━Autora Independente do Cosmos.
Atualizada em: 31.03.2025
Os olhos do grandão sentado no estofado já batiam recorde de quanto tempo estavam abertos. Parecia até aquele jogo do “serinho”. Ele tinha pelo menos mais de 1,85 enquanto o outro nem chegava a 1,80, e mesmo assim, conseguia intimidá-lo como se estivesse na frente do guardinha noturno que tinha descoberto que ele tinha ligado um refrigerador no banheiro do andar de cima do shopping.
Longa história.
Era assim que ele estava vendo Hansol: como se tivesse que pedir para ele para usar a privada no meio da entrevista.
Não acredito que tô tentando morar com esse cara, pensou.
A verdade era que Hansol não tava pensando em nada. Já era a terceira semana que ele sentava ali, na poltrona de um pé só da sala e olhava para um bando de garotos sentados no meio do sofá, tentando decidir primeiro se eles tinham cara de quem era alérgico a limpar banheiro ou se pareciam com alguém que mataria as suas plantas.
Ele olhou para a sua agendinha, verificando o nome. Mingyu.
— O que você disse que faz mesmo? — perguntou, dando uma folga para a caneta. O grandão (Mingyu), finalmente piscou.
— Acabei de entrar em Educação Física.
— Ah. — Hansol assentiu devagar. — Tu disse que tem parente aqui, né?
— Meu tio. Ele é professor de Português no colégio do Centro.
— Literatura ou Gramática?
— Hã… Português.
Hansol comprimiu os lábios e segurou a vontade de não começar a fazer anotações. “Não sabe o que o tio faz. Existe mesmo um tio?”
Não que ele se importasse com a árvore genealógica alheia, mas se o cara mente sobre um parente, poderia mentir também sobre, sei lá, deixar a luz ligada da sala a noite inteira.
— Você se importa com o barulho da rua?
— Não.
— Com regar as plantas quando ninguém estiver em casa?
— Não…
— Com sol da tarde batendo no seu quarto?
— Não.
— Tem certeza? A gente tá em Caratilândia.
— Eu sou de Cuiabá.
— Ah. Faz sentido. — Hansol rabiscou a palavra “Rio de Janeiro” na aba escrita “parece vir de…” — Tem algum problema com cronograma?
— Cronograma? — o cara passou a mão no cabelo involuntariamente. Com certeza devia tá pensando em cronograma capilar.
— Nosso cronograma de limpeza da casa. A cozinha é limpa todo dia num rodízio, a casa inteira é uma vez por semana pra cada um. Na quarta semana do mês, a gente chama a dona Graça pra dar uma força pra ela. Fica 30 reais pra cada. Se não limpar a cozinha ou a casa na sua vez, ganha multa de 5 reais. A gente reabastece o estoque de Limpol e água sanitária com o dinheiro. E se sobrar, com cerveja.
Mingyu assentia com a cabeça. O cara pontuava tudo com uma seriedade que não combinava com o seu rosto, e conquanto, ainda conseguia acanhá-lo. E porra, 5 reais? Era muita pressão. E se ele esquecesse o dia de limpar? Se chegasse muito tarde do seu turno da escolinha de futebol? Ia perder o dinheiro da Guaravita do almoço.
— As contas vencem todo dia 8, nosso plano de internet vai aumentar mês que vem, e tudo fica em torno aí de uns 200 reais pra cada, fora o aluguel. No banheiro, tem espaço pro seu shampoo e sabonete na parte debaixo e sua prateleira da despensa fica na parte de cima. Máquina de lavar a gente só usa uma vez na semana, pra economizar. A não ser que tu seja da atlética e apareça aqui com a chuteira cheia de lama da quadra. — ele rabiscou mais alguma coisa. Percebendo o silêncio, Hansol ergueu os olhos. — Você é da atlética?
Mingyu expirou. Pelo visto, o cara já tava passando da fase do intimidante e começando a entrar no irritante.
— Eu acabei de chegar.
Hansol repuxou os lábios para baixo, olhando para o tórax dele.
— Acho que você se daria bem no vôlei.
— Eles usam chuteira no futebol.
