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━Autora Independente do Cosmos.
Atualizada em: 24.11.2024

Antes do sol de inverno apontar o meio-dia, recebeu o envelope junto com o café-da-manhã.
O pacote era simples e, ao mesmo tempo, complexo. Um paradoxo retratado em cada ponta. Em cima, um fecho delicado e elegante, com um pequeno nó transpassando um furo no papel áspero. Embaixo, um selo comum de aeroporto, escrito “sigiloso” em letras diagonais, não combinando em nada com o código de barras desenhado avulsamente sob a palavra.
Ela ergueu os olhos para o homem de meia-idade trajado no smoking simples, com as luvas impecavelmente brancas e estacionadas por debaixo da bandeja onde tinha entregue o pedaço de papel. ergueu uma sobrancelha, esperando um parecer. Ele continuou calado, levantando uma sobrancelha de volta.
— Isso é um trote? — perguntou pacientemente, depositando a encomenda em cima do tampo da mesa larga.
— Como saberia se nem abriu? — a voz do mordomo era mansa, serena, indispensável para intervir em qualquer batalha de nervos à flor da pele.
— Por que não fizeram um telefonema? Hoje em dia, as pessoas simplesmente ligam.
— Creio que a senhorita está subestimando demais o potencial das cartas.
— É o novo milênio, Alfred. Cartas serão cada vez mais inúteis, escreva o que estou dizendo — suspirou, agarrando o corpo fino e comprido da taça recheada de suco alaranjado ao lado do cotovelo, junto de tantas outras opções comestíveis que continuavam intocadas — Quem mandou?
— Deixaram na portaria, senhorita. Acredito que seja no mínimo importante, ou Dominic não teria mantido na guarita.
— Ele joga coisas fora?
— O que for minimamente suspeito e desinteressante para a senhorita, sim.
— Hum. Bom rapaz — ela suspirou, encarando novamente o envelope misterioso em cima do prato vazio.
Alfred não falava muito, mas tinha sinais corporais específicos quando inferia suas verdadeiras intenções. Com um suspiro longo, trocou o peso de uma perna para outra e olhou para as árvores altas do jardim.
— A beleza do descarte é coisa de vários e vários milênios atrás, senhorita.
revirou os olhos, entendendo o recado com cansaço. Com os dedos ágeis, puxou o papelão e se livrou do invólucro, deparando-se com o papel pardo e os dizeres refinados em fonte cursiva, caindo umas sobre as outras a cada linha:

"Gloriosamente decorado, um convite nos chama, do carnaval da noite fascinante, aqui na terra de poderes rebeldes. Assim, batemos na porta deste mundo invertido, trazidos aqui pelo destino – quer seja o banquete da colheita da luz ou um festival de sangue. O tempo harmoniza risos e gritos. Então, de bom grado, engolimos o tempo como se fosse nosso último suspiro.”

Cara ,
É por esta humilde carta que convidamos-lhe para ser uma de nossas ilustres convidadas na cerimônia de Ano Novo – Virada do Milênio.
Se quiseres saber sobre o nosso planejamento para o milênio que está a vir, deves comparecer ao nosso encontro.

Local: Prédio da Empresa Cursed
Data: 31/12/1999
Horário: 10:00 pm

Ao terminar, teve a estranha sensação de que uma outra voz tinha lido aquelas palavras. Uma voz de sua cabeça.
Limpando a garganta, ela devolveu aquilo para o lugar de onde tinha saído, sem se preocupar com caprichos e na integridade do papel.
— Quem mandou? — perguntou, ligeiramente aborrecida, mas menos apática como a situação.
— Está perguntando para mim? — Alfred fez sua famosa voz desentendida e ingênua, típica de quem não escuta e não fala. estreitou os olhos em sua direção — Como eu disse: deixaram na portaria. Dominic guardou. E confiamos no julgamento de Dominic.
— Eu não vou — respondeu, incisiva, levantando os ombros para reiterar a decisão — É um convite para uma festa de Ano Novo, e como sabe, não posso aceitar, já que…
— Seu pai não vai voltar, senhorita — Alfred foi igualmente afiado, mesmo com o tom aveludado adquirido pelos anos e anos de experiência — Os negócios estão indo bem em Abu Dhabi. E quando um sheik te convida para participar da festa da virada, você diz que sim. Não há discussão. São milhões de dólares em jogo.
tinha perdido as contas de quantas vezes escutou aquela mesma frase. Há muito em jogo. Milhões, bilhões de dólares em jogo. Uma montanha de papel separando seu pai com suas negociações em caixas de metal dela e de sua juventude, que passava cada vez mais rápido e cada vez mais solitária dentro daquela casa grande.
A comida continuava intocada à espreita, esperando a segunda presença que deveria se sentar na outra cadeira, esta ainda mais confortável do que a que se sentava, ainda maior, ainda mais vazia do que sempre era.
Era 30 de dezembro. E os fogos do novo milênio brilhariam sobre ela e seu abandono mais uma vez.
A frustração queimou junto com a raiva, com a mágoa. Ele prometeu, prometeu, prometeu…
Aparentemente, também se tratava de uma de suas convenções: sem lucro, sem valorização, sem permanência.
Alfred notou o silêncio insistente que seguia, inundando o espaço ao redor da garota com tristeza e reflexão. Era instruído que lhe perguntasse sobre seu estado apenas se estivesse fisicamente machucada ou temerosamente chorosa, porém, as feridas internas de eram mais dolorosas do que lágrimas macroscópicas que escapavam sem razão. As dela esgueiravam-se sorrateiras, escondidas, tão solitárias quanto ela.
Por fim, o papel rugoso do envelope sofreu mais uma constrição de seus dedos quando ela se colocou de pé, agarrando-o ao lado do corpo, coçando mais uma vez a garganta antes de dizer:
— Então acho que também posso mudar os planos de última hora — afirmou, fixando um olhar confiante no criado — Feliz novo milênio, Alfred.
E andou a passos largos para dentro da casa.




Continua...


Nota da autora: Olá! Espero que você tenha gostado, e obrigada pela sua leitura. Até a próxima!


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