Tamanho da fonte: |

Independente do Cosmos🪐

Última atualização: abril/2025

Praia de Bricktown
Novembro/1999

Bricktown era um porre, mas eu tava lá todo fim de semana. Um litoral meia-boca onde a gente sempre acabava depois de tomar umas no Millard’s, um daqueles bares onde todo mundo se sentia em casa. Eu tava bebendo desde umas cinco tarde. Porra, quanto tempo eu não fazia isso, tava até com saudade. Ali eu não tinha que dar satisfação pra ninguém, mesmo que por algumas horas, e no meio daquela galera meio perdida, eu conseguia me desligar.

Eles já tinham sacado o meu padrão quando eu bebia: começava meio Che Guevara, todo filosófico, criticando o sistema, então a gente discutia como se a mesa fosse um ministério da economia. Aí, depois de umas dez garrafas, eu virava o Mick Jagger. A gente ia pra praia, botava música alta no carro, chegava lá, molhava as canelas na água gelada pra caralho, cheia de alga e lixo, aí o PJ me abraçava, depois a Jenna e o Alex, e a gente cantava igual uns coiotes. Passava rápido, mas momento era pra ser vivido, não guardado. Momento era erva que sumia num tapa, ou você fumava logo ou perdia. E a gente nunca deixava perder.

Só que, de repente, a Jenna parou. Afastou-se da gente, olhou na direção do píer com a boca aberta. Tinha uns postes de luzes amareladas ao longo dele, fracas demais pra iluminar direito, espalhando um brilho meio fantasmagórico na água do mar. A Jen não precisou falar nada – a gente já sabia quando o lado médium dela resolvia aparecer. Mas ela falou mesmo assim, como se precisasse confirmar em voz alta o que todos nós já tínhamos entendido.

— Alguém morreu ali... e ainda não foi embora.

Pior que se a gente olhasse lá pro final do píer, dava pra ver uma pessoa sentada na beira, balançando as pernas do lado de fora. Um poste lá da ponta tava com a luz piscando, fazendo a figura sumir e aparecer. Não demorou muito pro PJ convencer a Jen de que não era um fantasma droga nenhuma, e sim uma pessoa de verdade. O Alex já tava quase se mijando.

Eu continuei olhando também. Tinha algo naquela cena. Dava pra entender porque alguém escolheria aquele lugar pra ficar sozinho sem ser incomodado.

— Então eu vou lá — o Alex avisou e saiu andando.

— Pra quê?! — eu discuti. Todo mundo parou.

— Acho que é uma garota — ele apertou os olhos pra ver melhor. Maluco era previsível. Qualquer mulher no raio de um quilômetro virava uma missão pessoal pra ele. Tava não sei há quantos meses sem transar com ninguém. — Ela tá sozinha lá, eu preciso ir!

O PJ me cutucou e eu balancei a cabeça. A gente já tava ligado na tara do Alex.

— Não vai, não — a Jenna foi se afastando da gente. — Deixa que eu vou. Me esperem aqui.

Ela saiu correndo até lá e não voltou mais. Por vários minutos. Vários. A gente até esqueceu e voltou a cantar, porque Hotel California também não tinha fim.

De repente, um grito esganiçado. Vinha do píer. O Alex nem disse nada e correu pra lá sem pensar duas vezes, o cara bebia e se achava o super-homem. Eu e o PJ fomos andando e, à medida que nos aproximamos, vimos um grupo de ratos de praia que nem nós, vadiando, mas do tipo que só eles podiam ser os ratos de Bricktown e botavam os outros pra correr. Arruaceiros. Tinha uma névoa densa de fumaça em torno deles, um cheiro infernal de crack. Os caras tavam zoando entre si, falando alto, ouvindo uma música nada a ver, e os que mexiam nos canivetes meio despreocupados deixavam um recado bem claro: qualquer um que chegasse perto demais ou chamasse muita atenção dos vigias vagando na orla, ia tomar no cu.

Enquanto isso, a Jenna, o Alex e a tal garota no maior auê, lá naquele ponto entre o píer e a faixa de areia, onde sempre acumulava espuma do mar e bituca de cigarro. Ela tava com uma perna esticada pra frente, o pé tava machucado. O Alex tentava segurar.

Eu sabia quem era aquela mina. Já tinha feito algumas aulas com ela, a última tinha sido de Tipografia. Acho que o PJ também se ligou. Ele tentou avisar sobre os ratos, mas ninguém se mexeu. A garota ficou alucinada no PJ enquanto ele falava. Foi só eu avisar que uns caras desceram das pedras e já foram botando o canivete pra fora das calças. Aí todo mundo entendeu que era pra vazar logo.

— a Jenna olhou pra mim com a mandíbula toda travada. — Como saímos daqui?

Ela devia imaginar que eu já tinha algum tipo de plano formulado na cabeça, mas eu pensei tudo na hora.

— PJ, você dirige — tirei a chave do bolso e joguei pra ele. — Jen, você faz o que tem que fazer — fechei um zíper invisível na minha boca —, e Alex--

— O que é isso?! — a garota me interrompeu, nervosa pra caralho. Tava prestes a soltar o braço da Jenna pra me bater. — Você é tipo o Freddy do Scooby-Doo? Distribui as tarefas do grupo?

Ela tinha um sotaque que entregava fácil que não era da costa leste. Me deu vontade de rir, mas a pressão era tanta que não deu pra vacilar. Fomos nos posicionando em torno dela, e, depois de contar até três, eu e o Alex carregamos a garota, cada um de um lado – ele a segurou pelas canelas, e eu, a parte superior do seu corpo, passando os braços por baixo dos seus ombros. A Jenna tapou a boca da coitada, e abafar os gritos dela não foi exatamente uma missão cumprida. O PJ saiu correndo na frente; a gente foi atrás enquanto ela se debatia com os braços soltos, as pernas chutando o ar. Um chute quase pegou na costela do Alex.

No meio do caminho não deu pra segurar mais. Tava todo mundo rindo. Ganhamos distância e a Jenna largou a boca da garota, então correu com o PJ até a Chevy.

A caminhonete tava estacionada na rua do Millard’s. Eles entraram na cabine e eu e o Alex subimos na traseira com a garota. Porra, eu tinha esquecido o nome dela. Tava tentando me lembrar.

Quando o carro já tava acelerado na estrada, ela se acalmou um pouco. O Alex tava querendo puxar o caco de vidro da sola do pé dela e não parava de gaguejar um minuto. Fiquei doido pra rir.

— ela se apresentou. Já tinha matado o Alex umas cinquenta vezes no pensamento. Putz, ainda bem que eu não tinha chamado ela de .

, a gente… É que…

― Vamos precisar tirar sua meia — tentei ajudá-lo.

― Ai, meu Deus. Não, isso vai doer.

― Não tem outro jeito.

Eu só conseguia reparar em como as meias dela tavam imundas, cheias de areia e sangue. Tinha uns ursinhos que agora pareciam assassinados. Foi quando eu me liguei: ela tava sem sapatos? A mina deixou os sapatos pra trás na correria. Inacreditável.

Tem que ter outro jeito!

Não falei mais nada. Esperei a aceitar.

— Espera — ela olhou pro meu casaco. — O que é isso no seu bolso?

— O quê? Isso? — eu tirei meu cantil lá de dentro. Um sorrisão apareceu na cara dela.

— Algum álcool aí?

— Um resto.

— Serve — ela pediu balançando o braço, desesperada, parecendo uma criatura das masmorras. Eu entreguei o cantil logo. Toda hora dava vontade de rir daquela mina. Ela virou quase tudo, aí tomou coragem, segurou o próprio pé e arrancou o pedaço de vidro tipo o Rei Arthur tirando a espada da pedra.

