━Autora Independente do Cosmos.
Encerrada ✔️
Chegaram a dizer que uma médium seria uma boa ideia. Que seu futuro ainda guardava muitas bençãos e conquistas para que fossem jogados fora por causa de uma fase ruim. Afinal, para quem olha de forma superficial, toda tristeza é um período passageiro, não importa o quanto seja autodestrutivo.
Na maioria dos dias, não importava o que diziam. Ainda mais quando ele engolia aquelas pílulas coloridas e se desligava da realidade.
Contudo, naquele dia em específico, estava sóbrio — ou tão sóbrio quanto se pode esperar de um cara que costumava pecar pelo exagero. Não foi ideia sua, para começo de conversa. O vento que soprava do lado de fora não passava de uma brisa mansa e imperceptível, mas que o faziam tremer da cabeça aos pés quando o atingia. O trânsito na avenida principal era mais calmo do que o esperado numa noite de sexta, e mesmo assim, os barulhos da buzina ao longe chegavam aos seus ouvidos como se estivessem ao seu lado, fazendo de propósito, deixando-o com vontade de socar qualquer coisa que se mexesse.
Ele não estava apenas sóbrio. Estava sóbrio há 48 horas, o que era o equivalente a mergulhar nas profundezas do inferno quatro vezes.
Inconscientemente, não era sua intenção. Ele não tinha visitas a receber, entrevistas de emprego, relatórios a preencher, consultorias ou qualquer interação social que fosse motivo o bastante para que acalmasse os nervos e abrisse a janela da vida real. Muito menos era porque pretendia ir atrás dela. Isso não podia ser considerado nem de brincadeira.
O motivo que o deixou à mercê dos demônios da era digital e das fatalidades dos noticiários matutinos tinha sido simples e puramente efêmero. Um pico de consciência, um torpor de responsabilidade — esse tipo de coisa que rege a vida adulta, mas que, para , tinha perdido o sentido. Depois que ouviu, com o restante de discernimento que lhe restava antes de apagar mais uma vez pela aquarela de pílulas, que Brad Müller tinha sucumbido às mãos justiceiras da população carcerária do Kansas e tido uma morte lenta e dolorosa, seus olhos quiseram se abrir e puxar o resto de atenção que ainda pudesse ser encontrada. Aquele cretino. Aquele cretino tinha mesmo tomado seu lugar nas chamas do inferno.
Brad Müller era forte o bastante para sugar de qualquer vórtice mental conduzido pelas drogas e pelo álcool. Também era o principal motivo que tinha metido o rapaz nessa, o que tornava a notícia da morte muito mais atenuante.
A razão do poço escuro e fedido onde atualmente residia acabou de morrer. Isso quer dizer que deveria mudar? Era seguro voltar ao mundo real agora? Ele poderia abrir as janelas, sentir o sol da manhã e parar de ver os fantasmas?
Há 48 horas atrás, foram as reflexões que o fizeram juntar todos os pacotes e esvaziá-los privada abaixo. Parecia uma decisão de mudança convincente. Ele realmente acreditou que Brad era o único motivo de sua desgraça, e que na Terra não existia lugar para que os dois coexistissem em felicidade plena.
Mas o vazio não foi embora. Nem a angústia e o terror noturno. Ele acordava como um trapo todos os dias, quando conseguia fechar os olhos e dormir. A realidade não passava de um manto de desespero.
Pensar que era forte pareceu uma besteira. Nada em seu corpo prestava depois de tantas cores descendo goela abaixo, nada em sua mente era consistente o bastante depois daquele trabalho e nada em seu coração florescia depois que ela foi embora. Era simples e cruel. Levou apenas 48 horas para que Suh percebesse que não tinha mais volta. Os velhos tempos estariam presentes apenas no branco, verde, vermelho e azul inseridos num frasco antes estocado. E agora ele não tinha mais nenhum.
