuação de boa vizinha. Sherry sequer parou sua corrida matinal para cumprimentá-la, ou deu um tchauzinho de volta com a mão enquanto corria. Ela só encarou a outra com desdém, torcendo a boca e as sobrancelhas ao continuar seu percurso.
Quer saber? Esquece o que foi dito antes.
Madre Linda era o único lugar em que a porra do sol era frio.
A feição da confeiteira caiu, seus lábios sorridentes fechados em uma linha reta e seus olhos, antes tão elogiados por serem gentis, seguiram Sherry e seu marido com ressentimento até eles escaparem do seu campo de vista. A irritação emergiu em seu peito novamente, quem ela pensava que era?
Espero que ela seja atropelada e quebre todas as porras dos ossos.
Os pequenos sinos posicionados sobre a porta gritaram elegantemente ao anunciar a chegada de um cliente, seu primeiro cliente! Ela largou o paninho usado para polir a vitrine, que só agora percebeu estar segurando com uma força exagerada (talvez por imaginar a cabeça de uma certa vizinha ali), e se virou para encarar quem quer que tivesse entrado na sua loja.
— Acho que esse é o primeiro lugar que eu entro que tem comida de verdade nessa cidade. — A mulher suspirou dramaticamente ao andar até o balcão, suas palavras recheadas com um sotaque que a confeiteira só tinha escutado em programas de televisão. — Sério, eu quero comprar tudo.
— Bom, eu não vou te impedir. — Love riu de modo suave, animada por ter alguém que reconhecia culinária de verdade. Seria a sua primeira venda! — O que vai querer hoje?
Sua cliente se aproximou do balcão, pressionando os lábios juntos ao analisar os doces.
— Você tem brownies?
Finalmente alguém nesta cidade com bom gosto.
— Veganos e não veganos.
— Eu quero um de cada! — A moça de cabelos escuros bateu as mãos alegremente. — E um cupcake de nozes. Tem desse?
— Tenho sim. Mais alguma coisa? — perguntou educadamente, recolhendo os doces escolhidos.
Ela murmurou em concordância, enquanto abria a bolsa e tirava algumas notas de dentro.
— Pode colocar o brownie vegano e o cupcake para viagem?
— 15 doláres. — A morena entregou a quantia. Love nunca pensou que se sentiria tão feliz por ganhar quinze dólares em sua vida. Principalmente porque menos de quinhentos dólares nunca pareceu uma quantia significativa para ela ou sua família, mas agora? Aquela pequena compra era a prova de que a sua mãe, a Sherry e todos esses babacas glúten free e narcisistas estavam errados. Ela iria conseguir fazer isso funcionar. — Pode se sentar, eu já levo na mesa.
A mulher do sotaque apenas sorriu com um aceno na cabeça e andou em seus saltos até uma mesa próxima da janela.
Ela parece mais simpática do que as outras pessoas, mas eu nunca a vi aqui. Será que ela é nova? Ou do grupinho de idiotas pretensiosos que lambem o chão por onde a Sherry passa?
Love colocou o brownie não vegano em uma bandeja e embalou cuidadosamente os outros doces para viagem. Ela queria causar uma boa impressão nos seus clientes. Por isso, ela se aproximou com a expressão mais amigável que conseguiu, colocando o prato e a sacola na mesa com delicadeza.
— Obrigada. — A moça forçou os olhos para ler o nome no crachá, mudando seu foco para a confeiteira quando conseguiu. — Love. Que nome interessante.
— É que eu sou da Califórnia.
Os olhos dela brilharam ao ouvir aquele nome.
— Parece ser um lugar incrível, espero poder ir pra lá um dia.
E eu espero poder sair desse inferno e voltar para lá, mas eu não posso. Minha família está aqui.
— Carboidratos, eu senti tanta saudade. — A mulher grunhiu, ao morder um pedaço do brownie. — Dá pra acreditar que eu estive em cinco lanchonetes por aqui e nenhuma delas tinha carboidratos?
— Isso não me surpreende. — Love soltou um riso anasalado, recebendo um olhar questionador em resposta. — É que as pessoas de Madre Linda não gostam desse tipo de comida.
— Bom, então eu vou manter o seu negócio de pé. — Ela deu outra mordida. — Isso aqui é ótimo.
— Obrigada. — Apreciou o elogio. Tinha sido tanto tempo desde que alguém a elogiou. — Você é nova por aqui?
— Me mudei por causa de um emprego. — Love assentiu, embora não conseguisse imaginar que tipo de emprego traria alguém para uma cidade como Madre Linda. — E você? Sua loja parece nova.
