Independente do Cosmos🪐
Última atualização: maio/2025Novembro/1999
Bricktown era um porre, mas eu tava lá todo fim de semana. Um litoral meia-boca onde a gente sempre acabava depois de tomar umas no Millard’s, um daqueles bares onde todo mundo se sentia em casa. Eu tava bebendo desde umas cinco tarde. Porra, quanto tempo eu não fazia isso, tava até com saudade. Ali eu não tinha que dar satisfação pra ninguém, mesmo que por algumas horas, e no meio daquela galera meio perdida, eu conseguia me desligar.
Eles já tinham sacado o meu padrão quando eu bebia: começava meio Che Guevara, todo filosófico, criticando o sistema, então a gente discutia como se a mesa fosse um ministério da economia. Aí, depois de umas dez garrafas, eu virava o Mick Jagger. A gente ia pra praia, botava música alta no carro, chegava lá, molhava as canelas na água gelada pra caralho, cheia de alga e lixo, aí o PJ me abraçava, depois a Jenna e o Alex, e a gente cantava igual uns coiotes. Passava rápido, mas momento era pra ser vivido, não guardado. Momento era erva que sumia num tapa, ou você fumava logo ou perdia. E a gente nunca deixava perder.
Só que, de repente, a Jenna parou. Afastou-se da gente, olhou na direção do píer com a boca aberta. Tinha uns postes de luzes amareladas ao longo dele, fracas demais pra iluminar direito, espalhando um brilho meio fantasmagórico na água do mar. A Jen não precisou falar nada – a gente já sabia quando o lado médium dela resolvia aparecer. Mas ela falou mesmo assim, como se precisasse confirmar em voz alta o que todos nós já tínhamos entendido.
— Alguém morreu ali... e ainda não foi embora.
Pior que se a gente olhasse lá pro final do píer, dava pra ver uma pessoa sentada na beira, balançando as pernas do lado de fora. Um poste lá da ponta tava com a luz piscando, fazendo a figura sumir e aparecer. Não demorou muito pro PJ convencer a Jen de que não era um fantasma droga nenhuma, e sim uma pessoa de verdade. O Alex já tava quase se mijando.
Eu continuei olhando também. Tinha algo naquela cena. Dava pra entender porque alguém escolheria aquele lugar pra ficar sozinho sem ser incomodado.
— Então eu vou lá — o Alex avisou e saiu andando.
— Pra quê?! — eu discuti. Todo mundo parou.
— Acho que é uma garota — ele apertou os olhos pra ver melhor. Maluco era previsível. Qualquer mulher no raio de um quilômetro virava uma missão pessoal pra ele. Tava não sei há quantos meses sem transar com ninguém. — Ela tá sozinha lá, eu preciso ir!
O PJ me cutucou e eu balancei a cabeça. A gente já tava ligado na tara do Alex.
— Não vai, não — a Jenna foi se afastando da gente. — Deixa que eu vou. Me esperem aqui.
Ela saiu correndo até lá e não voltou mais. Por vários minutos. Vários. A gente até esqueceu e voltou a cantar, porque Hotel California também não tinha fim.
De repente, um grito esganiçado. Vinha do píer. O Alex nem disse nada e correu pra lá sem pensar duas vezes, o cara bebia e se achava o super-homem. Eu e o PJ fomos andando e, à medida que nos aproximamos, vimos um grupo de ratos de praia que nem nós, vadiando, mas do tipo que só eles podiam ser os ratos de Bricktown e botavam os outros pra correr. Arruaceiros. Tinha uma névoa densa de fumaça em torno deles, um cheiro infernal de crack. Os caras tavam zoando entre si, falando alto, ouvindo uma música nada a ver, e os que mexiam nos canivetes meio despreocupados deixavam um recado bem claro: qualquer um que chegasse perto demais ou chamasse muita atenção dos vigias vagando na orla, ia tomar no cu.
Enquanto isso, a Jenna, o Alex e a tal garota no maior auê, lá naquele ponto entre o píer e a faixa de areia, onde sempre acumulava espuma do mar e bituca de cigarro. Ela tava com uma perna esticada pra frente, o pé tava machucado. O Alex tentava segurar.
Eu sabia quem era aquela mina. Já tinha feito algumas aulas com ela, a última tinha sido de Tipografia. Acho que o PJ também se ligou. Ele tentou avisar sobre os ratos, mas ninguém se mexeu. A garota ficou alucinada no PJ enquanto ele falava. Foi só eu avisar que uns caras desceram das pedras e já foram botando o canivete pra fora das calças. Aí todo mundo entendeu que era pra vazar logo.
— — a Jenna olhou pra mim com a mandíbula toda travada. — Como saímos daqui?
Ela devia imaginar que eu já tinha algum tipo de plano formulado na cabeça, mas eu pensei tudo na hora.
— PJ, você dirige — tirei a chave do bolso e joguei pra ele. — Jen, você faz o que tem que fazer — fechei um zíper invisível na minha boca —, e Alex--
— O que é isso?! — a garota me interrompeu, nervosa pra caralho. Tava prestes a soltar o braço da Jenna pra me bater. — Você é tipo o Freddy do Scooby-Doo? Distribui as tarefas do grupo?
Ela tinha um sotaque que entregava fácil que não era da costa leste. Me deu vontade de rir, mas a pressão era tanta que não deu pra vacilar. Fomos nos posicionando em torno dela, e, depois de contar até três, eu e o Alex carregamos a garota, cada um de um lado – ele a segurou pelas canelas, e eu, a parte superior do seu corpo, passando os braços por baixo dos seus ombros. A Jenna tapou a boca da coitada, e abafar os gritos dela não foi exatamente uma missão cumprida. O PJ saiu correndo na frente; a gente foi atrás enquanto ela se debatia com os braços soltos, as pernas chutando o ar. Um chute quase pegou na costela do Alex.
No meio do caminho não deu pra segurar mais. Tava todo mundo rindo. Ganhamos distância e a Jenna largou a boca da garota, então correu com o PJ até a Chevy.
A caminhonete tava estacionada na rua do Millard’s. Eles entraram na cabine e eu e o Alex subimos na traseira com a garota. Porra, eu tinha esquecido o nome dela. Tava tentando me lembrar.
Quando o carro já tava acelerado na estrada, ela se acalmou um pouco. O Alex tava querendo puxar o caco de vidro da sola do pé dela e não parava de gaguejar um minuto. Fiquei doido pra rir.
— — ela se apresentou. Já tinha matado o Alex umas cinquenta vezes no pensamento. Putz, ainda bem que eu não tinha chamado ela de .
— , a gente… É que…
― Vamos precisar tirar sua meia — tentei ajudá-lo.
― Ai, meu Deus. Não, isso vai doer.
― Não tem outro jeito.
Eu só conseguia reparar em como as meias dela tavam imundas, cheias de areia e sangue. Tinha uns ursinhos que agora pareciam assassinados. Foi quando eu me liguei: ela tava sem sapatos? A mina deixou os sapatos pra trás na correria. Inacreditável.
― Tem que ter outro jeito!
Não falei mais nada. Esperei a aceitar.
— Espera — ela olhou pro meu casaco. — O que é isso no seu bolso?
— O quê? Isso? — eu tirei meu cantil lá de dentro. Um sorrisão apareceu na cara dela.
— Algum álcool aí?
— Um resto.
— Serve — ela pediu balançando o braço, desesperada, parecendo uma criatura das masmorras. Eu entreguei o cantil logo. Toda hora dava vontade de rir daquela mina. Ela virou quase tudo, aí tomou coragem, segurou o próprio pé e arrancou o pedaço de vidro tipo o Rei Arthur tirando a espada da pedra.
Basicamente eu e o Alex ficamos meio hipnotizados com tudo que a fazia. Dois panacas sem reação. Ele começou a parabenizá-la e ainda aproveitou pra arrastar a bunda pra mais perto de onde a garota tava sentada. Ficou fazendo carinho no braço dela e tudo.
A abriu um olho e soltou o vidro da mão, que quicou e estalou na lataria. Eu peguei o caco e atirei lá fora no mato que acompanhava a estrada. A mão dela ainda tava um pouco trêmula. Coitada. E o Alex continuava em cima. Era um canalha, sem discussão. O maluco botou um papelzinho no bolso do casaco dela e sonhou que ninguém ia ver. Acho que a nem percebeu nada, tava em choque ainda. A próxima coisa que ela fez foi tirar a meia do pé machucado, aí entrou num transe meio anormal enquanto encarava a ferida. Eu puxei o pé dela pro meu colo, pra despertá-la, tentando ao máximo ser delicado, caso contrário, acho que ela ia dar um berro tão alto que até a porra dos pássaros iam cair do céu.
Eu sacudi a meia pra tirar a sujeirada e depois a amarrei em volta do pé dela.
— Tem sorte que o corte não foi tão profundo — falei qualquer coisa pra ver se a acordava. Ela respirou fundo e finalmente olhou pra gente. Foi aí que ela se deu conta que o Alex tava perto demais.
— Obrigada… Mesmo — ela arranhou a garganta. — Quero dizer, ainda bem que vocês apareceram.
— Agradeça à Jenna — o canalha disse. — Tinha um bom tempo que ela tava te observando de longe, te achando muito sozinha…
— Aham. Jenna.
O Alex me olhou meio puto, mas eu não tava nem aí. Ele tornou a olhar pra pra desconversar. — O que você tava fazendo lá?
— Ah… Levei um pé na bunda de um cara que eu tava saindo há um tempo e fui chorar umas mágoas. Tô me sentindo tão estúpida agora. Mas tô melhor.
Tadinha da garota, na moral. Me senti meio mal por ter rido dela por um segundo.
— Você não tá sozinha, . — O Alex fez carinho no braço dela de novo. Um cara desses jurava que tocar o braço dos outros era o consolo supremo.
— Pelo menos não na estupidez — comentei. — A gente tava dando um show na praia. Ainda tô um pouco bêbado.
Ela riu. — Pode parecer exagero, mas acho que eu também tô... um pouco zonza... O que tinha no seu cantil?
— Everclear.
Os olhos dela esbugalharam. — Puta merda.
— Todo mundo nesse carro tá bêbado graças ao meu cantil — falei, mas ela continuou com aqueles olhões. Me peguei imaginando uma caricatura da cara da . — Menos o PJ. Todo mundo menos o PJ. Por isso dei as chaves a ele.
— Essa picape é sua?
— Sim.
— E onde a gente tá? — ela olhou em volta. — Tamo voltando pra universidade, né?
— Aham, acho que sim. Ei, PJ! Jenna! — eu gritei por eles. Então, vi a Jenna se mover pro meio do banco, daí ela se virou e abriu a janela da cabine pra falar com a gente.
— Sim? Tá tudo bem aí?
— Sim, sim, caco de vidro removido. — O Alex tava se achando o salva-vidas de S.O.S. Malibu.
— Sério? Já? Acabei de dizer ao PJ pra dirigir até a enfermaria da Oyster.
— Não precisa — a respondeu. — Tenho um antisséptico e esparadrapos em casa. Digo, no meu quarto. Fico no Belva Hall.
Fiquei enjoado. Consegui ficar enjoado só de ouvir o nome daquele lugar.
— Ah! Eu fico no Capper Hall, bem ao lado. Vamos chegar daqui a pouco, então — Jen tocou o braço dela. Parecia o Alex. — Escuta, qual de vocês dois foi o ilustre cirurgião?
Nós dois apontamos pra .
— Sério?
— Digamos que precisei tomar as rédeas — ela completou. Foi honesta.
— É isso aí, garota! Uhuuu!
Todo mundo ficou mais calado depois, principalmente a . Ela tava meio abatida, com uma cara cansada. Eu também tava exausto, pra falar a verdade. Ia chegar em casa, bater na minha cama e dormir. Tive que dar um cutucão no Alex pra ver se ele desconfiava e deixava a garota quieta, e funcionou, pelo menos. Cada um merecia o direito sagrado de ser triste em paz.
Depois de um tempo, deixamos a e a Jen no alojamento feminino, daí pulei pra cabine da Chevy e me sentei ao lado do PJ. Ele reparou na minha cara de ânsia de vômito.
— Calma, mano. Tá tão traumatizado assim?
— Nada. Tô de boa.
Ele riu. — Já tá arrependido de ter terminado com a Renée? Porra… Tem dois dias só…
— Bebi demais, só isso. Fica quietinho, vai.
Eu girei o dial do rádio até o volume estourar. Até a música encher o carro e vibrar no painel. Tava tentando ao máximo ignorar a vontade de enfiar o carro no estacionamento do Belva Hall e encarar a porta do quarto 316, essa que era a verdade. Ver a Renée. Saber o que ela tava fazendo agora. Checar se ela tava bem. Mas me obriguei a sufocar essa porra toda, porque o alívio de não ter que explicar onde eu tava e com quem num dia aleatório ainda era a única coisa me segurando.
Vira e mexe eu ficava em dúvida se realmente fiz a escolha certa. Uma inquietação que não saía da minha cabeça. Eu era um filho da puta indeciso. Daí as lembranças dos momentos bons entravam no bolo da tensão das nossas últimas conversas, e eu sabia que era melhor ficar longe.
Era difícil não me perguntar se ela também pensava em mim.
Dezembro/1999
Não tinha coisa mais difícil do que relaxar num lugar entupido de arrombado. A mansão da fraternidade da Oyster tinha arrombado até o teto, eles vazavam pelas janelas. Mas era isso ou eu passaria o Ano Novo com a minha vó vendo a contagem regressiva na Times Square pela TV. Eu juro que se a Max estivesse em casa, eu ficaria lá com ela sem ter que sacrificar minha paz naquele safári de arrombados com camisa polo da Ralph Lauren, mas até uma menina de dez anos tinha coisa melhor pra fazer. Aqueles caras da fraternidade tinham acabado de descobrir que ganharam polegares opositores, e isso foi o traço evolutivo perfeito pra que pudessem carregar garrafas de shake de proteína por todo lugar. No caso de uma festa, eles substituíam por um copo de plástico vermelho com cerveja barata.
Eu já tinha bebido umas sete daquela nojeira. Eu ia parar.
Fazia uns cinco minutos que eu tava parado no canto de uma das salas, ruminando mil pensamentos. Tinha acabado de voltar do banheiro. Eu voltei e vi a Renée de papo com o Finnegan do outro lado do cômodo. Claro. Seria ótimo se a gente não tivesse voltado semanas atrás e eu não tivesse nada a ver com isso, mas agora eu tinha. De novo. Uma hora eu ficava arrependido de terminar, outra hora arrependido de voltar. Parecia um jogo, o arrependimento só mudava de lugar o tempo todo.
Sem falar nada, o PJ chegou perto de mim e botou a mão no meu ombro. Ele roubou o copo parado na minha mão, tomou uns goles da cerveja, aí ficou balançando a cabeça em negação enquanto olhava na mesma direção que eu.
— Nem vou falar nada, maninho. Você sabe o que eu acho. Tem chá que não vale a pena.
Eu também não falei nada; se falasse, ia sair alguma merda. Eu já tava bebaço. Fiquei calculando o que deveria fazer, mas a resposta eu também já tinha. Eu nem queria fazer nada.
— Caralho. Ela sabe que você tá aqui?
Foi o PJ dizer isso e eu vi o Finnegan pegando na cintura da Renée, e ela nem fez nada. Porra, nem um passinho pra trás.
— Sabe — respondi. — Olhou pra cá uma hora.
— É só você dar um sumiço que daqui a pouco ela vem me perguntar onde você tá.
Continuei de olho nela. Ficamos os dois calados de olho nela. A Rennie não tava sorrindo, pelo menos, e comemorar isso era muito corno manso da minha parte, mas o hábito já tinha me treinado pra catar migalhas. O Finnegan tava falando um monte de coisa pra ela, gesticulando com o outro braço que devia ter o tamanho da minha cabeça. Qualquer mulher que dava ideia pro Roy Finnegan tinha duas saídas: ou terminava chupando o arrombado na pia do banheiro, ou morrendo de ódio, porque ele era muito burro. O tipo de cara que achava que coqueluche era uma DST ou que a China ficava na África.
Não dava pra saber o que a Rennie pensava, porque ela era meio apática pra muita coisa. Eu até queria perguntar, tava na ponta da língua, “Esse papo de vocês é mais um acidente que só acontece quando eu tô olhando?”, mas da última vez que eu abri a boca, desencadeei sem querer uma DR gigantesca sobre como eu não confiava nela. No momento eu só queria que a Renée tivesse um jeito mais discreto de me mandar tomar no cu naquela festa.
— Para de se torturar, mano. Ela tá regando a plantinha do seu ciúme, parceiro. Precisa te ver puto pra acreditar que ainda tem você. Triste? Pra caralho. Mas é o jogo de vocês. Eu já larguei mão.
Meu silêncio concordou com tudo. O gosto de cerveja até azedou na minha boca enquanto o PJ falava. Mas minha atenção ainda tava pregada na Renée.
Ela tava lá, toda casual, fumando um Marlboro com a pose de quem tava torcendo pro mundo acabar antes da virada do milênio. Confortável demais com a cinturinha marcada pelos dedos do Finnegan. Usava um vestido preto e colado de mangas compridas, os punhos carregados de braceletes de espinhos, o cinto de couro com rebites. O batom vermelho deixava a boca dela mais carnuda ainda. A Rennie não precisava se esforçar pra chamar atenção, sua beleza e indiferença já faziam isso por ela.
A Renée tinha essa coisa de sempre parecer entediada, como se ninguém ao redor fosse digno de realmente interessá-la. Vivia cutucando os outros. Não importava se eram desconhecidos, um professor da Oyster ou até as próprias amigas. A lábia afiada era a mesma. Tipo a Tess, uma amiga dela, quando apareceu toda animada com uma tatuagem de borboleta na lombar semanas atrás. A Renée comentou sem pensar duas vezes: “Quer uns contatos de tatuadores que não te humilham tanto assim?”. Nessas horas a Tess sempre olhava pra mim antes de responder. Aquele olhar de quem tomou um chute e sabia que eu também conhecia a dona da bota.
Mal sabia ela que comigo a Rennie fazia dessa parada um esporte olímpico. Era um “tá tentando compensar o quê exatamente?” quando eu resolvia trocar a camisa de flanela por uma jaqueta. Zoava o meu sotaque de Boston, implicava com os meus desenhos. “Se você olhasse pra mim com metade da atenção que dá pra essas paisagens depressivas, a gente tava noivo”. Até o jeito que eu enrolava um baseado ela achava ruim, falava que eu apertava demais ou colocava muito tabaco. “Nossa, que original”, toda vez que eu botava Nevermind pra tocar na república. Até quando a gente transava, porra. “Você pelo menos se esforça”, ela comentou uma vez, como se eu tivesse feito um exame prático. Toda hora dava vontade de mandar ela se foder, mas aí eu lembrava que ela ia adorar, então eu ficava quieto. Engolia. Eu era o otário que achou que tinha encontrado uma alma gêmea naquela festa de praia um ano atrás, quando na verdade só tinha topado com minha outra versão – ela era eu, com mais coragem de ser filha da puta. Ela era tudo que eu não deixava vazar.
— Vai pegar mais uma cerveja, vai. Eu acabei com a sua — o PJ balançou o copo vazio na minha frente. E foi o que eu fiz. Dei uns tapinhas no ombro dele e saí. Eu só precisava de um incentivo mínimo.
Assim que cheguei no corredor, tive a certeza que eu não ia parar de beber porra nenhuma. Não dava pra ficar sozinho com meus pensamentos.
Fui pra fila do barril, e só de ter ficado dois minutos ali eu vi tudo girar. Eu já tava naquele nível de bêbado onde o mundo virava um filme com delay de cinco segundos. Nossa. A mina na minha frente tinha uma bunda que era brincadeira. Tava usando uma sainha e uma jaqueta de couro.
A jaqueta parecia com a minha.
Quando ela virou pra trás, pra me passar a vez da mangueira, nós dois tomamos um susto. A gente ficou parado por uns segundos – ela com a mangueira na mão, eu com um sorriso escancarado –, os dois processando a merda toda.
— Eiii, ! — eu segurei o ombro dela. Putz, já tava que nem o Alex, encostando nos outros. — A gente tá combinando!
A tava raciocinando ainda. Abriu a boca, fechou, depois abriu de novo. Só faltava ela nem ter me reconhecido, aí sorriu de repente, então fiquei mais tranquilo. Caralho, eu não lembrava que ela tinha um sorriso tão bonito assim. Tão aberto que dava pra ver todos os dentes, os olhos quase sumindo de tão apertados, como se ela não conseguisse segurar mesmo se quisesse. Iluminava a cara dela toda. Parecia até outra pessoa.
— É mesmo! — ela falou. — Ó procê ver!
Eu ri. Toda vez eu esquecia que a tinha um sotaque sulista. Eu achava hilário quando ela deixava transparecer.
— Cê tá tão... Winona--
Eu ri mais. Que porra ela tava falando?
— Espera, o quê? Winona? — Não consegui parar de rir. Ela era meio maluquinha das ideias. Fiquei rindo sozinho. — Você é tão engraçada, . Não entendi nada do que-- Cara, eu sabia que você não era de Nova York.
— Por que diz isso?
Ela só podia estar tirando uma com a minha cara.
— Seu sotaque.
A era meio distraída. E como tava gata. Pelo amor de Deus. Ela tinha aparecido no quarto da Jenna pra comer pizza semanas atrás com outra vibe, e agora a mina tava impossível de ignorar.
— Alguém veio lá do sul — dei umas cutucadas nela com meu cotovelo. Ela devia tá me achando um porre. — Mas qual estado…? Ainda não sei dizer. — Enchi um copo e quase deixei transbordar, aí tomei uns golões pra não derramar. A gente saiu da fila e foi pro outro lado. — Hmm… Deixa eu ver… Tennessee?
— Não…
— Não? Tem certeza?
— Eu tenho certeza de onde eu venho — ela sorriu de novo, e se não fosse por isso, eu teria certeza que a tava me dando uma patada. — Tente mais ao sul.
— Mais?! — Eu já tava gritando no ouvido dela. A música tava alta e um monte de arrombado transitava ao nosso redor. — Então… Atlanta, Georgia? Definitivamente você é de Atlanta, sei disso.
— Não, vai mais pro oeste.
— Alabama? Sweet Home Alabama! Ah, cara, sempre quis cantar isso pra alguém do Alabama.
— Só um pouco mais pro oeste… — A não só continuou me dando corda como inclinou a cabeça pra me ouvir melhor. Ou ela curtia mesmo ficar de papo comigo, ou tava com pena de bêbado falante. — Vai, você consegue. E não, não sou de Mississippi.
Se eu desse mais um chute errado, ela ia igualar meus neurônios aos dos membros da Phi Kap, então me esforcei um pouco.
— LOUISIANA!
— Isso!
Eu levantei a mão pra ela bater, e depois do nosso high-five, a desatou a rir. Nem deu tempo de pensar se ela tava rindo de mim ou outra coisa, porque eu entrei numa crise de riso junto com ela. A risada dela era engraçada pra porra. Começava com um “RÁ!” alto demais, que fazia até o pessoal do lado virar pra olhar, aí virava um monte de risadinhas curtas e ofegantes. Terminava com ela sem ar, com os olhos cheios d’água. Parecia um desenho animado. Falei isso pra , ganhei uma cotovelada no braço que doeu mais do que devia, e quando a gente finalmente recuperou o fôlego, eu já tava olhando pra ela de novo.
— Você veio de longe, hein? Qual cidade? Nova Orleans?
— Não, Liv--
Sei lá por que ela parou de falar. Do nada ficou vidrada em algum ponto atrás de mim. Era um salão mais escuro onde uma galera tava dançando, e tinha um cara ali no meio que se destacava porque a camisa polo branca ficava fluorescente na luz negra. Um palhaço. Ele tentava uns passinhos molengas perto de duas garotas que daqui a pouquinho estariam rebolando no pau dele. A virou uma estátua. Se eu desse um mortal pra trás ali agora, ela nem ia perceber. Eu conferi algumas vezes se era pra ele mesmo que ela tava olhando.
— Aquele é o seu cara? — perguntei.
— Era.
— Ah, é. Foi mal.
Climão. Tomei mais um gole da minha cerveja. Então era por aquele bunda mole que ela tava chorando lá no píer?
— Aquela não é a sua garota? — A apontou pra outro ponto atrás de mim, só que agora do outro lado, de onde eu tinha vindo, onde tinha um pessoal mais de bobeira. Só faltava ela ter visto a Renée pegando o Finnegan. Até gelei. Quando me obriguei a olhar, vi ela de papo com outro cara, aí virei a porra dum iceberg. A Rennie tava falando com o ex dela.
— Ah, merda… É, sim. Aquela-- Aquela é minha garota. — Um milhão de coisas passaram pela minha cabeça. Daquela vez não dava pro joguinho dela rolar solto. — Na verdade, acho que vou lá checar. Licença — falei qualquer coisa e saí andando. Fiquei pensando no que é que eu ia dizer pro DeWolff sair de perto sem drama. O maluco parecia um boneco Max Steel. Eu tinha que ser criativo com ele, era uma desgraça.
— Ei, espera! — A me chamou. — Você viu a Jenna por aí?
— Acho que lá em cima — respondi, mas segui meu caminho com pressa.
Quando me aproximei da Renée, o DeWolff me viu e fechou a cara. Eu cheguei ao lado dela, de frente pra ele.
— Fala, Poderoso Chefão — ironizei. Demos um toque rápido com as mãos. Pura falsidade. A mão dele era cheia de calo, toda fodida, arranhou a minha inteira. — Qual é a boa?
— Nah, bobagem. Assunto nosso — ele deu uma piscadinha, só pra me tirar do sério. O sonho molhado daquele sujeito era dar um chute no meu cu, eu tinha certeza.
— Faço ideia. Você é mesmo um cara com assuntos fascinantes — mexi no meu nariz, pra ver se ele limpava o pozinho branco da narina dele. O cara não parava de fungar. — Mal posso esperar pra Rennie me dar ideia depois.
— Eu não vou dar ideia de nada pra ninguém — ela falou, mas o DeWolff não tirou o olho de mim. Pelo menos limpou o nariz. — Nem comecem, vocês dois. Fala sério.
— Tá com medo que eu te roube de volta o posto de confidente dela? — ele provocou com um sorriso torto. Que dramalhão.
— Tá com medo de perder o único posto que ainda te resta? De fornecedor de prensado lavado?
Ele só calou a boca porque a Renée riu.
— Você é engraçadinho, né, Seaver. Não sei como a Ren não cansa dessa sua cara de lombrado.
— Eu canso, sim. — A Renée puxou uma tragada longa do cigarro e soltou a fumaça bem na cara de DeWolff, os olhos pregados nos meus. — Mas aí ele faz uma gracinha dessas e eu lembro porque não largo.
Eu quis revirar o olho, mas ela tava me encarando. O DeWolff fez isso por mim.
— Pois é — ele me olhou, dando um passo pra trás. — Tá com sorte que hoje eu tô com preguiça de estragar a festa por causa de um pedaço de merda igual você. Depois a gente se fala, Ren — ele piscou pra ela de novo.
Rennie continuou com a cara de nada e o DeWolff finalmente saiu de perto. Se enfiou no meio dos outros e sumiu.
— Você também não me ajuda, né — eu falei pra ela com a raiva ainda correndo no sangue. — Porra… Você não se ajuda.
— Onde você tava?
— Fui buscar uma cerveja. O que ele queria com você? Ou você “não vai me dar ideia de nada”?
Ela bufou. — Ah… O de sempre. Me atazanar sobre a maconha. Falou que a próxima vem mais verdinha que a última, mas você sabe. Não vai vir nada. Vamos ficar com o prensado lavado — ela riu.
Claro. Era a única desculpa restante pro DeWolff falar com a Renée. Toda vez que eu jogava isso na cara dele, não tinha outra opção senão arregar. Eu já tava por dentro da covardia do cara.
— Quanta urgência pra tratar desse assunto faltando uma hora pra virada.
— Deve ser porque ele me viu sozinha — ela cruzou os braços e parou na minha frente.
— Deve ser porque ele viu você falando com o Finnegan.
— Deve ser porque o Finnegan me viu sozinha.
— Eu fui ao banheiro, Rennie. Na moral, você não ajuda em nada mesmo.
— Para — ela resolveu jogar os braços ao redor do meu pescoço. Não tinha motivo nenhum pra sorrir, mas lá estava ela com um sorriso naquela boca vermelha. O olhar dela me prendeu por uns segundos. — Pelo menos você tá aqui agora. Não é?
Ela tava adorando tudo aquilo. De sentir que me fazia ferver por dentro. Nada podia ser tranquilo, tudo tinha que ter uma grande emoção, controvérsias e reviravoltas. Era uma parada estimulante só pra ela, e não adiantava quantas vezes eu dizia que pra mim era uma droga.
Ela tocou meu rosto, chegou bem perto e fechou os olhos.
— Agora não… — eu disse. Com medo de me arrepender.
Ela abriu os olhos, meio constrangida. Eu nunca sabia como fazer o que eu queria sem ofendê-la. Sempre acabava inventando um troço qualquer pra escapar por uns momentos, só pra esfriar a cabeça o mais rápido possível. Não tinha como fazer isso perto dela. Com cuidado tirei os braços da Renée do meu pescoço.
— Preciso falar um negócio pro PJ.
— Agora?! O quê?