Basicamente eu e o Alex ficamos meio hipnotizados com tudo que a fazia. Dois panacas sem reação. Ele começou a parabenizá-la e ainda aproveitou pra arrastar a bunda pra mais perto de onde a garota tava sentada. Ficou fazendo carinho no braço dela e tudo.

A abriu um olho e soltou o vidro da mão, que quicou e estalou na lataria. Eu peguei o caco e atirei lá fora no mato que acompanhava a estrada. A mão dela ainda tava um pouco trêmula. Coitada. E o Alex continuava em cima. Era um canalha, sem discussão. O maluco botou um papelzinho no bolso do casaco dela e sonhou que ninguém ia ver. Acho que a nem percebeu nada, tava em choque ainda. A próxima coisa que ela fez foi tirar a meia do pé machucado, aí entrou num transe meio anormal enquanto encarava a ferida. Eu puxei o pé dela pro meu colo, pra despertá-la, tentando ao máximo ser delicado, caso contrário, acho que ela ia dar um berro tão alto que até a porra dos pássaros iam cair do céu.

Eu sacudi a meia pra tirar a sujeirada e depois a amarrei em volta do pé dela.

— Tem sorte que o corte não foi tão profundo — falei qualquer coisa pra ver se a acordava. Ela respirou fundo e finalmente olhou pra gente. Foi aí que ela se deu conta que o Alex tava perto demais.

— Obrigada… Mesmo — ela arranhou a garganta. — Quero dizer, ainda bem que vocês apareceram.

— Agradeça à Jenna — o canalha disse. — Tinha um bom tempo que ela tava te observando de longe, te achando muito sozinha…

— Aham. Jenna.

O Alex me olhou meio puto, mas eu não tava nem aí. Ele tornou a olhar pra pra desconversar. — O que você tava fazendo lá?

— Ah… Levei um pé na bunda de um cara que eu tava saindo há um tempo e fui chorar umas mágoas. Tô me sentindo tão estúpida agora. Mas tô melhor.

Tadinha da garota, na moral. Me senti meio mal por ter rido dela por um segundo.

— Você não tá sozinha, . — O Alex fez carinho no braço dela de novo. Um cara desses jurava que tocar o braço dos outros era o consolo supremo.

— Pelo menos não na estupidez — comentei. — A gente tava dando um show na praia. Ainda tô um pouco bêbado.

Ela riu. — Pode parecer exagero, mas acho que eu também tô... um pouco zonza... O que tinha no seu cantil?

— Everclear.

Os olhos dela esbugalharam. — Puta merda.

— Todo mundo nesse carro tá bêbado graças ao meu cantil — falei, mas ela continuou com aqueles olhões. Me peguei imaginando uma caricatura da cara da . — Menos o PJ. Todo mundo menos o PJ. Por isso dei as chaves a ele.

— Essa picape é sua?

— Sim.

— E onde a gente tá? — ela olhou em volta. — Tamo voltando pra universidade, né?

— Aham, acho que sim. Ei, PJ! Jenna! — eu gritei por eles. Então, vi a Jenna se mover pro meio do banco, daí ela se virou e abriu a janela da cabine pra falar com a gente.

— Sim? Tá tudo bem aí?

— Sim, sim, caco de vidro removido. — O Alex tava se achando o salva-vidas de S.O.S. Malibu.

— Sério? Já? Acabei de dizer ao PJ pra dirigir até a enfermaria da Oyster.

— Não precisa — a respondeu. — Tenho um antisséptico e esparadrapos em casa. Digo, no meu quarto. Fico no Belva Hall.

Fiquei enjoado. Consegui ficar enjoado só de ouvir o nome daquele lugar.

— Ah! Eu fico no Capper Hall, bem ao lado. Vamos chegar daqui a pouco, então — Jen tocou o braço dela. Parecia o Alex. — Escuta, qual de vocês dois foi o ilustre cirurgião?

Nós dois apontamos pra .

— Sério?

— Digamos que precisei tomar as rédeas — ela completou. Foi honesta.

— É isso aí, garota! Uhuuu!

Todo mundo ficou mais calado depois, principalmente a . Ela tava meio abatida, com uma cara cansada. Eu também tava exausto, pra falar a verdade. Ia chegar em casa, bater na minha cama e dormir. Tive que dar um cutucão no Alex pra ver se ele desconfiava e deixava a garota quieta, e funcionou, pelo menos. Cada um merecia o direito sagrado de ser triste em paz.

Depois de um tempo, deixamos a e a Jen no alojamento feminino, daí pulei pra cabine da Chevy e me sentei ao lado do PJ. Ele reparou na minha cara de ânsia de vômito.

— Calma, mano. Tá tão traumatizado assim?

— Nada. Tô de boa.

Ele riu. — Já tá arrependido de ter terminado com a Renée? Porra… Tem dois dias só…

— Bebi demais, só isso. Fica quietinho, vai.

Eu girei o dial do rádio até o volume estourar. Até a música encher o carro e vibrar no painel. Tava tentando ao máximo ignorar a vontade de enfiar o carro no estacionamento do Belva Hall e encarar a porta do quarto 316, essa que era a verdade. Ver a Renée. Saber o que ela tava fazendo agora. Checar se ela tava bem. Mas me obriguei a sufocar essa porra toda, porque o alívio de não ter que explicar onde eu tava e com quem num dia aleatório ainda era a única coisa me segurando.

Vira e mexe eu ficava em dúvida se realmente fiz a escolha certa. Uma inquietação que não saía da minha cabeça. Eu era um filho da puta indeciso. Daí as lembranças dos momentos bons entravam no bolo da tensão das nossas últimas conversas, e eu sabia que era melhor ficar longe.

Era difícil não me perguntar se ela também pensava em mim.





Mansão Phi Kappa Beta
Dezembro/1999

Não tinha coisa mais difícil do que relaxar num lugar entupido de arrombado. A mansão da fraternidade da Oyster tinha arrombado até o teto, eles vazavam pelas janelas. Mas era isso ou eu passaria o Ano Novo com a minha vó vendo a contagem regressiva na Times Square pela TV. Eu juro que se a Max estivesse em casa, eu ficaria lá com ela sem ter que sacrificar minha paz naquele safári de arrombados com camisa polo da Ralph Lauren, mas até uma menina de dez anos tinha coisa melhor pra fazer. Aqueles caras da fraternidade tinham acabado de descobrir que ganharam polegares opositores, e isso foi o traço evolutivo perfeito pra que pudessem carregar garrafas de shake de proteína por todo lugar. No caso de uma festa, eles substituíam por um copo de plástico vermelho com cerveja barata.

Eu já tinha bebido umas sete daquela nojeira. Eu ia parar.

Fazia uns cinco minutos que eu tava parado no canto de uma das salas, ruminando mil pensamentos. Tinha acabado de voltar do banheiro. Eu voltei e vi a Renée de papo com o Finnegan do outro lado do cômodo. Claro. Seria ótimo se a gente não tivesse voltado semanas atrás e eu não tivesse nada a ver com isso, mas agora eu tinha. De novo. Uma hora eu ficava arrependido de terminar, outra hora arrependido de voltar. Parecia um jogo, o arrependimento só mudava de lugar o tempo todo.

Sem falar nada, o PJ chegou perto de mim e botou a mão no meu ombro. Ele roubou o copo parado na minha mão, tomou uns goles da cerveja, aí ficou balançando a cabeça em negação enquanto olhava na mesma direção que eu.

— Nem vou falar nada, maninho. Você sabe o que eu acho. Tem chá que não vale a pena.

Eu também não falei nada; se falasse, ia sair alguma merda. Eu já tava bebaço. Fiquei calculando o que deveria fazer, mas a resposta eu também já tinha. Eu nem queria fazer nada.