— Quer dizer, vazia? — Ela riu levemente. — É, mais ou menos. Estou aqui há alguns meses, mas tinha um recém-nascido em casa, então.
— Sem tempo para socializar com pessoas que fazem fotossíntese ao invés de comer comida de gente?
Love bufou.
— Tipo isso.
— Eu sou a , aliás. — A estrangeira se introduziu, dando mais uma mordida no brownie, antes de continuar em um tom de voz apologético. — Desculpa se parece que eu julgo muito a cidade, é só que… Parece difícil conhecer pessoas aqui. — riu sem graça e desviou o olhar, como se estivesse envergonhada em admitir aquilo. Love com certeza conhecia aquele sentimento. De uma maneira peculiar, era bom saber que ela não estava enlouquecendo sozinha. — Essa é a conversa mais duradoura que eu tive em duas semanas sem ter que mencionar shakes de emagrecimento.
— Acredite em mim, eu entendo. Madre Linda pode ser… complicada. Especialmente quando você é mãe. — Para dizer o mínimo. — Você trabalha como nutricionista?
— Professora de natação para crianças. — Ela terminou o brownie, amassando o papelzinho e colocando no centro do prato.
— Que legal.
— Olha, tenho classes para todas as idades caso você esteja interessada. Temos aulas com ou sem os pais, em conjunto, particulares. E tem uma aula experimental de graça — explicou, à medida que apanhava a sua bolsa e se colocava de pé, agarrando a sacola em seguida. A morena enfiou a mão na bolsa e tirou um panfleto azul de lá. — Não diga que eu te disse, mas tem muitas mães que levam as crianças para lá.
— Eu vou dar uma olhada. Obrigada. — Love aceitou o papel com diversos desenhos infantis e acompanhou sua primeira cliente até a porta.
Talvez tivessem pessoas suportáveis em Madre Linda no final das contas.
Madre Linda era a cidade pacata mais fodida do mundo.
Como eu estava aqui há menos de um ano e já tinha quase tido um caso, entrado na terapia, enterrado uma pessoa, desovado o corpo dessa pessoa, enterrado a pessoa de novo e agora o meu filho, que com certeza me odeia, não parava de chorar?
Porra.
— Henry, por favor. Eu te dou qualquer coisa, qualquer coisa. — Gemi em frustração quando meu apelo só causou uma crise de choro ainda mais alta. — Eu já troquei a sua fralda, já te dei banho, você já comeu e já arrotou. — Ergui meu filho e encarei seus olhos castanhos, tentando decifrar o que ele queria. Até ler livros espanhóis do século dezenove era mais simples que ser pai. — O que mais você quer?
E, é claro, ele só gritou ainda mais na minha cara.
Parece que a resposta é: eu quero qualquer um que não seja você.
O barulho da porta destrancando me fez suspirar de alívio, mas aquela sensação durou apenas um segundo. Antes da terapia, se a Love estava em casa, nós sempre acabávamos brigando. Até mesmo o silêncio desconfortável acabava se tornando uma briga sobre o motivo do silêncio desconfortável sequer existir! Porém, com a terapia e os exercícios, agora tudo era tranquilo.
Isso era bom, não era? Trocar todos aqueles assassinatos e caos pelo cotidiano calmo de uma cidade que parecia um subúrbio cercado por árvores. Era o que o Henry precisava, mesmo que isso me causasse tanto tédio que eu preferia morrer.
Pelo menos não tinham mais cadáveres.
— Oi, adivinha o que aconteceu hoje. — A minha esposa adentrou na sala de estar com um sorriso aberto, do tipo que eu costumava ver quando ela trabalhava no Anavrin.
Interessante .
— O quê?
— Não é assim que a adivinhação funciona — ela respondeu em um tom zombeteiro, abandonando as sacolas na bancada e se aproximando para pegar o nosso filho. — Oi, Henry. Sentiu falta da mamãe? Sentiu? Eu também senti.
Ali estava. A Love maternal que eu conhecia. A mulher por quem eu me apaixonei. A mãe do meu filho.
Genuinamente animada. Animada até demais.
Ah, porra.
Ela tinha matado a Sherry?
— O que aconteceu?
Por favor, não tenha esfaqueado a cara da Sherry.
— Eu tive a minha primeira venda na loja. — Não consegui impedir um suspiro de alívio pela segunda vez no espaço de quinze minutos. Ainda bem. — E depois dela, mais pessoas começaram a entrar e pedir!