— É tudo a mesma coisa pra mim. — Hansol deu de ombros. Mingyu enrugou toda a testa. — Tá legal, sobre a comida…
— Já sei. Cada um com seu cada um.
— Menos o café. O Cheol conhece o seu Lúcio do mercadinho Guanabara, e ele separa um lote pra gente todo mês de Três Corações. Só tem extra forte, se você não ligar. 40 conto todo dia 15.
— Tudo bem. — Mingyu hesitou um pouco. Tava tentando diminuir o café (atrapalhava a rotina do sono e a absorção de creatina, segundo o influencer fit que ele seguia no Instagram), mas ser universitário e dizer que não queria café era quase a mesma coisa que falar que votou no Bolsonaro, então ele calou a boca.
Hansol foi riscando ou anotando mais algumas coisas, vendo que talvez não fizesse muito sentido perguntar se um cara daquele tamanho tinha chulé, ou se tinha um gatinho que queria trazer escondido (‘não deixar trazer pet escondido’), ou se ele gostava de jogar LOL até de madrugada (‘lembrar que as paredes são finas’), ou se ele era da galera e não ligava para maconha, ou se tinha namorada e ia trepar com ela altas horas da noite e performar um episódio inédito das Brasileirinhas (‘lembrar de novo que as paredes são finas!’).
Ele olhou para Mingyu através dos cílios. De todo mundo que tinha pisado ali na casa de número 17 da Rua São Sebastião, ele era o único que foi de calça jeans. E com o cabelo penteado. E não tava cheirando a desodorante Rexona passado em cima do suor (mesmo que estivesse usando tênis academia em um calor de 32 graus lá fora).
E principalmente: ele tinha visto a imagem da Nossa Senhora de Fátima em cima do sofá de palete da sala e nem fez cara feia.
Parecia um cara bacana. Mas que se foda isso, ele parecia alguém que dava para morar junto. Alguém que lavaria os próprios cadarços, guardaria a louça e escutaria Sorriso Maroto das antigas enquanto esfregava o box do banheiro.
E sinceramente, Hansol não aguentava mais fazer entrevista.
Ele suspirou, fechando a agendinha.
— Beleza. A gente gostou de você.
Mingyu olhou para os lados automaticamente.
— A gente?
— O Wonwoo deve tá por aí, a gente nunca sabe e nem pergunta, mas ele tem o próprio banheiro e vive de delivery, então tanto faz. E o Seungcheol tá em aula agora, mas ele é bem simples, só quer alguém que não exploda a panela de pressão e nem use as Tupperware da mãe dele pra guardar glitter.
— Alguém fez isso com uma Tupperware?
— Não. Mais ou menos. Você já tem o dinheiro do aluguel aí?
Mingyu assentiu.
— Só me falar o pix…
— Não, você tem o dinheiro? Na mão?
— Dinheiro de papel? Ah, tá. — Mingyu abriu o primeiro sorrisinho fácil, mas Hansol continuou sério. — Tá de brincadeira, né?
— A dona Neiva não gosta de pix. Diz que é coisa do diabo.
— Tecnicamente, novela também é.
— Ela já tem 67 anos, tem coisa que não vale mais a pena explicar. E então?
Mingyu bufou e se empertigou no sofá, puxando a mochila para o colo.
— Posso dar um pulo ali na Caixa rapidão e já volto.
Hansol balançou a cabeça.
— Se for a da Avenida Ipê, o caixa eletrônico tá com defeito.
— Então vou na agência.
— Já são 16:30, eles fecharam.
Mingyu piscou várias vezes, tentando achar solução.
Hansol suspirou de novo. A primeira coisa que Mingyu tinha enviado para ele no WhatsApp no dia anterior foi a foto do flyer de anúncio da vaga junto com a mensagem: “Ei, vi teu anúncio, já alugaram? Tô procurando uma república com urgência.” E depois: “O nome é mesmo Vira-Latas?”. Hansol respondeu pacientemente: o nome já estava aqui antes da gente.
Então, de novo: o cara parecia legal, não era nenhum babaca de atlética, procurava casa com urgência (e nem ligava para o nome dela), enquanto Hansol queria dar fim àquele processo seletivo e começar a montar sua grade.