Os pneus cantaram quando estacionou em frente ao Holoceno naquela noite. O verde neon da placa indicativa o deixava com dor de cabeça. Seu nariz apresentava a irritação de um cheirador de cocaína, e a abstinência guiava seus passos trôpegos para dentro da claridade, sem ao menos notar o cheiro agradável da pizza especialidade da casa, ou até mesmo do sorvete de baunilha que ele costumava gostar antigamente. Os cheiros ativariam memórias significativas, certamente, se ele não estivesse tão maluco por outra coisa.
Ele piscou os olhos várias vezes ao chegar ao balcão, aguçando a visão para, no mínimo, reconhecer quem estivesse ali. O rapaz de boné para a frente e avental vermelho parou de mascar seu chiclete no ato e arregalou um pouco os olhos pela aparição repentina. cheirava a cigarro, a um caminhão de cigarros.
— Você já está aqui? — o garoto falou alto no início, levantando-se da onde rabiscava desenhos desconexos de pênis e releituras de Marilyn Monroe e olhou ao redor em seguida. Ninguém pareceu dar a devida atenção. — O que você faz aqui? — perguntou, em um tom mais baixo e ligeiramente furioso.
apoiou um cotovelo no balcão, fechando os olhos com força pelas oitavas a mais que a voz de Randle adquiriram ao chegar em seus ouvidos.
— Preciso delas.
— Te vendi um estoque inteiro há duas semanas.
— Preciso de mais delas. — disse, imperativo. Seus dentes trincaram em uma pontuação final. Os olhos eram de alguém que pularia naquele balcão e vasculharia os bolsos do funcionário se ele não desse o que queria.
Randle engoliu em seco, e logo depois revirou os olhos em derrota. Era noite de sexta, o Holoceno estava lotado e, por mais que sempre deixasse os avisos por aí, a clientela nem sempre aparecia ali para comprar pizza. Com um suspiro, ele virou as costas e caminhou para dentro da cozinha quente e engordurada, levando as mãos aos bolsos como quem buscava algo perdido.
A ansiedade crescia no peito de como um tsunami que se formava ao longe. Seus olhos ardiam, sua cabeça latejava como se usasse uma coroa de espinhos e ele sentia o corpo mais fraco do que nunca. Seus dedos batucavam em cima do mármore, sua perna direita balançava em inquietação e pequenas gotas de suor brotavam na palma das mãos. Ele mantinha o maxilar trincado para o caso de soltar um grunhido sem querer, o que atrairia atenção desnecessária. Tudo o que menos precisava era de olhares furtivos em cima de si.
Mas pensar em olhar o fez automaticamente dobrar a cabeça para reparar no lugar. Seja para distrair a mente pela demora de Randle ou um movimento involuntário de sua agonia, o arrependimento o atingiu da mesma forma, igualando-se a um soco no estômago. Um belo golpe que o faria colocar tudo para fora se tivesse comido algo nas últimas 24 horas.
O grupo de três amigos estava sentado há alguns metros em uma mesa grande e retangular. A pizza no centro já havia sido devorada há muito, e algumas latas amassadas pelo tampo denunciavam a noite de folga em conjunto. Pierina, a garota, já estava olhando em sua direção. Era a única que estava virada para o balcão, e não escondeu o desgosto no olhar nem por um segundo. Era ácido e prepotente, claramente parcial, mas em defesa de , ela o olhava daquele jeito desde que o tinha conhecido.
Quando os outros dois rapazes notaram a estranheza e se viraram também, a vertigem voltou a tomar conta do cérebro estraçalhado do homem. Ele não foi capaz de sustentar os olhares por muito tempo. Antes de se virar novamente para o balcão, suas pernas tremiam ainda mais em um pedido desesperado para saírem correndo, para fugirem antes que as lembranças voltassem e ele desabasse ridiculamente ali, na frente de todos aqueles rostos estranhos. Um alívio imensurável foi sentido quando Randle reapareceu, ainda com as mãos nos bolsos, sentando-se no mesmo lugar casualmente como se nunca o tivesse deixado.
Em um movimento sutil, o garoto puxou um embrulho de pano batido, amarrado em um barbante puído e sem graça, como uma versão pobretona do recipiente da pedra filosofal. agarrou-o com velocidade, enfiando-o no bolso da jaqueta antes mesmo que alguém piscasse os olhos.