— O efeito rebanho. Só basta uma pessoa mostrar que doces não são veneno e as outras vêm correndo. — Sorri para Love. Aquilo era bom para ela. E se era bom para ela, era bom para o Henry, e para mim.
— A Shanon, aquela mulher do crossfit, até postou no Instagram. — Minha esposa se vangloriou da sua vitória do dia, balançando Henry que, é claro, já tinha parado de chorar.
— Que bom, Love. É sério, estou feliz por você.
— Obrigada. — Ela se inclinou e me deu um selinho. — Eu estava pensando… E se colocássemos o Henry na aula de natação?
Franzi o cenho para aquela sugestão inesperada. Até no mundo das crianças ricas e mimadas não era cedo demais para atividades extracurriculares que só servem para ajudar a entrar em um colégio renomado que aceita suborno dos pais riquinhos em troca de um boletim?
— Não acha que é meio cedo para isso?
— Não, não. É uma aula para crianças. De todas as idades.
Dei de ombros, encarando Henry por alguns segundos antes de voltar meu olhar para Love.
— Eu não sei, Love. Parece perigoso.
— Acha que eu colocaria nosso filho em perigo? — Ela me acusou, usando um tom de voz que eu já não ouvia há muito tempo. Não brigávamos mais como antes, graças à terapia. E, antes que uma discussão iniciasse, Love respirou fundo, como se estivesse se lembrando do que a terapeuta disse. — Olha, esse seria um bom jeito de você ter uma conexão com Henry.
— Eu e o Henry temos uma conexão, só estamos melhorando — retruquei. Aquilo era verdade. Eu podia ainda não ter a melhor relação com ele, mas estávamos melhores que antes.
Ela suspirou, acenando com a cabeça.
— Eu sei, eu sei. Mas eu realmente acho que isso pode ajudar. — Minha esposa sentou-se do meu lado no sofá, me olhando com uma clara súplica em seus olhos. Eu realmente não queria aquilo, mas o que um bom marido faria nessa situação? — Olha, eu conheci a instrutora. Ela se mudou para cá por causa do emprego, então é profissional. Eu posso chamar ela aqui para você conhecer e nós poderíamos ir à primeira aula juntos.
Ele cederia, o marido perfeito cederia. Mesmo que isso significasse colocar o nosso filho em uma piscina com uma estranha e arriscar aumentar o índice de afogamento em Madre Linda.
Debrucei, descansando os braços nas minhas pernas, enquanto me virava para encará-la, pronto para aceitar aquela proposta absurda. Love parecia ansiosa, como se aquilo fosse muito importante.
Parece que é um pouco mais que apenas aprofundar a minha conexão com Henry.
Será que ela acha que nós dois não estamos próximos? Não, não acho que é isso… Nós transamos ontem e até dormimos de conchinha. Sem contar com o beijo de bom dia hoje de manhã.
Então, o que poderia ser?
— E a me disse que muitos pais se inscreveram. — Ela adicionou, após o meu silêncio, que provavelmente passou a ideia de que eu ainda estava cogitando a ideia.
Nunca pensei que apenas cruzar os braços e esperar poderia funcionar com a Love.
Mas espera, o que você tinha dito? Eu não lembro desse nome na festa da Sherry.
— ? — Arqueei a sobrancelhas em curiosidade. O nome parecia rolar pela minha língua de maneira fácil, quase natural. Morando em New York, conheci pessoas com quase todos os nomes e pseudônimos possíveis, mas ? Parecia ter saído direto de um clássico.
— A minha primeira cliente e instrutora de natação — a senhora Quinn-Goldberg explicou, e eu assenti. Por isso ela não estava na festa, ou fiasco, dos gêmeos da Sherry no último final de semana.
Honestamente, eu nem conhecia essa e já tinha inveja dela.
Eu preferia ter cortado as minhas bolas fora do que ter tido que socializar com um bando de riquinhos que escondem seus privilégios com um falso senso de humanidade e se alimentam da vida alheia. Privilégios esses que são provados na saída da festa, porque eles te entregam um Ipad de lembrancinha depois de passarem horas te julgando e comendo um monte de coisa feita de ar.
Ah, . Você não sabe a sorte que tem por não ter ido àquela festa estúpida.
E tudo isso enquanto a Love tentava desesperadamente entrar no clube das mães socialites.
Para. A Love está tentando pelo Henry. Isso é uma coisa boa. É a nossa família.
Mesmo que para isso tenhamos que conviver com a porra da Sherry e o marido movido a esteroides.
— Ah. Tudo bem — respondi, sem ter ideia de como continuar aquela conversa. O problema de estarmos sob a bandeira branca é que de vez em quando não tínhamos sobre o que conversar.