— É que eu esqueci de pegar a chave da república com ele — fui dando uns passos pra trás, aos poucos. — Acho que vou vazar mais cedo. Pode ficar por aí, depois a gente se encontra lá na piscina, beleza?
Dei as costas e saí daquele salão infernal. Quase subi as escadas, aí lembrei que lá em cima ficava um povo morgado no sofá da janela, então segui pra cozinha. Eu tava doido pra fumar um. Vi meu mano Connor pela janela que dava pro quintal, aí fui pra varanda. Estavam rodando um baseado com mais uns caras, inclusive o Alex, e umas garotas também. Uma delas era a Tess.
A Tess não era tão gótica – na real, parecia que ela tava trocando de pele desde o ano passado. Uma parada esquisita. Ela era cheia dos mistérios que nem a Renée, mas segundo a própria amiga, a Tess agora decidiu que ser gótica era coisa de 1995.
Eu entrei na roda ao lado do Connor já pedindo um fininho só pra mim. Ele sempre tinha uma coleção de fininhos no bolso pra situações de emergência. Era um cara precavido.
— Calma, meu chapa. Já já chega a sua vez — ele soprou a fumaça lentamente. — Tá estressado? Você não é desses.
— Adivinha — a Tess comentou. — A Ren pediu pra voltar com ele.
O Connor terminou de tragar outra vez e me passou o beck todo babado.
— E você voltou? — ele engasgou com a própria fumaça. Me olhou como se eu fosse completamente louco. E eu era.
— O que você acha?
Eu traguei. Aquilo não era um beck, era uma tora. A porra de um temaki. Ótimo, eu ia chapar rapidinho.
— Relaxa, . — Do nada a Tess tava uns três passos mais perto de mim. — Daqui a pouco vocês terminam de novo.
Todo mundo bem que podia calar a boca sobre isso.
— Ah, é? — soprei a fumaça pra cima. — E de que lado você está?
Porra, a Tess tava com uma blusa rosa tão apertada por baixo do casaco aberto. Deus abençoe aquela troca de personalidade sazonal. Não tinha como não olhar pros peitos dela. Lógico que ela reparou.
— Tô do lado da minha amiga… que se te visse aqui agora, ia querer te matar.
— Ela sempre quer me matar.
— Tadinho.
Eu revirei o olho. Que mina chata. Eu passei o beck pra ela com vontade de dar um beijo nela.
— Impressionante como tem gente cafona aqui — foi a vez dela de soprar a fumaça. Soprou bem na minha cara, fazendo biquinho.
— É…
— Difícil acreditar que alguém ainda ache um casaco de pele sintética bonito. Olha aquela menina ali.
— Aham.
— Eu falei pra você olhar.
— É, foda-se casacos de pele sintética.
Ela riu e ficou me olhando. Sabia que eu tava pouco me fodendo pro frufru todo. Depois passou o beck pra outra garota da roda que tava conversando com o Alex. Quem sabe hoje ele não saía da seca.
— Você tá cheiroso hoje — a Tess falou com o rosto bem perto do meu pescoço.
— Tô vendo como sou só eu que a Rennie vai querer matar.
— É só você andar na linha. Vai conseguir?
Nossa. Botei a mão na cintura dela só de pirraça. Ninguém ali ia falar nada mesmo. Capaz de até comemorarem.
— Claro que eu consigo — respondi. — É só você ficar comportadinha.
— Porque você já desistiu de se comportar, né?
De repente, o Alex começou uma crise de tosse e devolveu o beck pra alguém. — Galera, marca aí, vou ao banheiro.
— O banheiro do corredor tá nojento — o Connor avisou. — Vai lá no de cima, tá mais vazio.
No meio daquela movimentação e do papinho, como se ninguém fosse perceber, a Tess pegou minha mão em sua cintura, foi enroscando os dedos nos meus, aí deu uns passos pra trás. Parecia que ia me puxar dali em questão de segundos.
— Espera aí, eu nem fumei direito...
— Deixa que eu te mostro coisa melhor.
A gente foi se afastando. Daí, com a outra mão, ela tirou do fundo do sutiã um saquinho plástico com um pó de MD e sacudiu na minha frente. Meu irmão, ela tirou droga do meio dos peitos. Eu tava fodido. Essas garotas ricas sempre tinham qualquer droga de sobra e da melhor qualidade. Ela tava ligada que era só jogar na arapuca pra eu cair.
A gente foi se sentar num balanço de madeira no outro canto da varanda.
— Daqui a pouco vão soltar os fogos — ela falou enquanto abria o pacote. Depois lambeu o dedo com MD e me entregou. — Vamos agora pra gente ficar olhando pro céu.
Meti o dedo no saquinho e passei a ponta por dentro do meu lábio.
Fazia tempos que eu não usava nada além de maconha. Da última vez tomei um LSD na casa do Connor e tive uma epifania do caralho. Foi num dia que cancelaram uma festa que a gente deixou de ir por causa de uma tempestade. Lembro que fiquei sossegado, ouvindo música, estirado no chão com a cabeça em cima de uma almofada. Deixei os pensamentos mais profundos virem e nunca mais fui o mesmo. Aqueles que só aparecem quando tô chapado o suficiente pra achar que entendo o sentido da vida. Tipo como o sofrimento e a morte eram a base da realidade, e toda essa coisa meio Kafka, sem escapatória, então a única boa escolha que eu tinha era tentar não ser um cuzão com meus amigos, estar lá por eles, e aproveitar os bons momentos antes que tudo virasse pó.
Foi uma rendição total. Já tinha acreditado em cada balela – destino, sincronicidade, algum sentido escondido nessa parada toda. Que o universo tinha uma consciência, que os números tavam sempre na minha cara, e que um dia eu ia achar a solução perfeita pra acabar com a ansiedade de viver. Mas, na real, ela ia ficar pra sempre, tipo um hóspede sem data pro check-out. Meu apego que iria mudar com o tempo. Só isso. Agora eu só acreditava no tempo.
Não muito depois deu pra ouvir todo mundo fazendo a contagem regressiva pro Ano Novo, então alguns membros da fraternidade soltaram fogos ali mesmo no jardim. Foi uma euforia completa, até eu e a Tess nos levantamos e paramos no parapeito da varanda pra assistir as explosões no céu.
Ela tava colada em mim. Algumas pessoas começaram a se beijar à nossa volta, e bastava eu olhar pra Tess que o mesmo aconteceria com a gente. Mas gastei os últimos neurônios do meu cérebro pensando duas vezes, porque eu não tava nem um pouco a fim de lidar com as consequências daquela merda.
A Tess me puxou, pra eu me virar pra ela, pelo cós da minha calça.
— Calma aí, calma aí… Eu não sei se--
— E você vai ligar pra isso logo hoje por quê? — Ela notou que eu tava olhando pra todos os lados. — Conhecendo a Ren, ela deve tá pegando outro cara agora mesmo, só pra te deixar com ciuminho, igual aquela outra vez que ela fez isso e você também ficou puto. Aí vocês vão conversar amanhã, dizer que se arrependeram… Sempre funciona, né?
Fiquei com vontade de mandar ela se foder, mas a frase morreu na minha boca porque a Tess me beijou. Começou devagar, tipo um teste – na real, quase um desafio –, até que a língua dela deslizou pra dentro da minha boca, e eu devorei a dela como se fosse meu último gole de álcool. Porra, fiquei com um tesão fora de controle com aquele beijo. Ele só melhorava e eu só pensando que a merda toda ia dali pra pior, porque minhas mãos já estavam por baixo da blusa dela.
Acabei recuando.
— Não dá, Tess... Eu vou acabar te levando pro quarto.
— Leva nós duas, então.
Dei uma risada sarcástica. Quem me dera. — Faz o convite pra Rennie e a próxima parada é o tribunal, com você de réu.
— Só eu? — ela me deu um selinho e voltou a roçar os peitos em mim. Filha da puta. — Ah, é, você já vai estar atrás das grades.
Era impossível parar aquilo. Ou eu parava agora ou encarava uma briga colossal pela frente. Recuei mais um passo, mas a Tess avançou outro. Não sei como eu ainda tava conseguindo manter um pingo de juízo na minha cabeça.
De repente, alguém gritou pelo nome dela. Puta merda, salvo pelo gongo. Era uma garota que eu não conhecia, tava chamando a Tess pra ir logo até ela ver alguma coisa que eu não dei a mínima.
— Já volto.
Duvidei que voltaria. E eu não ia esperar. Independente do caralho que fosse, eu precisava dar o fora no segundo que ela saísse, ou não teria paz nenhuma nos próximos dias.
O pessoal foi se espalhando mais pelo jardim, a aglomeração pra virada do ano já tinha acabado. Eu voltei pro balanço e fiquei lá sozinho de pau duro na maior humilhação que eu mesmo tinha me colocado. Até que vi a Rennie perdida no gramado lá embaixo, então desci as escadinhas da varanda e fui até ela. Assim que parei em sua frente, a primeira coisa que notei foi a boca dela toda borrada de batom. Os lábios curvaram num sorrisinho insolente. A previsão da Tess não tava errada em nada, e eu tive vontade de desintegrar no espaço naquela hora.
— Puta merda, Renée… Você não presta.
— E você muito menos, .
Não sei como aconteceu, mas no segundo seguinte a gente se beijou. A gente se beijou numa urgência incontrolável. No fim do dia era sempre esse o resultado, contanto que houvesse controvérsias e reviravoltas, do jeitinho que ela gostava. E eu sempre mordia a isca. Era viciante. Infalível. Mas sobrando noventa quilos de arrependimentos no dia seguinte pra eu carregar. Só que no dia anterior eu não tava nem aí pra nada, esse era o meu erro crônico.
O beijo aumentou todas as proporções possíveis, então levei a Renée pra um beco mais próximo – o corredor da lateral da casa, onde tava escuro e isolado de gente. Ficamos nos agarrando contra a parede pelo que pareceu uma eternidade na minha cabeça. Eu tava desabotoando a calça dela quando um estrondo fez a gente parar.
— O que foi isso? — Rennie tava atordoada. Eu olhei pra direção do barulho e vi uma garota com o ombro escorado na parede mais à frente, toda torta. Parecia que ia colapsar na grama a qualquer momento.
— Você tá bem? — Eu andei até ela. Aquele canto tava tão escuro que quase não a reconheci. Cacete. — ?!
— O quê?! — ela finalmente abriu os olhos e ergueu a cabeça. Com uma mão agarrando o próprio cabelo, parecia que tava tentando arrancar a névoa alcóolica do cérebro. A outra mão escorregava pela parede. Os olhos tavam vidrados, a respiração toda descompassada. Dava pra ver na cara dela que tava totalmente fora de si. Ficou me encarando até pensar pra responder. — Sim! Tô bem! Tô bem melhor!
— Tem certeza? — eu me aproximei um pouco, porque ela tava quase caindo. A Rennie também chegou mais perto.
A se endireitou com a mão apoiada na parede e olhou pra ela. — Cê tá louca, mulher?
— Hã? — Rennie levantou uma sobrancelha.
— Um homem desse no seu pé e você fazendo corpo mole? Ah, pelo amor de Deus! Eu não mereço esses jovens de hoje. Sinceramente.
Eu dei uma gargalhada. Caralho, eu tava muito doido ou ela tava muito doida? Tudo que saía da boca dessa mina era uma brisa. Minha risada chamou a atenção dela e agora foi a minha vez de ser atacado pela . Eu tava ansioso por isso.
— Escuta, acho ótimo que você teve um final feliz com a sua garota hoje, porque eu não tive com o meu cara. Então — ela girou o pescoço e fuzilou a Renée com o olhar de novo —, aproveite bastante, ok?
— Sério, eu te conheço?
Eu revirei o olho discretamente. Claro que ela lembrava da no quarto da Jenna outro dia. Ficou meia hora falando mal das pantufas dela quando saímos.
— Sim, Rennie. — Acho que a sacou a sonseira. — Olhe bem pra esse rostinho — ela agarrou minhas bochechas com os dedos. — Olhou? Agora escuta o que eu tô te dizendo. Não existem muitos caras como ele por aí igual a gente pensa. Tendeu?
Eu já tava relutando pra não explodir de rir mais uma vez. — Porra, que mão gelada.
— Desculpa — ela se arrependeu na mesma hora e recolheu a mão. Fiquei triste. Eu tava adorando o show. — , erm… Sabe onde a Jenna tá?
— Acho que vi ela ali na piscina.
— Ótimo! Tchau!
A saiu correndo. Maluca de tudo.
— Que porra foi essa? — Rennie ficou indignada. Ela estalou os dedos na minha frente porque fiquei acompanhando a com o olhar até ela sumir de vista. Eu tava meio fascinado pela bunda dela.
— Sei lá — respondi rindo. — … Onde a gente parou?
Não custou nada e eu tava agarrando a Renée de novo. Pelo menos ela também tava louca de tesão. Por mim eu não ficava nem mais um minuto naquela festa. Por mim a gente ia pra república agora mesmo e transava a madrugada toda enquanto eu tava louco de MD.
Quando decidimos ir embora, passamos pelo jardim dos fundos outra vez, pra dar a volta na casa e sair. Mas uma movimentação estranha em torno da piscina nos chamou a atenção, aí vimos a maluca da empurrando um cara na água. Devia ser o ex dela. O barulho da queda e os respingos espalhando pra todo lado atraiu ainda mais olhares. Eu fiquei alucinado, morrendo de rir, enquanto a Renée tava com a mão na frente da boca aberta. Pô, que maravilha ver aquele mauricinho encharcado.
— Acha que não sei o que você fez hoje, seu imbecil?! — A gritou pra ele, que tinha acabado de emergir da água. — Você procurou a pessoa errada pra fazer de trouxa. Filho da puta.
Eu parei de rir. A Rennie finalmente riu.
— Gostei dela — ela me olhou de relance. — Vambora logo.
Rennie me puxou pela mão e entramos na mansão de novo; eu esperando que ela não usasse a de inspiração algum dia. Mas fiquei tranquilão. A gente sempre flertava no meio da raiva, sempre no limite, ela no “te odeio, mas vem me foder” e eu no “também te odeio, fica de quatro”. Foda-se se era anormal. Também era uma delícia.
Dia seguinte
O sol da tarde sempre entrava pela janela da cozinha, nunca pela sala. Parecia um holofote em cima da louça suja empilhada na pia. Fazia meia hora que a Rennie tinha ido embora e eu tava participando do papo pra boi dormir do Alex. Ele tava sentado na mesa, o PJ encostado no balcão com um cigarro entre os dedos, parecendo mais interessado na fumaça do que na história. Eu só virei os olhos e entornei o resto do meu café frio direto no ralo.
— Você é falador demais, Alex — comentei.
— Tô te dizendo, caralho. É sério, eu peguei a ontem.
O PJ soltou um baforada e olhou pra mim, um canto da boca subindo de leve. Nem eu nem ele estávamos acreditando naquela lorota.
— De zero a dez, , qual a chance desse beijo ter sido uma alucinação da cabeça dele?
— Mil — afirmei tranquilamente.
— Então tá — Alex relaxou na cadeira, cruzou os braços e deu um sorrisinho. — Não acreditaram que ela me ligou outro dia, agora não estão acreditando que ela me beijou. Tsc, tsc… Eu disse que meu papelzinho não era coisa de pau mole que nem o Seaver falou, e vocês também não quiseram acreditar. Só mais uma coisa, o beijo foi tão bom que me deixou maluco. Por isso aqui a gente não transou — ele apertou o polegar e o indicador, deixando só um espacinho entre eles. — Admitam, vocês são dois trouxas e tinham que aprender comigo.
Eu e o PJ nos entreolhamos segurando uma risada. Não era possível uma coisa daquelas. Ou o cara tava inventando ou aumentando muito a história.
— Beleza, então agora eu vou começar a distribuir meu telefone em bilhetinhos pra mulherada no campus — PJ falou. — Obrigado por transformar minha vida, Alex. Nunca mais eu também fico na seca.
O Alex nem se abalou. Eu ainda tava analisando cada palavra do que ele tinha dito. Não conseguia nem mentalizar uma cena daquelas.
— Que horas foi isso? — perguntei. — Que horas vocês se beijaram?
— Peraí. A gente não se beijou. Ela me beijou. — Era a segunda vez que ele refrisava esse detalhe hoje. — Meia-noite, na hora dos fogos.
— Onde? — O PJ também entrou pro interrogatório.
— Lá em cima, no segundo andar. Perto do banheiro. Estão duvidando? — O sorrisinho dele tava ficando cada vez mais convencido. — Perguntem pra Jenna, ela viu tudo.
— É… Ontem a tava bem doida mesmo — falei e saí da mesa pra abrir a geladeira e pegar um suco. Fiquei pensando nela falando um monte de loucura pra mim naquele beco escuro da mansão, e acabei nem pegando porra nenhuma da geladeira. — Ela tava bem doida. É só isso que eu vou comentar.
— Caralho, então você pegou ela mesmo, Alex?
— Tô te dizendo! — ele ficou revoltado. — Por que tá tão difícil de vocês acreditarem, porra? Eu sou uma piada pra vocês?
Um silêncio sepulcral.
O PJ resolveu responder. — Mais ou menos…
— Ah, vai se foder.
— Não é que você é uma piada, maninho. Você é daora. É que… — ele demorou demais.
Dei um toque no ombro do Alex. Parecia uma notícia fúnebre. — Ela que é muito gata pra você.
Pronto. O cara recomeçou a história toda do zero, insistindo nos detalhes mais irrelevantes como se a gente fosse algum tribunal. Ninguém aguentava mais. Eu e o PJ continuamos ouvindo, mas com certeza ele também continuou duvidando. Nem cogitei perguntar diretamente, mas da próxima vez que eu encontrasse com a pelo campus, faria questão de reparar em algum sinal.
Janeiro/2000
Eu tinha acordado com uma preguiça do caralho no domingo. Preguiça de gente, preguiça de voz de gente, preguiça de movimento, preguiça de tudo que exigisse esforço. No fim do dia, cansado das quatro paredes do meu próprio quarto, fui de bike até a praia de Oakwood terminar um desenho e ficar longe de tudo por uns tempos. O problema foi que o clima esfriou muito rápido, e o vento tava tão forte que ficou difícil segurar as páginas do meu caderno. A ponta do meu lápis quebrou uma hora e eu tinha esquecido a droga da minha lâmina. Não animei nem fumar nada do que eu tinha trazido, porque acender o isqueiro naquele vento seria um milagre. Eu tava tão mal-humorado que até eu me irritava, e achei que fugir pra praia fosse resolver tudo, mas só me fez sentir mais na mesma.
Quando desci de uma pedra pra ir embora, a última pessoa que eu esperei encontrar na face da Terra tinha acabado de chegar.
— Meu Deus, quer me matar?! — ela levou um puta susto. Não que eu não tivesse levado um também, mas a era muito dramática.
— Você que quase me matou — eu devolvi, quase rindo. — O que tá fazendo aqui?
— O que você tá fazendo aqui?
Eu não saberia explicar exatamente o que eu estava fazendo ali pra senhora detetive, porque não tinha um motivo concreto. Eu nunca tinha um. Dei de ombros e segui o caminho até minha bicicleta.
— Eu venho aqui o tempo todo — respondi. Guardei meu caderno na mochila me sentindo observado.
— Como…
Eu parei e olhei pra , esperando que ela terminasse. Parecia que ainda tentava conceber que eu tava bem ali na frente dela. Com certeza não contava com isso hoje.
— … Sério? Por quê?
— Nenhum motivo em especial — respondi. — E você?
— Vim ver o vilarejo abando-- Espera. Ninguém vem até esse fim de mundo à toa.
— Aqui não é o fim do mundo. A Oyster tá ali — eu apontei com o queixo pro ponto atrás dela.
— Tá ali a cinco quilômetros. Meio longe pra vir andando.
— Minha bicicleta tá ali, atrás daquela pedra — eu mostrei o lugar, praticamente indo até ele, atrás de um montinho de areia. Eu já tava pronto pra vazar dali, e a deveria fazer o mesmo. — Se eu fosse você — falei mais alto, pra ela me ouvir —, deixaria pra ir ao vilarejo outro dia. A maré já tá começando a subir.
— E daí?
Ela só podia estar de brincadeira.
— A maré costuma invadir aquela área toda — expliquei enquanto trazia minha bicicleta de volta pra trilha. — Tudo fica quase submerso.
— Ah, é?
Peguei a chave do cadeado no bolso da minha mochila e agachei pra destrancar a roda. Aquele “ah, é?” da me pareceu mais de uma criança empolgada do que de uma adulta com o básico do discernimento. Ela nunca deve ter vindo aqui antes ou não fazia ideia da história do lugar. Eu pensei um pouco e olhei bem pra ela.
— Quer mesmo ir ao vilarejo hoje?
— Vim aqui pra isso. Não tenho medo de maré.
Dei uma risada. Que teimosia do caralho. Não tinha como eu deixar a garota sozinha naquela praia inóspita, prestes a anoitecer, e ela tava com uma cara de quem ia fazer isso mesmo se eu fosse embora. Cada dia eu tinha mais certeza que a era doida.
Um ar pesado saiu da minha boca, porque eu já tinha tomado minha decisão calado. Que se foda, eu ia lá com ela.
— Então vamos — me levantei. — Conheço um atalho pela floresta, vai ser mais rápido.
— Espera, pela floresta? Não é proibido? Quero dizer, podemos entrar lá?
— Vou te falar, não é bom passar por ela. Mas preocupa não, tá tudo sob controle.
Andamos alguns metros até a borda da floresta de carvalhos que circundava a praia, numa parte mais alta. O inverno tinha despido todas as árvores, que tinham uns galhos esqueléticos apontados pro céu. Meio cena de filme de terror. Uma parte deles tava no canto do meu desenho. A neve virou um mingau marrom onde o gelo tinha derretido, e apesar do sol ainda brilhar, a luz não conseguia chegar com força até o chão naquela área.
Fui entrando sem drama pra ver se a tomava coragem mesmo. Eu ainda tava torcendo pra que ela desistisse, mas infelizmente não foi o que aconteceu. Ouvi os passos apressados dela atrás de mim e assim seguimos. O som do mar foi ficando cada vez mais distante, e aquele mundo de folhas secas no chão faziam barulho demais, não tinha como evitar. O maluco do senhor Wage ouviria lá da puta que pariu e eu tava rezando pra ele suspeitar de algum bicho ao invés de mim. Fiquei em alerta. O foda era que todos os bichos de Oakwood eram aves ou crustáceos que ficavam lá na praia.
Estava muito silencioso e esquisito. Não demorou muito e eu ouvi os passos de uma terceira pessoa. Parei de andar e fiz um sinal com a mão pra parar também.
— O que é?
— Sshhh. Ouviu isso?
— Isso o quê?! — ela ficou agitada, mas pelo menos tava sussurrando. — Ai, meu Deus, tem mais alguém aqui!
Os passos se aproximaram de nós e não tinha mais o que fazer. A não sabia se corria ou ficava ali parada comigo. Eu já podia ver o senhor Wage de longe entre os troncos de árvores chegando com o cachorro de guarda dele.
— Não deveríamos estar aqui, ! Vamos voltar, por fav--
— Parados aí — o velho ordenou. De repente senti um peso na mochila nas minhas costas, era a apavorada se escondendo atrás de mim. Tive vontade de rir no pior momento possível. O senhor Wage nem tava enxergando direito. Demorou anos pra me reconhecer. — Oh! Seaver! Como vai? — ele me deu um tchauzinho, e eu acenei de volta. Ainda tava doido pra rir. — O que tem pra mim hoje, garoto?
— Ah, senhor Wage, hoje o senhor me pegou desprevenido — enrolei. — Tô sem nada. Foi mal.
Ele deu um estalo pro cachorro, que imediatamente veio me farejar. Latiu em dois segundos, foi só ele chegar perto da minha mochila. A se encolheu ainda mais pro outro lado.
— Nada? Não é o que Titus está nos dizendo.
— Ah, não, senhor Wage… Vai confiscar o pouco que guardei pra mim?
Ele fez um estalo e o cachorro finalmente parou de latir.
— Sabia que tinha algo pra mim. Passa pra cá.
Cara, que vontade de mandar aquele velho se foder. Ele tirou a carteira do bolso, mas tava muito enganado se pensou que eu ia aceitar o mesmo preço da última vez. Nem me incomodei de pegar aqueles cinquenta dólares.
— Isso é tudo o que o senhor tem? — perguntei. A cara dele ficou parecendo uma carranca de tão irado. — Porque você tá me fazendo abrir mão de tudo o que eu tenho. Vamo lá, cara, uma troca justa.
Wage juntou mais trinta paus e me deu a grana toda. Eu estendi minha plantinha pra ele pegar, dentro de um saquinho plástico, e eu não consegui soltar de primeira. Ele puxou mais algumas vezes até eu ceder. Caralho, ainda tinha uns três gramas ali dentro, aquele velho ia direto pro inferno.
Depois que ele deixou a gente passar, não deu um minuto e a me encheu de perguntas de novo. Tive que explicar a história inteira do senhor Wage e o rolê da maconha, o que deixou ela um pouco chocada. A era meio inocente às vezes. E quando a gente chegou lá no topo do morro, de onde dava pra ver as casas abandonadas, tive que explicar a história toda delas, das enchentes e das lendas de fim do mundo. Ficamos conversando maior tempão, até sentamos numa pedra e eu puxei um cigarro de palha pra fumar. Ela tinha curiosidade de tudo. Ô garota curiosa da porra.
Até estranhei quando ficamos em silêncio pela primeira vez. Até senti falta de mais perguntas. Eu tava ali na pressão baixa, admirando a vista, e dei uma espiada nela. A tava com as mãos no bolso, meio perdida na vista também. Não pude evitar pensar se ela tava mesmo interessada no Alex em algum nível, mas não dava pra sacar nada ainda. Só sei que o sol já tava descendo e eu não tava a fim de passar pela floresta sem enxergar nada.
— É melhor a gente ir — comentei, mas ela nem se moveu. O mais impressionante foi que ela não contestou. Botei minha mochila nas costas outra vez.
— Espera! Ainda tenho perguntas.
Tava demorando.
— E a vila? Ela existe há muito tempo?
— Aham — respondi. — É muito antiga. Acho que do final do século passado… Aliás, retrasado.
— Do século retrasado? Você só pode tá de brincadeira. Será que os pertences deixados já foram todos saqueados?
A ficou com um sorrisinho bobo na cara. Não era possível. Será que ela tinha entrado pro curso certo na universidade? Alguém tinha que avisar pra ela sobre o curso de museologia.
— Nunca parei pra pensar nisso — refleti enquanto soprava a fumaça.
— Como não? — ela se levantou de repente. — Tá me dizendo que cê nunca foi até lá pra descobrir?
— E você tá me dizendo que quer fazer isso?
— Óbvio.
— Óbvio?
— Óbvio! Acha que vim aqui apenas pra admirar a paisagem?
A tinha uma falta de lógica pra cada coisa. Eu não conseguia acompanhar nunca. O que ela achava que ia encontrar naquele lugar largado às traças? O colar da Rose de Titanic?
Ainda sentado na pedra, eu a observava na minha frente, parada contra a luz. Ela tava o usando o mesmo casaco daquele dia lá na praia de Bricktown. O mesmo sorriso bonito, mesmo com cara de indignada. Não tinha como essa garota ter beijado o Alex no Ano Novo. Eu me recusava a acreditar nisso. Puxei mais um trago e me levantei também, então me pus na frente dela.
— O sol tá se pondo, a maré tá subindo… É perigoso. Outro dia você volta.
Parecia que eu tava falando pra Max comprar biscoito recheado na volta do supermercado e ninguém ia voltar coisa nenhuma. A olhou pro lado, meio tristinha, quase me comoveu, mas eu já tava fazendo hora extra em Oakwood. Acho que ela percebeu que eu não tava muito flexível.
Fiquei analisando um pouco a figura dela, de novo com uma vontade imensa de rir. Ela tava com a ponta do nariz vermelho parecendo o Rudolph, e um gorro da mesma cor, desses de Natal, com um pompom gigante na ponta e umas renas bordadas na lateral, parecendo que a vó dela tinha tricotado há uns trinta anos lá no Alabama.
— Ok… Vamos voltar — a suspirou, baixando os ombros.
— Você poderia ter esperneado, não ia adiantar.
— Por que diz isso?
— Não dá pra te levar a sério com esse pompom vermelho em cima da cabeça.
— Ai, meu Deus — ela tentou puxar o negócio pra trás, como se melhorasse em alguma coisa. — Sabe, da próxima vez não vou te dar ouvidos.
Não me aguentei e ri na cara dela.
— Pois deveria — dei a volta pela pedra, indo em direção à floresta, e joguei fora a bituca no meu cinzeiro de bolso. A veio logo atrás. — Não existem muitos caras como eu por aí, não é? Você bem que deveria me dar ouvidos…
— Do que--
Será que ela tava lembrada de ter dado perda total naquela festa e logo em seguida dado em cima de mim na frente da Renée? Senão eu pareceria um louco sozinho.
— Vamos esquecer disso pra sempre, por favor? Ou eu nunca vou conseguir olhar na sua cara.
Eu dei outra gargalhada. O melhor de tudo foi que a parecia muito mais envergonhada do que arrependida.
— Bom, se você me der uma poção de perda de memória instantânea, eu esqueço.
— É pra já.