Sem dizer nada, puxou a carteira de algum lugar dos jeans e jogou as notas sem olhar. Cada ação estava sendo realizada com mais rapidez do que o habitual, mostrando a exasperação de um viciado perdido. Randle franziu o cenho, imaginando o que poderia ter acontecido ao seu cliente para que detonasse o estoque de um mês e ainda assim parecesse ainda mais agoniado do que antes.
O que Randle não via eram os olhos por trás de . As vozes que cochichavam da mesa, que o lançavam acusações e ódio, as lembranças de uma vida feliz que estavam sentadas bem ali, comendo pizza e bebendo Heineken.
— Fica com o troco. — disse , já se preparando para sair.
— Ei, espera aí. — o outro pediu, colocando-se de pé. Em um segundo, andou até a pequena abertura da cozinha onde os pedidos de delivery eram cuidadosamente empilhados um em cima do outro e puxou uma caixa intacta de pizza, erguendo-a para o homem com pressa. — Devore alguma pizza, pelo menos. Vai fazer eu me sentir melhor.
riu em sarcasmo. A ideia de como devia estar parecendo de repente foi engraçada. Ou o tanto que andar por aí como um homem morto pudesse ser.
— E pode ser que eu me sinta pior, mas quem liga pra essa merda?
Ele deu de ombros e aceitou a gentileza.
Os passos pesados deslizaram novamente para a saída. A voz de Randle soou mais uma vez por suas costas, no tom animado e profissional usado com a clientela habitual:
— Até a próxima, detetive.
ergueu os olhos para o sorriso debochado com consternação. E depois, com relutância, encarou a mesa de memórias há alguns metros. Não demorou muito até que a queimação no nariz aparecesse e ele fosse embora como um gato assustado.
Ao fim da refeição, Jon havia tirado todas as cascas de ferida provocadas pelos ensaios de balé e teria tirado as de Manny também se ele deixasse. As do amigo eram provenientes dos treinos de boxe, e um pouco de escaladas ocasionais que se metia junto a um grande grupo onde a maioria dos membros se conheceram durante as sessões do AA. Pierina apenas bebia delicadamente sua cerveja, contabilizando as calorias ingeridas em cada pedaço de pizza e em como tomates em cima de pimentões serviam de algum gatilho criativo para um novo esboço artístico em seu portfólio.
A conversa entre os três normalmente era despojada e divertida. Cada um deles tinha sonhos diferentes, mas a mesma determinação em segui-los. Jon, o bailarino; Manny, o lutador; Pierina, a artista; e , a cientista. Os quatro amigos que formavam um quadrado perfeito. Agora tudo estava desigual.
E a culpa dessa quebra na ordem mundial vinha diretamente do homem arruinado que entrava furtivamente pela porta da frente do Holoceno.
Um a um, eles o notaram. A primeira foi Pierina, que reconheceu os trejeitos das costas e a forma debandada do homem, que mesmo naquela condição, ainda emanava certa autoridade. Ela desejou intrinsecamente estar errada, porque o dia estava relativamente bom, e estragá-lo com a imagem de Suh parecia uma piada da mais terrível. Quando viu o rosto virar-se de perfil e, finalmente, os olhos esquadrinharem todo o lugar até pousarem nos dela, um aperto de rancor trouxe de volta tudo que aquela fisionomia representava.
Ela o encarou por tempo suficiente para que os outros amigos percebessem e se virassem na mesma direção. Intensidades diferentes de raiva se instalaram naquela mesa larga, mas no final, tudo se tratava de sentimentos ruins. Era a única coisa possível a se sentir sobre : aversão. Inimizade. Rancor.
— Não acredito nisso… — Manny cravou os olhos na caixa de pizza vazia e mordeu os lábios em um exercício interno de calma. Diferente do julgamento popular, lutadores eram umas das pessoas mais calmas do mundo, especialmente os alunos da academia Yancy, onde a meditação e técnicas de respiração diafragmática eram parte da regra para a permanência nas aulas. Manny era sereno, e era uma das poucas pessoas no mundo que conseguiram manchar isso.