— Caralho. Ela sabe que você tá aqui?

Foi o PJ dizer isso e eu vi o Finnegan pegando na cintura da Renée, e ela nem fez nada. Porra, nem um passinho pra trás.

— Sabe — respondi. — Olhou pra cá uma hora.

— É só você dar um sumiço que daqui a pouco ela vem me perguntar onde você tá.

Continuei de olho nela. Ficamos os dois calados de olho nela. A Rennie não tava sorrindo, pelo menos, e comemorar isso era muito corno manso da minha parte, mas o hábito já tinha me treinado pra catar migalhas. O Finnegan tava falando um monte de coisa pra ela, gesticulando com o outro braço que devia ter o tamanho da minha cabeça. Qualquer mulher que dava ideia pro Roy Finnegan tinha duas saídas: ou terminava chupando o arrombado na pia do banheiro, ou morrendo de ódio, porque ele era muito burro. O tipo de cara que achava que coqueluche era uma DST ou que a China ficava na África.

Não dava pra saber o que a Rennie pensava, porque ela era meio apática pra muita coisa. Eu até queria perguntar, tava na ponta da língua, “Esse papo de vocês é mais um acidente que só acontece quando eu tô olhando?”, mas da última vez que eu abri a boca, desencadeei sem querer uma DR gigantesca sobre como eu não confiava nela. No momento eu só queria que a Renée tivesse um jeito mais discreto de me mandar tomar no cu naquela festa.

— Para de se torturar, mano. Ela tá regando a plantinha do seu ciúme, parceiro. Precisa te ver puto pra acreditar que ainda tem você. Triste? Pra caralho. Mas é o jogo de vocês. Eu já larguei mão.

Meu silêncio concordou com tudo. O gosto de cerveja até azedou na minha boca enquanto o PJ falava. Mas minha atenção ainda tava pregada na Renée.

Ela tava lá, toda casual, fumando um Marlboro com a pose de quem tava torcendo pro mundo acabar antes da virada do milênio. Confortável demais com a cinturinha marcada pelos dedos do Finnegan. Usava um vestido preto e colado de mangas compridas, os punhos carregados de braceletes de espinhos, o cinto de couro com rebites. O batom vermelho deixava a boca dela mais carnuda ainda. A Rennie não precisava se esforçar pra chamar atenção, sua beleza e indiferença já faziam isso por ela.

A Renée tinha essa coisa de sempre parecer entediada, como se ninguém ao redor fosse digno de realmente interessá-la. Vivia cutucando os outros. Não importava se eram desconhecidos, um professor da Oyster ou até as próprias amigas. A lábia afiada era a mesma. Tipo a Tess, uma amiga dela, quando apareceu toda feliz com uma tatuagem de borboleta na lombar semanas atrás. A Renée comentou sem pensar duas vezes: “Quer uns contatos de tatuadores que não te humilham tanto assim?”. Nessas horas a Tess sempre olhava pra mim antes de responder. Aquele olhar de quem tomou um chute e sabia que eu também conhecia a dona da bota.

Mal sabia ela que comigo a Rennie fazia dessa parada um esporte olímpico. Era um “tá tentando compensar o quê exatamente?” quando eu resolvia trocar a camisa de flanela por uma jaqueta. Zoava o meu sotaque de Boston, implicava com os meus desenhos. “Se você olhasse pra mim com metade da atenção que dá pra essas paisagens depressivas, a gente tava noivo”. Até o jeito que eu enrolava um baseado ela achava ruim, falava que eu apertava demais ou colocava muito tabaco. “Nossa, que original”, toda vez que eu botava Nevermind pra tocar na república. Até quando a gente transava, porra. “Você pelo menos se esforça”, ela comentou uma vez, como se eu tivesse feito um exame prático. Toda hora dava vontade de mandar ela se foder, mas aí eu lembrava que ela ia adorar, então eu ficava quieto. Engolia. Eu era o otário que achou que tinha encontrado uma alma gêmea naquela festa de praia um ano atrás, quando na verdade só tinha topado com minha outra versão – ela era eu, com mais coragem de ser filha da puta. Ela era tudo que eu não deixava vazar.

— Vai pegar mais uma cerveja, vai. Eu acabei com a sua — o PJ balançou o copo vazio na minha frente. E foi o que eu fiz. Dei uns tapinhas no ombro dele e saí. Eu só precisava de um incentivo mínimo.

Assim que cheguei no corredor, tive a certeza que eu não ia parar de beber porra nenhuma. Não dava pra ficar sozinho com meus pensamentos.

Fui pra fila do barril, e só de ter ficado dois minutos ali eu vi tudo girar. Eu já tava naquele nível de bêbado onde o mundo virava um filme com delay de cinco segundos. Nossa. A mina na minha frente tinha uma bunda que era brincadeira. Tava usando uma sainha e uma jaqueta de couro.

A jaqueta parecia com a minha.

Quando ela virou pra trás, pra me passar a vez da mangueira, nós dois tomamos um susto. A gente ficou parado por uns segundos – ela com a mangueira na mão, eu com um sorriso escancarado –, os dois processando a merda toda.

— Eiii, ! — eu segurei o ombro dela. Putz, já tava que nem o Alex, encostando nos outros. — A gente tá combinando!

A tava raciocinando ainda. Abriu a boca, fechou, depois abriu de novo. Só faltava ela nem ter me reconhecido, aí sorriu de repente, então fiquei mais tranquilo. Caralho, eu não lembrava que ela tinha um sorriso tão bonito assim. Tão aberto que dava pra ver todos os dentes, os olhos quase sumindo de tão apertados, como se ela não conseguisse segurar mesmo se quisesse. Iluminava a cara dela toda. Parecia até outra pessoa.

— É mesmo! — ela falou. — Ó procê ver!

Eu ri. Toda vez eu esquecia que a tinha um sotaque sulista. Eu achava hilário quando ela deixava transparecer.

— Cê tá tão... Winona--

Eu ri mais. Que porra ela tava falando?

— Espera, o quê? Winona? — Não consegui parar de rir. Ela era meio maluquinha das ideias. Fiquei rindo sozinho. — Você é tão engraçada, . Não entendi nada do que-- Cara, eu sabia que você não era de Nova York.

— Por que diz isso?

Ela só podia estar tirando uma com a minha cara.

— Seu sotaque.

A era meio distraída. E como tava gata. Pelo amor de Deus. Ela tinha aparecido no quarto da Jenna pra comer pizza semanas atrás com outra vibe, e agora a mina tava impossível de ignorar.

— Alguém veio lá do sul — dei umas cutucadas nela com meu cotovelo. Ela devia tá me achando um porre. — Mas qual estado…? Ainda não sei dizer. — Enchi um copo e quase deixei transbordar, aí tomei uns golões pra não derramar. A gente saiu da fila e foi pro outro lado. — Hmm… Deixa eu ver… Tennessee?

— Não…

— Não? Tem certeza?

— Eu tenho certeza de onde eu venho — ela sorriu de novo, e se não fosse por isso, eu teria certeza que a tava me dando uma patada. — Tente mais ao sul.

— Mais?! — Eu já tava gritando no ouvido dela. A música tava alta e um monte de arrombado transitava ao nosso redor. — Então… Atlanta, Georgia? Definitivamente você é de Atlanta, sei disso.

— Não, vai mais pro oeste.

— Alabama? Sweet Home Alabama! Ah, cara, sempre quis cantar isso pra alguém do Alabama.

— Só um pouco mais pro oeste… — A não só continuou me dando corda como inclinou a cabeça pra me ouvir melhor. Ou ela curtia mesmo ficar de papo comigo, ou tava com pena de bêbado falante. — Vai, você consegue. E não, não sou de Mississippi.