Demorei a perceber que ela tinha parado de andar do nada. Olhei pra trás e vi a tirando alguma coisa do bolso, que ela logo arremessou pra mim. Tive que pensar rápido pra pegar aquilo no ar. Ela não podia estar falando sério. Era meu cantil, o cantil com Everclear que eu achei que tinha perdido lá na praia de Bricktown.
— Pronto. Pode se esquecer agora? — ela continuou caminhando e me ultrapassou. Eu ainda tava parado no mesmo lugar. — E não vou me desculpar, achado não é roubado.
Eu sacudi o cantil. Ainda tinha álcool ali dentro. Girei a tampinha e tomei um gole.
— Pronto. Esquecido.
A tava me olhando sem acreditar que eu ainda entornei aquele resto depois de uns dois meses guardado no bolso dela.
— … Você é maluco.
— Eu? — guardei o cantil no meu casaco e continuei a andar. Dessa vez, passei na frente dela de novo. — Quer que eu me lembre de mais coisas que aconteceram na festa de Ano Novo?
— Não. Não, não quero. Pode beber esse negócio inteiro pra você se esquecer de tudo.
Eu devo ter dado a vigésima risada do dia. Achava maior graça das reações dela. A se levava a sério demais. Pena que eu não ia parar de pegar no pé dela justamente por causa disso.
Fevereiro/2000
Encontrar a dentro e fora da Oyster virou rotina. Ela e a Jenna se grudaram de um jeito que de chaveirinho do grupo a passou a fazer parte dele em pouco tempo. Quem não tava pulando de alegria era a Renée, que já não ia muito com a cara da Jen desde quando se conheceram. Nem grossa o suficiente pra criar caso, mas sempre deixando claro que ela era tolerada, não aceita.
Umas semanas atrás, no dia que fomos todos beber no Millard’s, a Rennie decidiu botar isso em prova, quase como se quisesse que eu escolhesse entre ela e o grupo. Eu via a cara dela azedar quando me pegava rindo ou conversando com geral na mesa, ainda mais sobre algum assunto que ela ficava de fora, porque, porra, ela também não se esforçava pra participar. Foi aí que eu me peguei com vontade de desistir de tudo de novo. Todo dia pesava mais que o anterior, e eu já tava chegando no limite do que dava pra carregar. Só querendo que as coisas fossem mais simples. Que a paz caísse do céu sem que eu precisasse mover um dedo. Eu me perguntava se a Rennie tratava todo mundo assim ou se era uma parada só comigo. Não dava pra saber. Passei o resto daquela noite no Millard’s me dissociando até ficar que nem um zumbi funcional.
No fim, foi a quem teve que dirigir a Chevy pra levar a gente em casa, aí eu vi que não era balela quando ela disse lá no bar que já tava acostumada. Até a embreagem, que só eu conhecia o ponto certo, engatou suave na mão dela. E ainda reclamou que tava dura que nem pedra. “No Ford velho do meu avô era só um dedo.” E eu, quase deitado no canto do passageiro, tonto o suficiente pra ver três Jennas tagarelando ao mesmo tempo no meio do banco, só conseguia focar na dirigindo. Cada farol que vinha na contramão iluminava ela por um segundo. A sobrancelha franzida, a mão esquerda solta no volante, a direita mudando de marcha sem precisar olhar pro câmbio. Nada de mais. Só mais uma paisagem que eu não conseguia ignorar.
Nem prestei atenção na aula direito do Sr. Baxter hoje. Saí morto e apressado quando deu o horário, não esperei o PJ pra bater um papo nem nada. Fui um dos primeiros a sair pela porta, aí encontrei a Jenna sentada no corrimão da escada no corredor. Assim que ela me viu, levantou as palmas das mãos na minha frente, pedindo pra eu desacelerar. A Jenna era exatamente o tipo de pessoa que pedia pra gente parar no meio do caminho pra ouvir uma palestrinha motivacional de manhã, bem quando a gente tava com pressa. Eu parei antes de descer o primeiro degrau e fiquei esperando. Jen deu um pulo pra sair de cima do corrimão, e a leva de alunos do Baxter começou a passar por nós.
— Ei, ei, quanta pressa... — ela disse devagar. Fez aquela pose de namastê com as mãos juntas, os vinte troços de miçangas que ela usava nos braços batendo um no outro igual chocalho. — Respira fundo, deixa a luz interior guiar. Vamo lá, um… dois…
— Jenna, pelo amor de Deus.
— Eu sabia que ia te encontrar nesse estado hoje — ela veio me analisar de perto, levando as mãos pra trás do corpo. Parecia uma sargenta. — Só isso. Queria saber como você tava.
— Só isso?!
— É. Hoje em dia eu não preciso nem te perguntar se você encontrou a Renée, dá pra ver na sua cara. Uma noite inteira sem dormir.
— E você veio aqui só pra isso. Pra encher o meu saco.
Ela riu. Começamos a descer a escada juntos.
— Vai, fala — pedi. — Como é que você sabe que eu encontrei com a Rennie ontem?
— A me contou tudo.
— Porra, tudo que eu precisava. Vocês duas de fofoquinha agora.
A sargenta tava com um brilho nos olhos por ter uma informante. — Ela foi na república ontem, né? Espero que vocês tenham recebido bem o meu chuchuzinho.
— Recebi, foi tranquilo.
— Recebeu?
— Recebemos… — corrigi.
— Hmm — ela entortou a boca pro lado. — Pois é. Você também fica de fofoquinha com ela, tá achando ruim do quê?
— Ah, é? Ela te contou isso também?
— Se toca, . Isso ninguém precisa me contar. Eu vejo as coisas.
— Avisa o seu terceiro olho então que eu tô indo encontrar com ela agora. Você tá me atrasando.
— E onde é a aula de vocês? Em outro prédio, é?
— Sim. O mesmo da sua aula de Estamparia.
— Longe pra burro. Vai logo — Jenna se curvou pra frente e brincou de fazer uma reverência pra me dar passagem. — Manda um beijo pra .
Nem respondi. Saí vazado pra aula de Modelo Vivo pra não ter que ouvir lengalenga da Srta. Tolbert.
Cheguei lá e até a já tinha aparecido, o que era grave, porque ela também vivia chegando atrasada. Ninguém naquela sala tinha tanto sono igual essa mina oito horas da manhã. Era difícil reter a atenção dela no início, mas agora eu já tinha pegado a manha – ela fingia que desenhava alguma coisa, aí demorava no rascunho de propósito, só pra não ter que dar tratamento com sombras, volume e toda a parte mais trabalhosa. A tava jurando que, porque a gente se conhecia, eu ia aliviar a barra dela.
Na primeira hora, eu ajudava os alunos normais da Tolbert, depois ia até a na mesa isolada de sempre, onde ficavam os repetentes. No caso, só ela. Às vezes eu pegava ela me olhando com uma cara de “larga esses pirralhos e vem me ajudar”, normalmente faltando uns vinte minutos pro fim da aula, aí eu chegava na mesa e o papel dela praticamente em branco ainda. Era impressionante como tinha dias que a arrastava uma hora inteira sem desenhar nada, no máximo umas cinco linhas tortas e umas formas inacabadas. O grafite sempre tão fraco que eu ficava sem saber se era medo de errar ou preguiça. Já tinha entendido que o jeito era sentar ao lado dela e ensinar com calma tudo que ela tinha perdido por não ter prestado atenção em nada – na real, em tudo, menos na professora.
A doidona da Tolbert já tava querendo despachar a garota da aula dela depois de dois meses. Era impaciente de natureza, sabia que a gente ia se formar esse ano e já tinha sacado qual era a da . A professora me disse que poderia adiantar o exame final só pra ganhar dispensa, o que seria ótimo pra ela. Me pediu pra prepará-la e tudo, passou a posição do modelo pra prova e outros detalhes. Mas eu sabia que a Tolbert, rigorosa do jeito que era, nem fodendo ia aprovar a , enrolada do jeito que era. Foi então que a virou meu gafanhoto. Nisso ela era ótima. Não que eu fosse um Sr. Myagi, mas, porra, do nada Desenho de Observação virava o assunto mais interessante do mundo pra uma mina que parecia ter saído de um coma profundo toda manhã, sempre se esforçando pra não dar uma cabeçada na mesa. Eu merecia uma medalha.
Depois da aula eu chamei ela pra tomar um café comigo numa lanchonete vazia ali perto. Só pra compensar o sufoco que eu fiz ela passar ontem à noite na república, pedindo pra entregar um dinheiro pra Renée. Inclusive contei sobre a Renée, porque, claro, quem diria, foi a primeira coisa que a me perguntou. Mas o clima tava tão tranquilo que nem liguei. Era como tirar um peso das costas quando eu falava da Rennie pra outra pessoa, eu parecia menos louco. Eu sabia que a não ia me julgar. Ela tinha acabado de passar por uma parada parecida, me fazia pegar outra visão. Tava aliviada, mas ainda carregava umas marcas, e, meu irmão, eu tava doido pra chegar nesse ponto também. Alívio com cicatrizes era muito melhor do que mais um dia naquela montanha-russa de drama do caralho.
Eu fiquei olhando pra ali na mesa da lanchonete, felizinha e falante, pensando que ninguém diria que ela tava tão deprimida no final do ano passado. Ver ela assim me fazia sentir que existia uma saída, algo real ao invés de só uma armadilha na minha cabeça. Às vezes parecia o assunto ia acabar em minutos, aí a me pegava desprevenido com alguma bobagem completamente hilária, depois seguia falando pelos cotovelos sobre qualquer merda – dos irmãos em Lousiana, do ex que ela terminou por telepatia, do último filme ruim que ela viu, e dali pra um papo mais existencial eram dois pulos. Em Oakwood a gente conseguia ficar dez minutos calados olhando pro mar e eu não ficava planejando mentalmente três tópicos de conversa pra quando a pausa ficasse muito longa. Ali no campus a parada mudava um pouco. Ainda mais fora da aula. Quer dizer, eu continuava relaxado, a ficava muito mais inquieta.
Uma hora a gente ficou em silêncio, só se encarando, e ela reparando em mim. Eu tendo que segurar minha onda. Acho que foi o primeiro silêncio que durou mais de trinta segundos entre a gente naquele dia. Tá de sacanagem, por mim podia durar mais trinta, quarenta, mil, mas um silêncio de um minuto inteiro daqueles comigo olhando pra devia equivaler a uns vinte anos na cabeça dela. De vez em quando eu me perguntava se ela tinha uma quedinha por mim ou um troço desses.
Ela vivia me observando daquele jeito desde a primeira vez que a gente se esbarrou em Oakwood. Às vezes por uns segundos a mais que o normal, às vezes com um sorrisinho torto que ela engolia rápido. Mas era nas aulas de desenho que a vacilava mais. Igual hoje, quando eu tava explicando umas técnicas de proporções, ensinando como traçar a linha do pescoço até o trapézio sem deixar aquele ângulo artificial. Ela sabia fazer direito, porra. Tinha era preguiça. O negócio era que a preguiça sumia quando eu chegava perto, tomava o lápis e desenhava por cima do esboço dela. Aí ela pegava a manha rapidinho, rabiscava de novo e ainda acrescentava uns detalhes a mais.
A era boa em disfarçar, mas eu era melhor em perceber.
— Até que nosso ensino médio não foi de todo ruim, não é mesmo? — ela voltou ao outro assunto, olhando pro copo de café na mesa pela segunda vez. — Tirando a matemática, foi ótimo. Tenho boas lembranças.
— Não sei… Quero dizer, o colegial foi legal, mas foi uma época complicada da minha vida.
— Você é cheio de complicações, não é? Tenho que me acostumar com isso.
Eu sorri. Às vezes ela fazia uns comentários que eu nem sabia responder. Tava sempre curiosa sobre o que se passava comigo.
— É por isso que eu prefiro matar aula, se for pra ter momentos descomplicados assim. Como esse.
A olhou em volta. Tava se dando conta da situação só agora. E eu não ajudava. Deixava o silêncio pesar, deixava o burburinho do pátio sumir num segundo plano, tava nem aí se o meu joelho tava a um palmo do dela embaixo da mesa, e a gente nunca decidia se aumentava ou diminuía a distância.
— Pensei que a gente tava só se atrasando — ela disse.
— Já evoluímos.
— Hmm. Já estamos na terceira base da violação de regras?
Pra era muito fácil entrar na minha onda. A gente se entendia sem muito esforço. Eu ficava doido com um negócio desses, a gente se entender sem esforço. E quando ela entrava na minha onda, não dava mais pra parar. Eu gostava de ver até onde ela ia comigo. Ultimamente, era uma das minhas coisas favoritas de se fazer naquele campus deprimente. A ideia de estar com a em outro lugar naquela manhã, até em Oakwood, que ela queria tanto voltar pela terceira vez, de repente pareceu a mais brilhante que eu já tive na vida.
Levantei uma sobrancelha. — Quer fazer um home run?
— O quê?! — ela riu alto. A risada maluca sempre me pegava de surpresa. — Agora?
— Agora.
— Pra onde?
Eu abri a boca pra responder, mas alguém chamou minha atenção vindo de longe, atrás dela. No instante em que meus olhos focaram, minha cabeça travou.
Renée.
Fiquei olhando pra ela enquanto se aproximava da gente na lanchonete. Eu tava quase prendendo a respiração. A se virou pra olhar também e logo entendeu. Eu podia ver o raciocínio se formando na cabeça dela enquanto a situação toda mudava em questão de segundos.
— Eu... — ela começou a falar, meio arrastada, olhando pro nada. Tava tentando se readaptar ao momento. Finalmente, me olhou de novo. — Vou voltar pra aula e depois pro meu quarto repor o sono — ela bocejou. Claramente queria sair dali. — Oakwood pode ficar pra depois.
Eu sabia que deveria dizer alguma coisa, manter a situação leve, talvez até segurar a por mais um tempo, mas as palavras não vinham. Nada, nenhumazinha. Fiquei puto com isso. Porra, como eu odiava quando isso acontecia. A Rennie tirava meu foco de qualquer outra coisa. Antes que eu pudesse reagir, a se levantou e foi embora, deixando a cadeira na minha frente vazia.
Rennie sentou-se nela. Eu continuei calado.
— E aí? — ela disse depois de dar um grande suspiro. — Eu… queria pedir desculpas por ontem. Sei que fui meio… exagerada. Não consegui dormir essa noite porque fiquei pensando naqueles caras olhando pra gente enquanto eu gritava. Mas eu pensei depois, a música tava muito alta, não tinha como você me ouvir se eu não gritasse.
Quando os caras se juntavam lá na república pra fumar um, ainda mais pra assistir uma partida de futebol, qualquer mulher que aparecia virava o centro das atenções. Era o final da temporada contra os Giants ontem. Faltava só uma vitória pros Patriots garantirem uma vaga nos playoffs e a namorada do Connor apareceu bem no intervalo do jogo, justo quando todo mundo ia repor a cerveja e começava a falar um zilhão de merdas. Sem brincadeira, eles secaram a mina inteira durante o tempo todo em que ela esteve lá, só pra pegar uma chave ou sei lá o quê com o Connor. Os canalhas não conseguiam evitar nem por cinco minutos. Não faziam a menor ideia do significado de discrição ou coisa do gênero. Lógico que a Stella notou, deu pra ver na cara dela. Não tinha como não notar. Foi assim também quando a apareceu depois pra me entregar uns brownies do Alex. Foi pior ainda quando a Renée apareceu mais tarde pra tirar satisfações sobre o envelope com a parte da grana dela.
— É, eu sei — respondi. Eu só tinha conseguido dormir ontem porque fiquei muito chapado. Se não fosse por isso, minhas olheiras estariam que nem as dela agora. — Mesmo assim... Não precisava daquilo tudo.
— Tá, eu sei. Mas você sabe como o DeWolff é, . Ele não quer mais ninguém envolvido. E aí, do nada, a aparece no meu quarto com o envelope. O que eu deveria pensar?
Ela tava tentando ao máximo soar calma. Ao máximo.
— Você tá repetindo a mesma coisa de ontem, Rennie. Eu já te expliquei. A mora no Belva Hall também, foi só um favor. Nada de mais.
Eu também tava sendo um cretino. Na moral. Quando a apareceu lá na república, eu quase tive um troço. Quis tirá-la de perto dos caras o mais rápido possível, assim que fui me dando conta. Ainda mais do PJ. Tava na cara que ela dava mole pra ele toda vez, só o palhaço não tinha percebido ainda. Caralho, eu dei muito mole pra ontem. Não sei como ela não percebeu. Ou percebeu e ficava tentando entender qual é a minha, porque eu sou um maluco complicado, um bocado confuso. Não sei como ela tem paciência. Eu não teria a mínima paciência comigo mesmo.
A Renée virou o pescoço um pouco pra olhar pra trás. A tinha acabado de entrar no prédio de artes. Aí olhou pra mim de novo.
— Você sabe que o DeWolff ficaria irado se soubesse de um terceiro elemento.
— A gente não tá no Arquivo X nem nada. É só você não contar pra ele.
— Não se trata só de contar ou não, — ela revirou os olhos. — Não é assim que as coisas funcionam com ele. O DeWolff é paranoico. Ele monitora.
Era foda tentar ver através da fachada da Renée. Mas tinha coisas muito, muito pequenas que eu conseguia pegar no ar se prestasse mais atenção. Tipo o jeito que ela olhou pra trás quando viu a entrar no prédio.
— O que você quer que eu faça, Rennie? Que eu corte todo mundo de qualquer interaçãozinha da minha vida porque Nate DeWolff não vai gostar? Porra, aí não, né — eu reclamei. Minhas costas já estavam jogadas contra o encosto da cadeira. Eu queria muito sair daquele papo.
— Não tô pedindo isso. Só tô pedindo pra você... ser mais cuidadoso.
— Cuidadoso — repeti. Não era nada o estilo dela me pedir uma coisa daquelas. A Renée não era o tipo de pessoa que reparava em cuidado nenhum. Ela era o tipo que revirava o olho, estalava a língua e falava “azar”, mas em segredo memorizava o evento todo pra trazer à tona mais tarde. Eu podia sentar e esperar.
— Eu só… achei estranho. Só nós dois tínhamos essa coisa. E agora… — ela apertou os lábios, lutando pra não perder a compostura. Eu já sabia no que isso ia dar. — Por que você nem me consultou?
— A gente vai começar isso de novo, não é?
— Eu tô pedindo desculpas, ok? Eu só… não gosto de ser deixada de lado. Porra.
— A só te entregou o envelope. Foi só uma situação prática, Rennie. Prática.
— Não tem nada a ver com ela, — as mãos dela se fecharam levemente sobre a mesa. Estava tentando controlar o tom, mas eu sabia que ela tava mais do que incomodada. Quando me chamava de , então, é porque tava putaralhaça. — É sobre o DeWolff, o esquema. Você sabe disso.
— Beleza, e o DeWolff é só um cara que vende maconha barata pra você, não é o dono do mundo. Ele não controla a minha vida. E nem deveria controlar a sua.
Porra, me arrependi no mesmo segundo de ter falado aquilo. Toquei num ponto sensível. Me arrependi demais.
— É “só” isso, “só” aquilo. Você não consegue enxergar mesmo, né? Não é sobre controle, , é sobre evitar problemas!
“E o problema é a ”, foi o que eu completei na minha cabeça, mas não falei nada porque me senti culpado. Fiquei olhando pra ela, em silêncio, na mesma posição. Rennie cruzou os braços e se inclinou um pouco pra frente. Ela detestava quando eu não respondia nada.
— Você não confia em mim o suficiente pra me falar quando vai envolver outra pessoa. Isso é um fato. Mas… — ela parou, mordeu o lábio algumas vezes, claramente medindo as palavras, tentando se segurar. — Mas o que me incomoda mesmo é que você simplesmente acha que tá tudo bem. Acha que eu vou aceitar, que vou ficar de boa com uma amiga da Jenna aparecendo no meu quarto com um envelope cheio de dinheiro e... sei lá, não tem nada estranho nisso? Invadindo um esquema que deveria ser só nosso.
Eu continuei em silêncio, porque bem ali tava o ponto real. Mais do que o DeWolff, mais do que a com o envelope, era sobre ela. Rennie queria ser a prioridade. Sempre. Em toda situação.
— Você não pensa nem por dois segundos quando tá chapado, né? — ela continuou. — É claro que a vai contar isso pra alguém, . E a Jenna vai ser a primeira. O que você vai falar pra Jenna, hein? Já pensou nisso? Pode ter certeza que ela vai te questionar, como sempre, e pra variar você vai compartilhar tudo com ela sem a menor necessidade.
— Vou falar a mesma coisa que falei da última vez. Que eu contei o dinheiro errado e pronto — respondi tranquilo. Pra mim tava tudo bem assumir a culpa toda de qualquer merda só pra evitar estresse. Eu queria tanto que ela entendesse que tudo tava realmente sob controle, se estava mesmo preocupada só com nosso esquema. — Sabe que eu confio em você. Se não confiasse, não estaríamos nem aqui.
— … Tá, tanto faz. Eu só quero resolver isso e seguir em frente.
A Rennie começou a fingir desdém, claro, porque era o jeito dela de mascarar o quanto realmente se importava. “Tanto faz”. “Azar”. “Foda-se”. Tava sempre tentando agir como se as coisas não a afetassem. A maior ironia de todas era que ela não parecia confiar em mim, apesar de me cobrar confiança o tempo todo. Mas eu não seria o doido de questionar isso.
— Resolver ou esquecer? — perguntei, pelo menos. — Porque desculpa de verdade não é só passar uma borracha no que rolou.
— Tá bom… Desculpa de verdade. Eu sei que vai ficar tudo bem.
Rennie soltou um suspiro curto e, pela primeira vez desde que se sentou ali, seus ombros relaxaram um pouco. Ela passou a mão no cabelo, deixou a cabeça pender pro lado e me olhou, sorrindo só com os olhos, de um jeito que mexia comigo mesmo que eu não quisesse admitir – exatamente igual no último verão, na festa de praia onde a gente se conheceu. Então, ela esticou a mão por cima da mesa e tocou a minha. A intenção podia até estar ali, mas cada gesto dela continuou parecendo que só queria aniquilar a tensão anterior. De todo jeito, era raro a Renée pedir desculpas, tão raro quanto o cometa Halley passando na Terra, então tive que considerar.
Uma semana depois
Passei a noite no quarto da Renée, aí acordei umas seis da matina. Era foda dividir uma cama de solteiro naqueles dormitórios da Oyster. Dormi espremido contra a parede, meu braço tava formigando pra caralho embaixo do travesseiro e eu tava doido pra espirrar, mas não queria acordar a Rennie. Não ainda. Uma paz absurda pra ser desperdiçada assim. Segurei o espirro. Mexi um pouco pro lado. Aguentei uma pontada de dor no meu pescoço.
Fiquei olhando pro perfil da Renée, dormindo, tão diferente de quando tava acordada, tão... calma. Ela tinha esses cílios ridiculamente longos, umas sardinhas no nariz e um piercing no lábio que chamava a atenção. A mina tinha uma boca perfeita, até demais pra quem guardava tanta coisa. Rennie era linda. E quando ela tava assim, parecia alguém que eu mal conhecia, uma versão dela que eu só via quando o resto do mundo tava dormindo. Por um segundo, só por um segundo, a ideia de terminar pareceu loucura. Mas eu sabia que aquela calmaria era só um intervalo até a próxima crise.
Fiquei ali um bom tempo em estado de transe, repassando tudo o que eu iria dizer hoje pra começar logo A Conversa, sem muito drama. Era isso. Adiar o drama o máximo possível.
Eu devo ter dormido mais um pouco e nem percebi. Acordei com os dedos da Renée passando de leve pela barba do meu queixo.
— Oi — ela disse baixinho.
— Oi.
— Dormiu bem?
— Uhum… — fechei os olhos de novo. Tava doido pra chegar na república e passar o dia repondo o sono daquela noite. — E você…?
— Também — ela deslizou a ponta dos dedos pelo meu braço e não falou mais nada. Com certeza tava pensando em alguma coisa que ela nunca preferia dizer em voz alta. Eu deixei o silêncio ficar mais um tempo, ouvindo só o barulho do ventilador girando devagar no teto. — Vamos sair hoje?
Meus olhos se abriram como se tivessem levado uma marretada.
— Nossa, Rennie… Hoje?
— Minhas amigas vão naquele bar novo que abriu lá perto do Millard’s. Aquelas de sempre.
Eu fechei os olhos mais uma vez e esfreguei eles com as pontas dos dedos, só pra ganhar tempo de pensar numa desculpa. Eu odiava quando ela queria me arrastar pra um encontro só com as amigas. Porra, não tinha nada a ver.
Ela deu um suspiro rápido, meio irritado. — Hein, ?
— Hoje não, Rennie…
— Hoje não ou hoje nunca?
Eu abri os olhos. — Vai com elas, pô. Não quero estragar seu dia. Eu não tô muito a fim de sair hoje.
— Sério? Você vai me deixar ir sozinha, assim, sem nem perguntar quem mais vai?
— Ok… Quem mais vai além de vocês?
— O namorado da Tess.
— A Tess tá namorando?
Ela olhou pro teto, emburrada. Demorou uns cinco segundos a mais pra responder. — Tá. Com um cara do curso dela. A Tess nunca sabe o que quer. Agora tá nesse lance com esse cara, mas daqui a pouco terminam e ela desiste desse papelzinho de paty metida que ela adotou agora.
Sempre tinha alguma coisa assim entre as amigas da Renée, uma implicância do caralho disfarçada de crítica honesta. Elas eram quatro, todas meio góticas – menos a Tess, que tinha migrado pra outra vibe nos últimos tempos. Viviam coladas umas nas outras, parecendo aquelas minas do filme Jovens Bruxas, como se fossem as únicas que se entendiam no mundo. Mas as alfinetadas rolavam soltas toda vez que elas estavam separadas.
— Que horas você marcou? — perguntei.
— Umas seis, seis e meia da tarde.
— Passa lá na república depois, então… Pro bar eu não tô a fim de ir hoje, foi mal.
— Não, — ela soltou meu braço e apertou os dedos na própria testa. Fez a maior careta. — Não quero ir pra república. Tô cansada de lá. Tá sempre cheia de gente que eu não conheço.
— Então não vai, pronto. Relaxa…
— Você nunca se importa, né? — Ela empurrou o lençol da cama, se levantou e começou a vestir a calcinha. — Sei lá, às vezes parece que você não liga pra onde eu vou ou com quem.
— Por que eu me importaria? Você tá só saindo com suas amigas.
Ela soltou um risinho curto, mas o olhar me julgando. Vestiu o sutiã e virou de costas. Eu me sentei na beirada da cama.
— Sei lá, . Às vezes parece que nada mexe com você. Nada.
Respirei fundo. Porra, como era difícil uma janela pra um diálogo. Passei uma semana adiando aquele término e agora eu ia fazer isso de novo. Rennie puxou uma calça preta do armário, e enquanto eu esperava que ela terminasse de falar, ou pelo menos elaborasse um pouco mais, ela enfiou as pernas no jeans e começou a afivelar o cinto cheio de tachas na cintura. Eu acabei me levantando também e botei minha calça.
— Eu ainda não entendi qual é o problema.
— Tudo bem — ela vestiu uma regata, aí se virou pra mim de novo. — Eu sei que você prefere mil vezes ficar ouvindo música sozinho e fumando maconha hoje do que me encontrar, cara. Não precisa se explicar.
— Porra… Tá muito difícil aguentar isso. Na moral.
Eu terminei de abotoar a calça e fui calçar meu tênis. Cada par tava num canto, e uma meia eu não achei. Que se foda.
— Isso o quê? Me aguentar? Fala.
— Não, Rennie… Eu não--
O telefone dela tocou e eu dei graças a Deus. Engoli tudo que eu ia falar. Eu puxei ele do gancho, ao lado da cama da Renée, e estiquei pra ela pegar. Ela tomou o troço da minha mão com ódio.
— Alô?
A gente tava parado um de frente pro outro. Eu sem saber onde tava a porra da minha meia e da minha blusa. Tinha uma mulher gritando do outro lado da linha, mas não dava pra entender nada que ela falava com a Renée, que foi ficando mais tensa a cada segundo. A mão dela apertava o telefone com tanta força que dava pra ouvir uns estalos. Depois, com o que parecia ser um esforço gigante pra não gritar, ela respirou fundo, mas ainda assim não falou nada.
— O que tá acontecendo? — eu sussurrei. Eu li os lábios dela respondendo “mãe”.
Rennie virou de lado, ainda com o telefone no ouvido e perto de mim, e eu consegui ouvir uma parte do que a mãe dela falava.
— … Que a audiência começaria cedo. Eu falei com você, mas você não me escuta.
— Eu me esqueci, tá bom?! Esqueci completamente dessa merda.
— Claro que você esqueceu. Você não tá nem aí pra nada. E dessa vez não tem desculpa, Renée, seu pai precisa de você lá hoje. Toda a congregação vai estar lá, de olho na nossa família, esperando um deslize.
— Deixa eles verem que essa família não presta mesmo.
Eu fiz um sinal pra Rennie ir com calma. Toda vez que ela confrontava aquela situação, as coisas só pioravam.
— Não começa! Não começa! Seu pai já está sendo atacado, acusado de coisas que não condizem com a nossa fé, e o mínimo que a família dele pode fazer é demonstrar que está do lado dele.
— Para de falar do meu pai como se ele fosse um Deus, cara!
— E você é a filha desviada dele!
Rennie bufou alto.