— Beleza, tu me manda no pix e eu dou a sua parte no dinheiro. Quer ir ver o quarto?
Hansol já estava levantando, sem olhar para a expressão de Mingyu, mas conseguiu ouvir os passos pesados do seu novo colega de quarto marchando atrás dele pelo corredor.
Mingyu se mudou para lá no dia seguinte, sem nenhum pet a tiracolo e com um estoque de shampoo e condicionador Clear 2 em 1 do Cristiano Ronaldo preenchendo o espaço vazio do banheiro.
"Eu detesto o jeito dela, mas pensando bem
Ela fecha com meus sonhos como ninguém."
Garota Nacional – Skank
Ela fecha com meus sonhos como ninguém."
Garota Nacional – Skank
O sol já tinha nascido há muito tempo quando o despertador de tocou no volume máximo embaixo do travesseiro.
Era daqueles toques padrões do iPhone, muito fácil de ignorar, mas o que não dava para ignorar mesmo era o sol forte de março entrando pela janela do seu quarto. Ali não era igual o quarto de , cheio de árvore na frente e com boa vista para a rua, um prato cheio para espiar fofoca de vizinho e pegar em primeira mão os acidentes de trânsito — que em Caratilândia, não passava de gente perdendo o equilíbrio na bicicleta e idoso tropeçando no ressalto da calçada.
Mesmo assim, ela tinha que levantar. Não porque já eram 11 da manhã (ela já acordava essa hora todo dia), mas porque era quarta-feira, dia 17 de março. Não qualquer quarta-feira, e nem qualquer 17 de março.
Tropeçando, agarrou a câmera em cima da escrivaninha de MDF, uma Sony ZV-1 compacta, toda mergulhada em cabos e bateria solta. Apertou no botão da lateral, viu a luz vermelha piscar e coçou o olho.
— E aí… bom dia, vó. Primeiro dia de aula de novo. Depois de… há quantos semestres eu tô aqui mesmo? — ela se jogou na cadeira de rodinhas, fazendo aquele barulho de “nheeec”. — Ah, uns quatro, ou cinco, não tô me lembrando agora. E não, isso não é Alzheimer precoce. Já basta nossa família ter que conviver com essa coisa nos genes, seria uma sacanagem se ela desse as caras pra mim agora, na juventude dos meus 21, tá louca, bate na madeira. É que já faz um tempo que eu tô aqui, tendo que dizer “primeiro dia de aula” duas vezes por ano. — revirou os olhos cansados. Apoiou a câmera na mesa, a tela flip virada para o seu rosto, mostrando nitidamente sua cara amassada. E a remela no olho. — São 11:00 já, o que significa que eu perdi a primeira aula. Mas não tem problema, porque só quem liga pro primeiro dia é calouro, coisa que eu não sou e me mataria se tivesse que voltar a ser. Quer dizer, não se eu fosse caloura do curso de Cinema da USP, mas isso é papo pra outro dia. Bora ir tomar café? Acho que a ficou de comprar dessa vez, mas o seu Lúcio tá sempre em falta de produto. Vê se pode? Até parece que tem alguém comprando tudo.
bufou e manteve seu rosto cansado na panorâmica da tela, empurrando a porta com o ombro e saindo para a área ampla do cômodo central que poderia ser chamado de sala, caso tivesse coisas que uma sala normalmente tem — sofá, TV, tapete ou alguma planta. Mas tudo que tinha ali, no centro da república Só Fadinhas, eram uns colchões empilhados no canto, uns livros do Nietzsche da pegando poeira em um caixote e um cacho de banana verde que trouxe do sítio e disse que iria guardar (há 3 dias).
As outras portas espalhadas estavam todas abertas, e a movimentação devia ter acordado há horas se ela já não estivesse tão acostumada a dormir como um paciente em coma. A primeira que passou na frente foi , trotando até a cozinha com uma ruga na testa.
— Aqui! Aqui, lembra dela, vovó? — a câmera agora estava apontando para a lateral do rosto da garota de cabelo curto. — A mulher que argumentou que você poderia melhorar com hipnose profissional. É, eu ainda moro com ela. Bom dia, .