Se eu desse mais um chute errado, ela ia igualar meus neurônios aos dos membros da Phi Kap, então me esforcei um pouco.

— LOUISIANA!

— Isso!

Eu levantei a mão pra ela bater, e depois do nosso high-five, a desatou a rir. Nem deu tempo de pensar se ela tava rindo de mim ou outra coisa, porque eu entrei numa crise de riso junto com ela. A risada dela era engraçada pra porra. Começava com um “RÁ!” alto demais, que fazia até o pessoal do lado virar pra olhar, aí virava um monte de risadinhas curtas e ofegantes. Terminava com ela sem ar, com os olhos cheios d’água. Parecia um desenho animado. Falei isso pra , ganhei uma cotovelada no braço que doeu mais do que devia, e quando a gente finalmente recuperou o fôlego, eu já tava olhando pra ela de novo.

— Você veio de longe, hein? Qual cidade? Nova Orleans?

— Não, Liv--

Sei lá por que ela parou de falar. Do nada ficou vidrada em algum ponto atrás de mim. Era um salão mais escuro onde uma galera tava dançando, e tinha um cara ali no meio que se destacava porque a camisa polo branca ficava fluorescente na luz negra. Um palhaço. Ele tentava uns passinhos molengas perto de duas garotas que daqui a pouquinho estariam rebolando no pau dele. A virou uma estátua. Se eu desse um mortal pra trás ali agora, ela nem ia perceber. Eu conferi algumas vezes se era pra ele mesmo que ela tava olhando.

— Aquele é o seu cara? — perguntei.

— Era.

— Ah, é. Foi mal.

Climão. Tomei mais um gole da minha cerveja. Então era por aquele bunda mole que ela tava chorando lá no píer?

— Aquela não é a sua garota? — A apontou pra outro ponto atrás de mim, só que agora do outro lado, de onde eu tinha vindo, onde tinha um pessoal mais de bobeira. Só faltava ela ter visto a Renée pegando o Finnegan. Até gelei. Quando me obriguei a olhar, vi ela de papo com outro cara, aí virei a porra dum iceberg. A Rennie tava falando com o ex dela.

— Ah, merda… É, sim. Aquela-- Aquela é minha garota. — Um milhão de coisas passaram pela minha cabeça. Daquela vez não dava pro joguinho dela rolar solto. — Na verdade, acho que vou lá checar. Licença — falei qualquer coisa e saí andando. Fiquei pensando no que é que eu ia dizer pro DeWolff sair de perto sem drama. O maluco parecia um boneco Max Steel. Eu tinha que ser criativo com ele, era uma desgraça.

— Ei, espera! — A me chamou. — Você viu a Jenna por aí?

— Acho que lá em cima — respondi, mas segui meu caminho com pressa.

Quando me aproximei da Renée, o DeWolff me viu e fechou a cara. Eu cheguei ao lado dela, de frente pra ele.

— Fala, Poderoso Chefão — ironizei. Demos um toque rápido com as mãos. Pura falsidade. A mão dele era cheia de calo, toda fodida, arranhou a minha inteira. — Qual é a boa?

— Nah, bobagem. Assunto nosso — ele deu uma piscadinha, só pra me tirar do sério. O sonho molhado daquele sujeito era dar um chute no meu cu, eu tinha certeza.

— Faço ideia. Você é mesmo um cara com assuntos fascinantes — mexi no meu nariz, pra ver se ele limpava o pozinho branco da narina dele. O cara não parava de fungar. — Mal posso esperar pra Rennie me dar ideia depois.

— Eu não vou dar ideia de nada pra ninguém — ela falou, mas o DeWolff não tirou o olho de mim. Pelo menos limpou o nariz. — Nem comecem, vocês dois. Fala sério.

— Tá com medo que eu te roube de volta o posto de confidente dela? — ele provocou com um sorriso torto. Que dramalhão.

— Tá com medo de perder o único posto que ainda te resta? De fornecedor de prensado lavado?

Ele só calou a boca porque a Renée riu.

— Você é engraçadinho, né, Seaver. Não sei como a Ren não cansa dessa sua cara de lombrado.

— Eu canso, sim. — A Renée puxou uma tragada longa do cigarro e soltou a fumaça bem na cara de DeWolff, os olhos pregados nos meus. — Mas aí ele faz uma gracinha dessas e eu lembro porque não largo.

Eu quis revirar o olho, mas ela tava me encarando. O DeWolff fez isso por mim.

— Pois é — ele me olhou, dando um passo pra trás. — Tá com sorte que hoje eu tô com preguiça de estragar a festa por causa de um pedaço de merda igual você. Depois a gente se fala, Ren — ele piscou pra ela de novo.

Rennie continuou com a cara de nada e o DeWolff finalmente saiu de perto. Se enfiou no meio dos outros e sumiu.

— Você também não me ajuda, né — eu falei pra ela com a raiva ainda correndo no sangue. — Porra… Você não se ajuda.

— Onde você tava?

— Fui buscar uma cerveja. O que ele queria com você? Ou você “não vai me dar ideia de nada”?

Ela bufou. — Ah… O de sempre. Me atazanar sobre a maconha. Falou que a próxima vem mais verdinha que a última, mas você sabe. Não vai vir nada. Vamos ficar com o prensado lavado — ela riu.

Claro. Era a única desculpa restante pro DeWolff falar com a Renée. Toda vez que eu jogava isso na cara dele, não tinha outra opção senão arregar. Eu já tava por dentro da covardia do cara.

— Quanta urgência pra tratar desse assunto faltando uma hora pra virada.

— Deve ser porque ele me viu sozinha — ela cruzou os braços e parou na minha frente.

— Deve ser porque ele viu você falando com o Finnegan.

— Deve ser porque o Finnegan me viu sozinha.

— Eu fui ao banheiro, Rennie. Na moral, você não ajuda em nada mesmo.

— Para — ela resolveu jogar os braços ao redor do meu pescoço. Não tinha motivo nenhum pra sorrir, mas lá estava ela com um sorriso naquela boca vermelha. O olhar dela me prendeu por uns segundos. — Pelo menos você tá aqui agora. Não é?

Ela tava adorando tudo aquilo. De sentir que me fazia ferver por dentro. Nada podia ser tranquilo, tudo tinha que ter uma grande emoção, controvérsias e reviravoltas. Era uma parada estimulante só pra ela, e não adiantava quantas vezes eu dizia que pra mim era uma droga.

Ela tocou meu rosto, chegou bem perto e fechou os olhos.

— Agora não… — eu disse. Com medo de me arrepender.

Ela abriu os olhos, meio constrangida. Eu nunca sabia como fazer o que eu queria sem ofendê-la. Sempre acabava inventando um troço qualquer pra escapar por uns momentos, só pra esfriar a cabeça o mais rápido possível. Não tinha como fazer isso perto dela. Com cuidado tirei os braços da Renée do meu pescoço.

— Preciso falar um negócio pro PJ.

— Agora?! O quê?

— É que eu esqueci de pegar a chave da república com ele — fui dando uns passos pra trás, aos poucos. — Acho que vou vazar mais cedo. Pode ficar por aí, depois a gente se encontra lá na piscina, beleza?

Dei as costas e saí daquele salão infernal. Quase subi as escadas, aí lembrei que lá em cima ficava um povo morgado no sofá da janela, então segui pra cozinha. Eu tava doido pra fumar um. Vi meu mano Connor pela janela que dava pro quintal, aí fui pra varanda. Estavam rodando um baseado com mais uns caras, inclusive o Alex, e umas garotas também. Uma delas era a Tess.