— Tô falando muito sério, Renée. Não dá pra você aparecer lá hoje com essas suas roupas demoníacas. Nada mundano, nada preto e decotado. Coloca aquele suéter branquinho que eu te dei de Natal, bom que vai esconder suas tatuagens. Hoje você tem que ser discreta e decente, pelo menos uma vez na vida. Não precisa nem ser por mim, é pelo seu pai. Ele dedicou a vida a essa igreja e merece o apoio da família dele, da filha dele.
— Eu não tô acreditando que eu vou ter que ir nessa desgraça — ela falou quase chorando, mais desabafando do que tentando argumentar com a mãe. — Quando eu morrer, já sei quem vai tá me esperando na porta do inferno. Meu pai e a panelinha de hipócritas da igreja dele.
— Que horror, Renée. Minha nossa! Não te criei pra agir assim. É por isso que ninguém te aguenta! Ninguém te aguenta!
Putz, ela lançou quase a mesma frase que eu. Berrando, ainda por cima. Na mesma hora a Rennie me olhou, acusadora, com os olhos cheios d’água.
— Sempre tentei ser uma boa mãe pra você… — A mãe dela disse depois de um silêncio. — E você só me trata com despeito e superioridade. Você sempre se achou a mais inteligente, desde os quatorze anos. E com razão. Sempre foi mais esperta do que eu. Por que se afastou de mim? Só queria o mínimo do mínimo, que você gostasse de mim. Que fosse minha amiga.
— Nossa, mãe, já chega. A gente pode ter essa conversa mais tarde? Eu nem dormi direito e preciso me arrumar.
— Tá vendo? Quando eu tento me aproximar, você se afasta. Te aguentar parece que foi a missão que Jesus me deu. A cruz que eu carrego… Que Jesus me dê força e sabedoria--
Eu puxei o telefone da mão dela e devolvi pro gancho sem falar nada. Desliguei na cara da velha. Quando me virei pra Renée, ela tava tirando o cinto, depois arremessou na cama. Quase acertou em mim.
— Eu esqueci dessa porra de audiência do meu pai hoje. Em pleno sábado. — Ela tentou tirar a regata, mas parou no meio do caminho. Alguma coisa tinha agarrado no cabelo dela. Fui ajudar. — O que tá acontecendo?!
— Espera, vou olhar. Vira de costas.
Tinha uma mecha de cabelo dela presa numa alça do sutiã, perto do fecho. Depois que eu arrumei, ela mal esperou e já foi arrancando a regata do corpo, toda trêmula, aí foi pro armário de novo e vestiu o tal do suéter branco em estado de nervo. Ela foi pra frente do espelho e ficou se encarando, a uma gota de estourar.
— Ei… Rennie — eu parei bem atrás dela. — Não segura o choro. Eu também estaria bem puto no seu lugar.
— Não, não quero chorar. Só tô com vontade de quebrar esse espelho.
— Assim você vai arrumar um banho de sangue com a sua mão. Que tal só uma choradinha?
Ela riu, tombando a cabeça um pouco pra trás, deitando no meu peito.
— Calma, é só hoje — eu segurei a cintura dela. — Daqui a pouco esse processo acaba e você nunca mais vai precisar passar por isso.
— Eu tô igual uma princesinha da neve com essa droga dessa roupa.
— Pensa assim, não é você que tá sendo julgada. Você só tem que fazer presença.
— Pois é. Minha presença é a grande responsável pela fachada de família feliz. Irônico, não? — ela saiu marchando pelo quarto de novo, com pressa, aí terminou de tirar o jeans preto pra substituir por um azul. — Tomara que meu pai seja preso. Azar. Minha mãe é uma otária se acha que ele não desviou um centavo da igreja.
Rennie calçou os sapatos e ficou pronta. Ela achou minha camiseta em algum lugar, jogou pra mim e ficou me olhando, parada, enquanto eu vestia. Enquanto isso, eu já tinha aceitado que ia calçar um tênis sem meia.
— Ainda tô atrasada. Inferno… — O queixo dela enrugou, os lábios tremeram. Eu sabia que ela queria jogar tudo pro alto agora pra não ter que encarar aquilo hoje, mas não tinha outra saída. Rennie começou a chorar.
— Vem cá.
Eu estendi as mãos. Ela veio me abraçar, lutando pro choro não crescer mais.
— Eu só queria ficar com você hoje…
— Eu sei.
Senti a cabeça dela encostar no meu ombro. Eu a apertei contra mim. Rennie soltou uns soluços apertados, e eu passei uma mão devagar pelo cabelo dela, a outra pelas costas.
— Quer que eu te deixe em algum lugar?
— Não… Não precisa — ela fungou, aí ergueu o pescoço pra me ver. Os olhos dela, as bochechas, o nariz, estavam todos vermelhos. — Minha mãe disse que já chamou um táxi. Ele já deve tá vindo pra cá.
Puta merda, fiquei aliviado por não precisar participar daquele problema, mas me senti um saco de lixo por isso. Era sempre a mesma coisa, um alívio momentâneo seguido de peso na consciência. Só que a minha vontade de ter um tempo só pra mim naquele dia tava maior do que qualquer outra coisa.
Não tinha como ter uma conversa tranquila com a Renée sobre terminar – isso eu tinha que tirar de cabeça. Mas e aí, quando ela tivesse mais uma crise por um problema pessoal da próxima vez, quem ia segurar a barra dela? Quem ia ouvir, entender? Não tinha mais ninguém, porra. Eu precisava acabar com isso rápido, mas não hoje. Não agora. Tinha que esperar mais um pouco. Sempre mais um pouco.
Março/2000
O Connor tava tão distraído na boate que só agora se lembrou de ligar pra namorada. Ela tinha voltado pra Nova York mais cedo, mas o aeroporto extraviou a bagagem da coitada. Ele ainda prometeu que ia ligar meia-noite pra saber se resolveram o problema, mas perdeu completamente a noção da hora, aí a gente saiu e deixou os outros caras lá dentro, só por uns dez minutos, só pro Connor usar o telefone público, e eu pra respirar. O Club USA era abafado pra porra.
O estacionamento tava mais cheio do que o normal também. Tava rolando uma festinha famosa lá dentro da boate, mais popular entre as garotas, e elas estavam todas aglomeradas na pista de dança, e era por isso que a gente tinha ido. O Connor só foi porque era fominha de rolê, não aguentava perder um. Quando perdia, ficava choramingando por semanas que deveria ter ido, mas quando ia, ficava preocupado com a namorada. E aí eu tinha que ir lá pra fora esperar o cara terminar uma ligação, porque a Stella ainda era a número um, não importava onde ela estivesse.
Fiquei esperando o maluco do lado de fora da cabine telefônica. Eu já tava meio bêbado. Dei uma olhada numas garotas paradas perto da porta da boate, umas fumando, outras rindo sem motivo. Uma delas, com uma jaqueta jeans e cabelo longo, tava me encarando de longe. Era bonita, bem gostosinha, tava com um vestido colado e umas botas de combate, o cigarro parado entre os dedos. Pena que eu tava que nem um pobre coitado naquela noite, sem ânimo nenhum pra corresponder. Fiquei ali, sem saber se deveria forçar uma conversa ou só esperar o Connor, que parecia não ter pressa nenhuma.
— E aí? — perguntei quando ele finalmente saiu da cabine.
— Mais uma hora e vão resolver a treta. Vou lá buscar a Stella umas duas da manhã. Você me deixa ali na saída do campus quando a gente vazar?
— Deixo, tranquilo.
Enquanto a gente caminhava de volta pro clube, dei mais uma olhada naquela garota, principalmente porque ela continuava ali, meio que esperando que eu fosse fazer alguma coisa. Ela não desviava o olhar nem por um caralho, até o Connor reparou. Por um segundo cogitei puxar um papo, mas eu tava tão enrolado com a parada da Renée que a única coisa que consegui ter certeza foi que eu tava realmente sem saco, sem a menor vontade de dar chance pra mais um problema aparecer. Só passei reto e entrei de volta na boate, com o Connor me acompanhando.
— Por que não deu ideia pra ela? — ele perguntou quando a gente parou na frente do bar.
— Ah… Tô de boa, mano. — Eu olhei em volta. A boate era tão pequena e abafada que dava pra sentir o cheiro de desodorante no sovaco das pessoas. O resto dos caras nem tava mais ali no bar, na verdade, o pessoal todo ali dentro tinha migrado pra pista de dança. — Não tô no clima de puxar conversa, só isso.
Vimos os caras ali perto, de costas pra nós, observando o movimento da pista num canto. A gente acabou indo pra lá. Não deu nem pra ouvir o que o Connor falou com eles, ou o que eles responderam, porque o som tava estourando pelas caixas penduradas no teto. Lá longe, no fundo da pista, dava pra ver um palco pequeno, cheio de luzes piscando, e em cima dele, duas pessoas faziam uma coreografia da música. No começo achei que fosse mais uma dessas bobagens de boate, aí depois vi que eles estavam tão sincronizados que era surreal. Era um cara e uma mina. Eles manjavam muito do que estavam fazendo, isso era claro. Eu não sabia o nome daquilo, mas os dois faziam umas coisas de outro mundo, viravam de um jeito rápido, os braços, as mãos, aí giravam o corpo, trocavam de posição, paravam numa pose e continuavam como se estivessem ligados um no outro. E a galera em volta pirando, gritando, cantando junto. Até eu fiquei meio preso na cena, sem entender direito, mas impressionado. Nunca tinha visto um negócio daqueles fora da TV.
— Vambora lá pra fora que o som aqui tá muito alto — um dos caras nos chamou. Era o Davis, o mais esquentado. Normalmente ele tinha uma paciência de no máximo cinco minutos pra qualquer coisa, até pra assistir um filme. O cara já desistia na primeira cena que não tivesse explosões. — Vai começar a tocar só essas músicas pop de shopping agora. Daqui a pouco começa Mariah Carey também…
— Whitney Houston…
— Britney Spears…
A gente saiu do Club USA, e de novo estávamos no estacionamento. De fato foi um alívio escapar daquela zoeira lá de dentro.
— Spice Girls… — comentei.
— Backstreet Boys…
— Não, aí já é demais — Connor repreendeu o Davis. Eu dei uma gargalhada. — Aqueles dois no palco eram quem? Dançam muito.
— O DJ, Mike, e uma amiga, parece — ele respondeu. — O Mike que chamou ela pro palco.
— Que amiga, meu chapa — o outro comentou.
— Ué. Deu pra enxergar a mina dali?
— Deu o suficiente.
Todo mundo concordou em silêncio. Uns olhares trocados, meio de canto. Aquele “hm” coletivo que dispensava explicações. Tava escrito na cara de todos aqueles putos, inclusive na minha, o que tinha passado pela cabeça de cada um. Aquela mina era gostosa demais.
Depois de um tempo trocando ideia, bebendo uma cerveja atrás da outra e um debate que foi do extravio de bagagem da Stella a privatizações sugando o dinheiro público, o Davis me avisou que tinha uma garota prestes a vomitar no capô do meu carro. Nem acreditei de primeira. Eu tinha lavado a Chevy na garagem da república não tinha nem uma semana. Bem que podia ser aquela garota de antes, da porta da boate, pelo menos uma força maior me faria falar com ela. Mas fui até lá e nem sinal. Quem eu vi foi uma maluca aleatória com cara de enjoada – uma hora ela se inclinava no capô, outra hora num canteiro com arbustos ali do lado. Eu cheguei a tempo de puxá-la pra longe da caminhonete. De relance eu vi outra mina chegar correndo pra tentar ajudar, no mínimo uma amiga dela.
— Ei, ei, ei — eu falei pras duas. Já tava me embolando todo pra formular uma frase. — Continuem vomitando nas flores, meninas…
— Eu ia tirar ela daqui agora, juro.
Eu olhei pra garota que chegou depois, a que não tava dando PT. Quase confundi as duas. Ela tava ofegante, a pele brilhando suor e glitter, o olho todo maquiado.
Puta merda…
Puta merda.
— ?!
Ela deu aquela risada esganiçada. — Eu mesma.
— Peraí — a amiga desequilibrou no lugar. — Você conhece esse gato?!
Putz. Eu segurei os ombros dela quando veio caindo mais pro meu lado, aí ela jogou o peso todo de volta em cima da . Rebateu nela igual uma bola de pinball no fliperama.
Cara, meu Deus… A . Eu não podia beber mesmo, na moral. Toda vez que eu bebia e encontrava com ela fora da Oyster, a tava gostosa pra um caralho e eu ficava meio abalado. Dessa vez ela tava com uns sapatos que a deixavam quase da minha altura, uma calça cargo e um top pequenininho. Tava de sacanagem. Ele tinha duas cordinhas finas, quase invisíveis, amarradas bem na frente dos peitos dela, e uma que tava amarrada pelo pescoço. Nossa. Os caras da república pagariam pra ver a agora, de barriguinha de fora e com um piercing no umbigo, mas eu fui o grande premiado. Ela tava parecendo até com a mina que subiu no-- Não... Claro que não. Eu não podia acreditar num absurdo daqueles.
— Não, não, não, não. Peraí — minha língua enrolou trinta vezes pra falar enquanto eu chegava um pouco mais perto dela. — Eu vi uma garota exatamente com essa roupa dançando pra caralho lá dentro. Era você?
— Era — ela sorriu. Porra… Aquele sorriso grandão. Fiquei abalado outra vez.
— Você não sabia?! Ela e o Mike aaamam dançar — a amiga bebaça comentou, aí eu desviei a atenção por um segundo; no outro eu peguei a olhando pro meu beck atrás da minha orelha.
— Não, não sabia — respondi meio embasbacado. Na boa, eu nem tinha cogitado que era a no palco do Club USA. Caramba, ela era cheia de surpresas às vezes, meio impulsiva pra tudo e foda-se – mas sempre só por um momento-relâmpago. Não dava muito tempo e ela voltava com a testa franzida, aí reclamava de alguma coisa, calculava tudo ao redor como se o mundo fosse desabar a qualquer hora. Dessa vez eu até demorei a perceber quando os olhos de preocupação dela tavam vidrados em outro ponto atrás de mim, e eu não precisei nem olhar. Àquela altura os caras deviam estar que nem uns urubus de longe. Certeza que já entenderam com quem eu tava falando. — Relaxa, são amigos meus — eu disse pra . — Nem queira saber no que estão pensando…
Ela voltou a olhar pra mim, mais desconfiada ainda. — Já até tenho uma ideia. Que eu tô dando em cima de você?
Não deu pra segurar. Uma risadinha irônica foi escapando da minha boca. Mal sabia ela.
— O contrário.
— Jura?! — ela riu de novo. Tadinha. A morria de vergonha da festa de Ano Novo até hoje, e eu doido pra ela perceber que a gente já tinha passado daquela fase. Ela bem que podia dar em cima de mim de novo, eu não ia reclamar. — Eles não deveriam saber que você é compromissado?
Lógico que eu ia tomar uma lapada. A resposta era muito simples, “complicado”, mas não falei nada. Não tinha como falar. Depois de todas as nossas conversas na praia e no campus, quando a olhava pra situação entre a Rennie e eu, eu sentia que ela via tudo com uma clareza brutal – que eu tava preso, que eu tava emocionalmente envolvido de um jeito que eu não queria admitir, e ela sabia que eu tava me enganando quando eu tentava manter tudo no limbo só pra evitar um confronto maior. Qualquer merda que eu dissesse pra agora soaria como uma desculpinha furada, que era exatamente o que eu vivia inventando sem nem pensar duas vezes.
Nada tinha mudado.
Parando pra pensar, tinha algumas semanas que eu nem via a . Não aparecia nem nas aulas de Modelo Vivo. A Jenna tinha me falado outro dia que ela tava ocupada com outros trabalhos, mas, porra… não deixei de cogitar que ela também tava me evitando.
Só levantei os ombros e depois deixei cair de volta. Não tava a fim de prolongar aquele assunto, não. Queria continuar na tensãozinha safada que a gente tinha, ainda mais fora da Oyster.
— Que diabos isso quer dizer? — ela me imitou, zombando na cara dura. Seria mais fácil se a só aceitasse as minhas respostas vagas, mas era encanada com tudo.
— Quer dizer que “compromissado”... é uma palavra muito forte.
— Cê tá solteiro? — ela ficou genuinamente surpresa. Cara, nem a acreditava mais que eu ia terminar um dia.
— “Solteiro”... é uma palavra muito forte.
Ela ficou maior tempão com o olho revirado. — Você acabou de definir perfeitamente seu relacionamento com a Renée em duas frases, sabia?
— “Relacionamento”...
— É uma palavra muito forte, já sei. Que tal “complicação”?
— Perfeito.
Eu fiquei rindo, olhando pra ela. Pensei que talvez o meu lance com a Rennie não fosse mais uma simples curiosidade da . Era a barreira que ela colocava entre a gente. Se não fosse por isso… Meu irmão, se não fosse por isso, a gente já teria transado em umas cinco oportunidades diferentes.
— Depois você diz pros seus amigos que eu não dou mole pra caras envolvidos em rolos complicados.
Outra lapada. A mina era viciada em expor minha hipocrisia.
— Ah, não! — Fingi levar um tiro no ombro e me lancei um pouco pra trás. Ela riu. — Você acabou de destruir minhas chances!
Eu tava tentando manter o olhar onde devia, eu juro que tava me esforçando pra não descer só mais uns dois centímetros, dois centímetros de nada, e, sei lá, vai que eu queria lembrar se o top dela era azul ou verde. Ou vermelho.
Roxo?
Só uma olhadinha…
— Mas pode avisar pra eles que eu tô solteira, tem um ou outro ali que parece interessante. Não quer me apresentar?
— Porra, , assim você vai destruir o meu coração. Achei que eu ia conseguir pelo menos um encontro agora.
Ela riu comigo, mas sempre naquela disparidade. Enquanto eu soltava um riso baixo, quase controlado, a explodia numa gargalhada alta, e eu acabava rindo mais dela do que qualquer outra parada. Meu Deus, se essa mina chapasse comigo um dia, eu ia acabar passando mal só de ver a onda dela.
De repente, a amiga dela fraquejou as pernas e foi escorregando até desmontar completamente no chão. A ficou desesperada, agachou ao lado dela e tentou acordá-la de todos os jeitos. Eu também me agachei, do outro lado da garota, quase rindo do B.O.
— Merda. Já era. Tá apagada. O que eu faço, ?!
Mais uma quinta-feira. Todo mundo achava que eu sabia resolver tudo.
— Calma. Ela é sua colega de quarto?
— Não… Mas o quarto dela também fica no Belva Hall.
— Segura isso — eu entreguei minha lata de cerveja pra . — Chama um táxi, nem eu nem você podemos dirigir.
Passei um braço por baixo dos joelhos da garota, depois o outro por baixo de suas costas. Levantei ela daquele asfalto nojento, aí a saiu pra pedir um táxi. Ela voltou rápido, parecendo mais aflita do que antes, apontando pra rua, onde um carro amarelo tinha acabado de estacionar. Eu levei a garota até lá e a abriu a porta pra eu colocá-la no banco. Fiquei concentrado pra não esbarrar com aquela mina em algum lugar ou prender o cabelo dela ali sem querer. Ela ficou toda torta no banco porque derreteu assim que a larguei.
Eu dei um passo pra trás. A me devolveu a cerveja, entrou no táxi, e eu bati a porta pelo lado de fora. Como ela pretendia levar a amiga escada acima até o alojamento, era um mistério pra mim. A gente ficou se olhando pela janela nesse momento, aí ela girou a manivela e o vidro foi descendo aos poucos.
— Em que andar fica o quarto dela? — eu perguntei, segurando a minha latinha e apontando pra garota.
— No último.
— Acha que ela vai acordar até lá?
— Não sei… Acho que não. A Ally não costuma ser muito forte pra álcool — ela deu de ombros.
E é claro que ela não tinha nenhum plano em mente. Eu não conseguia deixar a se foder pra lá, puta merda, eu sempre acabava entrando nas loucuras dela. Também entrei no táxi e ela se arrastou pro meio do banco, só que a tal da Ally tava ocupando quase dois lugares, então eu e a ficamos colados um no outro ali dentro. O engraçado foi que ela até tentou evitar, mas não tinha como.
Eu dei as instruções pro motorista nos deixar no Belva Hall e ele começou a dirigir.
— Ficou maluco? — ela disse pra mim. Nem ligou que tava praticamente berrando perto do meu ouvido.
— Maluca seria você se subisse três lances de escada carregando uma pessoa. — Eu olhei pro motorista pelo espelho retrovisor, já puxando o beck da minha orelha e relaxando as costas. — Cara, se importa se eu fumar?
— Tô dizendo de deixar seus amigos pra trás. Cê não tava com eles agora mesmo?
— Ah, foda-se eles. Eu deixei minha Chevy pra trás, lógico que volto depois.
Eu acendi meu beckzinho rezando pro cara não reclamar do cheiro. Senti a me observando, mas nem falei nada. Não precisava. Depois de um tempo fumando na janela, fiquei completamente suave. Vento frio na cara, taxista meio desgovernado, musiquinha tosca numa estação de rádio. A colada em mim. Porra, fiquei suave demais. De madrugada os quarteirões de Bricktown pareciam cena de filme de zumbi, poucos carros cruzavam as ruas e os letreiros dos bares ficavam piscando com defeito. Uma paisagem daora.
— Dá pra acreditar que ainda temos aula amanhã?
Nem acreditei que era isso que ela tinha pra falar num momento daquele. A mina só pensava no futuro.
— Você vai? — Até me virei um pouco pra ela, que agora tava com o pescoço jogado pra trás. O corpo relaxado, mas a cabeça sempre gastando em outro lugar.
— Esperei você dizer algo tipo, “relaxa, nem precisa ir”...
Dei uma risada. A tinha uma preguiça do caralho. Fiquei com vontade de zoar com a cara dela.
— Claro que não. Amanhã tem seu exame final.
— O QUÊ?! — Os olhos dela quase pularam pra fora. Ela até despertou e se inclinou um pouco mais pra frente.
— Tô fazendo hora com você, . Amanhã tem aula normal.
— Putz, como você é chato.
Ela me deu um empurrão com o ombro. Eu só ria, olhando de volta pra janela. O beck já tinha até apagado na minha mão.
Quando a gente chegou no alojamento, eu saí do carro primeiro e fui pra calçada jogar o lixo fora, depois voltei pra buscar a Ally. A já tava em pé do lado de fora do carro quando eu cheguei abrindo a minha carteira.
— Não precisa, já paguei.
— Então fica com você.
— Não, , guarda isso pro seu táxi da volta — ela deu um tapa na minha mão, empurrando o dinheiro de volta. A era mesmo a última pessoa com quem eu precisava bancar o educado.
Tirar a Ally do carro foi mais difícil do que quando eu coloquei ela lá dentro. Depois que o táxi foi embora, a gente entrou no primeiro andar do Belva Hall; eu com a mina toda mole no meu colo. Só as luzes das escadas estavam acesas. Não tinha muitas garotas circulando, mas dava pra ouvir o falatório exaltado de dentro de alguns quartos, o que já me deixou meio tenso antes mesmo de chegar no terceiro andar. Mesmo achando improvável, ainda torcia pra que a Renée tivesse saído ou já estivesse dormindo agora. Mas fui seguindo a até o quarto da Ally, que ficava do outro lado do corredor.
Ela não conseguiu abrir a porta, aí ficou desesperada.
— Tá trancado, . Não abre!
— Vê se ela não tá carregando alguma chave.
A Ally tava com uma bolsinha aberta pendurada no corpo, onde a começou a fuçar, mas não achou nada. Eu já não sentia mais os meus braços. Ficar parado com a garota no colo era pior, não tanto quanto subir cada degrau daquela porra, mas minha bexiga também já tava explodindo depois de tanta cerveja.
— Não tá aqui — ela deu uma desanimada. — Quer saber? Leva ela pro meu quarto. Consegue?
Só pra dar uma aliviada no meu braço, ajeitei a Ally antes de seguir. A gente desceu um andar e foi pro quarto da . Tava tudo escuro.
— Pode colocá-la no sofá — ela sussurrou. Era até estranho ouvir a voz dela tão baixinha daquele jeito. — E fala baixo. Minha colega de quarto, Sadie, deve tá dormindo. Deve não, tenho certeza.
Eu botei a garota deitada no sofá, aí finalmente relaxei e fiquei olhando em volta. A configuração do quarto da era um pouco diferente do da Renée.
— Onde é o seu banheiro? — eu sussurrei. — Preciso mijar. Você liga?
— Quanta classe! — ela quase falou alto, meio puta. Era fácil demais deixar a pirada. Fiquei com vontade de rir. — Não, não ligo. Vem aqui.
Ela me levou pro quarto dela, quase um puxadinho, onde tinha um banheiro minúsculo, praticamente igual ao da Renée. A acendeu um abajur e eu finalmente pude enxergar direito. Vi um mural com fotos na parede, bem acima da cama dela, cheia de travesseiros, uma almofada cafona de coração e uma porrada de roupas espalhadas; quase tropecei em uns sapatos no chão a caminho do banheiro. A mina tinha revirado o armário inteiro antes de sair. Era a cara dela ficar preocupada comigo ali dentro – já tava meio inquieta na frente da janela, me analisando. Tava doida pra falar alguma coisa, eu tinha certeza.
Deixei ela fritando sozinha e entrei no banheiro. Só esperei.
— Eu não ACREDITO que você deixou a porta aberta, Seaver!
Nossa. Quase perdi o fôlego de rir.
— Sssssshhh! — eu fiz pra ela lá de dentro. — Você vai acordar a Sadie…
Fui pra pia lavar a mão e, assim que eu parei com a minha crise de riso, caiu um silêncio maior que o anterior. Entrei no quarto de novo e dei de cara com a , toda gostosa parada ao lado do abajur, na frente da janela, com as sobrancelhas lá no topo da testa e a boca meio aberta.
— Qual o problema? — eu fui andando até ela, mas parei de repente. Vi uma pedra roxa, cheia de brilho refletindo a luz, em cima da cômoda. Eu não botava fé nessas paradas de energia, mas reconheci na hora porque era uma coisa de quem tinha crescido cercado por hippies e amigos místicos. — Ah, cara, você também coleciona esses cristais encantados?!
— Não é meu. A Jenna me emprestou.
— Tinha que ser. — Eu peguei a pedra só de zoeira, tirei ela de cima de uma pilha de papeizinhos. O primeiro tinha o número lá da república anotado à mão. Nem acreditei. Até olhei mais de perto. — Por que caralhos você tem o número do meu telefone?
— Seu amiguinho, Alex, me passou naquele dia que a gente tava na praia de Bricktown. Eu achei no meu bolso depois.
— Hmmm… Que dia?
— No final do ano passado, quando a gente se conheceu. A gente tava na traseira da sua Chevy, lembra?
Paguei de louco. — Ah, sei, sei. Lembrei, o PJ me contou…
Puta merda, ela realmente tinha guardado o papel do Alex, e a gente achando que era lero lero. Então também foi real que eles se pegaram? Nem fodendo.
— E você? — perguntei. — Ligou pra ele?
— … Não.
— Hmm… — Eu cheguei perto dela. Sempre dava vontade de chegar perto dela. — Então quer dizer que você tem meu telefone esse tempo todo e nunca pensou em me dar uma ligadinha?
Ela encheu o peito de ar pra falar, mas não disse nada. Segurou o sorriso, com os olhos bem apertados, o cantinho da boca tremendo. Toda sem graça. Claro que ela queria me ligar, porra.
— Por que eu te ligaria?
Não sei por que eu achei que ela ia admitir isso sem antes tentar me enquadrar. Tranquilo, eu tinha que mostrar. Fiz uma mão de telefone – polegar no meu ouvido e mindinho na minha boca.
— Alô? Alex Rose? — imitei a vozinha dela, uma oitava mais aguda. — Não, quero falar com aquele amigo seu, gato pra caralho. Isso mesmo, o nome dele. Passa pra ele, por favor.
Ela deu a maior gargalhada. Eu já tinha recolhido o braço, achando que o momento tinha passado, mas a levantou o dela também e me imitou.
— Oi, . Pode falar — ela fez uma voz grossona. Tive que segurar pra não rir. — Hmm? O que eu tô fazendo agora? Ah… Sei lá, cara… — Nem acreditei quando ela fingiu tragar com dois dedos, depois soprou um arzinho na minha cara. — Fumando minha erva… Desenhando umas paisagens… E você?
Nunca senti tanto tesão com uma mina fumando o nada antes. Eu voltei pra realidade e levei minha mão de telefone de volta pro rosto.
— Eu? Ah, eu tô dançando Backstreet Boys no meu quarto.
Ela riu. Mas não deixou barato.
— Preciso desligar, tenho que polir minha lata velha de trinta anos atrás — ela tava adorando tirar sarro. — Me ligou por quê, hein, ?
— Cê quer saber o purquê? — Zoar com o sotaque dela era pedir pra apanhar, e não deu outra, levei uma cotovelada no estômago. Eu comecei a rir, aí voltei com a minha voz normal. — Calma, vou te falar. Presta bem atenção... Tá prestando?
— Tô... Fala logo.
— Te liguei porque tem uma coisa bem errada aqui, não é, ? — eu imitei o jeito dela de falar o meu nome, sempre naquele tom de acusação. — Só eu tenho o seu número. Vou consertar isso e anotar o meu pra você agora. E vê se me liga.