— Aquele filho da puta… — Jon também não estava nada tranquilo. Seus punhos se fechavam por cima da mesa, desejosos pelo golpe no qual foram impedidos de dar no rosto daquele cretino. Pierina era a que aparentava estar mais calculista, o que era incomum. Ela pensava em , o que era suficiente para que não metesse os pés pelas mãos.
— Se acalmem, vocês dois. — seus dentes trincaram. Algumas respirações pesadas depois, o homem começou a caminhar para fora. Ganhou uma caixa de pizza e finalmente deixou o lugar. Pierina cerrou os olhos para o garoto do balcão, imaginando quais drogas estavam em seu arsenal e se eram tão interessantes assim para transformar um homem como Suh em um zumbi ambulante.
Pela extensa janela de vidro, ela o viu sentar no banco do motorista de seu Jeep chique e caro e colocar algo para dentro de uma vez só, engolindo no seco, dando a partida logo depois.
Jon voltou a cutucar as feridas. Pierina mandou que ele saísse lá fora para se acalmar e que Manny o acompanhasse para cuidar dele, mas nenhum dos dois obedeceu. Estavam indignados pela presença vista, mas nenhum dos dois olhou por mais tempo que Pierina, virada para a frente. Nenhum deles observou bem o estado do rapaz — não que fossem se importar.
— Vou pedir a conta. — a garota encerrou o assunto, levantando um dos braços para um garçom qualquer e abaixando-o de novo. Ela tentou se lembrar qual era o grande assunto que acontecia antes de ter a visão abalada pelo cara, mas não sabia se faria sentido voltar a falar da cobertura de cogumelo quando o passado tinha reaparecido de uma forma tão brusca.
Coçando a garganta, ela se aprumou no banco e suspirou.
— Ele tá um lixo.
Jon riu fraco, brincando com as bordas da caixa de papelão.
— Que bom. Não vou desejar que ele recupere a energia depois de tudo que fez. — ele disse em voz baixa, mas que era suficiente para ser ouvido, apesar da música brega de fundo. Ele estudou o braço em que havia se livrado das próprias cascas. A pele por baixo parecia irritada.
Manny ergueu o olhar e espiou sobre o ombro, provavelmente confirmando a partida do sujeito vil, que tinha sido motivo de um verdadeiro inferno na vida de sua amiga, que viu na partida definitiva a única solução para se livrar das lembranças ruins.
— Ele não vai se recuperar tão cedo. Soube que pediu demissão depois do caso, mas o capitão não concedeu. Disse que ele era importante demais e inteligente demais… Mas olha o que isso o causou. — Manny suspirou, sentindo o clima mais leve a cada segundo. — Agora ele vive em algum tipo de licença provisória, mas que vive sendo prorrogada. Às vezes sinto pena dele.
— Ora, por favor. — Jon arfou, abrindo um sorriso venenoso. — Sei que ele passou por problemas, mas isso não era nenhuma desculpa para que tratasse da forma que tratou. Jogar problemas daquele tamanho em cima de uma pessoa que o amava foi covardia, oportunismo. Desde que o vi pela primeira vez, eu sabia… Sabia. — mordeu os lábios, sentindo a irritação crescer e tentar se acalmar ao mesmo tempo. Aquele assunto doía mais nele do que nos outros dois amigos. Ele quem tinha perdido a chance com . Ele quem tinha chegado depois. E ele quem a tinha perdido de vez, mais do que , mais do que qualquer um.
Pierina baixou os olhos e Manny recostou-se na cadeira, esfregando as mãos cuidadosamente nas bermudas de malha.
— Sei que você sabia. Você sente algumas coisas a mais, Jon, sempre sentiu. — Manny deu de ombros, enquanto observava o amigo ainda mexendo no papelão. — Mas ainda sinto pena do cara. Ele tinha um futuro brilhante na polícia, ajudou muita gente com uma justiça coerente, prendeu uns bandidos perigosos e tudo isso de forma bem rápida. Porque ele era igual a nós, um companheiro correndo atrás dos seus sonhos. — ele suspirou profundamente, e Jon diminuiu o ritmo dos dedos. — Foi aquele caso que acabou com tudo. Aquele hospital psiquiátrico e Brad Müller.