A Tess não era tão gótica – na real, parecia que ela tava trocando de pele desde o ano passado. Uma parada esquisita. Ela era cheia dos mistérios que nem a Renée, mas segundo a própria amiga, a Tess agora decidiu que ser gótica era coisa de 1995.

Eu entrei na roda ao lado do Connor já pedindo um fininho só pra mim. Ele sempre tinha uma coleção de fininhos no bolso pra situações de emergência. Era um cara precavido.

— Calma, meu chapa. Já já chega a sua vez — ele soprou a fumaça lentamente. — Tá estressado? Você não é desses.

Adivinha — a Tess comentou. — A Ren pediu pra voltar com ele.

O Connor terminou de tragar outra vez e me passou o beck todo babado.

— E você voltou? — ele engasgou com a própria fumaça. Me olhou como se eu fosse completamente louco. E eu era.

— O que você acha?

Eu traguei. Aquilo não era um beck, era uma tora. A porra de um temaki. Ótimo, eu ia chapar rapidinho.

— Relaxa, . — Do nada a Tess tava uns três passos mais perto de mim. — Daqui a pouco vocês terminam de novo.

Todo mundo bem que podia calar a boca sobre isso.

— Ah, é? — soprei a fumaça pra cima. — E de que lado você está?

Porra, a Tess tava com uma blusa rosa tão apertada por baixo do casaco aberto. Deus abençoe aquela troca de personalidade sazonal. Não tinha como não olhar pros peitos dela. Lógico que ela reparou.

— Tô do lado da minha amiga… que se te visse aqui agora, ia querer te matar.

— Ela sempre quer me matar.

Tadinho.

Eu revirei o olho. Que mina chata. Eu passei o beck pra ela com vontade de dar um beijo nela.

— Impressionante como tem gente cafona aqui — foi a vez dela de soprar a fumaça. Soprou bem na minha cara, fazendo biquinho.

— É…

— Difícil acreditar que alguém ainda ache um casaco de pele sintética bonito. Olha aquela menina ali.

— Aham.

— Eu falei pra você olhar.

— É, foda-se casacos de pele sintética.

Ela riu e ficou me olhando. Sabia que eu tava pouco me fodendo pro frufru todo. Depois passou o beck pra outra garota da roda que tava conversando com o Alex. Quem sabe hoje ele não saía da seca.

— Você tá cheiroso hoje — a Tess falou com o rosto bem perto do meu pescoço.

— Tô vendo como sou só eu que a Rennie vai querer matar.

— É só você andar na linha. Vai conseguir?

Nossa. Botei a mão na cintura dela só de pirraça. Ninguém ali ia falar nada mesmo. Capaz de até comemorarem.

— Claro que eu consigo — respondi. — É só você ficar comportadinha.

— Porque você já desistiu de se comportar, né?

De repente, o Alex começou uma crise de tosse e devolveu o beck pra alguém. — Galera, marca aí, vou ao banheiro.

— O banheiro do corredor tá nojento — o Connor avisou. — Vai lá no de cima, tá mais vazio.

No meio daquela movimentação e do papinho, como se ninguém fosse perceber, a Tess pegou minha mão em sua cintura, foi enroscando os dedos nos meus, aí deu uns passos pra trás. Parecia que ia me puxar dali em questão de segundos.

— Espera aí, eu nem fumei direito...

— Deixa que eu te mostro coisa melhor.

A gente foi se afastando. Daí, com a outra mão, ela tirou do fundo do sutiã um saquinho plástico com um pó de MD e sacudiu na minha frente. Meu irmão, ela tirou droga do meio dos peitos. Eu tava fodido. Essas garotas ricas sempre tinham qualquer droga de sobra e da melhor qualidade. Ela tava ligada que era só jogar na arapuca pra eu cair.

A gente foi se sentar num balanço de madeira no outro canto da varanda.

— Daqui a pouco vão soltar os fogos — ela falou enquanto abria o pacote. Depois lambeu o dedo com MD e me entregou. — Vamos agora pra gente ficar olhando pro céu.

Meti o dedo no saquinho e passei a ponta por dentro do meu lábio.

Fazia tempos que eu não usava nada além de maconha. Da última vez tomei um LSD na casa do Connor e tive uma epifania do caralho. Foi num dia que cancelaram uma festa que a gente deixou de ir por causa de uma tempestade. Lembro que fiquei sossegado, ouvindo música, estirado no chão com a cabeça em cima de uma almofada. Deixei os pensamentos mais profundos virem e nunca mais fui o mesmo. Aqueles que só aparecem quando tô chapado o suficiente pra achar que entendo o sentido da vida. Tipo como o sofrimento e a morte eram a base da realidade, e toda essa coisa meio Kafka, sem escapatória, então a única boa escolha que eu tinha era tentar não ser um cuzão com meus amigos, estar lá por eles, e aproveitar os bons momentos antes que tudo virasse pó.

Foi uma rendição total. Já tinha acreditado em cada balela – destino, sincronicidade, algum sentido escondido nessa parada toda. Que o universo tinha uma consciência, que os números tavam sempre na minha cara, e que um dia eu ia achar a solução perfeita pra acabar com a ansiedade de viver. Mas, na real, ela ia ficar pra sempre, tipo um hóspede sem data pro check-out. Meu apego que iria mudar com o tempo. Só isso. Agora eu só acreditava no tempo.

Não muito depois deu pra ouvir todo mundo fazendo a contagem regressiva pro Ano Novo, então alguns membros da fraternidade soltaram fogos ali mesmo no jardim. Foi uma euforia completa, até eu e a Tess nos levantamos e paramos no parapeito da varanda pra assistir as explosões no céu.

Ela tava colada em mim. Algumas pessoas começaram a se beijar à nossa volta, e bastava eu olhar pra Tess que o mesmo aconteceria com a gente. Mas gastei os últimos neurônios do meu cérebro pensando duas vezes, porque eu não tava nem um pouco a fim de lidar com as consequências daquela merda.

A Tess me puxou, pra eu me virar pra ela, pelo cós da minha calça.

— Calma aí, calma aí… Eu não sei se--

— E você vai ligar pra isso logo hoje por quê? — Ela notou que eu tava olhando pra todos os lados. — Conhecendo a Ren, ela deve tá pegando outro cara agora mesmo, só pra te deixar com ciuminho, igual aquela outra vez que ela fez isso e você também ficou puto. Aí vocês vão conversar amanhã, dizer que se arrependeram… Sempre funciona, né?

Fiquei com vontade de mandar ela se foder, mas a frase morreu na minha boca porque a Tess me beijou. Começou devagar, tipo um teste – na real, quase um desafio –, até que a língua dela deslizou pra dentro da minha boca, e eu devorei a dela como se fosse meu último gole de álcool. Porra, fiquei com um tesão fora de controle com aquele beijo. Ele só melhorava e eu só pensando que a merda toda ia dali pra pior, porque minhas mãos já estavam por baixo da blusa dela.

Acabei recuando.

— Não dá, Tess... Eu vou acabar te levando pro quarto.

— Leva nós duas, então.

Dei uma risada sarcástica. Quem me dera. — Faz o convite pra Rennie e a próxima parada é o tribunal, com você de réu.

— Só eu? — ela me deu um selinho e voltou a roçar os peitos em mim. Filha da puta. — Ah, é, você já vai estar atrás das grades.

Era impossível parar aquilo. Ou eu parava agora ou encarava uma briga colossal pela frente. Recuei mais um passo, mas a Tess avançou outro. Não sei como eu ainda tava conseguindo manter um pingo de juízo na minha cabeça.

De repente, alguém gritou pelo nome dela. Puta merda, salvo pelo gongo. Era uma garota que eu não conhecia, tava chamando a Tess pra ir logo até ela ver alguma coisa que eu não dei a mínima.

— Já volto.