Eu desfiz o telefone e estendi a palma da mão pra ela, aí dei uma piscadinha cretina só pra fingir que a que me dava mole – a versão que ela tentava esconder. Ela ficou paralisada, me olhando, lutando contra a própria língua pra não soltar a primeira tiradinha rápida que ela tinha arquivada no cérebro. Na moral, era bom demais chegar naquele ponto, quando dava pra ver a vontade de me confrontar explícita no olhar dela, mas, na real, tava na minha onda…
A foi rapidinho até a cômoda e voltou com uma caneta, que ela destampou com os dentes, depois prendeu a ponta solta entre os lábios. Ela chegou bem perto. Tava cheirosa. Meu irmão, ela começou a escrever na palma da minha mão e eu fiquei viajando na boca dela apertando a tampa da caneta. A fazia o troço mais bobo do mundo e eu faltava ajoelhar e pedir pra ela sentar na minha cara. Com ela nunca precisava de muito, ainda mais quando eu tava chapadinho.
A gente tinha que assinar os desenhos nas aulas de Modelo Vivo, e toda vez a assinava com uma letra redonda. Tinha até uma carinha feliz no final do nome dela, dois pontos e um sorriso que emendava na linha da última letra. Essa era a . E agora ela tava fazendo um monte de curvas na minha mão, só pra escrever uma simples sequência de números, porque é claro que a porra dos números tinham que sair bonitinhos.
— Pronto — ela tampou a caneta, aí olhou pra mim de novo. Tava tão gata.
Eu levantei minha mão pra ler o que ela tinha escrito. Nenhuma carinha feliz. Fiquei triste.
— Isso é um cinco ou um quatro? — enchi o saco.
— Um quatro perfeitamente legível. — Ela queria rir, mas tava puta, aí fazia essa coisa com a boca de entortar um pouco pro lado, com os lábios espremidos. Ficava toda bochechuda. — Agora pode voltar pro seu rolê, porque eu vou dormir. — As mãos dela me viraram de costas, foram me empurrando com a força de um mamute, e eu não parava de rir. Ela me enxotou até a porta do dormitório. — É sério. Se quer que eu volte a frequentar suas aulas, preciso regular meu sono.
— Beleza — me virei de frente pra e segurei a maçaneta, lentamente, fazendo de tudo pra estender o tempo. Dei uma última olhada nela toda, foda-se. Aí resolvi deixá-la em paz. — Te vejo amanhã.
Fechei a porta pelo lado de fora querendo que tivesse sido pelo lado de dentro. Mas foi só olhar em volta, pro corredor do Belva Hall, que veio o baque da realidade. A Renée veio na minha cabeça e todo resto que me fazia sentir um peso de toneladas nas costas. Eu fiz o caminho todo até lá fora pensando nisso, só aí lembrei que eu ainda precisava pegar um táxi de volta pro Club USA.
Quando cheguei lá, uns três caras ainda tavam no estacionamento, mais perto da Chevy. O Davis tava meio inclinado na lateral do carro, gesticulando enquanto contava alguma história. Um deles, acho que o Matt, tava sentado no chão, apoiado no pneu traseiro, rindo tanto que mal conseguia segurar a garrafa. De vez em quando dava uns tapas no joelho, ofegante de tanto rir.
Eu andei até eles, e quando me viram, fizeram a maior algazarra. O Matt até se levantou.
— Tava onde, paizão? — O Connor deu um tapa nas minhas costas. Ali no meio deles tava um cheiro concentrado de cigarro e cerveja, o mesmo que a gente sentia só de entrar num bar de beira de estrada. — Achei que eu ia ficar sem minha carona. A Stella ainda tá me esperando.
— A gente já tava apostando aqui que você não ia voltar hoje — o Matt comentou.
— Ih, olha lá — o Davis apontou pra minha mão. — Pegou o telefone daquela mina? Mas já? Da dançarina ou da outra?
Continuei calado.
— A única que tava em condições de fazer essa caridade pra ele, ué. A outra desmaiou.
— Vai se foder, Matt — eu falei.
Eles riram.
— Cara, foi tão fácil assim? Achei que você ia levar um fora monumental — o Davis quis fazer graça. — Dei mole, eu devia ter salvado a Chevy antes de te avisar.
Porra, que canseira. Eu não tinha pensado em consequência nenhuma quando pedi pra anotar o número dela na minha mão. Era carniça fresca pra esse bando de abutre.
— Pô, — o Connor voltou a falar —, achei que você “não tava no clima de puxar conversa” com ninguém hoje…
— Pois é, ainda não tô — eu fui tirando a chave do bolso, aí destranquei a Chevy.
— Imagina se tivesse.
— A gente já se conhecia, beleza? Ela é amiga da Jenna — eu expliquei enquanto abria a porta. — Só vi que era ela depois.
— E aí, rola de você fazer essa ponte pra mim? — Davis pediu. — Me dá essa moralzinha, . Por favor.
Dei a risada mais alta do mundo e pulei pra dentro da cabine. — Nem fodendo. Vambora.
Eles entraram pelo outro lado, aos berros e enchendo o saco, aí eu liguei a caminhonete e comecei a manobrar pra sair do estacionamento. O Matt foi na traseira, mas com a cabeça pra dentro da janela atrás da gente. Eu nunca mais teria sossego se esses caras soubessem que a também me pediu pra apresentá-la pra eles, e era a cara dela ter olhado pro puto do Davis. Ele era meio metido a galã.
Depois de deixar ele e o Matt no alojamento, deixei o Connor na saída do campus e finalmente fui pra república. Sozinho. Na paz celestial.
Na sala tava tocando meu disco do Fleetwood Mac na maior altura, um cheiro de erva no ar. O PJ tava jogado no sofá, o Alex e a Jenna tavam fumando um, sentados no chão, batendo papo e laricando um saco de batatas. Eu deixei as chaves na mesa e me juntei a eles. Empurrei as pernas do PJ pra me dar espaço, me joguei na ponta do sofá e tive uma ideia de merda – tomei o resto de vodca que tava largada na mesinha de centro.
— Quer uma? — Jen me ofereceu as batatas. Eu me estiquei pra pegar, mas arrependi na mesma hora, porque ela olhou direto pra palma da minha mão rabiscada. Toda hora eu esquecia dessa porra. — O que é isso aí, hein? Deixa eu ver.
— Nada… Fica de boa aí.
— Hmm, conseguiu o número de uma gatinha na boate, é? Quem?
— Ninguém que você conhece.
— Ah, eu não conheço? Entendi… E você? Conheceu ela hoje?
Não, não era possível. Não era possível que tinha dado tempo dela ver que era o número da . No mínimo a Jenna tinha que saber o telefone de cor pra sacar aquilo.
— Sim, no Club USA — respondi. — A gente acabou de voltar de lá.
— Que bacana conhecer novas pessoas, né.
— Bacana demais.
— Essa menina deve ser muito interessante pra você ter pedido o telefone dela…
— Deve ser.
— E ela deve ser bonita também, né.
— Não sei. Você acha?
— Eu não acho, tenho certeza.
— Ah, você tem certeza…
— Tenho. — A gente começou a rir. Como era filha da puta. — E essa tal garota anônima é engraçada, né? Olha a gente rindo por causa dela.
Eu ri mais ainda. Tava fodido. Não consegui cortar o barato dela de jeito nenhum. Chapada, então, a Jenna nem cogitaria parar de me pentelhar. Da última vez que a gente ficou doido naquele nível, ela entrou numa pira de que meus chakras tavam desalinhados, principalmente o da garganta, porque eu “falava merda pra caralho”, aí a gente ficou discutindo no meio daquela mesma sala, enquanto eu tava lá, vazando vodca pelo nariz.
— Ah, Jen… — Eu estalei a língua. Joguei a cabeça pra trás. — Vai se foder, vai.
— Eu também tenho uma amiga engraçada, olha que coisa.
— É mesmo?
— Aham. O telefone dela termina com meia sete quatro.
— Igual esse aqui? — eu abri a palma da minha mão pra ela. Foda-se.
Sendo uma fingida do caralho, ela levou a mão à boca como se fosse um choque absurdo. — Esse mesmo. Que coincidência, !
— É muita coincidência mesmo.
Ela começou a rir, aí eu comecei a rir, e no próximo minuto inteiro a gente ficou rindo um da cara do outro.
— Será, , que a gente tá falando da mesma pessoa? Hmmm…
— Pede pro Universo essa resposta.
— O Universo já me falou — ela cruzou as pernas no chão, fechou os olhos só por dois segundos e fingiu meditar. — É ela.
— Essa vibração sua aí tá meio falha.
— Fuma esse hash aqui pra ver se tá falhando mesmo.
Ela pediu o baseado pro Alex, que passou pra mim. Nossa, não tinha nada melhor do que quando eles conseguiam maconha de qualidade sem a minha ajuda. Eu traguei igual um necessitado. Com certeza ia pra outra galáxia ainda hoje, especialmente ouvindo aquele disco. Nem precisei olhar pra ele girando pra saber que já tava no solo final da sétima música, e quando aquele riscado da agulha trocou a faixa do LP, You Make Loving Fun entrou suave. Ouvir música chapado era bom demais. Uma janela abria na mente, aí ela ficava livre da porra de qualquer coisa que pudesse me aborrecer. Tudo virava fumaça, leve o bastante pra sumir, mas uma mente desarmada também era um campo fértil pra pensamentos de merda.
Fumar maconha era um jogo arriscado. Isso já me fodeu no começo, mas com o tempo aprendi o truque. Eu não fumava só pra me desligar da realidade, às vezes eu fumava porque queria abrir espaço dentro da minha cabeça pra processar as coisas de um jeito diferente. Não era mágica nem nada, era mais um treino mental – eu deixava os pensamentos ruins passarem, quase como um filme, e eu ficava suave, só de espectador. Isso me trazia altas reflexões internas que ficavam comigo, mesmo depois que eu apagava um baseado.
A alma foi descolando do corpo e eu fui me dissolvendo na música num transe bom da porra. Ouvia até uns instrumentos que eu nunca tinha reparado antes. Dependendo do momento, os versos vinham igual uma pancada no peito. E quando o baixo do John McVie entrou mais pesado, depois o piano elétrico e a voz da Christine, a começou a invadir minha cabeça, do jeito que ela sempre fazia quando eu tava distraído.
Me veio na hora aquele dia em Oakwood, quando ela surtou por causa de um jornal velho que tinha achado no chão de um bangalô caindo aos pedaços. Ela ficou toda animada, querendo levar o troço pra casa, só que do nada a deu um grito tão alto lá de dentro que eu pensei que ela tivesse visto um cadáver. Quando entrei correndo, ela tava no chão, agarrada na lanterna, jurando que tinha dois bichos ali iguais aos aliens de Homens de Preto. Eu ajudei ela a se levantar e ainda fiquei iluminando o lugar pra ela ver que não tinha nada. Mas quando a gente saiu pra varanda, lá estavam os “alienígenas”. Eram só duas lagostas. Aí a gritou de novo, saiu correndo pelas escadas, quase tropeçou na areia, e eu só lembro de ficar olhando, meio fascinado com aquele pânico imaginário que ela não teve vergonha nenhuma de esconder. Simplesmente cagou pra dignidade e abraçou o terror completo por duas lagostas, porque sim. Ela mesma batizou os crustáceos de “ácaros gigantes do mar”, e a cara dela de maluca me fez gargalhar sozinho por uns dois dias seguidos.
Ouvindo Fleetwood Mac, lembrei do jeito dela segurando o riso depois de se dar conta da própria insanidade. Lembrei também das conversas que a gente tinha, que faziam tudo parecer menos complicado. Era como se a tivesse sentada ali comigo agora, no meio da minha brisa, sem nem pedir licença.
Vários dias depois
Minha mãe foi hippie nos anos setenta, dessas que rodavam com os amigos num fusca lotado. Mas depois que meu pai saiu numa viagem sem volta pela Europa, ela trocou as chaves do fusca pelas de uma Chevy velha que ele deixou pra trás. Nunca ouvi ela reclamar, mas também nunca vi apego àquele carro.
Eu devia ter uns oito anos quando perguntei de quem era a caminhonete verde na garagem. Minha mãe dizia que ela era um presente que meu pai deixou. Só que, pra mim, o carro sempre foi mais dela do que dele. Foi na Chevy que ela me levava pra escola, que ela ia pro trabalho quando ainda fazia estágio como advogada, ou pra casa da minha avó quando a grana apertava. Era ela que fazia o carro andar, não um cara que eu mal vi na vida.
Cresci sabendo dirigir aquela porra antes mesmo de ter idade pra tirar carteira. Eu tinha uns amigos no bairro, maioria beirando a minha idade, e a gente tinha mania de sequestrar a caminhonete quando minha mãe não tava olhando. Normalmente quando chegava cansada do trabalho e queria esquecer do peso do mundo dentro de casa. Ela escondia as chaves, mas eu já tinha aprendido a ligar o carro com os fios. Ela nem notava quando a gente saía.
A gente dirigia até uma ferrovia distante, atrás do estacionamento gigante e vazio de um Walmart. Ficávamos sentados na traseira da Chevy, esperando o trem passar e apostando figurinhas, zoando um com a cara do outro até cansar. O mais velho do grupo sempre trazia uns cigarros amassados do bolso. Eu odiava aquela merda, tossia igual condenado. Era quando eles ficavam lá, fingindo que curtiam aquele lixo e cuspindo fumaça, que eu começava a rabiscar no meu caderno.
No começo era só pra tirar onda. Desenhava o Tyler com cara de gambá, o Marcus olhando pro céu igual bobo, e naquela fase de desenhar pintos em tudo que era canto, eu fazia um bem no lugar do nariz do Rick, só porque ele falava que os meus desenhos eram “coisa de retardado”. Mas aí, sem querer, fui pegando o jeito de desenhar a paisagem ao redor da gente. Aquele estacionamento largado, só com uns carrinhos de compra tombados, o trem da ferrovia cortando a cena lá longe, carregando aqueles containers imensos. E o sol se pondo do mesmo jeito todo dia, com ou sem a gente ali pra ver.
Não era exatamente bonito. Era real. Tinha algo naquilo que me prendia.
Com o tempo, os rostos foram sumindo dos meus desenhos. Só sobraram os lugares.
Quando adolescente, comecei a usar a Chevy pra escapar. Nem sempre tinha lugar pra ir. Até hoje eu curtia dirigir sem rumo, ouvindo música. Era nessas horas que eu entendia o tipo de cara que meu pai foi: sempre indo, nunca ficando.
“Foi mais fácil assim pra ele”. Eu ouvia coisas assim direto. “Seu pai é um espírito livre, . Não dá pra segurar um homem assim.” E a justificativa logo depois: “mas ele nunca deixou a gente na mão, tem muita gente que nem isso faz.” Minha mãe guardava os extratos igual uma coleção de justificativas, e minha vó vivia repetindo que “pelo menos ele assume as responsabilidades”. Naquela época nada disso me dizia o que eu queria saber, na real. O dinheiro dele caía todo mês, mas não explicava por que ele nunca nem tentou ficar. A raiva foi só acumulando, quieta, porque parecia que eu era o único que me sentia daquele jeito sobre o meu pai. Todo mundo tratava ele como se fosse gente boa do jeito que era, mas isso não era suficiente pra mim. Nunca foi. Todo mundo lá em casa sempre achou que um cheque compensava uma presença. Um homem que pagava as contas já era um bom homem.
Uma vez falei pra que a minha adolescência foi complicada, só pra não esparrar logo de cara que foi solitária pra porra. Foi quando a realidade passou em cima de mim tipo um rolo-compressor.
Já perdi a cabeça um dia. Devia ter uns quinze anos. Achei uma caixa de sapato na garagem, com o nome do meu pai escrito com a letra da minha mãe. “Esquecidos do Ralph”. Tinha umas coisas aleatórias, tipo chaveiros antigos, uma carteira de couro detonada, um isqueiro Zippo. Umas HQs do X-Men meio rasgadas. Até um cantil, que eu usava até hoje. Uns lixos. E, no fundo, um monte de desenhos meus, daqueles bem infantis, de bonequinhos de palito e tudo. Ao lado de todos eles, nos papéis, tinha outros desenhos feitos com muito mais capricho, cheios de detalhes. Era como se meu pai tivesse sentado comigo um dia e me mostrado como fazer. Só que eu não lembrava nada disso. Nem fazia ideia de que ele desenhava, muito menos que tinha tentado me ensinar.
Lembro de ter passado maior tempão comparando os meus rabiscos com os desenhos legais do meu pai. De ficar admirado com os personagens que ele criava, bem cartunescos. Ele sempre dava um toque engraçado neles. O herói era todo musculoso, mas com uma pança de chope, e o ajudante dele tinha um bigodão preto e umas asinhas de fada. Lembro de me perguntar se o Ralph contava histórias sobre eles enquanto desenhava pra mim. Era como se aqueles desenhos bobos guardassem uma memória que eu mesmo não conseguia acessar sozinho. E não tinha nada que eu odiasse mais, e doesse mais, do que lembrar que meu pai poderia ter existido. Lembro do estalo que isso meu deu naquele dia. Quando vi, eu já tava chutando tudo, quebrando a garagem inteira. Até hoje meu indicador da mão direita era meio torto por causa do soco que eu dei na lataria da Chevy. Fiquei tão puto que passei anos sem desenhar nada.
Quando eu saí de Boston e fui morar com a minha avó, eu vi meu pai algumas vezes. Não foi nada emocionante, foi mais um incômodo, porque só serviu pra reforçar que ele continuava distante. Fez perguntas sobre a faculdade, sobre a vida, mas dava pra ver que ele não sabia onde encaixar resposta nenhuma. Tudo parecia tão automático que era quase pior do que a época que ele simplesmente não aparecia. Nem com a Chevy a gente conseguia uma conexão, porque ela também era mais um Esquecido do Ralph, só não cabia numa caixa.
Eu também já tava meio desligado de tudo. Desapegado. Acostumado com o isolamento. O Ralph já tinha outra vida, outra família, em outro lugar, assim como a minha mãe também tinha a dela. Passei a ser um figurante que nem eles e saí de cena, só porque eu tava doido pra ser o único responsável pelas minhas merdas, pelo menos uma vez, ao invés de pagar o pato pelas merdas dos outros.
Era nisso que eu tava pensando enquanto dirigia a Chevy agora. Porra, era essa parada toda que me ligava à Renée. A gente era confuso, dois perdidos sem muitas raízes. Eu, que nunca fui a prioridade de ninguém antes, até que curti ficar com alguém que tinha a necessidade de me ter por perto o tempo todo. E ela, tentando ser compreendida, fez a gente se entender nesse espaço fodido de invisibilidade. Um espaço que já foi bom antes, depois me sufocou tanto que não fazia mais sentido nenhum ficar. “Sempre indo, nunca ficando.” Eu adiei pra caralho escolher ir embora só pra não caber naquele rótulo.
Há dias eu tava tentando encontrar com a Renée. Eu dei uma ligada pra ela no domingo e disse que a gente precisava trocar uma ideia, mas depois ela desmarcou. Agora, no meio da semana, por sorte consegui falar com ela de novo. Aí a gente marcou de sair depois de uma aula dela à noite, e então passar lá na república, pra onde eu tava dirigindo. A Renée tava no banco ao meu lado, afastada, trocando a estação de rádio toda vez que a música desagradava.
— Você viu a Tess hoje? — ela comentou, quase como se tentasse desviar um assunto que ainda nem tinha começado. Era a terceira vez que ela falava de alguém. — Não sei como ela aguenta o namorado. Ele é um mala.
— É… — Eu tava mais preocupado em ultrapassar a porra de uma Hilux fazendo zigue-zague na minha frente.
— Tipo, sério. Você reparou como ele fica bancando o fodão?
— É o que mais tem nessa faculdade.
— A Tess tinha me falado que era super inteligente, sensível e blá-blá-blá, aí a gente conhece o indivíduo e ele passa horas dando lição de moral sobre qualquer coisa. Fala sério. Muito engomadinho.
Ela riu, e eu sorri de canto, ainda meio distante. Até tentei engatar na conversa, porque o cara era realmente um porre, mas eu não tava conseguindo desviar da minha própria mente. Eu nem tinha preparado nada pra falar como das últimas vezes. Tava confiando no meu taco, no que tava acumulado e pronto pra sair quando a gente chegasse na república.
— Alô-ô? ?
— Hmm?
— Fala alguma coisa.
Eu parei pra pensar no que dizer, e jurei que teria uns dez segundos pra isso, mas pelo visto eu só tinha dois.
— O quê? — ela retrucou, pronta pra começar uma briga caso eu continuasse calado. — Agora você não tá mais falando comigo?
Passei a mão pelo rosto e apoiei o cotovelo esquerdo na janela do carro.
— Não, Rennie… Eu só tô mais reflexivo esses dias. Desculpa, não prestei atenção no final. Fala de novo.
— Você tá chapado, né?
— O quê? Não.
Cara, fiquei puto. Não sabia se ela tava me provocando ou só tentando me entender. O foda era que ela sabia exatamente como virar o jogo, então me deixar desconfortável era uma vantagem pra Renée, com aquela mania desgraçada de contar os pontos num placar.
— Sei, sei. Eu aposto que você fumou um baseado inteiro antes de me chamar pra conversar. Não caio nessa. Você só fica confiante e reflexivo assim depois de uns tragos. Eu te conheço.
Ah, cara… Não era possível. A gente já tava quase chegando na república. Quase. Sem brincadeira, faltava uns seis quarteirões. Parecia até que a Rennie não queria que a gente chegasse – era melhor me cutucar primeiro e arrancar alguma reação, aí a conversa inteira seria pautada por ela. Foda-se se eu tinha algo pra falar antes. E tava funcionando. Porra, tava funcionando muito.
— Tive uma ideia — eu olhei pra ela por um instante, desacelerei e comecei a procurar um lugar pra parar. — Pra quê esperar, né? Vamo conversar agora.
— Como assim agora?
— Agora, ué. Eu não tô com pressa de ir pra outro lugar. Você tá?
Eu encostei a Chevy no meio-fio, um pouco mais à frente. A rua tava tranquila. Àquela hora só tinha uns andarilhos voltando do campus. Aí, desliguei o carro, o motor foi morrendo aos poucos e o silêncio pesou rápido. Acho que a Rennie não tava esperando nada daquilo. Eu tirei meu cinto de segurança e acendi a luz no teto, depois me virei de lado pra olhar pra ela, que tava estática no banco, colada na porta. Ela olhava pra frente, a cara fechada. Nem parecia que tava respirando. Tava tão quieta que qualquer movimento meu ia fazer a coisa toda desmoronar.
— O que você tá fazendo, ? — A voz dela tava trêmula, só um pouco, mas eu percebi. Ela virou lentamente pra me olhar. Ainda tava presa, agarrando o cinto com uma mão perto do pescoço. — Ficou maluco, cara? Tá achando que a gente vai ter uma DR no meio da rua? Sério, eu tava numa boa — ela começou a respirar de um jeito mais acelerado. Cortando as palavras. — Eu tava… numa boa… e você me fez ficar assim de novo, estressada.
— Rennie, calma--
— Não, para! Eu não aguento mais brigar!
— Rennie, é você que tá brigando comigo, porra! Esse tempo todo! — eu falei mais alto, sem querer. Me arrependi no mesmo segundo. Mas o arrependimento não durou nada, porque, caralho, foi bom demais deixar escapar o que eu realmente tava sentindo. — Sabe por que eu parei o carro? Porque eu precisei pensar! Pensar antes de me deixar cair nessa porra desse seu jogo. É sempre o que eu preciso fazer toda vez que eu tento conversar com você, e eu nem tô falando só de terminar. É qualquer conversa. Não importa se eu tô puto, de boa, ocupado, livre, chapado, sóbrio, foda-se. Não importa se eu tô levantando uma bandeira branca, você arruma um jeito de me encurralar.
— Encurralar como? — ela rebateu, mas tremulando ainda mais, os olhos começando a ficar vermelhos. Era o momento que normalmente eu voltava atrás, cancelava a briga pela paz e todo mundo seguia em frente.
— Do jeito que você sempre faz! — Senti minha voz rasgando por dentro da garganta. O oposto do tom ponderado que a Renée tava acostumada. — Você interrompe, muda de assunto, joga a conversa pra mim, como se eu fosse o problema, como se tudo que eu dissesse fosse só munição pra você me desarmar. Não dá nem pra terminar uma frase sem você revirar tudo contra mim. É impossível, Rennie, na moral. Você quer sair por cima o tempo inteiro, e se não consegue, você faz questão de me deixar mal por ter tentado. É sempre uma armadilha. Sempre.
— Armadilha?! — ela falou mais alto ainda, depois soltou uma risada de nervoso. — Você acha que eu planejo essas coisas? Que eu fico armando pra cima de você? Isso aqui é uma conversa, ! A gente tá resolvendo, é o que você queria, não é? — Ela ficou colocando mechas e mais mechas de cabelo atrás das orelhas, como se tentasse se recompor, mas o olhar tava disperso, os olhos piscando rápido. Ela ainda não tava realmente tentando encarar o que eu tava dizendo. Não mesmo.
— Sério, Rennie… Não dá pra conversar com você.
— Então fala, ! Briga comigo! Eu quero te escutar! — a voz dela explodiu na cabine. Mais aguda do que o normal. Aí, começou a chorar, meio que assustada com o próprio grito. Eu pisquei e a Renée derrubou de uma só vez o muro todo que segurava a intensidade dela. — Fala o que você tá sentindo, se tiver coragem. Fala pra mim! Me acha uma chata, né? Uma chata antissocial e ciumenta. Uma bonequinha de porcelana cheia de traumas que precisa do seu cuidado. Fala, para de guardar tudo sempre pra você, caralho. Eu quero que você fale.
— Para, Rennie.
— Fala o que você tá sentindo sem pensar! Fala logo que você não me aguenta mais, que eu só sei criar problema. Que eu sou uma bagunça, que nunca faço nada certo, que ninguém tem paciência pra mim. Vai, fala! Igual todo mundo sempre fala!
— Eu não vou falar isso...
— Por que não, cara?!
— Porque não é o que eu acho de você! — Comecei a ficar ansioso também, puxando o cabelo todo pra trás umas dez vezes. Eu tava me vendo entrar em completa contradição. Faltava quase nada pra ela me tirar do sério de vez, mas eu decidi segurar só mais um pouco. — Não, sem essa. Você não quer me escutar. Para de tentar mudar o foco, pô… Eu tô aqui falando uma parada que eu sinto, e você vem querendo supor mil coisas que eu penso, aí eu perco tempo tentando justificar ou me defender de cada uma, porque essas coisas nem são… reais, e aí a gente não consegue sair disso nunca, porra.
— Você tá louco, né? Eu não quero isso. Não é verdade, , eu só… queria que a gente se entendesse. Só isso! Por que isso é tão difícil pra você, cara? Voce tá me deixando mal, de verdade.
— É difícil porque, caramba… É difícil porque você só me quer quando tô na merda, Rennie. Quando tô puto, quando tô no limite. Aí sim eu sirvo pra você. Você percebe isso? — Fiquei um tempo fazendo as combinações das palavras certas na minha cabeça antes de dizer o que eu queria. — Fora isso, você nem… sei lá, me aceita. E isso… puta merda, isso me cansa.
— De onde você tirou isso, ?! — ela me olhava como se eu fosse um louco. — Eu sou a pessoa errada o tempo inteiro pra você, então. Eu sou a vilã, a controladora. E você, o pobrezinho que sofre por minha causa.
Eu fechei os olhos. Bufei. Esfreguei o rosto algumas vezes. Contei até cinco. Tentei pensar em todas as possibilidades de respostas que não detonassem uma mina bem debaixo dos meus pés.
— Não. Não dá. Na moral, eu não tô a fim de fazer esse malabarismo mental todo pra falar com você. Tô velho demais pra isso.
— Ah, é? — ela enxugou as lágrimas com força. — Pensasse nisso antes de comer uma novinha depressiva que você achou numa festa oito meses atrás.
Eu travei. A Renée olhou pra mim com o mais puro ódio, tentando se recompor. A merda que ela disse não tinha a ver com o que de fato aconteceu, mas ela falou de um jeito tão filho da puta, sem nem hesitar, com as lágrimas ainda molhando o rosto, como se soubesse exatamente onde atingir pra doer. Porra, me pegou em cheio. Mas eu não ficava puto de imediato, era um negócio que ia subindo devagar.
Isso tudo pra, quem sabe, eu reafirmasse pra ela como nada daquilo era verdade, que eu não enxergava ela assim, que eu a amava e que a gente podia deixar toda essa bobagem pra trás. Ter que explicar o óbvio toda vez me deixava mais exausto do que puto, e o foda era que a Renée queria me ver puto. E que paz foi ter uma lucidez naquele momento e perceber que eu não precisava me afundar nessa raiva com ela. Depois, quem sempre tinha que levantar os dois era eu sozinho.
— Sério que você vai por esse lado agora, Renée? — eu respirei fundo antes de falar de novo. Fiquei com o olhar perdido pela janela, de braços cruzados, balançando a cabeça. Meu pé tava batucando sem parar no tapete do carro. — Às vezes eu me pergunto… por que eu insisto nisso? E nunca existe uma resposta lógica.
— … Claro que não existe — ela murmurou. — O amor não tem lógica, .
Eu olhei pra ela de rabo de olho. Às vezes a Renée forçava a barra.