— Ela é bem simpática.
Viu? Agora você está tentando puxar assunto sobre uma mulher que eu nunca vi na vida, porque você sabe que não temos mais o que dizer pelo resto do dia .
— Mais que a Sherry? — perguntei, em um ar brincalhão, arrancando um rolar de olhos com afeição de você.
— Todo mundo é mais simpático que a Sherry. Ela nem entrou na minha confeitaria hoje.
Assim que abri a boca para responder, meu alarme tocou, anunciando que eu tinha que ir para o trabalho na biblioteca.
Salvo pelo gongo do trabalho.
— Tenho que ir para o trabalho. — Inclinei-me e beijei seus lábios rapidamente. — Eu te vejo mais tarde.
— Tudo bem. — Love assentiu para si mesma, se levantando ao mesmo tempo que eu. — Quer camarão ou parmegiana para o jantar?
— Qualquer um está bom para mim.
Minha esposa me acompanhou até a porta, sua testa enrugada, como se ela estivesse tentando lembrar de alguma coisa. Sua expressão pensativa se dissipou em um sorriso quando abri a porta.
— Ei, Joe. Eu te amo.
— Eu também te amo.
Mesmo que o casamento seja a coisa mais monótona que nós dois já fizemos juntos.
Claro, era melhor do que os estandes intermináveis de livros fajutos de autoajuda que se espalhavam por Los Angeles como uma praga, mas não se comparava com as diversas livrarias e bibliotecas que New York tinha para oferecer.
Sendo justo, o estabelecimento era bem aconchegante. E sem dúvidas mais do que eu esperava de uma cidade famosa pela monotonia perfeita para criar filhos. Já para os livros... Eles estavam tão desorganizados e jogados ao acaso, parecia que nem se importavam com o estado deles.
Sinceramente, era um desrespeito aos autores.
Como essa gente achava que era tão melhor que todo mundo se nem sabiam como cuidar do seu bem mais precioso?
Prateleiras e estantes perto das janelas, deixando os exemplares sob o sol. Uma árvore enorme com as edições infantis misturadas com infanto juvenil. Os livros famosos escondidos nas profundezas dos corredores, onde a maioria dos adolescentes da cidade iam para… Bom, a única coisa que adolescentes queriam. Além da ausência de alguém para restaurar os exemplares clássicos.
Apesar de tudo isso, ou por causa de tudo isso, trabalhar na Biblioteca de Madre Linda era bom. Eu amava livros e sabia como tomar conta deles. Passar o meu tempo ali era ótimo, eu podia simplesmente me concentrar em algo que eu era bom e genuinamente me fazia bem.
Como cortar a grama.
E, temos que admitir, eu estava gostando de poder consertar alguma coisa.
Sem contar que assim era mais fácil arranjar o dinheiro da Ellie.
Apesar da Marienne não ser fácil de enganar, nem ela poderia lembrar de todos os títulos presentes na livraria da cidade, cuidar da sua filha e manter os seus funcionários na linha – tudo isso enquanto planejava algum evento beneficente que fosse fazer os riquinhos se sentirem intelectuais e arrecadar dinheiro para novos clássicos e coletâneas de receita.
Isso era bom, ótimo. Eu me divertia assim, confortável com minhas tendências introvertidas no único lugar sem gente pretensiosa. Cercado por livros, estandes enormes de madeira, pessoas interessadas em algo além de si mesmas e esse perfume.
Espera, perfume?
Sim, esse perfume era… Exótico? Tropical? Parecia com o cheiro do oceano em um dia de sol, junto a um pouco de laranja. Talvez o shampoo fosse uma fragrância e o perfume outra.
O cheiro era delicioso, atraente.
Eu me virei calmamente, curioso sobre a pessoa que poderia juntar duas coisas tão diferentes e tornar elas simétricas. A freguesia parecia a mesma de sempre, os mesmos pais, os mesmos jovens… Exceto por uma pessoa. Uma mulher que estava de costas, seu cabelo preso em um rabo de cavalo.
Decidi me aproximar um pouco. Eu não estava caindo em velhos hábitos, só estava curioso para saber de onde vinha aquele cheiro. Isso não é algo que o velho Joe iria atrás.
Tomo passos cuidadosos atrás de você. Eu não quero te assustar. Você parece estar ocupada, mas ainda assim teve tempo para entrar aqui. Eu não consigo alcançar muito de você dessa posição, contudo sei que seu cabelo é ondulado e sua pele é como caramelo.
O antigo Joe estaria pensando em maneiras de se aproximar de você agora, mas eu não sou mais aquele cara.