Duvidei que voltaria. E eu não ia esperar. Independente do caralho que fosse, eu precisava dar o fora no segundo que ela saísse, ou não teria paz nenhuma nos próximos dias.

O pessoal foi se espalhando mais pelo jardim, a aglomeração pra virada do ano já tinha acabado. Eu voltei pro balanço e fiquei lá sozinho de pau duro na maior humilhação que eu mesmo tinha me colocado. Até que vi a Rennie perdida no gramado lá embaixo, então desci as escadinhas da varanda e fui até ela. Assim que parei em sua frente, a primeira coisa que notei foi a boca dela toda borrada de batom. Os lábios curvaram num sorrisinho insolente. A previsão da Tess não tava errada em nada, e eu tive vontade de desintegrar no espaço naquela hora.

— Puta merda, Renée… Você não presta.

— E você muito menos, .

Não sei como aconteceu, mas no segundo seguinte a gente se beijou. A gente se beijou numa urgência incontrolável. No fim do dia era sempre esse o resultado, contanto que houvesse controvérsias e reviravoltas, do jeitinho que ela gostava. E eu sempre mordia a isca. Era viciante. Infalível. Mas sobrando noventa quilos de arrependimentos no dia seguinte pra eu carregar. Só que no dia anterior eu não tava nem aí pra nada, esse era o meu erro crônico.

O beijo aumentou todas as proporções possíveis, então levei a Renée pra um beco mais próximo – o corredor da lateral da casa, onde tava escuro e isolado de gente. Ficamos nos agarrando contra a parede pelo que pareceu uma eternidade na minha cabeça. Eu tava desabotoando a calça dela quando um estrondo fez a gente parar.

— O que foi isso? — Rennie tava atordoada. Eu olhei pra direção do barulho e vi uma garota com o ombro escorado na parede mais à frente, toda torta. Parecia que ia colapsar na grama a qualquer momento.

— Você tá bem? — Eu andei até ela. Aquele canto tava tão escuro que quase não a reconheci. Cacete. — ?!

O quê?! — ela finalmente abriu os olhos e ergueu a cabeça. Com uma mão agarrando o próprio cabelo, parecia que tava tentando arrancar a névoa alcóolica do cérebro. A outra mão escorregava pela parede. Os olhos tavam vidrados, a respiração toda descompassada. Dava pra ver na cara dela que tava totalmente fora de si. Ficou me encarando até pensar pra responder. — Sim! Tô bem! Tô bem melhor!

— Tem certeza? — eu me aproximei um pouco, porque ela tava quase caindo. A Rennie também chegou mais perto.

A se endireitou com a mão apoiada na parede e olhou pra ela. — Cê tá louca, mulher?

— Hã? — Rennie levantou uma sobrancelha.

— Um homem desse no seu pé e você fazendo corpo mole? Ah, pelo amor de Deus! Eu não mereço esses jovens de hoje. Sinceramente.

Eu dei uma gargalhada. Caralho, eu tava muito doido ou ela tava muito doida? Tudo que saía da boca dessa mina era uma brisa. Minha risada chamou a atenção dela e agora foi a minha vez de ser atacado pela . Eu tava ansioso por isso.

— Escuta, acho ótimo que você teve um final feliz com a sua garota hoje, porque eu não tive com o meu cara. Então — ela girou o pescoço e fuzilou a Renée com o olhar de novo —, aproveite bastante, ok?

— Sério, eu te conheço?

Eu revirei o olho discretamente. Claro que ela lembrava da no quarto da Jenna outro dia. Ficou meia hora falando mal das pantufas dela quando saímos.

— Sim, Rennie. — Acho que a sacou a sonseira. — Olhe bem pra esse rostinho — ela agarrou minhas bochechas com os dedos. — Olhou? Agora escuta o que eu tô te dizendo. Não existem muitos caras como ele por aí igual a gente pensa. Tendeu?

Eu já tava relutando pra não explodir de rir mais uma vez. — Porra, que mão gelada.

— Desculpa — ela se arrependeu na mesma hora e recolheu a mão. Fiquei triste. Eu tava adorando o show. — , erm… Sabe onde a Jenna tá?

— Acho que vi ela ali na piscina.

— Ótimo! Tchau!

A saiu correndo. Maluca de tudo.

— Que porra foi essa? — Rennie ficou indignada. Ela estalou os dedos na minha frente porque fiquei acompanhando a com o olhar até ela sumir de vista. Eu tava meio fascinado pela bunda dela.

— Sei lá — respondi rindo. — … Onde a gente parou?

Não custou nada e eu tava agarrando a Renée de novo. Pelo menos ela também tava louca de tesão. Por mim eu não ficava nem mais um minuto naquela festa. Por mim a gente ia pra república agora mesmo e transava a madrugada toda enquanto eu tava louco de MD.

Quando decidimos ir embora, passamos pelo jardim dos fundos outra vez, pra dar a volta na casa e sair. Mas uma movimentação estranha em torno da piscina nos chamou a atenção, aí vimos a maluca da empurrando um cara na água. Devia ser o ex dela. O barulho da queda e os respingos espalhando pra todo lado atraiu ainda mais olhares. Eu fiquei alucinado, morrendo de rir, enquanto a Renée tava com a mão na frente da boca aberta. Pô, que maravilha ver aquele mauricinho encharcado.

— Acha que não sei o que você fez hoje, seu imbecil?! — A gritou pra ele, que tinha acabado de emergir da água. — Você procurou a pessoa errada pra fazer de trouxa. Filho da puta.

Eu parei de rir. A Rennie finalmente riu.

— Gostei dela — ela me olhou de relance. — Vambora logo.

Rennie me puxou pela mão e entramos na mansão de novo; eu esperando que ela não usasse a de inspiração algum dia. Mas fiquei tranquilão. A gente sempre flertava no meio da raiva, sempre no limite, ela no “te odeio, mas vem me foder” e eu no “também te odeio, fica de quatro”. Foda-se se era anormal. Também era uma delícia.


República
Dia seguinte

O sol da tarde sempre entrava pela janela da cozinha, nunca pela sala. Parecia um holofote em cima da louça suja empilhada na pia. Fazia meia hora que a Rennie tinha ido embora e eu tava participando do papo pra boi dormir do Alex. Ele tava sentado na mesa, o PJ encostado no balcão com um cigarro entre os dedos, parecendo mais interessado na fumaça do que na história. Eu só virei os olhos e entornei o resto do meu café frio direto no ralo.

— Você é falador demais, Alex — comentei.

— Tô te dizendo, caralho. É sério, eu peguei a ontem.

O PJ soltou um baforada e olhou pra mim, um canto da boca subindo de leve. Nem eu nem ele estávamos acreditando naquela lorota.

— De zero a dez, , qual a chance desse beijo ter sido uma alucinação da cabeça dele?

— Mil — afirmei tranquilamente.

— Então tá — Alex relaxou na cadeira, cruzou os braços e deu um sorrisinho. — Não acreditaram que ela me ligou outro dia, agora não estão acreditando que ela me beijou. Tsc, tsc… Eu disse que meu papelzinho não era coisa de pau mole que nem o Seaver falou, e vocês também não quiseram acreditar. Só mais uma coisa, o beijo foi tão bom que me deixou maluco. Por isso aqui a gente não transou — ele apertou o polegar e o indicador, deixando só um espacinho entre eles. — Admitam, vocês são dois trouxas e tinham que aprender comigo.

Eu e o PJ nos entreolhamos segurando uma risada. Não era possível uma coisa daquelas. Ou o cara tava inventando ou aumentando muito a história.

— Beleza, então agora eu vou começar a distribuir meu telefone em bilhetinhos pra mulherada no campus — PJ falou. — Obrigado por transformar minha vida, Alex. Nunca mais eu também fico na seca.