Um breve arrepio tomou conta dos três amigos sentados, trazendo à mente o nome que não parava de ser mencionado no noticiário há dois dias atrás: a morte de um dos maiores assassinos de Topeka, preso em um hospital psiquiátrico há 10 anos e que desapareceu misteriosamente sem deixar rastros, sendo assim designado para a polícia e entregue nas mãos do detetive recém formado e promissor Suh. Um dos maiores casos do Estado, agora sob sua responsabilidade.
O que passou durante aqueles 3 meses não foi divulgado por nenhum veículo midiático. O terror psicológico ao qual foi submetido, recebendo ameaças e jogos macabros de uma pessoa que o observava constantemente enquanto ele mesmo parecia estar correndo em círculos em uma angústia sem fim. A sensação de que Brad ainda estaria atrás de si quando olhasse para um espelho, ou quando tentasse dormir, ou até mesmo quando se permitisse um pouco de calmaria era desesperadora e obscura. Nada disso foi computado depois, no final. A única coisa que estampou os jornais era o rosto exaurido de e a vitória da polícia sobre a captura de Brad Müller, escondido sob as profundezas do mesmo hospital, um louco que se amarrava e sentia prazer em ser controlado. “Venha, , venha me pegar e me prender de novo, eu imploro, não desista da caçada, por favor…”
“Eu nunca o deixarei desistir.”
“Precisa ser você, …”
“Farei com que seja você.”
No fim, foi, de fato, Suh. Ele ganhou uma promoção, o maior aumento já visto na história de Topeka e um bom tratamento psicológico oferecido pela prefeitura. Mas as perdas foram, de longe, muito maiores do que os ganhos.
Ele amava mais do que todas as coisas que achou que amava, e percebeu isso quando não a encontrou em casa um pouco depois da notícia. Apesar disso, se sentia incapaz de ir atrás de dar alguma explicação. Ele não tinha explicações, não tinha motivos para tratar a garota do jeito que tratou, não tinha como encará-la após as várias demonstrações de paciência e amor que ignorou e desprezou, não tinha mais como fingir que não estava aniquilado. Que sua mente não tinha sido corroída por palavras fantasmas e ameaças mentais e físicas invisíveis. Em uma época, ele não sabia o que era real ou fantasia. Não sabia quem era amigo ou inimigo, a diferença entre o bem e o mal. era o amor de sua vida ou uma espiã de Brad Müller? Um veículo da imprensa que o observava de perto para saber o andamento da investigação? Ela realmente o amava ou o apunhalaria pelas costas?
Por essas e tantas que o grupo de esperava vê-lo bem longe. Passar meses com um cara louco como aquele não deve ter sido fácil e, no final, não foi. Ir embora era a única opção plausível e todos eles tiveram de aceitar.
Com tudo isso, era mais satisfatório se lembrar da época feliz do início dos encontros. Jon teve seus próprios sentimentos atravessados por assim que o apresentou. Seguindo pelo discurso do amigo, um lado de Manny se sentiu culpado por estragar as chances de Jon com ela, alegando que a situação estava mais do que clara. Mas por outro lado, hoje, mesmo depois de tudo que aconteceu, ainda sentia que ele possivelmente havia salvado a amiga de ter a medula arrancada e devorada.
A conta chegou, e Pierina se apressou em pagar, deixando Jon e Manny com cenhos franzidos e expressões iradas. Era legal ter um amigo para fazer a gentileza quando não se tinha com o que contribuir, mas a constância com que aquilo acontecia beirava ao ridículo. Pierina apenas deu de ombros e murmurou um “vocês precisam mais do que eu”, sendo, mais uma vez, sem noção a respeito de dinheiro.
Assim, bufando forte, os amigos deixaram a mesa e saíram para a brisa fresca de Topeka.
Quando abriu a porta da frente do apartamento, se lembrou da palavra “detetive” saindo dos lábios de Randle.