Sigo de perto devagar, todo o meu foco está apenas em você, no jeito que a sua cintura se move quando você anda.
O que você quer aqui? Um livro, talvez encontrar alguém?
Você está andando com um senso de propósito que é difícil de ser fingido. Eu me aproximo só pelo seu perfume. Eu não quero saber seu nome, isso não importa.
Você está usando uma calça jeans de boca de sino, estilo dos anos setenta. Deve amar coisas vintage. Eu não consigo ver seu rosto, embora aposte que você é bonita. Você não está usando pulseiras, mas tem brincos de argola enormes que espiam entre as mechas do seu cabelo, e suas botas batem no chão, mesmo que você esteja andando de cabeça baixa e cautelosamente. Quase parece que você sabe que vai chamar atenção, mas tenta escapar disso.
Por quê?
Não, não. Para, Joe. Isso… isso não é mais só uma curiosidade. Você está pensando demais.
Não podemos ter outra Natalie. E a Love é sua esposa. Você é casado.
Meu celular vibra como algum sinal do universo, a mensagem de texto de Love aparecendo na tela parece um aviso silencioso para a minha própria consciência. Uma imagem do Henry, sentado na bancada da cozinha, com a boca cheia de algo laranja ao lado de um texto: parece que alguém ama camarões tanto quanto o papai.
E sua mulher é uma esposa dedicada, que está cuidando do seu bebê e cozinhando o jantar, digo a mim mesmo. Eu tenho que parar com isso.
Eu não posso seguir você.
Você ergue a cabeça e parece procurar alguém, porém opta por andar até o balcão. Eu poderia ter te ajudado, contudo, é melhor não. Para nós dois. Você se aproxima do Dante e provavelmente pergunta algo, e ele responde com um sorriso apologético cortês. E assim, tão rápido quanto entrou, você está saindo da biblioteca com a cabeça erguida.
O antigo Joe teria te seguido. Ele teria procurado saber tudo sobre você. Seu endereço, seu nome, o que você gosta, o que você pensa.
Entretanto, eu não sou mais aquele Joe. Agora eu sou pai e marido. Eu não posso perder meu tempo com uma estranha que eu provavelmente nunca mais verei. É melhor assim, ou você irá acabar como a Candice, Delilah, Natalie, ou a Becky.
— Joe, a gente não te paga para ficar parado. — A minha chefe me tira do meu transe, revirando os olhos para o meu comportamento, antes de apontar para a árvore com os livros infantis. — Preciso que coloque as novas cópias de Dom Quixote ali. É a leitura da semana.
— Pode deixar.
Esse é um novo Joe. Pai dedicado, marido amoroso, bom trabalhador e o mais importante: alguém que não vai perseguir você e te ajudar. Eu já aprendi a minha lição.
Sempre me disseram que admiravam a minha capacidade de compreensão. Eu conseguia entender duas, três, quatro ou infinitas perspectivas de uma situação antes de ter uma opinião. Apesar de isso ser uma caraterística boa para ter empatia, também podia ser cansativo.
Durante todo esse tempo, me descrevi como sendo uma pessoa decidida. Mesmo que entendesse diversos lados, ainda conseguia escolher o que acreditar.
Ainda assim, Madre Linda era uma incógnita.
Prós: cidade calma, eu poderia parar de ter medo de ser assaltada a cada momento como antes. Um emprego sem muita competição, tinha certeza de que era a única pessoa disposta a lidar com a elite da cidade em uma piscina sem querer afogar eles. Um lugar novo, repleto de possibilidades sem ter pessoas que já me conheciam previamente para me colocarem em uma caixa. O clima agradável, árvores e lagos por todo lugar embaixo de um sol maravilhoso.
Contras: todo o resto.
Eu estava acostumada com a correria, com as noites mal dormidas, prazos apertados, o mesmo grupo de amigos, os almoços em família mandatórios nos finais de semana, as praias, casas com muros altos, até mesmo o medo constante do perigo nas ruas.
Aqui, eu estava segura de um jeito quase entediante.
E, apesar de tudo, sabia que a adrenalina chegaria mais cedo ou mais tarde.
Eu tinha que fazer essa mudança radical valer a pena. Não só por mim.
Suspirei, balançando a cabeça de um lado para o outro. Meus pensamentos acelerados não iriam me ajudar agora. Eu só precisava andar mais pela cidade, conhecer o ambiente.
Era isso! Eu iria entrar na primeira loja que encontrasse.
Parecia um sinal divino, levantar a cabeça e achar uma placa que parecia conversar diretamente comigo: Biblioteca de Madre Linda.