Agora ela tava mais mansa, quase vulnerável. Mordia o canto do lábio, a voz praticamente sussurrava. E o jogo tinha virado mais uma vez.
— O amor é caótico — ela continuou, puxando minha atenção de volta. — É essa coisa avassaladora, cheia de altos e baixos, como todo mundo vive. A gente só tem que aprender a… se adaptar. Abraçar o caos. Aceitar que somos assim, eu e você.
Eu respirei fundo.
— A questão, Rennie… é que eu nem sei se isso é amor.
Ela já ia rebater com alguma outra coisa, mas parou de repente. Também parou de olhar pra mim. Ficamos em silêncio. Eu olhando pra ela, ela vidrada no nada. Por um minuto eu torci pra que a Renée só concordasse comigo. Claro que ela também tinha aquela dúvida guardada.
— Por que não… seria? — Ela nem tava chorando mais. Como se pela primeira vez naquela noite estivesse usando a razão pra processar o que eu dizia. — O que mais você quer que eu faça? Me fala, por favor.
— Rennie… Isso aqui não é uma DR.
— Ok…!? — ela se soltou do cinto de segurança, e com a outra mão já foi buscando a trava da porta pra sair da Chevy. — Tá terminando comigo? — ela finalmente olhou pra mim, aí soltou uma risadinha sarcástica que me deu nos nervos. — Uma coisa que você nunca teve nem coragem de começar?
Fiquei em silêncio, ainda olhando pra ela. A raiva crescia, mas eu nem sabia mais o que responder. Porque ela tava certa.
— Tá bom. Beleza, . Nosso término você quer oficializar. Tudo bem. — Rennie destravou a porta e eu me estiquei pra alcançar seu braço, antes que ela saísse. Ela parou na mesma hora, aí ficou me olhando com aquela cara irônica, esperando que eu dissesse algo, incomodada demais com o meu silêncio. — É sempre assim com você, não é? Me deixa falando sozinha e eu preciso pagar de louca aqui--
— Você acha que eu não me esforcei pra caralho pra gente dar certo? — eu larguei o braço dela. De relance, os olhos dela seguiram minha mão, depois voltaram pro meu rosto. — Quantas vezes eu fui atrás de você quando você se trancava no quarto e não falava com mais ninguém? Quantas vezes eu fiz de tudo pra você relaxar, esquecer as merdas do seu dia? Até quando você tava no meio de uma crise do nada, eu tava lá tentando te acalmar, segurando as pontas, mesmo quando você tava distante ou fingindo que não precisava de ninguém. Aí eu sou obrigado a ouvir que eu te comi numa festa por piedade. Tá de sacanagem, né?
Enquanto eu ia falando, o choro dela voltava. Ela não sabia pra onde olhar.
— … Não foi o que eu quis dizer — a voz saiu abafada. — Não-- Não é verdade. Eu não acho isso.
— Pior que eu sei que não. Essa que é a parada. Você faz isso no calor do momento só pra me atingir, bem consciente disso.
Ela ficou quieta mais uma vez. Os ombros caídos, as mãos no colo esfregando a calça. O olhar dela vagava pela cabine da Chevy, por todo canto que não fosse o meu rosto.
— Não sei o que você quer ouvir, Rennie — eu voltei a falar de qualquer forma, depois de pensar mais um pouco. Tinha que aproveitar cada respiro. — No fundo, a gente já sabe onde isso vai dar, e a gente só tá prolongando isso. Vamos só… parar antes que fique pior.
O silêncio pesou mais duas toneladas, até que ela levantou a cabeça e, com o queixo tremendo, me olhou de novo.
— Ah, vai se foder, ! — ela gritou. Bem alto. A voz carregando um choro pior. — Você fica aí pagando de santo, como se tivesse feito esse tanto coisa por mim, mas nunca teve coragem de colocar a porra de um pé firme nesse relacionamento. Você tá sempre fugindo, cara! — ela deu uma risada incrédula. — Se esconde atrás de trabalhos, da maconha, dos seus desenhos, das suas desculpas! Quando não é isso, você fica aí, olhando pra fora, viajando, se desligando de tudo, até saindo sem mim, porque comigo você se desgasta. Aí eu tenho que desaparecer pra você me procurar.
O ar ficou preso no meu peito. E a Renée não parou. Se inclinou pra frente e ficou com o rosto cada vez mais vermelho enquanto falava. As veias saltando do pescoço dela.
— Você acha de verdade que isso é “se esforçar pra caralho”?! Na moral mesmo? — Ela tava explodindo. Me olhando com tanto ressentimento que eu não sabia se eu ia ter que me defender ou se ia acabar sendo engolido por tudo aquilo. Meus ombros e meu maxilar doíam de tão travados. — Você é um covarde, . Não sabe lidar com nada que exija mais do que dois pingos do seu esforço emocional. Você nem sabe o que quer da porra da sua vida porque você evita tudo de propósito. Você acha que tá sendo justo com a gente agora? Que tá sendo honesto? — ela deu uma risada debochada. — Você nunca foi honesto! Nem comigo, nem com você mesmo. E eu fui idiota o suficiente por achar que você fosse diferente. Na real mesmo, você nem sabe o que significa ficar. É uma coisa que seu cérebro derretido não consegue compreender.
Depois de uma pausa, eu olhei pra ela de novo. E ela tinha gostado do que viu. Eu tava ali, parado, como se tivesse acabado de receber um tapa imaginário no rosto. Um não, vários. Me senti um imbecil por ter pensado que eu teria algum controle sobre o rumo daquela conversa antes de parar o carro. E enquanto eu continuava calado, Rennie continuava a falar.
— Você diz tanto que uma terapia ia me ajudar, e não só isso, você sabe que é exatamente o que eu já ouvi da porra de todo mundo. Até da idiota da minha mãe. E tudo bem, eu concordo. Posso até tentar melhorar, tipo voltar pra minha psicóloga e tudo mais. Mas você? — ela soltou outro riso. — Cara, você é esse. Você é extremamente egoísta. Você faz de tudo pra parecer esse cara tranquilo… Equilibrado… Mas eu sei o que tá por trás disso, . Engraçado, né? Como você morre de medo de deixar alguém depender de você, de se envolver de verdade, porque no fim você sabe que não tem nada pra oferecer. Prefere ficar distante, aí ninguém precisa descobrir que você é só mais um merda fingindo que tem tudo sob controle. Previsível do caralho. Você se cansa rápido de tudo e de todos, cara! Tá cansado da faculdade, tá cansado até dos seus amigos. E é claro que eles não sabem nem da metade, né. É mais fácil seguir nesse seu mundinho, onde ninguém pede nada de você.
Mais do que a culpa igual um caroço na garganta, ou aquele peso no estômago que só aparecia quando eu me fodia de verdade, eu tava com uma sensação ainda mais forte vindo de dentro, uma vontade urgente de mandar a Renée sair dali. Eu só queria ficar quieto, não ouvir mais nada, não ter que lidar com nada aquilo. E, porra, era exatamente o que ela tinha dito que eu fazia, não era? Eu só tava confirmando tudo o que ela pensava de mim. Eu me senti, sei lá, paralisado.
— Fala alguma coisa, … Pelo amor de Deus.
Devo ter levado um minuto só pra levantar o braço e tocar na chave na ignição. Eu liguei a Chevy. O motor roncou de novo, os faróis acenderam, mas não arranquei com o carro. A Renée ficou me encarando com o peito cheio, pronta pra dizer alguma coisa, aí eu olhei pra ela de volta.
— É… Eu podia ficar aqui ouvindo você me esculachar ou ligar o carro e ir embora. A gente sabe qual eu vou escolher.
Ela torceu a cara toda. — Como você fala isso?!
Aproveitei os segundos que saí com a Chevy do meio-fio e voltei pra rua. Pensando. Um silêncio do cacete lá fora e essa verdade ecoando na minha cabeça enquanto eu olhava pra frente. Lembrei até da ex que eu tive em Boston. Da cara que ela fez quando eu soltei que ia trocar de curso e vir pra Nova York. De quando eu joguei a ideia de ela ir junto, “só arrumar um trampo lá”, mas eu sabia que ela nunca largaria a Universidade de Massachusetts tão cedo. Ainda fiz questão de parecer surpreso quando ela falou não. Um dia depois ela terminou comigo. Três semanas depois fui embora. Puro alívio.
Eu me acostumei tanto com essa porra que foi a primeira coisa que eu pensei em fazer, desde quando a Renée começou a falar. Pelo menos antes que aquela dor existencial batesse. Nunca percebi o quão fundo isso tinha ido. E eu nem tinha mais certeza se esse ciclo começava com ela – talvez fosse muito antes, mas o negócio era que eu tava desesperado pra passar pela porta de saída.
Mais nada.
— É por isso que a gente tá terminando — eu disse, ansioso pra caralho. Mas também fui me sentindo diferente por não precisar mais calcular nenhuma palavra, que se foda. Tava só saindo. — Vou te falar uma coisa. Você tá certa. Eu prefiro ficar sozinho mesmo.
— Olha como você é, cara… Eu disse que você era egoísta.
— E eu quero terminar.
— E eu quero descer desse carro.
— Espera dois minutos, o alojamento tá ali na frente.
— Eu não aguento mais um minuto com você — a voz dela embolou num choro. Eu tava concentrado na rua, mas deu pra ver quando a Renée se encolheu mais na janela. — Eu te odeio tanto, . Cara, eu te odeio tanto. E te odiar me faz me odiar… Sério, eu queria que você sumisse. Ainda bem que você vai se formar agora, porque eu nunca mais quero te ver. Juro. Nunca mais. Prefiro ir em trinta audiências do meu pai do que te ver de novo.
Não era a primeira vez que eu ouvia isso, então continuei dirigindo. Segurando a raiva. Tinha umas coisas que a Renée gostava de repetir só porque tinha dado muito certo na primeira vez, mas aí eu chegava nesse ponto de ficar mais anestesiado. Eu já tava cansado de saber que o pai dela era a pessoa que ela mais abominava no mundo, então me colocar em sei lá quantos níveis abaixo dele era o jeito dela de me empurrar no buraco, só pra depois jogar a corda.
A gente chegou no Belva Hall e eu puxei o freio de mão. Nem desliguei a Chevy.
— É isso? — ela disse com os braços cruzados. — E agora, vai perguntar se eu vou ficar bem sem você e todo o resto? De novo?
— Eu não vou perguntar isso mais, Rennie… — minha voz saiu meio monótona. — Acho que agora a gente só tem que viver cada um a sua vida. Bem ou mal, independente.
Fiquei pensando nisso, um pouco vidrado. A questão toda era essa. Independer. Eu queria muito acordar um único dia sem ter uma única pessoa ocupando metade da minha cabeça. E viver assim o máximo que desse.
De repente, a dureza derreteu na cara da Renée. Do nada ela se inclinou pra mim e se jogou nos meus braços.
— Eu não consigo, — ela começou a chorar de novo, o rosto enfiado no meu peito. — Eu não consigo parar de amar você do nada. Eu tentei da última vez, e eu sei que não dá. É impossível.
Eu fiquei ali, com os braços meio rígidos, meu corpo sem decidir o que fazer. Acabei segurando os ombros dela com cuidado, sem apertar muito. No momento que eu fiz isso, o choro dela veio mais forte. Uns soluços pesados, meio desesperados, o tipo de choro que fazia qualquer um querer resolver as coisas só pra ele parar.
— Calma, Rennie… Não precisa chorar assim, vai.
Era exatamente disso que eu tinha medo, toda vez. Dela chegar nesse ponto. Quando a Renée chorava assim, eu esquecia quase imediatamente o porquê de tudo isso estar acontecendo.
— Rennie, olha pra mim — eu segurei mais forte os ombros dela, mas ela continuou sem se mexer no meu colo. Toda vez que eu falava alguma coisa, parecia que mais um pedaço da guarda dela ia embora. — Vamos supor que a gente passe uma borracha em tudo agora, ok? Vamos supor que a gente volte ao… normal. Você acha mesmo que eu e você não vamos cair exatamente nesse ponto, de novo, em algum momento?
— … Que ponto?
— Esse aqui, agora. Na moral, a gente já viveu isso quantas vezes? Fala a verdade. Essa mesma cena, Rennie. E ela não vai ser diferente da próxima. Não vai, eu sei que não vai, e você também sabe que não vai. É isso… É uma realidade que eu… não quero viver mais, mesmo. Não quero.
Ela se afastou de mim devagar, em silêncio. Fungando. Pegou a bolsa dela no outro canto e ficou com o olhar perdido lá fora, com a mão parada no puxador da porta. Claro que ela também tava exausta de tudo aquilo.
— Sabe qual é a pior parte? — a voz dela saiu baixa. — Eu também sabia que ia terminar assim. Sempre soube. Mas eu continuei. Porque, sei lá… eu achei que você ia querer me provar o contrário. Que você ia dar um jeito de ser diferente… por mim — ela deu uma risada curta, sem graça, e finalmente me olhou. Os olhos tavam inchados. — A verdade é que eu sou tão idiota quanto você, . Só que você tem coragem de ir embora, e eu fico aqui, me debatendo no mesmo lugar. Como sempre. E eu… não sei como as coisas vão ser na minha cabeça a partir de agora.
Eu até queria falar alguma coisa, uma que não soasse tão merda, tipo mandar ela procurar uma ajuda séria, mas no fundo eu sabia que não faria diferença. Não era mais comigo. Meu Deus… Não era mais comigo aquele problema. A Renée também nem tava esperando uma resposta minha mais, logo ela que ficava irada quando eu entrava nesses silêncios. Ela me olhou uma última vez e só conseguiu dar um aceno curto com a cabeça, quase como se dissesse que não ia tentar mais.
E saiu.
Abriu a porta e saiu.
Deu as costas.
Seguiu pro alojamento sem olhar pra trás.
Meu irmão, eu soltei todo o ar dos meus pulmões. Não senti porra de alívio nenhum. Me senti foi exposto. Fiquei um tempo só respirando, o ar arranhando as narinas, com as mãos agarradas ao volante e o cérebro atingindo um pico de frequência. Começou a diminuir nem dois segundos depois, e eu fiquei que nem um rádio com a pilha fraca.
Nem percebi quanto tempo passei parado com a Chevy no meio da rua, olhando lá pra fora. A Renée já tinha sumido dentro do Belva Hall e eu ainda tava ali, dando um replay mental em tudo.
O motor do carro tava quase morrendo. Pisquei algumas vezes. Olhei pro painel e finalmente enfiei a primeira. Nem pensei, meu modo automático já foi se encarregando de dirigir de volta pra república. Me deu um puta sono do nada, mas eu não queria dormir ainda. Não, nem fodendo. Não sem antes ter um momento só pra mim ainda hoje.
Passei na república pra buscar umas coisas e saí de novo. Achei impossível ficar lá, uma parada sufocante. Até ficar sozinho no meu quarto tava fora de questão. Só peguei uma jaqueta no meu armário, um isqueiro e uns troços pra eu bolar um beck dentro do carro antes de sair. E vazei.
Dirigi mais uns dez minutos. Fui pros limites do campus lá pro lado oeste. Não cheguei a descer pra praia de Oakwood nem nada, porque já tava tarde, mas parei a Chevy no final de uma rua sem saída, no alto de uma pedreira que dava pro alto-mar. Andei por um matagal até chegar na borda. Tinha um banco de concreto ali na frente, todo pichado há décadas, com palavras e desenhos uns por cima dos outros. Eu gostava daquele lugar em específico porque também era a vista de quando eu tava na praia, lá embaixo, sentado numa pedra e olhando pra cima, desenhando aquele exato ponto de longe.
Eu tinha vários pontos estratégicos espalhados pela Oyster, só pra escapar e ficar de boa. Ter um momento. Normalmente eu desenhava as vistas deles no meu sketchbook. Quanto mais intocado, melhor. E aquele banco tava me chamando pra sentar e deixar a paisagem em volta me dominar, nem pensei duas vezes.
Eu me joguei nele e acendi o beck. A primeira tragada veio forte na garganta, mas foi boa. Tava gelado ali fora, mas dava pra sentir o corpo esquentando, pouco a pouco. Um silêncio inacreditável. Ninguém me cobrando resposta, ninguém esperando que eu fosse o bote salva-vidas de um naufrágio emocional. Só eu, o mar, o vento frio na cara e a fumaça subindo lenta. Eu era bom ali, sozinho, só com o som das ondas quebrando lá embaixo. Era simples. E pra mim, meu Deus, simples era bom pra caralho.
Nunca mais eu ia abrir mão disso.
Abril/2000
O porão parecia outra festa dentro da festa. A iluminação quase toda vermelha. Um submundo cultural. A gente não só ouvia, a gente sentia as batidas pesadas da música ali embaixo. As tábuas do chão e das paredes até rangiam, uma parada absurda.
Bem no meio da fumaça de gelo seco subindo do chão, eu tava conversando com o PJ, a garota que ele tava saindo há uma semana, e a amiga dela, que eles tavam tentando me empurrar. As duas estavam vestidas de diabinhas. O PJ tava de Jason, de Sexta-Feira 13, e tinha me emprestado a máscara daquele maluco de Pânico. Quatro básicos e um encontro duplo que eu não tinha pedido. Nem a capa do Ghostface eu me dei ao trabalho, só botei uma roupa preta qualquer e chamei isso de fantasia.
A tal da amiga da Lori ficava meio fora de órbita sempre que eu tentava puxar conversa. Só dava resposta neutra pra tudo, não rendia nada. Toda vez que eu encarava por mais de dois segundos, ela virava o rosto rápido. Teve um momento que ela me perguntou se eu já tinha quitado minha dívida estudantil, e essa era a última coisa que eu queria pensar numa sexta à noite, mas, beleza, eu disse que nem sabia se ia conseguir pagar um dia. O governo uma hora dessas devia estar se lambuzando com os meus juros altos. A mina respondeu, “que bom, né? Deve ser um alívio”. Sem brincadeira. Foi ali que eu me liguei que eu poderia falar qualquer merda, que eu era sobrinho do Al Pacino e tudo, e a garota ia falar “sério?” e ia me pedir um autógrafo. Tava no mundo da lua.
Perto da mesa de bebidas tinha um sofá grande, lotado de garotas, e do lado oposto tinha um menor, jogado num canto mais afastado, e foi nele que eu resolvi sentar depois de ficar maior tempão em pé naquele lugar enclausurado. A Lori tava bebendo todas – depois de passar uma temporada inteira privada de drogas por causa dos jogos de softbol, ela achou uma boa ideia afundar a cara no álcool no primeiro dia. A amiga dela tinha sumido graças a Deus. E o PJ tava preocupado com a Lori igual um namorado de anos. Fiquei ali no sofá, sozinho, observando a névoa de cigarro e maconha em cima das cabeças de todo mundo. Ninguém ligando se o teto tava baixo demais ou se o ar gelado fazia a gente tremer mesmo parado. Um contraste bizarro com toda aquela decoração vermelha e lâmpadas de lava.
Eu planejava a minha rota de fuga sem deixar o PJ bolado, mas de repente ele veio segurando a Lori pelo braço, toda maluca, suada, rindo à toa, segurando uma bebida, e ela caiu bem do meu lado. O sofá tinha só dois lugares, meio velho e fedendo mofo.
— Fica de olho nela um minuto, por favor? — ele pediu. — Vou ao banheiro. Já volto.
Eu olhei pra Lori. O meu carisma e o do PJ somados não chegavam nem perto do dela. Tava jogada, as pernas cruzadas de qualquer jeito, e assim que o PJ foi embora, ela se virou pra mim, girando o pescoço devagar, com um sorrisão rasgando a cara.
— E aí, enfezadinho do porão?
— Você tá igualzinha a mina de O Exorcista.
— Ai, se manca, — ela me deu um empurrão com o braço. A gente riu. — Vai beber nada, não? Poxa, achei que a gente ia chegar aqui e você ia se animar.
— É, valeu a tentativa… mas não sou muito chegado nessas festas de fraternidade.
— Ah, pois é. Até na Alana você deu um gelo.
— Foi mal… — Fiquei pensando e me senti malzão. No fim das contas fui um canalha com a garota só porque eu tava cansado. — Não é nada pessoal. Eu só odeio ficar muito tempo falando sozinho.
— Sério? Jurei que você gostava das quietinhas.
— Por quê? — eu olhei curioso pra ela. — Nada a ver. Me manda uma maluca reclamona que eu rendo mais.
A Lori deu uma gargalhada e um tapão no meu joelho, aí se apoiou em mim pra não desmontar.
— Ok, o PJ devia ter me falado isso antes — ela deu uns tapinhas mais leves de consolo. — Sei lá, depois de te ver esses dias na república… funcionando em câmera lenta… assim… desse jeito… enfurnado nos seus trabalhos com o PJ… dormindo cedo e etc... eu tive essa impressão que você e a Alana iam combinar. Ela também é toda calma e certinha. Deu até preguiça olhar pra vocês ali.
Eu que ri dessa vez. Saiu sem querer, mas era impossível não rir do jeito que a Lori falava. Até então, a gente só tinha trocado meia dúzia de frases na república, e agora ela tava ali, toda desinibida, falando comigo como se fôssemos velhos amigos.
— Não se engane — eu disse —, só de um mês pra cá que eu fiquei mais produtivo.
— Entendi… Não era “certinho”, então. Era fugindo de um quadro de depressão.
Eu ri de novo, nem respondi. Deixei a risada confirmar tudo.
Toda hora a Lori soprava pra cima uma mecha de cabelo emplastrada na testa. Ela acabou tirando os chifres de plástico da cabeça e foi aumentando a força do sopro até desistir. E eu ali, esperando ela dizer alguma coisa, enquanto se inclinava um pouco mais pra frente com o copo equilibrado na outra mão. — Vem cá, e aquela menina que sempre tá com vocês… a loira altona?
— A Jenna? O que tem ela?
— Ela veio também?
— Veio com uma amiga dela. Elas devem tá lá em cima. No Céu.
— Saco — a Lori revirou os olhos e jogou o corpo pra trás, no encosto do sofá. — Queria uma companhia pra dançar.
— Não conte comigo.
— Nem se você voltasse dos mortos.
Eu tava rindo de novo. — É… — lamentei. — É uma pena mesmo a Jenna não tá aqui embaixo com a gente.
— Pois é. Ela é legal. A única animada que nem eu… Tá sentindo falta também?
— Tô. Da amiga dela.
— Ah. — Ela segurou o riso, com uma cara de quem tava tentando decidir se eu tava mesmo falando sério. — Poxa, por que não falou isso com a Jenna antes? Aí eu não precisaria ter falado de você pra Alana.
— Ah, é que… — Eu ainda tava pensando em como a Lori não pressionava, só queria me escutar por algum motivo. Era estranho poder falar disso sem ter que lidar com o circo que seria se mais algum daquele grupo de desmiolados descobrisse. — É que a Jen sempre faz uma coisa parecer bem maior do que precisa ser.
— E…?
— E eu prefiro não complicar o que já tá bom como está.
— Tô vendo como as coisas estão boas. A garota no Céu, você no Inferno…
— A gente tá mantendo o equilíbrio cósmico.
Ela riu outra vez. — Vai lá buscar um ponche, . Tá bem gostoso.
— Não tô a fim.
— Tá sim, vai — ela insistiu, aí me deu mais um daqueles tapões no joelho, forte o suficiente pra me fazer levantar.
Fui até a mesa de bebidas, enchi o copo de ponche até a borda e dei uma olhada pro sofá onde eu tinha deixado a Lori. Aí, Nate DeWolff, o próprio Freddy Krueger de ombreiras, com aquela blusa listrada e o chapéu torto, tava lá, plantado na frente dela que nem um armário. Ele em pé, com uma aura de dono daquele inferninho ali, e ela sentada, olhando pra ele com uma sobrancelha levantada.
Eu até parei no lugar. O risco de perder meu tempo entrando na conversa fiada daquele cara era muito alto. Eu preferia que me botassem logo na frente de um pelotão de fuzilamento.
De repente a Lori olhou pra mim como se eu fosse um capanga dela contratado pra lidar com ratos. Aquele olhar de “tira esse maluco daqui antes que eu meta o pé na cara dele”. Nem ligando se o DeWolff tava reparando. Lógico que ele escolhia ignorar. Aí eu puxei a máscara do Ghostface pra frente do rosto. O elástico apertou minhas orelhas, mal dava pra respirar debaixo daquele capuz preto, mas aquela tosqueira me dava uma vantagem: eu virava qualquer um.
Respirei fundo e comecei a andar na direção deles, devagar, adiando cada minuto. Vi a Lori se inclinar pra frente e falar alguma coisa pro Nate. Quando ela acabou de cochichar, ele franziu a testa, depois pareceu hesitar por um segundo antes de se virar pra sair vazado, bem na hora que eu tava me aproximando. Ele trombou em mim. Nada dramático, só não me viu, mas foi o suficiente pra eu perder o equilíbrio e derramar metade do ponche no meu copo. A bebida escorreu pela minha mão e caiu no chão, respingou toda no meu tênis, e o DeWolff deu no pé sem falar nada.
Voltei meu olhar pra Lori, que tava debruçada no sofá, rindo como se tivesse acabado de ver o melhor episódio da vida dela.
— O que caralhos você disse pra ele? — eu perguntei, esfregando a mão molhada na calça.
— Nada — ela inclinou a cabeça, os olhos brilhando. — Ele viu a marca de nascença no meu pescoço, aí eu disse que eu era uma sifilicite endoqueoplasmosa, mas que tava controlada.
Quase explodi num riso. — Tá brincando. Ele acreditou? Na moral?
— Deve tá lá no banheiro lavando as mãos agora — a Lori voltou a rir, e eu gargalhei com ela.
Eu dei meio passo na direção do sofá, mas ela esticou a perna e pôs o pé na minha frente.
— An an. Seu copo tá vazio, .
Eu olhei pra ele. Tinha uns três dedos de líquido no fundo, misturado com uns pedaços molengas de maçã. — Tá cheio o suficiente.
— Tá nada — ela chutou meu tornozelo com a ponta da sandália. — Vai lá. Pega mais.
Eu revirei o olho, mas já tava me virando pra ir lá de novo. Tirei a máscara do Ghostface. O elástico estalou feito um tiro. Joguei ela no sofá e, enquanto eu voltava pra mesa de bebidas, engoli o resto daquele negócio parecendo açúcar diluído em gasolina. Enchi o copo de novo, não tanto dessa vez, mas assim que terminei, a porra do DeWolff chegou ali perto.
Meu irmão, ele parou do meu lado.
— Rapaz, olha quem tá aqui… — ele deu um tapinha no meu ombro. Mais um grama de força e eu seria arremessado. — Tava se escondendo de mim?
Eu virei devagar, encarando a cicatriz falsa pintada no rosto dele. — Pois é… Nem preciso — tomei mais um gole daquela merda, só pra ganhar tempo. — Você sempre some sozinho quando uma mulher consegue te fazer de cachorrinho de colo.
Nate deu um passo à frente. As mãos bem enfiadas em cada bolso. Aquele narizinho fino dele me irritava num nível inimaginável. A boca era mais fina ainda, eu ficava puto.
— Cuidado com o que fala, Seaver. Não é como se você fosse muito melhor nessa área, né não? A Ren tá aí chorando pelos cantos desde que você resolveu brincar de adulto e sumiu. Foi se enfiar no seu projetinho de extensão da faculdade, mas eu conheço esse filme. Como conheço. Não deu conta de segurar a bronca do mundo real, né? Dos problemas de gente grande — o queixo dele subiu um centímetro. A voz mansa não parava de sair por aquela boca de sardinha. Ele falava tudo como se estivesse lendo um script escrito na minha testa. — Até pra ela, cara… Até pra ela você é só mais um fodido aproveitador que não aguenta o tranco e vaza quando finalmente se dá conta disso. Quem diria.
Por dentro eu tava apertando os dentes, o sangue pulsando na cabeça, mas por fora eu fiquei suave. Me fazendo de morto pra comer o cu do coveiro. Contando os segundos praquela conversa acabar.
— Hum — eu levantei as sobrancelhas. Cruzei os braços, o copo ainda na minha mão. — É isso? Veio aqui pra me avisar que tá por dentro da vida dela? E da minha? Porra... Parabéns. E ainda banca o corre da Renée só pra se manter à espreita dela até hoje. Deve ser foda ter que bancar o traficante favorito de toda mina que cruza seu caminho. Tô diante de um profissional. E quando ainda toma um fora na cara, apela pra — eu inclinei o copo na direção dele — isso aqui.
O DeWolff ficou prestes a explodir. O cara não conseguia nem negar. As ombreiras, que já deixavam ele igual um caminhão, subiram junto com os ombros. A mão fechou e abriu, fechou e abriu. Parecia que ele tava tentando conjurar as garras de verdade do Freddy Krueger.
— É… — Não aguentei e dei uma risadinha. — Eu tô ligado quando os ratos saem. Sinal que esse bueiro tá cheio.
— Você só fala merda, Seaver — a mão dele fechou no meu ombro. Não apertou. Ainda. Era mais um sinal de aviso. — Você tá na minha festa, no meu porão. Na porra do meu bueiro. Lembra disso. — O hálito gelado dele tava batendo no meu nariz. Parecia que o cara tinha engolido umas dez balas de Halls preto. — Acha que a Renée ainda te protege quando você vem se meter bem aqui no covil da Phi Kap? Ou aquela vagabunda ali, só porque é a gêmea do Steve?