O Alex nem se abalou. Eu ainda tava analisando cada palavra do que ele tinha dito. Não conseguia nem mentalizar uma cena daquelas.

— Que horas foi isso? — perguntei. — Que horas vocês se beijaram?

— Peraí. A gente não se beijou. Ela me beijou. — Era a segunda vez que ele refrisava esse detalhe hoje. — Meia-noite, na hora dos fogos.

— Onde? — O PJ também entrou pro interrogatório.

— Lá em cima, no segundo andar. Perto do banheiro. Estão duvidando? — O sorrisinho dele tava ficando cada vez mais convencido. — Perguntem pra Jenna, ela viu tudo.

— É… Ontem a tava bem doida mesmo — falei e saí da mesa pra abrir a geladeira e pegar um suco. Fiquei pensando nela falando um monte de loucura pra mim naquele beco escuro da mansão, e acabei nem pegando porra nenhuma da geladeira. — Ela tava bem doida. É só isso que eu vou comentar.

— Caralho, então você pegou ela mesmo, Alex?

— Tô te dizendo! — ele ficou revoltado. — Por que tá tão difícil de vocês acreditarem, porra? Eu sou uma piada pra vocês?

Um silêncio sepulcral.

O PJ resolveu responder. — Mais ou menos…

— Ah, vai se foder.

— Não é que você é uma piada, maninho. Você é daora. É que… — ele demorou demais.

Dei um toque no ombro do Alex. Parecia uma notícia fúnebre. — Ela que é muito gata pra você.

Pronto. O cara recomeçou a história toda do zero, insistindo nos detalhes mais irrelevantes como se a gente fosse algum tribunal. Ninguém aguentava mais. Eu e o PJ continuamos ouvindo, mas com certeza ele também continuou duvidando. Nem cogitei perguntar diretamente, mas da próxima vez que eu encontrasse com a pelo campus, faria questão de reparar em algum sinal.




Oakwood
Janeiro/2000

Eu tinha acordado com uma preguiça do caralho no domingo. Preguiça de gente, preguiça de voz de gente, preguiça de movimento, preguiça de tudo que exigisse esforço. No fim do dia, cansado das quatro paredes do meu próprio quarto, fui de bike até a praia de Oakwood terminar um desenho e ficar longe de tudo por uns tempos. O problema foi que o clima esfriou muito rápido, e o vento tava tão forte que ficou difícil segurar as páginas do meu caderno. A ponta do meu lápis quebrou uma hora e eu tinha esquecido a droga da minha lâmina. Não animei nem fumar nada do que eu tinha trazido, porque acender o isqueiro naquele vento seria um milagre. Eu tava tão mal-humorado que até eu me irritava, e achei que fugir pra praia fosse resolver tudo, mas só me fez sentir mais na mesma.

Quando desci de uma pedra pra ir embora, a última pessoa que eu esperei encontrar na face da Terra tinha acabado de chegar.

— Meu Deus, quer me matar?! — ela levou um puta susto. Não que eu não tivesse levado um também, mas a era muito dramática.

— Você que quase me matou — eu devolvi, quase rindo. — O que tá fazendo aqui?

— O que você tá fazendo aqui?

Eu não saberia explicar exatamente o que eu estava fazendo ali pra senhora detetive, porque não tinha um motivo concreto. Eu nunca tinha um. Dei de ombros e segui o caminho até minha bicicleta.

— Eu venho aqui o tempo todo — respondi. Guardei meu caderno na mochila me sentindo observado.

— Como…

Eu parei e olhei pra , esperando que ela terminasse. Parecia que ainda tentava conceber que eu tava bem ali na frente dela. Com certeza não contava com isso hoje.

— … Sério? Por quê?

— Nenhum motivo em especial — respondi. — E você?

— Vim ver o vilarejo abando-- Espera. Ninguém vem até esse fim de mundo à toa.

— Aqui não é o fim do mundo. A Oyster tá ali — eu apontei com o queixo pro ponto atrás dela.

— Tá ali a cinco quilômetros. Meio longe pra vir andando.

— Minha bicicleta tá ali, atrás daquela pedra — eu mostrei o lugar, praticamente indo até ele, atrás de um montinho de areia. Eu já tava pronto pra vazar dali, e a deveria fazer o mesmo. — Se eu fosse você — falei mais alto, pra ela me ouvir —, deixaria pra ir ao vilarejo outro dia. A maré já tá começando a subir.

— E daí?

Ela só podia estar de brincadeira.

— A maré costuma invadir aquela área toda — expliquei enquanto trazia minha bicicleta de volta pra trilha. — Tudo fica quase submerso.

— Ah, é?

Peguei a chave do cadeado no bolso da minha mochila e agachei pra destrancar a roda. Aquele “ah, é?” da me pareceu mais de uma criança empolgada do que de uma adulta com o básico do discernimento. Ela nunca deve ter vindo aqui antes ou não fazia ideia da história do lugar. Eu pensei um pouco e olhei bem pra ela.

— Quer mesmo ir ao vilarejo hoje?

— Vim aqui pra isso. Não tenho medo de maré.

Dei uma risada. Que teimosia do caralho. Não tinha como eu deixar a garota sozinha naquela praia inóspita, prestes a anoitecer, e ela tava com uma cara de quem ia fazer isso mesmo se eu fosse embora. Cada dia eu tinha mais certeza que a era doida.

Um ar pesado saiu da minha boca, porque eu já tinha tomado minha decisão calado. Que se foda, eu ia lá com ela.

— Então vamos — me levantei. — Conheço um atalho pela floresta, vai ser mais rápido.

— Espera, pela floresta? Não é proibido? Quero dizer, podemos entrar lá?

— Vou te falar, não é bom passar por ela. Mas preocupa não, tá tudo sob controle.

Andamos alguns metros até a borda da floresta de carvalhos que circundava a praia, numa parte mais alta. O inverno tinha despido todas as árvores, que tinham uns galhos esqueléticos apontados pro céu. Meio cena de filme de terror. Uma parte deles tava no canto do meu desenho. A neve virou um mingau marrom onde o gelo tinha derretido, e apesar do sol ainda brilhar, a luz não conseguia chegar com força até o chão naquela área.

Fui entrando sem drama pra ver se a tomava coragem mesmo. Eu ainda tava torcendo pra que ela desistisse, mas infelizmente não foi o que aconteceu. Ouvi os passos apressados dela atrás de mim e assim seguimos. O som do mar foi ficando cada vez mais distante, e aquele mundo de folhas secas no chão faziam barulho demais, não tinha como evitar. O maluco do senhor Wage ouviria lá da puta que pariu e eu tava rezando pra ele suspeitar de algum bicho ao invés de mim. Fiquei em alerta. O foda era que todos os bichos de Oakwood eram aves ou crustáceos que ficavam lá na praia.

Estava muito silencioso e esquisito. Não demorou muito e eu ouvi os passos de uma terceira pessoa. Parei de andar e fiz um sinal com a mão pra parar também.

— O que é?

— Sshhh. Ouviu isso?

— Isso o quê?! — ela ficou agitada, mas pelo menos tava sussurrando. — Ai, meu Deus, tem mais alguém aqui!

Os passos se aproximaram de nós e não tinha mais o que fazer. A não sabia se corria ou ficava ali parada comigo. Eu já podia ver o senhor Wage de longe entre os troncos de árvores chegando com o cachorro de guarda dele.

— Não deveríamos estar aqui, ! Vamos voltar, por fav--

— Parados aí — o velho ordenou. De repente senti um peso na mochila nas minhas costas, era a apavorada se escondendo atrás de mim. Tive vontade de rir no pior momento possível. O senhor Wage nem tava enxergando direito. Demorou anos pra me reconhecer. — Oh! Seaver! Como vai? — ele me deu um tchauzinho, e eu acenei de volta. Ainda tava doido pra rir. — O que tem pra mim hoje, garoto?