Tudo bem, eu tinha uma montanha de livros não terminados em casa, mas eu podia me divertir um pouco.
Adentrei no recinto, olhando ao redor com curiosidade. As pessoas ali dentro pareciam menos preocupadas e agitadas do que as do lado de fora. Sorri para mim mesma, tentando não fazer barulho com os saltos batendo no chão de mármore. Aquela atmosfera era tão aconchegante. Inalar o cheiro de páginas de livros e da madeira.
Encarei o chão, imaginando qual livro eu deveria buscar. Não tinha muito tempo antes do horário da aula das cinco, e ainda queria passar nos correios antes de ir para lá.
Talvez Fã #1? Não, eu ainda tinha que abrir meu box da Agatha Christie antes de embarcar em outro thriller. Comédia romântica? Ainda não tinha terminado Inimigos com Benefícios. Algo de romance policial? O Rottweiler De Gravata Rosa, prequel de Homens de Verdade (Não) Fazem Isso, ainda estava pela metade na minha prateleira. E se eu pegasse um livro de poesia… Melhor não, tinham vários espalhados pela casa.
Inclinei a cabeça para o lado com um grunhido, avistando uma cadeira enorme com tapetes e almofadas ao redor.
Tinham dias de leitura aqui? Isso podia ser interessante.
Procurei um funcionário para me auxiliar, imaginando que apareceria logo, pois estava sentindo o olhar de alguém me seguir, o que era normal em lojas. Qualquer vendedor estaria à espreita de um novo cliente. Todavia, ninguém veio ao meu encontro, apesar de sentir um buraco abrindo nas minhas costas com a intensidade que era observada. Provavelmente deveria estar neurótica, ou as pessoas pouco acostumadas a forasteiros. De um jeito estranho, a sensação de perigo me fez sentir mais… em casa. Deus, eu estava quase doida.
Optando por ignorar temporariamente meus pensamentos contraditórios, me dirigi até o balcão, onde um homem de cabelos castanhos estava de pé com um crachá. Dante.
— Oi, eu sou a — me apresentei, descansando os braços sob a bancada. — Queria saber, tem dias de leitura por aqui?
— Tem, sim, mas apenas nas quintas e sábados, a partir das duas da tarde — ele respondeu, com um sorriso educado.
— Eu posso me inscrever?
— Claro. Mas as inscrições só abrem no dia da leitura, aí você pode se inscrever para a semana ou mês.
— Obrigada, Dante — agradeci, andando em direção à saída. Apesar de sentir que ainda estava sendo observada, me permiti acreditar que aquilo era coisa da minha cabeça.
Pelo menos eu já tinha algo para me entreter sábado, e, de acordo com o meu relógio, sobraram quinze minutos para chegar até o trabalho. Dava tempo de comer mais uma das guloseimas que eu havia comprado.
Amanhã com certeza eu já iria passar na confeitaria da Love de novo. Os doces eram ótimos e baratos e, apesar de conversar com muitas mulheres de idade próxima à minha, Love tinha sido a única que não tentou se vangloriar da sua dieta 100% orgânica, ou da sua pequena família perfeita, ou do seu perfil com mil seguidores no instagram, ou algo do tipo.
Cidade nova, novos amigos.
Pelo menos eu sabia por onde começar.
— Aloha. — Minha sogra recém-divorciada passou pela porta com uma naturalidade de uma moradora da casa.
Quando porra ela arranjou uma chave?
— Oi, mãe. — É claro que a minha esposa não notou nada de estranho, nem mesmo quando sua mãe chamou o nosso filho pelo nome do meio e dizia a cada dez segundos que seu xamã confirmou que ele era a reencarnação do seu irmão. Sério, como é que eu me acostumei com a baboseira hippie dos brancos privilegiados que tentar suprir seu vazio existencial com superstições baratas quando a verdade é que eles são chatos pra cacete? — O que tem na sacola?
Passagens só de volta para Los Angeles para senhora paz e cristais, por favor.
— Só um presentinho para o Forty.
Viu só?
— O nome dele é Henry — eu a corrigi, sem me mover da posição no sofá: dando maçã esmagada para o Forty… Henry! Mas que droga.
Ela simplesmente revirou os olhos e entregou a sacola laranja para Love, era simples vislumbrar o sorriso nos lábios da minha esposa. Ela sempre parecia sentir uma onda de realização quando sua Dottie dava alguma coisa para o Henry, ou talvez fosse alívio por finalmente fazer algo que a senhora Quinn se orgulhasse depois de 30 anos tentando ter a sua aprovação.