— Tô tremendo. — Olhei pra mão dele, depois pro rosto. Tinha uma veia no meio da testa dele que tava querendo saltar pra fora. — Vai me expulsar? — perguntei. — Faz isso.
Senti os dedos do DeWolff afundando na minha clavícula. Ele torceu minha camiseta nos dedos e me puxou pra perto, tão perto que eu podia ver cada poro no rosto do cara. Por um momento, achei que ele fosse me jogar contra a parede ou gritar alguma cretinice. Mas aí ele me soltou. Simplesmente tirou a mão do meu ombro, recuou um passo e ajustou o suéter por cima das ombreiras.
— Relaxa, Seaver — ele riu, mas um riso seco, de quem já tinha decidido o próximo movimento. — Não vou perder meu tempo com você.
— Qual é, Nate — eu também tava sorrindo. — Eu tô tranquilo. Posso te dar aula.
— Só… Sai fora, vai, porra. Se tem um tipo de gente que eu não suporto nessa faculdade é esse seu. Os artistinhas frustrados. Se acham pra caralho porque ficam rabiscando em caderninhos, ouvindo disco velho pra chamar atenção de mulher, fumando a maconha que nós conseguimos pra eles… só porque não têm grana nem pra comprar um baseado decente sozinhos — ele mandou aquele bico triste e forçado mais uma vez. — Dependem do nosso resto de droga, até das minas que a gente já cansou de foder. Todo ano é isso, parecem uns parasitas. É de dar pena.
Era brincadeira. O cara achava que tudo era sobre mulher. A mente era incapaz de atingir um palmo além disso. Ele passava noites naquelas festas igual um tubarão num aquário, escolhendo quem parecia mais boba e impressionada com a porra do astro do time. Faltava o maluco pedir por favor pra eu também erguer os braços e dizer, “Ó, Nate DeWolff, como seu pau é gigantesco!”, mas eu me divertia pra caralho, então era melhor que ele tivesse fôlego de sobra pra continuar implorando.
— Pô, Nate… Fica assim não. — Eu dei um abraço nele de lado, foda-se. Tava com vontade de fazer o cérebro dele virar caldo. Ele era ainda mais alto do que eu, parecia que eu tava abraçando um poste. — Já ia te perguntar quando vinha a próxima remessa, mas desisti. Entendo como é foda. Que pena, a gente que é artistinha já tava ansioso pra fumar às custas de um bando de pau no cu com esteroides de novo. Sabe, pra inspiração.
— Cara — ele bufou. Conseguiu nem falar. Devia tá estremecendo por dentro. Percebi que eu tava brincando demais com o perigo, aí me afastei um pouco. — Você só tá aqui porque achou uma brecha, Seaver. Mas tá muito enganado se tá pensando que vai se divertir mais um minuto às custas da Phi Kap hoje. Mais uma vez. Bicho, você é muito cara de pau. Eu vou quebrar a sua cara no meio se te ver na minha frente aqui de novo, filho da puta. Eu juro que quebro todos os seus dedos até você não conseguir nem escrever o seu nome mais.
E ele não tava brincando. O DeWolff vivia ameaçando à toa, mas ele falou muito sério dessa vez e eu gelei até o cu na hora. Olhei pra Lori, que agora dançava com uma garota aleatória, totalmente alheia. O sistema funcionava assim: um cretino desses dava a ordem, e alguém como eu obedecia, ou virava estatística de briga de fraternidade.
— Beleza, chefão — dei mais um toquinho no ombro dele, depois recuei uns passos. — Fica tranquilo, não vou te assombrar mais. Aproveita sua noite. Alguém tem que sustentar o clichê.
Saí andando de costas, até me virar de novo sem olhar pra trás, mas senti o olhar do DeWolff me seguindo até as escadas. Eu sabia que aquilo não acabaria ali, porque ele era exatamente o tipo de sujeito que daria outra festa naquela mansão só pra comemorar que desceu o cacete em alguém, e todos aqueles arrombados da fraternidade iriam com o maior prazer.
Antes de subir o último degrau, alguém me puxou de leve pela barra da minha camisa. Era a Lori com a máscara do Ghostface na mão.
— Esqueceu seu disfarce de psicopata, — ela sorriu. — Vai usar isso pra assustar as criancinhas no corredor?
— Valeu — eu peguei da mão dela e resolvi nem responder que, na verdade, eu tava indo embora. — Boa ideia.
Eu não queria render mais nada ali dentro. Só prendi a máscara ao contrário atrás do meu pescoço e continuei meu caminho.
Subi pro andar de cima – um purgatório de gente chapada encostada nas paredes, rindo de nada, suando glitter – e vi o PJ lá, ainda esperando pra entrar banheiro. A fila atrás dele tava imensa. Ele era o próximo, finalmente, e tava dançando no lugar como se a bexiga fosse explodir a qualquer segundo. Eu já teria desistido de mijar há tempos. Resolvi também nem acenar pra ele, só ir embora.
O hall tava mais caótico ainda, cheio de gente chegando, e não paravam de chegar há umas duas horas. A música agora era um tuntz tuntz de um pop eletrônico que martelava o tímpano. A galera ia trombando em mim sem dó, e eu sem conseguir sair do lugar. A porra da porta ainda tava longe. Foi quando eu vi a Jenna parada perto da escada que levava pro segundo andar da mansão.
Ela tava vestida de John Lennon – o óculos redondo, a túnica branca de mangas largas, o cabelo loiro partido ao meio. Tinha um cigarro pendurado na boca, o pé batia impaciente no chão. Decidi ir até a Jen, e a cara emburrada dela mudou na mesma hora. Ficou felizinha em me ver. Não daquele jeito exagerado, mas deu pra ver um alívio rápido nos olhos dela.
— Não era você que eu tava procurando, mas tudo bem — ela puxou o cigarro da boca com um sorriso. — Viu a por aí? Eu combinei de encontrar com ela aqui, mas não sei se ela já subiu…
— Como assim “subiu”? Ela não tá com você?
— Nah, ela veio de Sabrina Spellman.
— Que porra é Sabrina Spellman?
— Daquela sitcom… Aprendiz de Feiticeira… — ela levantou as sobrancelhas por cima do óculos, e foi só eu pensar mais um pouco que saquei. Era exatamente o tipo de bobagem que a gostava de assistir na TV. — Enfim, ela tá no porão. Se você descer e ver ela lá, avisa que eu desisti de esperar e depois a gente se encontra de novo. Tchau.
Sem esperar resposta, a Jen girou nos calcanhares e começou a subir as escadas pro Céu. Umas luzes azuladas piscavam lá de cima, e eu fiquei ali por um momento, observando ela desaparecer, subindo pra um lugar melhor.
Nem fodendo que eu ia descer pro porão de novo.
Resolvi ir pra cozinha. Talvez conseguisse sair pelos fundos. Mas logo na porta da varanda, que dava pro quintal, tinha um grupinho de garotas conversando alto, rindo pra caralho e tudo. A maioria eu conhecia de rosto, aí entendi porquê. No meio delas eu vi a Rennie, depois a Tess bem ao lado dela. Uma de Elvira, a outra de Mortícia. Porra, eu não aguentava mais tanto obstáculo.
Não deu nem um minuto e a Mortícia me viu primeiro, sem desviar uma vez. Não adiantava nem eu colocar a máscara pra tentar passar despercebido – ela já tinha me pegado no radar. Virei de costas, meio escondido atrás da bancada da cozinha, tentando decidir o que fazer. Não queria passar por elas, mas também não queria ficar preso ali a noite toda. Já tava até esperando a Tess chegar na surdina, tirar sarro do término e me chamar pra cair de volta no ciclo que ela sabia de cor.
Olhei pra geladeira na minha frente. Abri a porta. Um tesouro de cervejas caras e vinhos lá dentro, diferente da merda que eles costumavam botar nos barris. Pior que eu nem tava a fim de beber, tava doido era pra chegar em casa e dar umas bolinhas num beck na paz do silêncio. Ou nos berros guturais do Layne Staley, dava no mesmo. Nem o Alex tava em casa – até o Alex tinha saído com uma garota hoje.
— . — Do nada escutei uma pessoa me chamar, e quando olhei por cima da porta da geladeira, dei de cara com a do outro lado, segurando uma Lay’s. Porra… Fiquei mudo. — Não é que a gente tá aqui de novo, se esbarrando numa festa da fraternidade?
Peguei uma garrafa d’água e bati a porta, aí reparei melhor na . Tava com um vestidinho preto, a maquiagem preta, umas botas pretas e um colar com um pingente de lua colado no pescoço. Parecia um traje comum à primeira vista, mas na ficava claro que era só uma fantasia. Dava pra ver na cara dela que aquela noite tava sendo muito mais divertida que a minha.
Fazia um tempo que a gente não trocava ideia, no máximo nas aulas de desenho. Fazia um tempo que eu não trocava ideia com ninguém. Foi só no última semana que eu abri meu sketchbook, voltei umas páginas e achei o número dela que eu tinha anotado mês passado, depois da boate. Eu tava num autoisolamento tão fodido desde o término com a Renée que o PJ precisou de uns três dias pra me convencer a vir nessa festa hoje.
Mas ele não sabia que eu já tinha ligado pra no último sábado. Fomos pra praia bem cedo, primeiro porque eu queria que ela visse o mar de Oakwood recuado. Sabia que ela curtia muito aquele lugar. Não pelas paisagens – mesmo que, pra mim, a floresta coberta de névoa atrás da praia fosse doida pra caralho, algo que o Monet teria pintado depois de fumar um –, mas porque Oakwood tinha aquele lance estranho de parecer cheio de segredos, e a pirava nisso. Histórias que ninguém nunca explicou direito pra ela. E segundo porque eu aproveitei pra contar mais ou menos sobre o meu término com a Renée. Ter alguma chance de falar sobre aquilo antes que a Jenna falasse – ilusão que durou quase nada, porque claro que ela já tinha falado.
Depois desse dia, eu e a mal nos falamos de novo. E ela nem parecia chateada, e eu não tava acostumado nem um pouco com essa parada. Não teve aquele papo de “você tá bem?” mil vezes até eu querer furar meus ouvidos com o grafite do meu lápis. Não teve nem aquele drama mudo de quem finge que não tá cobrando nada, mas fica esperando uma satisfação do mesmo jeito. A simplesmente seguiu a vida dela como se já soubesse que eu precisava de espaço.
— Pois é… — Eu olhei em volta, pra ver se tinha alguém esperando por ela, ou talvez ela estivesse dando sopa ali sozinha porque tava esperando alguém naquela fila do banheiro. Não dava pra saber. — Aqui estamos nós na mansão de novo.
— E por que cê veio com a fantasia mais sem graça do mundo? No caso, você?
Eu dei risada. Ela tava bebinha. Gata e gostosa pra variar. E ainda mandava essa com um sorrisinho no canto da boca. Minha língua ficava coçando pra não pegar aquele tom casual dela e virar o jogo ao avesso.
— Porque eu não tava nem um pouco animado — respondi. — Não vou ficar muito, . Pra falar a verdade, tô indo embora daqui a pouco.
— Como assim? Chegou e já vai embora? — Ela também não me ajudava. Chegou mais perto de mim e ficou olhando pra máscara na minha nuca. — Se deu ao trabalho por quê, então, Ghostface?
— Porque… — dei de ombros. — Porque faz parte, Sabrina.
Quando estávamos em Oakwood ou em dias normais no campus, a gente se abria pra caralho, falava dos ex, da família, da faculdade. A já sabia tanta coisa da minha vida, ou pior, já sabia tudo sobre as minhas merdas. Ainda assim, parecia que a gente tinha feito um contrato não dito sobre manter a distância física, mesmo quando conversávamos por horas. Era como se ela soubesse exatamente onde traçar a linha. Aí, quando a gente ficava sozinho numa festa, pelo menos um dos dois alterados, o papo tomava rumos mais imprevisíveis, a me olhava parecendo que tinha o tesão de cinco coelhinhas da Playboy, e no meio disso faltava um fiapo pra eu mandar tudo pro caralho e dar um beijo nela.
— Achei que, no mínimo, veria você vestido de Kurt Cobain ou alguém do tipo.
Eu sorri. — Hmm, era uma boa ideia. Devia ter pensado nisso antes.
Ela lembrou que tava segurando um saco de batatinhas e começou a comer. Se distraiu de novo, ficou observando as pessoas ao nosso redor, os olhos escaneando todo mundo na cozinha.
De repente, eles ficaram arregalados e a parou de mastigar.
— Uuuuuuu — ela cantarolou, parecendo um fantasma, com uma batata esquecida entre os dedos. Continuou em silêncio, não explicou nada. A mina tava tendo uma epifania.
Eu só precisei dar uma olhada rápida pro lado pra confirmar que a tava olhando pra Renée lá perto da porta pra varanda.
— A-há! — ela finalmente falou. Segurou meu ombro e subiu na ponta dos pés pra falar no meu ouvido. A música alta era só um pretexto. — Agora já sei, . Sei exatamente porque você tá aqui.
— Ah, é? — eu cruzei os braços, tentando parecer sério, mas não dava. A confiança dela era absurda. — Por que você acha?
— Você é um penetra hoje — ela se afastou um pouco pra olhar no meu rosto. — Um penetra investigando a ex.
— Errou.
Eu tava reuninado todo o meu autocontrole pra não olhar um pouquinho mais pra baixo. Mas era foda quando a cruzava os braços bem na minha frente e, num segundo, todas as linhas do meu campo de visão convergiam pros peitos dela.
No meio das latas espalhadas pela bancada, tinha um copão de plástico igual ao que o DeWolff derrubou em mim lá embaixo. Aquele ali com certeza era o da .
— Sei, sei — ela voltou com a gracinha. Eu também peguei umas batatas do pacote na mão dela, depois tomei a água da minha garrafa. — Seeei! Seeeeeei!
— Vem cá, quantos desse você já tomou?
Ela parou de repente. Fez as contas de cabeça, a testa franzindo numa porrada de microexpressões tão rápidas que eu mal conseguia acompanhar.
— Acredita que esse é só o meu terceiro?!
Eu dei uma gargalhada. A tentou manter a cara séria, mas os cantos da boca dela tremiam.
— Eu sou bem mais forte do que isso. Mas muito mais — ela tentou me convencer. Só que eu já tinha visto aquele sorrisinho sonso dela umas mil vezes antes. Tava quase apontando o dedo na minha cara. — Sério! , sou mesmo. Para de rir.
Mas eu não parei. Ela não durava cinco minutos tentando bancar a durona sem soltar aquela risada maluca ou se irritar demais.
— Mas acho que esse ponche tá encantado, sério mesmo. Nunca tomei um tão saboroso assim. Tá bom demais da conta.
— Álcool que liberta a sua versão caipira, é assim que eu gosto‐‐
Eu contraí o abdômen na hora. O cotovelo da veio com tudo no meu estômago. Aí, ela segurou meu ombro e se esticou toda pra falar no meu ouvido mais uma vez.
— Ei, sabe de uma coisa, … — Tinha uma lentidão na voz dela que era totalmente anormal. A língua embolando e tentando recuperar o ritmo tagarela de sempre. — Sei como é difícil esquecer da sua amada Rainha das Trevas, mas pensa bem, só um minuto. Vir até uma festa fechada em que ela está é o oposto de tentar superar, não acha?
Claro. O momento de traçar a linha.
Eu precisei abaixar um pouco o rosto pra devolver a resposta no ouvido dela também.
— Na verdade, , eu não poderia me importar menos com isso agora. — Porra, eu tinha tão menos escrúpulos do que ela. A até tentava disfarçar, mas eu já tava quase colando a boca na orelha dela. — Não tô de penetra, eu fui convidado. De última hora, mas fui. Vou te falar, meu plano era justamente vir numa festa, curtir, azarar e todo o resto. Já era de se esperar que a Rennie estaria aqui, mas, caralho, olha o tamanho dessa mansão. Que se foda, não é? Só que…
— Só que…?
Eu dei um passo pra trás e olhei pra cara de curiosa dela. Os olhos esbugalhados, as sobrancelhas quase voando da testa. Devagar, a música alta e o barulho das vozes, que até então tavam meio longe, começaram a se infiltrar de volta na minha cabeça.
— Só que tem uma pessoa que já deixou claro que eu não deveria nem ter vindo, então tô indo embora.
— … Que diabos?
Por um segundo, pensei em puxar a comigo antes de sair daquela festa. Mas aí eu vi o jeito que ela tava ali, tão à vontade no meio da bagunça – cercada de gente, rindo, dançando, vivendo. Não era justo pedir que ela largasse tudo só porque eu não conseguia ficar. Eu também já tava de saco cheio de tragar ela pra dentro das minhas “complicações” toda vez.
— É só isso, por enquanto — eu respondi, me afastando mais. Enquanto andava de costas, terminei de tomar minha água e lancei um olhar rápido pro grupinho de garotas que continuava interditando a saída pro quintal. Não demorou pra Tess me flagrar, de novo. Era só fazer contato visual. A Renée, por outro lado, tava fazendo questão de me ignorar. Eu joguei a garrafinha num lixo ali do lado e virei pra . Não dava pra enrolar nem um minuto a mais. — A gente se vê outro dia. Eu vou dormir. Aproveita a festa.
Puxei a máscara do Ghostface pra frente, que cobriu meu rosto todo. O ar agora entrava abafado só pelos furos dos olhos, e por eles eu vi a tomar um sustinho. Eu dei uma risada. Pra quem tava tirando onda do meu disfarce, tava vacilando demais agora.
Dei as costas e fui andando pra dentro da mansão de novo.
— ! Espera.
Eu parei na porta da cozinha. Olhei pra trás. A tava preparada pra falar alguma coisa. Era tão raro quando ela não falava. Ao invés disso, ela continuou encarando minha máscara, depois foi descendo o olhar pelo meu tronco até parar nas minhas mãos, que tavam soltas ao lado do corpo. Aí parou um pouco. Demorou na barra da minha camisa, aí desceu mais. Na moral, ela nem ligou pra nada naquele momento. Os olhos subiram de novo pro meu rosto, mas sem realmente focar em nada específico. Pela primeira vez a me olhava sem calcular como eu tava olhando de volta. A liberdade de observar sem ser observada, de querer sem precisar explicar. Sabia bem o que era isso. Até demais. Era assim que eu olhava pra ela quando ela não prestava atenção.
— … Deixa pra lá.
Porra, como eu queria saber. Sabia que ela não ia falar. A pergunta saiu assim mesmo.
— O que era?
— Nadinha não.
Caralho, o tanto de coisa que eu imaginei só naqueles dez segundos não dava um filme de duas horas. Só parei quando eu me forcei a dar as costas de novo pra ir embora. Não olhei pra trás.
Se olhasse, teria voltado.
Abril/2000
Passei pelo corredor esbarrando em todo mundo. Quando cheguei à escada do porão, o PJ tava lá, parado na frente dos degraus, olhando pra todos os lados. Ele balançava uma garrafa vazia na mão, o olhar perdidaço. Eu já tava seguindo reto, mas acabei parando ali, tentando me espremer contra a parede pra não impedir a passagem de ninguém.
— E aí? — ele acenou com a cabeça. — Tô procurando a Lori, ela sumiu. Viu em algum lugar desse andar?
— Vi não.
— Me ajuda a achar ela, . Ela disse que também foi ao banheiro, mas, pô, já faz um tempão. E ela não tá em canto nenhum daqui. Lá embaixo eu tenho certeza que ela não tá.
— PJ… Tô indo embora, mano. Sem tempo pra isso.
— Ei, calma aí — ele me segurou pelos ombros. — O que aconteceu? Você tá estranho pra caralho.
Pensei um pouco, mas sabia que não adiantava enrolar.
— DeWolff.
— Sabia. Uma hora eu quase desisti daquilo ali — ele apontou pra fila pro banheiro atrás da gente. — Cheguei a descer pro porão de novo, mas aí vi vocês dois perto da mesa de ponche e nem quis me meter. Voltei pra cá. Eu sabia que você tava atiçando o cara. Aposto meu rim que você se fodeu, diga aí.
Eu pisquei devagar. Respirei fundo pelo nariz.
— Me fodi.
— Pois é. O que ele fez, te expulsou? — PJ soltou um risinho sarcástico, daqueles que mal sai pelos lábios. — Deixa de ser trouxa, . Cão que late muito não morde, mano. Ele sempre faz isso. É tudo bravata, sossega aí.
— Não, foi mal, não vou sossegar. Perdi o pique de ficar aqui fingindo que tô curtindo.
— Irmão, relaxa — ele deu um passo à frente. — Tá com o cu preso só pelo DeWolff? Quê isso? Ou também viu a Renée lá dentro?
— PJ… Foda-se a Renée. Se o Nate me vir aqui, ou qualquer um desses jogadores que ele usa como escolta, eu tô fodido. Essa é a real. Eu tô fodido.
— Caralho, mas você irritou tanto o lindinho assim?
— Você sabe que não precisa de muito.
Ele travou o rosto por um segundo. Segurou meu ombro com uma mão. Quase pensei que tava prestes a me levar a sério.
— Cara, pensa só… Ainda acho que você tá pirando à toa.
Respirei bem fundo, mais uma vez, mas não falei nada. Se tinha uma coisa que me dava preguiça era ter que discutir algo tão óbvio pra mim.
— Calma aí — PJ me impediu de sair de novo. — Olha, eu nem tô a fim de ficar muito tempo também, mas espera um pouco. Vamos pro porão de novo, pelo menos até você esfriar a cabeça. Ninguém vai te incomodar lá.
— Como não?!
Sem responder, ele tirou a máscara do Jason Voorhees que tava pendurada no pescoço e enfiou ela na minha mão. Deu nem tempo de protestar e o PJ já tava arrancando a máscara do Ghostface da minha cabeça, aí encaixou no pescoço dele. Ele ainda tava usando o casacão verde e as luvas do Jason. A máscara de Pânico ficou meio frouxa enquanto o rosto dele continuava exposto.
— Aí, perfeito — ele ergueu os braços, esperando que eu fizesse alguma coisa, com aquela cara de quem achava que tinha acabado com todos os meus argumentos.
Eu dei uma última olhada ao redor. A primeira coisa que pensei foi na . Se a gente se visse por aí de novo, principalmente no porão, eu ia acabar me enfiando em mais uma conversinha mole com ela. Dali em diante era só explicar o que tava rolando, um Vamos dar o fora daqui? e eu sabia que a ia topar. Aí a gente pegaria um táxi até a república – eu tava de carona com a Lori, então não precisaria avisar ninguém, ela que se virasse com o PJ. Porra, tava perfeito mesmo. Mas antes disso, eu precisava pelo menos fingir que tava embarcando nessa palhaçada dele.
Botei a máscara do Jason no rosto. O PJ nem falou mais nada e também cobriu a cara com o Ghostface. Então a gente desceu pro porão.
Lá embaixo tava ainda mais cheio do que antes. Mais ou menos perto de um conglomerado de pessoas dançando, demos de cara com a Lori, com um braço entrelaçado no da Alana. A Lori tava com umas asas de anjo falsas encaixadas nas costas, e foi a primeira coisa que o PJ reparou quando paramos na frente delas.
— Fui dar uma passeadinha lá no Céu — ela explicou, quase tropeçando. A amiga até segurou ela mais forte pelo braço. — Gostou? Voltei mais santinha agora. Prometo.
A Alana deu uma encarada na Lori tão atravessada que eu pensei que o PJ também tivesse reparado. Mas eu olhei pra ele e faltava escorrer baba do sorrisinho que ele deu. O cara tava completamente alheio.
— Santinha, é? — ele coçou a barba, aí deu uns dois passos na frente dela. — Parece que alguém andou se comportando mal lá no Céu, ou será que você só tá querendo me convencer disso?
— Isso depende do que você tá disposto a acreditar — ela deu uma piscadinha exagerada. A Lori sustentava o olhar do PJ o tempo todo de um jeito inexplicável.
Não passei mais um segundo observando os dois e a Alana me agarrou pelo braço, do nada, e me arrastou pra um canto um pouco mais afastado deles. Ela olhou pra trás, se certificando de que a amiga ainda tava ocupada com o PJ, aí começou a falar baixo comigo, quase sussurrando.
— Olha, eu preciso te contar uma coisa…
— Quê? Não tô te escutando.
— Eu preciso te contar uma coisa — ela chegou perto e falou alto, mais perto do meu ouvido. — Mas você não pode comentar nada com ninguém, ok? Principalmente com ele.
Pelo gesto que a Alana fez com a cabeça, ela tava falando do PJ.
— O que foi?
— A Lori… Ela tá meio… — Ela fez uma pausa. Mordeu o lábio. Cara, eu já não tava me aguentando mais de curiosidade. — Sei lá, descontrolada hoje. Já bebeu demais e tá agindo estranho. Eu tô ficando preocupada.
— Descontrolada como?
Eu voltei meu olhar pra Lori, que agora tava girando pra longe do PJ enquanto ele ria dela. Pra mim, a garota só tava aproveitando a festa como qualquer outra pessoa. Quer dizer, fora das competições de softbol, o PJ me falou que ela também evitava sair muito porque o técnico sempre dizia que “atleta tem que dar exemplo”. Era quase esperado que ela fosse encher a cara na primeira vez que realmente se soltasse.
— Ah, deixa pra lá — a Alana estalou a língua. — Deixa, você não vai entender. É besteira.
— Que besteira? Fala.
— Acho que fiquei de saco cheio de cuidar de gente bêbada, só isso. E você, tá com essa máscara agora por quê?
Eu demorei um pouco pra raciocinar. Ainda tava interessado no assunto Lori Fez Alguma Merda. — Ah… É um rolo que eu nem quero comentar.
— Não vai tirar ela, não?
— … Ainda não.
A Alana não insistiu. Eu também não quis dar trela. Caímos num silêncio que foi crescendo, ficando, pesando, até passar um minuto inteiro. Na moral, a ideia de ficar ali todo escondido começou a parecer uma merda sem fim. Aí, falamos ao mesmo tempo:
— Acho que vou dar o fora.
— Quer dançar?
Me fodi de novo. Ainda bem que ela não tava vendo a minha cara.
— Ah… — a Alana falou primeiro. — Esquece, então.
— Desculpa.
Antes que eu pudesse pensar em algo melhor pra dizer, a Lori surgiu do nada, quase trombando no meio da gente. Ela tava com as bochechas vermelhas, o batom meio borrado, sorrindo de orelha a orelha que nem o Coringa.
— O que vocês tão cochichando aí? O PJ foi buscar mais bebida, sabiam? — ela falou praticamente berrando na nossa cara.
A Alana me lançou um olhar rápido, quase implorando por ajuda, só que a única coisa que eu fiz foi levantar as mãos. Já tinha problemas demais pra querer ser o juiz de uma picuinha de duas garotas.
A Alana simplesmente revirou os olhos, deu meia volta e foi embora pro outro lado.
— Iiiiiih — a Lori zombou. — Acho que ela não tá conseguindo me acompanhar. Que pena.
— O que você andou aprontando lá em cima que ela ficou neurada?
A Lori deu uma risadinha. — Sshhh!
De repente a gente viu o PJ chamando por ela do outro lado do porão. Eu olhei pra mesa de bebidas e ele tava lá, conversando com ninguém menos que a .
— Vou lá, né. O grudento me chama — a Lori reclamou e saiu andando na direção deles.
Alguma coisa tava rolando, mas eu tava longe de querer me meter. Quanto mais eu olhava pra dali do meu canto, mais meu cérebro recebia umas descargas elétricas, uma atrás da outra. Ela tagarelava com o PJ, sorriso largo pra Lori, mão grudada no ombro de um, braço já enganchado no outro, daquele jeito que só quem cresceu espremido entre irmãos numa casa cheia sabia fazer. E a voz dela, porra, a voz dela furava o barulho todo e chegava até mim como se não tivesse mais ninguém na festa. Porque ninguém no mundo tinha um timbre daqueles, alto demais pra caber em lugar nenhum.
Aí, por algum motivo, meu olho pegou algo lá no fundo. Um Freddy Krueger de papo com seus discípulos, a uns dez passos deles.
Uma hora a enlaçou o PJ e a Lori num abraço só, e as duas começaram a rir – elas tavam tão malucas que tentavam se segurar uma na outra pra não cair. O PJ tava paradão. Olhou na minha direção como se quisesse saber se eu também tinha percebido o DeWolff ali perto. Eu assenti com a cabeça.
De repente começou a tocar Backstreet Boys, e foi tipo um raio estourando em cima da . Ela ficou estatelada no lugar, só por um segundo, aí se soltou do PJ e da Lori e correu pra se enfiar no meio de uma galera que tava dançando no meio do porão. Até os que tavam ali só pra encher linguiça começaram a se mexer em volta dela. Era doido como todo mundo entrava fácil na onda da quando ela dançava.
Caminhei devagar até onde o PJ e a Lori estavam, tentando não chamar muita atenção.
— Você não vai acreditar — ela inclinou um pouco na minha frente. — Acabei de conhecer a digníssima amiga da Jenna. Gostei dela. É das minhas. Né, PJ? Fala como ela é legal.
— Ela é gente boa, ela é gente boa — ele falou. — Ela e a Jenna às vezes têm a mesma síndrome de Poliana, mas ela é massa.
Eu dei uma risada. Porra, o PJ realmente não fazia ideia de quem a era. Ele via só o básico, a mina que ria até do vento. Não sei como ele não percebia que ela era muito mais cínica e pessimista do que a Jenna. Enquanto a Jen ia mais pela corrente de acreditar na “bondade intrínseca” das pessoas e que “o amor vence tudo”, a tinha certeza que todo mundo olhava só pro próprio umbigo – e que isso não era coincidência.