Ele não quisera ser ofensivo, mas, analisando melhor, talvez tivesse sido. Isso o incomodaria a noite inteira. Ele tinha avisado, umas centenas de vezes, que não era mais um detetive. Que não era mais coisa alguma. Mesmo que Randle insistisse que não dava exatamente para ele tirar suas fotos do armário de prêmios da biblioteca municipal e nem da TV. Suas palavras não valiam nada. A cidade não esqueceria seu herói do ano tão cedo.
Ao largar os sapatos no batente e andar a passos largos para o centro da sala, o rapaz se jogou no sofá e respirou fundo antes de derramar as pílulas coloridas na palma das mãos. Ele as observou por um momento, cintilantes sob as luzes amareladas dos abajures. Os pacotes de energia, energia pura. As únicas coisas que o fariam olhar ao redor com menos aflição e aplacar um pouco mais o vazio que tomava conta de cada célula de seu corpo.
Engoliu três delas — de cores diferentes, é claro. Uma vermelha, que o ajudava a falar, uma azul, que o ajudava a se acalmar e uma verde que, bem, não ajudava em nada, só o deixava ainda mais louco. Ele encostou a cabeça no sofá e fechou os olhos, esperando a leveza, a mudança, a ajuda a que sempre recorreu. Normalmente, o resultado era praticamente imediato. Apenas alguns minutos bastavam para que a realidade sumisse e desse lugar ao próprio mundo de .
Porém, daquela vez, ele se sentiu ainda mais miserável do que antes. Abriu os olhos devagar, encarando o teto pálido e impecável, enxergando-o como a abertura do poço em que havia se enfiado. Ele sentiu a dormência, os olhos pesados, mas não conseguia se desligar da imensidão branca do gesso, de quão pequeno se sentia em relação ao universo extravagante que devia existir lá fora.
— Parece que não vai dar certo como antes, né? — a voz ao lado disse de forma monótona. não se mexeu, o que também seria difícil por causa do corpo anestesiado. — Você e essas porcarias…
A aparição estalou a língua. Bem devagar, girou a cabeça para o lado, ainda recostado no móvel, e viu a forma embaçada de uma mulher sentada na poltrona de couro branca, as pernas elegantemente cruzadas e uma taça de vinho em uma das mãos. Sua pele e vestido eram impecáveis, assim como sua maquiagem leve e autoritária e os sapatos caros de veludo. Ela tinha grandes e belos olhos castanhos, assim como os cabelos escuros presos em um coque requintado. A curva de seus lábios eram iguais aos dele, assim como os olhos retos e minguados, como quem ignora os problemas da vida real.
— Achou que tudo fosse melhorar quando o desgraçado morresse? — a mulher estalou a língua mais uma vez e remexeu na taça. — Não, querido. Não é assim que funciona. Você só está sendo um charlatão consigo mesmo.
Ela virou um grande gole goela abaixo. piscou os olhos, lutando para mantê-los abertos, mesmo que claramente não lhe restava muito de consciência. Se ele a estava vendo, significava que estava na beira do desligamento. Torceu o pescoço mais uma vez para cima, para a mesma paisagem branca e cálida, respirando fundo.
— Mãe. — chamou ele, em um fio de voz. Ela o escutaria de qualquer maneira. — Por que ainda me sinto tão vazio?
A mulher passou uma língua nos dentes e vasculhou o cômodo com os olhos arregalados, perplexa pela pergunta.
— Quem se importa com o vazio existencial quando se tem todo esse luxo? — retrucou, agora admirando as unhas pintadas em vermelho. — A cavalo dado não se olha os dentes.
grunhiu e conseguiu descolar as costas do encosto, olhando para a aparição com um pouco mais de rancor. Essa era uma resposta digna de sua mãe, mesmo que a tenha enterrado há mais de 6 anos. Ele podia ouvi-la e vê-la, como uma materialização de suas memórias mais profundas. Rochelle nunca foi uma mulher a quem se podia pedir conselhos. Ela só se preocupava consigo mesma e em conquistar alguém que só se preocupasse com ela.
Ele baixou um pouco a cabeça e viu de relance a comanda de pizza escrita à mão na caixa dada por Randle. O pedido de outra pessoa. De acordo com a caligrafia redonda, o nome da garçonete era . Ele deu uma risada amarga e dolorosa, e lutou para se levantar.