Como a maioria das pessoas na cidade dourada, Love parecia entender que um filho poderia ser uma passagem de entrada para ascender em diversas maneiras, apesar do trabalho árduo e das noites sem dormir.
Pelo menos ela tinha algo com que se entreter. Virei a cabeça para o lado, encarando a grama pela janela. E eu tenho a grama, mas a grama não cresce rápido o suficiente.
— Mãe, isso é incrível! — A voz animada da minha esposa me arrancou dos pensamentos sobre jardinagem, ainda bem. O que eu estava me tornando? — Joe, olha só isso.
Love se aproximou de mim com uma sunga nas mãos. Ela era minúscula, exatamente do tamanho do Henry, em vários tons de azul e com um brasão dourado de Q no lado direito. Era só uma sunga, mas parecia custar um carro econômico em Nova Iorque.
Gente rica não sabe com o que gastar dinheiro, sério. Eles não deviam ter acesso a tantos recursos.
E o meu filho acabou de cuspir na minha calça uma maçã que custou mais de dez dólares a unidade, então, sim, eu posso ver a ironia.
— Olha, eu acho bom, mas não acho que o Henry gostou muito — eu brinquei, alçando um paninho que estava ao lado no sofá. Henry fez um barulho com a boca e bateu na própria cadeirinha, mas não gritou e nem chorou. Ponto para mim.
Minha sogra deu de ombros, sua voz era tão calma e condescendente que irritava até a Gandhi.
— Bobagem. O Forty amava essa sunga quando ele era criança.
Respira fundo, Joe. Respira.
— Aconteceu que ele não é o Forty. — Tive que utilizar cada pedaço de autocontrole do meu corpo para responder a essa baboseira sem levantar a voz. Entretanto, acho que isso não bastou para Henry, que parecia perceber a rispidez no meu tom e decidiu ir para o lado da avó: chorando e esperneando em sua cadeirinha, enquanto olhava para todos os lados, menos para mim, como se clamasse para alguém salvá-lo do lobo mau. Quando é que eu passei do mocinho, o príncipe encantado, para o lobo mau?
É claro que a vovozinha não demorou um segundo para levantar ele em seus braços. E o Henry se calou, simples assim. Ele estava brincando com o cabelo dela. Sorrindo.
Quer saber? Talvez ele seja o Forty.
— Parabéns, Joe. Sua negatividade está chegando nele. Os bebês sentem. Eles são mais sensíveis que nós. Essa atmosfera tóxica pode acabar com o sistema sensorial dele, sabe?
Por que eu sentia que ela estava prestes a me mandar engolir um cristal ou algo do tipo?
— Mãe, pode dar licença por um instante? — Antes que eu pudesse responder, Love interrompeu. Ela estava calada por numerosos e alarmantes de minutos, e me encarava com tanta desaprovação quanto a sua mãe, que era o mesmo olhar que Henry me dava antes de começar a chorar. Talvez os genes Quinn só não gostassem muito de mim.
Apesar de não parecer muito contente, a senhora Quinn acatou os desejos da filha e se retirou da sala, mas não antes de me lançar um olhar que, traduzindo, devia significar eu quero enfiar minhas pedras de purificação no seu…
— Sobre o que é isso?
Como eu estava levando a culpa por isso?
— O que quer dizer? — Franzi o cenho, não era possível que só eu achava o comportamento de Dottie estranho. — Ela…
— Ela está passando por um divórcio, Joe. E ela é minha mãe, é claro que vai dizer um monte de merda. — Love revirou os olhos e cruzou os braços, me estudando antes de suspirar. — Olha, eu sinto que isso não é só sobre a minha mãe…
— Love, qual é, ela está invadindo o nosso espaço.
— Ela também está dando o dinheiro e entendendo o luto, Joe. — Ah, o dinheiro e a culpa. Afrodisíacos dos brancos por aqui. — Olha, acho que tem mais do que você está me contando, e a terapeuta disse que precisamos colocar as nossas emoções em palavras.
— Não é nada…
Ela continuou, implacável:
— E quando você age como se não fosse nada quando eu sei que tem alguma coisa, isso me faz sentir como seu eu estivesse louca.
Seu tom de voz estava mais duro, mas eu conseguia ver que minha esposa estava tentando se controlar em nome da paz comunal. Eu tinha que dar o braço a torcer, talvez nós dois éramos lobos que estavam tentando controlar seus instintos. Era mais simples pra mim, mas Love havia matado uma pessoa em Madre Linda quando se sentiu ameaçada (descanse em paz, Natalia). Sem contar que ela sugeriu matarmos o Gil e incriminarmos o vizinho pela morte da esposa.