— Eu vou sentar um pouco — a Lori avisou. — Tô meio tonta. Podem ficar aí, já volto.
Ela se arrastou lá pro lado do sofá grandão, bem atrás de onde o DeWolff tava. Eu e o PJ continuamos parados perto da mesa de bebidas. Eu cruzei os braços e fui o primeiro a reclamar.
— Cara. Não aguento mais ficar de máscara.
— Eu coloco a minha pra te fazer companhia — ele puxou a cara do Ghostface pra frente do rosto de novo. — Vamos lá pro sofá também. Não quero deixar a Lori sozinha perto desses topetinhos de gel.
Ele fincou as mãos nos meus ombros e foi me empurrando. A gente passou igual umas sombras perto do DeWolff e os outros, então alcançamos a Lori arrastando os pés, com a alma em outro lugar. O PJ correu pra segurar ela, aí eu aproveitei pra me jogar no meio do sofá vazio como se fosse meu direito divino. Segundos depois a Lori desabou do meu lado. O PJ sentou do outro e tirou a máscara pra respirar.
— Não aguentou um minuto — eu falei pra ele. O filho da puta só riu.
— Calma, é só um pouco. Não fui eu que virei inimigo público do DeWolff.
Ele apontou com o queixo na direção de onde eles estavam. Não tínhamos nos afastado muito. Ali no sofá a gente ficava mais ou menos atrás deles. A música não chegava tão alta naquele canto, então ainda dava pra ouvir pedaços das conversas dos caras se eu prestasse atenção.
— Irmão… — PJ falou pra mim, mas deu uma cutucada de leve no ombro da Lori. Ela continuou dormindo. Aí ele voltou a me olhar. — Acho que fui corno hoje.
Quase falei “viaja não”, mas eu meio que concordava com ele.
— O que você acha? — ele pediu.
— Tudo é possível…
— Ah, , sai fora com essas respostas vagabundas. Manda a real.
— Beleza. Se você não foi corno hoje, eu sou o novo integrante dos Backstreet Boys.
Ele ficou calado por um momento, aí apoiou os cotovelos nos joelhos, o tronco inclinado pra frente. Deve ter entrado numa crise existencial. Eu me afundei no sofá e cruzei os braços, tentando bancar o desinteressado, mas também fiquei pensando naquilo. Só que meu ouvido continuou grudado no papinho dos arrombados ali na frente.
“Não, pô, falando sério. Eu gosto das mais quietinhas.” Era a voz do Finnegan. Todo mundo falava que metade das mulheres desse campus já deram pra esse cara, mas eu preferia acreditar que elas não seriam tão desavisadas assim.
Eles continuaram o falatório.
“As que se fazem de santa? Tipo a Megan Thompson?”
“Não, tipo a Samantha Brooks.”
“Quem é essa?
“É uma que tá lá no Céu hoje, mas tava mamando o Roy atrás do carro outro dia porque achou que ele ia sair com ela depois.”
O Finnegan deu uma risada estrondosa. “Pois é. A Samantha é gostosa, mas fez tanto doce que encheu o saco já. Buceta tem que ser acessível, porra, se começa a me dar trabalho demais eu dou o fora e como a próxima da fila.”
O PJ se remexeu no sofá e me olhou com uma sobrancelha levantada. Eu fiz um sinal com os dedos pra mostrar que também tava ligado na conversa deles.
“O bom das quietinhas é que elas só viram uns dois paus na vida, aí pegam um melhorzinho e acham que é premium.”
O Finnegan ficou puto quando ouviu aquilo. “Melhorzinho o caralho. Você fala que uma Ferrari é ‘melhorzinha’ que um Fusca, porra?”
“Pra mim, o negócio é outro”, finalmente o DeWolff abriu a boca. “Gosto das que se acham espertinhas, conseguem formar uma frase completa. Aquelas que têm um mínimo de neurônios funcionais pra me acompanhar. Daí pensam rapidinho que tão no comando.” Ele fez uma pausa. O maluco tava saboreando a própria frase. “Tipo um jogo, saca? Igual quando eu quebro a defesa, taco o ombro num linebacker e abro caminho pro cara com a bola. Elas acham que tão me bloqueando, mas na real tão só seguindo o meu manual. A melhor parte é ver até onde elas aguentam. E quando percebem que tão perdendo…” Ele deu uma risada baixa. “Já era. Touchdown garantido.”
A conversa tava tomando um rumo que eu conhecia bem demais.
— Papo torto do caralho — o PJ falou baixo. — Ainda bem que a gente veio pra cá. Imagina a Lori sozinha aqui, mano. Nesse estado.
Eu balancei a cabeça pra concordar. Toda hora esquecia que precisava me esforçar pra comunicar debaixo daquela porra de máscara do Jason.
“Mas e aí, tão a fim de dar uma animada na festa?”
O DeWolff foi o primeiro a responder. “Acho que dá pra dar uma zoada de leve, né? Nada de mais.” Todos riram.
— Tá ligado que ele tá falando sério, né? — eu me curvei um pouco por cima da Lori pro PJ me ouvir.
“Tá com a filmadora preparada aí, Nate? Pra só… Plim. Apertar o play lá no quarto.”
— Puta merda… — o PJ franziu a testa, os olhos fixos no DeWolff. Eu nem me surpreendi. — Queria falar não, mas acho que a é uma das que tá na mira desse filho da puta hoje. Ele tá rodeando ela desde que a gente chegou.
— O quê? A ?!
— Eles que convidaram ela pra festa.
Eu até ergui a coluna e sentei direito. — Brinca não.
— É sério, pô. Ela me contou ali, agora, pra mim e pra Lori. Convidaram ela e a Jen.
Fiquei com vontade de vomitar um bloco de concreto. — E por que a Jenna não mencionou essa porra hora nenhuma?
— Ué, porque a gente não perguntou.
— Meu Deus, cara…
Eu enfiei as mãos por baixo da máscara pra esfregar o rosto. Não era possível que a Jenna tinha dado tanto mole assim. Ela sempre me pareceu tão indiferente a esses atletas. Caralho, não era possível que as duas faziam parte do grupo de garotas no campus que queriam dar pro Finnegan.
O PJ também botou a máscara do Ghostface de novo, e eu tinha certeza que ele só fez isso pra me consolar. Fiquei pensando no que caralhos eu poderia fazer agora. Eu mal tava processando que o DeWolff já tinha interagido com a dentro e fora daquela festa.
Pensei na Renée. Pensei no dia que ela saiu carregada pelas amigas do quarto dele e foi salva por uma questão de sorte.
Ficamos eu e o PJ disfarçados encarando aqueles caras por tempo demais. Foi aí que fodeu. Fodeu mesmo. Bastou o DeWolff dar uma bobeira de leve pra reparar, aí ele resolveu se afastar do grupo e se aproximar da gente. E, enquanto ele vinha, um passo depois do outro, o ar no meu pulmão foi virando gelo. O que me restou naqueles poucos segundos foi tentar calcular quantos ainda faltavam pra tudo explodir na minha cara.
O PJ recuou no próprio sofá, como se pudesse ser engolido pelo estofado de couro. Eu continuei uma estátua. Tava com a cabeça a mil, e vontade de sair vazado não faltou, mas meu corpo não me respondia mais.
O Nate meteu o dedo na cara do PJ.
— Eu pensei que tivesse te dado um aviso, Seaver. E eu não dou dois.
O PJ tirou a máscara. O DeWolff travou por um segundo. Os olhos dele fulminaram o PJ, depois correram pela Lori – que já tava roncando baixo do meu lado – e, por último, pararam em mim. Ele começou a rir baixo. Aí a risada foi só aumentando. De repente ele tava gargalhando igual uma hiena.
— Que gracinha! — ele berrou. — Vocês acharam que iam me passar pra trás com essa merda? Hein? Fala pra mim. — Ainda se contorcendo de rir, a mão dele disparou na minha direção e puxou minha máscara com força, só pra soltar de volta logo depois.
Tinha algo na risada daquele pau no cu que tava fazendo meu sangue ferver. A máscara batendo no meu rosto foi só a última palha. Então eu levantei.
— Essas festas tão começando a ficar previsíveis demais — eu olhei pra ele. Parecia que só o fato de eu ter me levantado afetou o cara ainda mais. Tive que render as mãos quando ele deu um passo adiante. — Você pediu pra falar, eu tô falando, porra. Calma. Tô achando que é você quem tá precisando de um Valium pra dormir‐‐
O DeWolff veio pra cima de mim. Ele agarrou minha camisa do mesmo jeito que fez mais cedo.
— Mermão. Foda-se o que você acha. — O maluco rangeu os dentes tão forte que eu achei que ele fosse partir a mandíbula no meio. Eu dei uma espiada no PJ, que também se colocou de pé atrás do Nate, mas numa distância mais segura. Engraçado, de repente sumiu aquela certeza toda de que o DeWolff só fazia bravata. — Pra falar a verdade, Seaver… — ele rosnou perto da minha cara, com aquela cadência de quem adorava se ouvir. Nunca estive tão arrependido de não ter bebido mais. Como eu queria estar anestesiado o bastante agora pra dar uma cabeçada bem no meio daquela veia da testa dele que tava pedindo pra estourar. — Seu falso moralismo não vai colar agora. Adivinha, eu tô pouco me fodendo pra ele.
Eu dei uma risadinha seca.
— Tá pouco se fodendo, é? — eu levantei minha mão e acariciei a dele, ainda fechada no punho que agarrava minha camisa e puxava ela pra cima. — Caralho, Nate. Você tá aqui, me segurando como se fosse me estrangular, praticamente me levantando do chão e tirando minha roupa, mas ainda assim diz que não liga pra mim. Aprende a mentir melhor, porra. Começa tirando a mão do pau pra falar comigo, bota na consciência pelo menos uma vez.
— Meu pau eu vou botar na goela da primeira que cair de joelhos aqui pra mim hoje. Pensa nisso quando você acordar da porrada que eu vou te dar.
Eu lancei um último olhar pro PJ, só pra ver se vinha algum tipo de intervenção. Mas ele franziu metade do rosto e torceu a boca pra um lado, igual quem espera um golpe – só que o golpe não era pra ele.
Foi rápido demais. O punho do DeWolff veio fechado, cortando o ar, com toda força. Eu mal tive tempo de piscar antes que ele me acertasse em cheio no alto da maçã do rosto, bem no canto da sobrancelha. Senti a ponta de cada osso dos dedos dele cravarem na minha cara. A máscara trincou, a dor explodiu, foi espalhando pelo resto do meu crânio. A força foi tanta que meu rosto inteiro girou pro lado. Por um momento, até achei que meu pescoço fosse ceder à pressão, porque aquele soco não só quis me atingir, quis arrancar minha cabeça do lugar. Minha visão piscou por um segundo, e eu senti o gosto de sangue na boca antes mesmo de entender o que tinha acontecido.
Meu corpo ficou mais pesado de repente. As pernas moles. O chão veio na minha direção muito rápido, e eu bati com o ombro primeiro, depois desmoronei. Tudo ficou abafado. Na moral, parecia que eu tava debaixo d’água. Só conseguia ouvir o som distante de umas risadas ao fundo, depois os suspiros de gente chocada e um zumbido agudo no meu ouvido direito. Tentei me mexer, mas minha cabeça tava latejando pra caralho.
Pisquei algumas vezes. Eu via tudo borrado. Acho que tinha umas pessoas ao meu redor.
— Tá vivo, mano? — o PJ agachou do meu lado esquerdo. — Segura a minha mão. Aperta quando você sentir que consegue levantar.
Eu levantei o braço com dificuldade. Esperei um tempo até apertar a mão dele. O PJ me ajudou a ficar mais ou menos de pé e me levou arrastado de volta pro sofá. Tirei a máscara quando eu sentei, e ela veio com uns pedaços lascados grudados no meu rosto, arrancando fiapos de pele junto. Ardendo pra desgraça. Ele ficou olhando pra mim, parado na minha frente.
— Puta merda, . Que paulada. Tá cheio de pedaço de plástico fincado na sua pele.
Eu deixei o pescoço tombar pra trás no sofá. Senti meu cabelo úmido de suor e, provavelmente, sangue, caindo na minha cara enquanto eu tentava respirar fundo sem queimar os pulmões. Minha cabeça tava que nem um peso morto que eu não aguentava mais sustentar. Depois senti os dedos do PJ mexendo na minha testa, puxando os troços afiados. Ele fazia isso devagar, com o rosto na altura do meu. A dor pelo menos tinha parado de vir em ondas tão fortes, mas tinha uma pressão latejando no meu ouvido que não me dava trégua um minuto.
— Você tinha duas opções. Ficar quieto e sair ileso ou abrir a boca e levar porrada. Claro que você escolheu a segunda. Genial — o PJ falou enquanto arrancava outro pedaço. — Se eu tomasse um murro desse por sua causa, a gente ia passar fome na mão do Alex pelas próximas duas semanas. Lasanha coalhada. Almoço e jantar. Tá maluco. Tenho prioridades.
Eu até riria se metade da minha cara não estivesse dormente.
— Cadê… — tentei perguntar.
— Eles se dispersaram. O Finnegan foi o primeiro a subir. O DeWolff só não te deu um chute no chão porque umas pessoas chegaram e ficaram em volta, aí ele fugiu lá pro outro lado. Pelo visto não tava querendo plateia.
Eu me endireitei no sofá e procurei o Nate com os olhos.
— A gente devia ir embora — PJ continuou. — Nem com essa treta a Lori acordou, e não para de escorrer sangue dessa sua ferida aí.
Vi o arrombado conversando com a . Lá do outro lado, um de frente pro outro. Entre o sofá e o lugar onde eles estavam ainda tinha metros de gente dançando, luzes vermelhas piscando e aquela fumaça branca engolindo as pernas das pessoas até os joelhos. Nenhum universo paralelo existia onde eu não fosse me meter naquilo.
— A gente tem… que tirar ela daqui — foi o que eu consegui dizer.
— Quem?
— A — eu apontei com o dedo na direção que eles estavam. O PJ também viu. — Vai lá falar com ela.
— Como?!
Eu ergui o corpo um pouco mais. Tava me deixando puto não conseguir falar direito. — Sei lá. Tira ela… daqui.
— E como é que eu vou tirar a daqui sem falar com a Jen? Elas vieram juntas. A Jenna vai me matar, caralho.
— Dá um jeito.
— Porra, …
— A Jenna vai matar todo mundo se esse filho da puta encostar um dedo na .
Ele ficou visivelmente mais ansioso. Até todo fodido eu tinha que pensar num plano primeiro.
— Vai lá — pedi. — Eu acordo a Lori... Levo ela pro carro... Fico te esperando lá.
— Mano… Tá maluco? Você tá confiando demais no seu estado atual. A Lori nem consegue andar direito, como você vai carregar ela sozinho? — ele balançou a cabeça pros lados e riu. — Esquece, não tem jeito. Aceita isso.
— PJ. Caralho. Você não quer me tirar do sério no meu estado atual.
— Ok, então… — Pela primeira vez ele gastou uns cinco segundos pra pensar de verdade. — Eu subo e falo pra Jenna, aí a gente vaza e deixa que ela dá um jeito de tirar a dali. Pode ser?
Eu nem precisei ponderar sobre o plano dele pra saber que não ia dar certo.
— Pode ser? — ele insistiu.
— Pode.
— Ok. Me espera aqui.
— Vai rápido.
Mais uma vez naquela noite eu tive que fingir que tava acatando outra ideia do PJ. Assim que ele saiu e sumiu entre as pessoas, eu virei pro lado e dei um empurrão no braço da Lori pra ver se ela acordava.
Ela nem se mexeu. Continuei sacudindo o corpo dela inteiro, chamando pelo nome dela umas dez vezes.
— O que é…?
— Vambora. A festa acabou.
— Ah, é? Hum. Pode ir, me deixa aqui... Tchau.
Ela se aninhou ainda mais no sofá. Putz. Eu inspirei o ar algumas vezes. Meu braço tremeu quando apoiei a mão no encosto, buscando força pra levantar. Tudo doía. Eu tava com vontade de cuspir aquele sangue acumulando na minha boca, mas não tinha tempo nem pra isso. Não agora.
Finalmente consegui ficar de pé. Respirei fundo. Olhei pra trás, pra onde eles estavam. O DeWolff falava alguma coisa pra , e ela tava toda soltinha com ele. Falava umas coisas também, aí abria um sorriso maior que o outro. Metade da porra do caminho já tava feito praquele arrombado. E eu tava atrasado. Cada segundo que passava era mais um pedaço daquela merda escapando das minhas mãos.
Eu cheguei um pouco pra frente e puxei a Lori pelo braço, praticamente arrancando ela do sofá. Ela ficou ali parada, em pé, mole que nem uma boneca de pano, me encarando e piscando devagar.
— Vambora, Lori. Agora. Sem discussão.
Eu ainda a segurava pelo braço, só porque não confiava de soltá-la nem fodendo. A mina tava mais desequilibrada do que eu. Aí ela arregalou os olhos quando finalmente olhou pro meu rosto.
— Caramba… Caramba! Meu Deus do céu, o que aconteceu com você, ? — ela embolava todas as palavras. Não sabia se ria ou ficava preocupada.
— Dei uma voltinha na Elm Street.
— Elm… Street? — ela deu uma engasgada, a mão subindo rápido para tampar a boca. — Nate DeWolff te bateu?
Eu resolvi olhar pra ele de novo, do outro lado do porão. O Freddy Krueger tinha se movido, tava mais perto ainda da , e de onde eu estava, ela quase desaparecia atrás dele.
— Sim. E agora a gente já vai. Na moral, é a última vez que eu vou falar isso.
— Tá bom, tá bom. Já entendi.
Andei devagar com a Lori cambaleando, agarrada ao meu braço. Encontramos o PJ na frente da escada.
— Avisou a Jenna? — eu perguntei.
— Avisei, mas… Mano, ela tava pegando umas duas meninas ao mesmo tempo. Sei lá se prestou atenção no que eu falei.
Eu dei uma risada sem humor nenhum. — Pois é. Agora faz o que eu falei antes. Vai lá falar com a que eu vou pro carro com a Lori.
Ele olhou na direção do DeWolff. — Quê isso, . Sem chance. Olha lá.
Não olha.
Não olha.
Não olha.
Era só nisso que eu pensava.
Sabia que aquilo ia me detonar por dentro, e aí sim eu perderia completamente a cabeça, mas lá estava eu, olhando mesmo assim. Daquele ângulo dava pra ver os dois de perfil, e eu já tava esperando dar de cara com o inevitável. Pelo menos seria rápido, ia acelarar o baque. Mas não, foi pior. Foi o teatro do quase. Foi assistir a mão do DeWolff segurando o queixo da , a mão que não devia nem ter esfriado ainda do soco que ele me deu. Depois foi reparar no dedo dele pressionando contra o lábio de baixo, metade já desaparecendo dentro da boca dela. E os dois estavam a, sei lá, menos de um metro de distância um do outro. A nem se mexia. Tava parada, rígida, vidrada no cara, ou talvez só bêbada demais pra reagir.
Por algum motivo o DeWolff foi saindo de perto dela depois de ter falado alguma coisa. Foi andando numa boa, sem pressa nenhuma, até a mesa de bebidas. Aí eu saquei o que tava rolando. Sabia exatamente o que ele tava fazendo. Puta merda, isso me deixou tão puto que a minha última lasca de sanidade foi pro caralho.
Eu agarrei o ombro do PJ e dei um berro no ouvido dele. — Vai lá, cacete. Aproveita e fala com ela agora. Rápido, antes que o Nate volte.
— E eu vou falar o quê?
— Sei lá, porra! — Eu quase esmaguei o ombro dele, aí soltei. Ele deu um tropeço pra trás. Minha cabeça tava a ponto de estourar. — Só tira a daqui. Eu não vou fazer isso, porque se ela me vir assim, vai querer saber a história inteira. Não vai dar tempo.
— Você tem que tirar ela daqui, PJ.
A gente olhou pra Lori. Foi ela quem falou, do nada. Aí não sobrou mais uma sombra de dúvida no trouxa do PJ – ele saiu em direção à e, quando tive a certeza que ele não ia voltar atrás, eu subi as escadas com a Lori apoiada em mim, atravessando a galera parada ou transitando pelos cômodos. No meio do trajeto as pessoas começaram a me encarar demais, então eu vesti a máscara do Jason pra esconder o estrago no meu rosto.
O Kadett da Lori tava estacionado na rua da mansão, um pouco mais pra baixo, espremido entre outros carros enfileirados.
— Cadê a chave? — perguntei. A Lori resmungou algo ininteligível, aí começou a fuçar os bolsos da saia vermelha. Quando finalmente sacou a chave, quase deixou escorregar, só não caiu no chão porque eu tava sem paciência nenhuma e arranquei da mão dela.
O clique das portas destrancando foi o som mais lindo do mundo. Abri a do passageiro pra Lori. Ela tombou pra dentro do carro e se atirou no banco de trás. Nem esperei ela se acomodar, bati a porta e dei a volta, aí sentei no banco do motorista e girei a chave com força. Meu pé esquerdo afundou na embreagem, o direito no freio, depois puxei o freio de mão e já engatei a primeira marcha. Só precisava do PJ aparecer com a , o resto era só uma questão de acelerar.
Aí os minutos se arrastaram.
Um inferno.
A Lori já tinha até voltado a dormir.
Cada vez que eu olhava pelo retrovisor, esperava ver o PJ e a saindo pelas portas da mansão. Ou só o PJ, e se isso acontecesse, eu ia ficar tão puto, mas tão puto que talvez nem esperasse ele chegar no carro. Eu ia sair e foda-se, juro por Deus que ia enfiar a cara dele no capô. Ia fazer aquele inútil comer lasanha coalhada daqui até os fins dos tempos.
De repente, um vulto de máscara do Ghostface apareceu no retrovisor. Desacompanhado. Meu irmão, minhas mãos suaram frio e eu quase deixei o volante escapar. Mas o cara virou pra esquerda e sumiu atrás de uma árvore.
— Filha da puta. Não é ele.
— Mmmphssh...? — A Lori remungou no banco de trás. Depois apagou de novo.
Eu já tava pronto pra meter a cara no volante, quando, até que enfim, aleluia, eles surgiram, atravessando as portas da mansão. O PJ vinha puxando a pela mão, praticamente a arrastando enquanto ela tentava resistir. Ela tava usando a porra do casaco do Nate.
Eles foram se aproximando cada vez mais. O PJ quase abriu a porta onde a Lori tava apoiada, aí deu a volta e jogou a pra dentro pelo outro lado. Ela caiu sentada no banco atrás de mim, meio desajeitada, e ficou ali parada, com cara de assustada, piscando rápido demais enquanto tentava entender o que tava acontecendo.
Eu olhei pelo retrovisor. Ela me deu uma encarada de volta. Um silêncio absoluto enquanto o PJ contornava o carro de novo pra entrar. Ele sentou ao meu lado e fechou a porta.
— Que porra é essa, PJ? — a voz da saiu estrangulada.
Aí, sem pensar muito, tirei a máscara do Jason e deixei cair no apoio de braço atrás da marcha.
A quase teve um troço.
— ?!
Nem respondi. Só pisei fundo no acelerador. O Kadett deu um solavanco pra frente e arrancou na rua, deixando um rastro de pneu cantando atrás da gente. Dirigir aquele carro era diferente da Chevy. O Kadett era muito mais leve, mais nervoso, sempre à beira de escapar do meu controle. Se a Lori acordou, já tinha dormido de novo, porque nem resmungou dessa vez. Continuava aninhada no mesmo lugar como se o barulho dos pneus fosse só parte de um sonho ruim.
— Alguém pode me explicar por que eu tô aqui? — a botou o cinto, meio desesperada. — Era pra eu tá beijando o Nate DeWolff nesse exato momento!
Ela só podia tá brincando comigo, porra. Segurar pra não explodir exigiu cada grama de autocontrole que eu tinha sobrando. Eu olhei bem pra ela, pelo retrovisor, mais puto do que eu achava possível ficar naquela noite.
— Você não faz a mínima ideia de quem é esse cara.
— Como assim? Ele foi tão legal comigo — ela cruzou os braços e olhou pro lado. Igual uma criança birrenta. Eu voltei a prestar atenção no trânsito, aí senti o olhar dela de novo pelo espelho por um bom tempo. — O que raios aconteceu com sua cara, ? Se meteu em briga, é?
— Depois eu te explico. Agora não dá. Sem mais perguntas até a gente chegar, ok?
— Chegar aonde? Pra onde você tá me levando? Eu quero voltar pra festa!
— Não. Sem chance.
Eu mantive os olhos na rua. Minha mão direita segurava o volante com força enquanto eu finalmente descansava o outro braço na janela. O PJ tentou falar alguma coisa, mas eu nem ouvi direito. Tava mais ligado na e em qualquer movimento que ela fazia, e ela ficava mais agoniada a cada minuto.
— Tá bom, então — ela bufou, ainda perplexa. Tava nem aí pra disfarçar a revolta também. — Já que você arruinou completamente a minha noite com seu autoritarismo ridículo, que aparentemente eu nem tenho direito de saber a razão, pelo menos me deixe no Belva Hall.
— É pra lá mesmo que a gente tá indo — larguei minha resposta e me voltei pra rua.
— Ótimo.
Houve um breve segundo de paz, brevíssimo, que eu felizmente soube aproveitar. Até ele ser estilhaçado pela voz da estourando pelo carro de novo.
— Espera! Não! Eu não posso dormir no meu quarto hoje, a Sadie vai se encontrar com um cara e me pediu pra dormir no quarto da Jenna. Falando nisso, onde ela tá?! Você mandou o PJ sequestrá-la também, ?
— Pouco antes de falar com você — o PJ começou a justificar —, eu fui atrás dela pra explicar a situação, mas ela não me deu muita bola. Tava no meio de um beijo triplo e me encheu de patadas. Mas se te tranquiliza um pouco, , a Jen concordou e sabe que a gente tá te levando.
— Ela… sabe…?
— Viu? — eu falei. De novo nossos olhos se encontraram no retrovisor. — Considere isso um resgate, não um sequestro.
— O que diabos tá acontecendo, pelo amor de Deus? Dá pra vocês pararem com essa putaria comigo? Por que eu sou a única que não tá entendendo nada? Por que vocês não podem me falar nada agora? Merda, por que eu tenho que esperar a hora que você quer, ?!
Aquela enxurrada de perguntas fez meu cérebro escorrer pelas minhas orelhas. Tudo que eu ouvia era um zumbido ensurdecedor dentro da minha cabeça.
— Porque SIM, ! Porque eu tô dirigindo agora! Porque eu tô puto e não quero ter que gritar com você, caralho!
O silêncio que veio depois foi absurdo. Até acordou a Lori, igual quando alguém desliga a TV no meio de um cochilo. Mas ainda bem que ela só mudou de posição – mais uma pessoa falando na minha cabeça e eu ia desmaiar no volante.
A apoiou o queixo na palma da mão, o cotovelo na porta, e ficou olhando pela janela. Cada respiração dela embaçava o vidro numa nuvenzinha de vapor. Aparecia e sumia, aparecia e sumia. Um climão da porra começou a me corroer por dentro.
Eu sabia que ela tava magoada. No meio daquela bagunça toda, era fácil esquecer que a nem tinha pedido pra estar ali. Ela não tinha escolhido ser o centro de uma treta que nem era dela. Eu queria falar alguma coisa, pedir desculpas, mas, puta merda, nada saía.
Só queria que a entendesse que ela tava longe de ser parte do problema. Na verdade, era exatamente o oposto.
— … Desculpa — eu disse me sentindo um merda. — Falei que vou explicar depois, quando chegarmos. Sei que é difícil agora, mas, por favor, só tenha um pouco de paciência. Não tô bravo com você, é com... Você ainda vai entender.
Ela me ignorou. Nem ameaçou olhar pra mim. Continuou vidrada na janela, como se a paisagem que passava rápido fosse muito mais interessante do que qualquer bobagem saindo pela minha boca. Mas tudo bem. Eu não esperava que ela me desculpasse na hora. Até lá, eu ia aguentar o silêncio. Mas a também não era do tipo que ficava quieta por muito tempo.
Fiquei me perguntando o que tava passando pela cabeça dela.
— — ela me chamou, tão baixinho, quase como se tivesse se arrependido meio segundo depois. Nem o PJ deve ter ouvido. Eu só ouvi porque ela tava bem atrás de mim. E acho que só continuou a falar porque eu olhei pra ela. — Quem fez isso com você… foi Nate DeWolff?
Minhas sobrancelhas foram lá pro alto da testa. A ideia de que a pudesse suspeitar dele me pegou de surpresa. Ela não parecia muito ligada nisso quando os dois tavam quase se pegando lá no porão meia hora atrás.
Eu devia imaginar. A não era de deixar passar nada.
— Foi — respondi.
Ela ficou de queixo caído. Aposto que tava tentando ligar os pontos, mas duvido que teria todas as respostas sozinha. Fiquei ansioso pra contar tudo, soltar tudo na lata de uma vez, mas minha cabeça tava doendo demais pra isso.
Sabia que a ia pirar sem um final pra essa história, mas, sinto muito, dessa vez ela ia ter que aprender a se conformar com umas pontas soltas.
Continua...
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