— Ela podia ter incluído um número de telefone, assim você teria realizado um de seus dois desejos. — disse Rochelle, colocando os dentes em uma cutícula. a olhou em confusão. — Não lembra? 1) Ligar para ; 2) Dormir com . Não precisa ser tão específico.
Ele revirou os olhos e cambaleou até a cozinha, coçando os olhos ainda em tentativa de mantê-los abertos.
— Vou tomar uma dose, por favor, vá embora.
— Vou embora assim que você apagar. Esqueceu? Eu moro nas pílulas. — sussurrou de forma divertida. puxou uma garrafa da geladeira, tendo uma breve visão da falta de mantimentos que tinha e da fome que ainda não aparecia. Sem nada no estômago, aquela dupla poderia ser muito ruim, mas a mente apagada não o deixava se importar.
— Não quero que você me encontre. — falou enquanto se virava para a mulher, já parada ao seu lado.
— Então encontre a si mesmo, querido. Acha que conseguirá isso desligando tudo sempre que pode? — ela deu de ombros e ele revirou os olhos, dando um gole no líquido gelado e caminhando de volta para a sala. — Algumas partes do vazio são menos perigosas de se associar do que outras. Lembre-se disso!
não estava mais ouvindo. Ele já não escutava aquela mulher mesmo antes de morrer de câncer. O detetive apenas engoliu metade da cerveja e se jogou no sofá, sentindo o efeito tomar conta de seu corpo de forma mais rápida, mais agitada. Estava avançando contra ele, tomando seu espaço.
Antes de fechar os olhos de vez, ele lembrou-se da frase: acha que conseguirá isso desligando tudo sempre que pode?
Quanta arrogância. Não era o plano encontrar a si mesmo. Suh era a pior pessoa que já havia conhecido e merecia estar grudado ao vazio intenso que massacrava sua mente dia após dia.
Vazio esse que já fazia parte de seu ser. E agora o abraçava de uma vez por todas.
Topeka News
11 de agosto
O corpo do detetive Suh, conhecido por sua atuação brilhante na solução de inúmeros casos complexos, foi encontrado em seu apartamento por volta das 14h. De acordo com as primeiras análises da perícia, acredita-se que a morte tenha ocorrido há pelo menos 48 horas, devido ao forte odor percebido no local.
Uma vizinha de 79 anos, que preferiu não se identificar, relatou que havia notado um cheiro estranho no corredor do prédio. Ela estranhou a situação, já que era conhecido por ser organizado, mesmo levando uma vida reclusa. "Bati com a ponta do guarda-chuva na porta dele várias vezes. Achei que ele estivesse dormindo, mas não ouvi nenhum barulho lá dentro. Ah, se eu soubesse...", lamentou a idosa.
No apartamento, foram encontrados diversos frascos de medicamentos, incluindo Adderall, além de substâncias ainda não identificadas, dispostos sobre a mesa de centro, próxima ao local onde o corpo estava. A perícia indica que sofreu uma overdose após ingerir uma quantidade excessiva de pílulas, a maioria da família dos benzodiazepínicos. Estima-se que ele tenha perdido a consciência em menos de cinco minutos.
Suh era uma figura respeitada no Departamento de Polícia de Topeka. Ele ganhou destaque nacional há três anos, após liderar a prisão de Brad Müller, o infame assassino em série que aterrorizou o Estado do Kansas por anos. Coincidentemente, Müller também faleceu há sete dias, mas as autoridades descartam qualquer ligação entre os dois casos.
O detetive não tinha parentes próximos na cidade, mas colegas de trabalho e autoridades locais lamentaram profundamente sua morte. "Perdemos um grande profissional, alguém que dedicou sua vida a trazer segurança para a comunidade", afirmou um representante da polícia.
O Topeka News expressa suas condolências aos amigos e conhecidos de Suh e deseja que ele descanse em paz.
FIM.
Nota da autora: Olá! Espero que você tenha gostado, e obrigada pela sua leitura. Até a próxima!
beijos,
Sial ఌ︎
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