Ou seja, ela conversar ao invés de me dar um corpo para enterrar ou me matar durante o sono já era um avanço.
— Tudo bem. Eu ainda estou receoso com a aula de natação. — Minha esposa abriu a boca para retrucar, mas eu segurei em seus braços suavemente e continuei. — Eu sei que você conhece a instrutora, mas o Henry tem menos de um ano e eu não a conheço. Como sabemos que ela vai tomar conta dele e de mais sei lá quantas crianças em uma piscina?
Para a minha surpresa, Love assentiu.
— Eu entendo. — Ela pressionou os lábios juntos em uma linha, como se estivesse pensando em uma solução. — disse que podíamos ter aulas privadas, mas eu acho que socialização seria bom pro Henry… — E pra ela, é claro. — E pra mim, para nós dois. — Bingo.
Então, é isso que acontece nos felizes para sempre: tédio. As mesmas discussões, os mesmos problemas, o mesmo dia a dia, a mesma previsibilidade. O de sempre. Como a bebida que um velho de 50 anos pede toda tarde em um boteco, ou as aulas de matemática para crianças. O de sempre, o de sempre.
Talvez seja por isso que tantos autores usam etecétera. E isso é o que ela esconde de nós. Não é um capítulo inédito de um clássico, é só um capítulo repetido de um livro ao relento. Apenas isso. A estabilidade necessária para criar um filho saudável que faz os pais escalarem pela parede como a porra da dona aranha e quererem se jogar de lá.
Aposto que você… Não, não você. A estranha de biblioteca. É, melhor assim. Não é tão pessoal, eu nem sei o nome dela. Ótimo. Aposto que a estranha de biblioteca não seria o mesmo do sempre, como um drink tropical.
Mas isso era preciso, pelo Henry. E para ser um bom pai, eu tinha que ser um bom marido. Sem mais pensar em estranhas atraentes. E apenas sendo a minha melhor versão para os dois.
Além disso, essa também era a minha redenção. Quem disse que elas são fáceis ou até tão fáceis que se tornam difíceis?
O felizes para sempre é um tédio, mas talvez seja o que acontece quando o menino consegue a menina e não tem mais que lutar por ela a cada instante. Talvez isso seja algo bom, sem mais ansiedade ou qualquer coisa. Só duas pessoas tentando o seu melhor para criar o seu bebê.
— Podemos tentar isso. — Acenei com a cabeça, porque bons maridos têm concessões. — Me desculpa pela sua mãe. — E eles também fingem desculpas quando estão certos.
— Ela estava sendo uma vaca, não se preocupa. — Love beijou a minha bochecha. Ela sacou o celular do bolso e mandou uma mensagem para um número que eu não conhecia. Me dirigi até a pia, limpando a sujeira de maçã na minha calça jeans. Não demorou mais que alguns minutos e logo Love andou até mim sem fazer barulho, aposto que se você se aproximasse, eu ia saber só pelo barulho das suas botas… Espera. Não. Esse não é o caminho, Joe. Foco na sua família. Na sua esposa dedicada que estava na sua frente com um sorriso que poderia iluminar aquela cidade.
Eu lembro quando ela costumava sorrir assim todo dia. Será que o sorriso da estranha da biblioteca é assim?
— Olha isso! — Ela ergueu o celular para que eu pudesse ler enquanto lavava as mãos.


HOJE, 08:14
— Pergunta se pode ser aqui em casa. — Love arqueou uma sobrancelha, e eu me expliquei. — Só a primeira aula, quero ter certeza de que ela sabe o que está fazendo.
— Ela é profissional, Joe.
— Eu sei, mas…
— É o Henry, eu entendo. — Seus lábios mostraram compreensão com um sorriso, tão maternal. Love era real e a estranha literária era, assim como um livro, apenas uma fantasia. A minha mulher era tudo que alguém podia querer para a mãe do seu filho, apenas um pouco inconsequente às vezes. Mas ela estava melhorando. Ela era uma ótima mãe, mesmo tendo uma mãe de merda. E eu ia ser um ótimo pai, mesmo com o meu pai de merda.


HOJE, 08:23
De alguma maneira, aquela era a coisa mais interessante que tinha acontecido: uma aula desnecessária de natação infantil, com uma estranha, em uma piscina que nunca usamos.
É mais um capítulo em felizes para sempre, repleto de tédio e estabilidade.
Se pelo menos eu pudesse sentir o cheiro do seu perfume mais uma vez…