— Ah, senhor Wage, hoje o senhor me pegou desprevenido — enrolei. — Tô sem nada. Foi mal.

Ele deu um estalo pro cachorro, que imediatamente veio me farejar. Latiu em dois segundos, foi só ele chegar perto da minha mochila. A se encolheu ainda mais pro outro lado.

— Nada? Não é o que Titus está nos dizendo.

— Ah, não, senhor Wage… Vai confiscar o pouco que guardei pra mim?

Ele fez um estalo e o cachorro finalmente parou de latir.

Sabia que tinha algo pra mim. Passa pra cá.

Cara, que vontade de mandar aquele velho se foder. Ele tirou a carteira do bolso, mas tava muito enganado se pensou que eu ia aceitar o mesmo preço da última vez. Nem me incomodei de pegar aqueles cinquenta dólares.

— Isso é tudo o que o senhor tem? — perguntei. A cara dele ficou parecendo uma carranca de tão irado. — Porque você tá me fazendo abrir mão de tudo o que eu tenho. Vamo lá, cara, uma troca justa.

Wage juntou mais trinta paus e me deu a grana toda. Eu estendi minha plantinha pra ele pegar, dentro de um saquinho plástico, e eu não consegui soltar de primeira. Ele puxou mais algumas vezes até eu ceder. Caralho, ainda tinha uns três gramas ali dentro, aquele velho ia direto pro inferno.

Depois que ele deixou a gente passar, não deu um minuto e a me encheu de perguntas de novo. Tive que explicar a história inteira do senhor Wage e o rolê da maconha, o que deixou ela um pouco chocada. A era meio inocente às vezes. E quando a gente chegou lá no topo do morro, de onde dava pra ver as casas abandonadas, tive que explicar a história toda delas, das enchentes e das lendas de fim do mundo. Ficamos conversando maior tempão, até sentamos numa pedra e eu puxei um cigarro de palha pra fumar. Ela tinha curiosidade de tudo. Ô garota curiosa da porra.

Até estranhei quando ficamos em silêncio pela primeira vez. Até senti falta de mais perguntas. Eu tava ali na pressão baixa, admirando a vista, e dei uma espiada nela. A tava com as mãos no bolso, meio perdida na vista também. Não pude evitar pensar se ela tava mesmo interessada no Alex em algum nível, mas não dava pra sacar nada ainda. Só sei que o sol já tava descendo e eu não tava a fim de passar pela floresta sem enxergar nada.

— É melhor a gente ir — comentei, mas ela nem se moveu. O mais impressionante foi que ela não contestou. Botei minha mochila nas costas outra vez.

— Espera! Ainda tenho perguntas.

Tava demorando.

— E a vila? Ela existe há muito tempo?

— Aham — respondi. — É muito antiga. Acho que do final do século passado… Aliás, retrasado.

— Do século retrasado? Você só pode tá de brincadeira. Será que os pertences deixados já foram todos saqueados?

A ficou com um sorrisinho bobo na cara. Não era possível. Será que ela tinha entrado pro curso certo na universidade? Alguém tinha que avisar pra ela sobre o curso de museologia.

— Nunca parei pra pensar nisso — refleti enquanto soprava a fumaça.

— Como não? — ela se levantou de repente. — Tá me dizendo que cê nunca foi até lá pra descobrir?

— E você tá me dizendo que quer fazer isso?

— Óbvio.

Óbvio?

— Óbvio! Acha que vim aqui apenas pra admirar a paisagem?

A tinha uma falta de lógica pra cada coisa. Eu não conseguia acompanhar nunca. O que ela achava que ia encontrar naquele lugar largado às traças? O colar da Rose de Titanic?

Ainda sentado na pedra, eu a observava na minha frente, parada contra a luz. Ela tava o usando o mesmo casaco daquele dia lá na praia de Bricktown. O mesmo sorriso bonito, mesmo com cara de indignada. Não tinha como essa garota ter beijado o Alex no Ano Novo. Eu me recusava a acreditar nisso. Puxei mais um trago e me levantei também, então me pus na frente dela.

— O sol tá se pondo, a maré tá subindo… É perigoso. Outro dia você volta.

Parecia que eu tava falando pra Max comprar biscoito recheado na volta do supermercado e ninguém ia voltar coisa nenhuma. A olhou pro lado, meio tristinha, quase me comoveu, mas eu já tava fazendo hora extra em Oakwood. Acho que ela percebeu que eu não tava muito flexível.

Fiquei analisando um pouco a figura dela, de novo com uma vontade imensa de rir. Ela tava com a ponta do nariz vermelho parecendo o Rudolph, e um gorro da mesma cor, desses de Natal, com um pompom gigante na ponta e umas renas bordadas na lateral, parecendo que a vó dela tinha tricotado há uns trinta anos lá no Alabama.

— Ok… Vamos voltar — a suspirou, baixando os ombros.

— Você poderia ter esperneado, não ia adiantar.

— Por que diz isso?

— Não dá pra te levar a sério com esse pompom vermelho em cima da cabeça.

— Ai, meu Deus — ela tentou puxar o negócio pra trás, como se melhorasse em alguma coisa. — Sabe, da próxima vez não vou te dar ouvidos.

Não me aguentei e ri na cara dela.

— Pois deveria — dei a volta pela pedra, indo em direção à floresta, e joguei fora a bituca no meu cinzeiro de bolso. A veio logo atrás. — Não existem muitos caras como eu por aí, não é? Você bem que deveria me dar ouvidos…

— Do que--

Será que ela tava lembrada de ter dado perda total naquela festa e logo em seguida dado em cima de mim na frente da Renée? Senão eu pareceria um louco sozinho.

— Vamos esquecer disso pra sempre, por favor? Ou eu nunca vou conseguir olhar na sua cara.

Eu dei outra gargalhada. O melhor de tudo foi que a parecia muito mais envergonhada do que arrependida.

— Bom, se você me der uma poção de perda de memória instantânea, eu esqueço.

— É pra já.

Demorei a perceber que ela tinha parado de andar do nada. Olhei pra trás e vi a tirando alguma coisa do bolso, que ela logo arremessou pra mim. Tive que pensar rápido pra pegar aquilo no ar. Ela não podia estar falando sério. Era meu cantil, o cantil com Everclear que eu achei que tinha perdido lá na praia de Bricktown.

— Pronto. Pode se esquecer agora? — ela continuou caminhando e me ultrapassou. Eu ainda tava parado no mesmo lugar. — E não vou me desculpar, achado não é roubado.

Eu sacudi o cantil. Ainda tinha álcool ali dentro. Girei a tampinha e tomei um gole.

— Pronto. Esquecido.

A tava me olhando sem acreditar que eu ainda entornei aquele resto depois de uns dois meses guardado no bolso dela.

— … Você é maluco.

— Eu? — guardei o cantil no meu casaco e continuei a andar. Dessa vez, passei na frente dela de novo. — Quer que eu me lembre de mais coisas que aconteceram na festa de Ano Novo?

— Não. Não, não quero. Pode beber esse negócio inteiro pra você se esquecer de tudo.

Eu devo ter dado a vigésima risada do dia. Achava maior graça das reações dela. A se levava a sério demais. Pena que eu não ia parar de pegar no pé dela justamente por causa disso.



Continua...


Nota da autora: um capitulozinho rápido essa semana, mas na próxima mando mais DOIS pra compensar 🤫 kd me digam o que tão achando.. fico doida p saber! me segue lá no insta pra acompanhar as atualizações @autoramargo