— O bom dia só é coerente até as 10:00, .
— Eu já falei que você não pode mudar as regras de um sistema UTC milenar, amiga.
— As principais notícias do mundo já aconteceram antes das 10:00, o resto que sobra são só nossos cérebros ambulantes ardendo no sol finito do nosso universo que está prestes a explodir a qualquer momento. Quer café?
piscou várias vezes. Amava muito essa garota, mesmo sem saber honestamente porquê.
— Er… Não, valeu. Seja o que for, hoje é o primeiro de aula, então é sua obrigação dizer alguma coisa legal pra iniciar o semestre. — a câmera agora estava quase no nariz de , enquanto ela abria e fechava a tampa do ketchup.
respirou fundo. Depois, olhou para o bocal da lente sob os cílios e soltou:
— Kierkegaard considerava que a existência humana é marcada por angústia, desespero e paradoxo, pois o indivíduo tem diante de si um conjunto de realidades possíveis e precisa eternamente fazer escolhas. A angústia é o cerne da existência e a realidade é angústia.
E voltou a se concentrar nas suas duas fatias de pão de forma esticadas na mesa, prontas para serem pintadas de vermelho com o ketchup e se transformarem em uma refeição ao estilo de Cardoso. sorriu hesitante, virando a câmera para o seu rosto novamente.
— E essa foi a . Não se assusta, vovó, você sabe que ela não faz de propósito. Ela é dessa gente que pensa muito, saca? Às vezes até exagera nessa maestria, mas- ! — apressou o passou e virou o lado da câmera rápido para a garota que estava saindo do banheiro, com o zíper da calça ainda aberto.
— Ai, caramba. Esqueci que as aulas voltavam hoje. — estalou a língua. — Eu sou a primeira?
— Já falei com a .
— O que ela disse?
— Filosoficamente, que o ser humano é fodido da cabeça.
— E o que você quer que eu fale? Que falésia é um acidente geográfico? Facilita, ! — ela gritou na direção da cozinha.
— Você podia só enfatizar que tá indo fazer o de sempre.
— Matar galinhas pretas pro meu ritual de purificação da semana?
— Eu quis dizer indo pra biblioteca, mas isso também serve. Essa daqui também não mudou nadinha, vovó. Ainda numa dificuldade danada de deixar o cabelo numa cor só…
puxou a câmera até a boca.
— Se a senhora estiver precisando de ajuda, pisque duas vezes. Fui.
E saiu para o quarto da esquerda, que ficava em um corredor enorme com o bocal queimado desde o último ano bissexto.
— Eu não tô mais conseguindo controlar essas cadelas semidesenvolvidas, me desculpa por isso, vó. — murmurou, virando o rosto para o outro lado: — !
A terceira moradora estava no quarto ainda, olhando para uma pilha de tênis no chão, aparentemente sem conseguir escolher nenhum deles. Quando viu a câmera, sua primeira reação foi revirar os olhos levemente.
— De novo você com essa atração especificamente lésbica por mim.
— Eu não tenho uma atração especificamente lésbica por você.
— Quando eu cheguei, você não parou de olhar pra mim.
— Porque você estava usando um chapéu de cowboy.
— E você me achou sexy por isso.
— Achei você uma caipira.
— Caipira sexy.
— Caipira do tipo: “tomo banho ouvindo O Menino da Porteira”.
— Eu escuto Taylor Swift.
— Ela também teve uma fase caipira.
— Aff. — bufou, puxando um dos pares e os apresentando na câmera. — E aí, vovó? Pode me ajudar? All star das antigas ou Adidas de menina fofa?
— Você sabe que não é assim que funciona o vlog da vovó. — levantou o queixo e franziu o cenho. — Mas acho que ela responderia o All star.
— O único que a minha mãe não escolheu. Você é esperta, amiga. E isso não é uma abertura pra um flerte.
— Pode ficar bem fechadinha pra mim, gata. — piscou e saiu do batente do quarto de , a última integrante das Só Fadinhas que tinha se mudado só no semestre passado, trazendo seu sertanejo universitário, suas bananas e maçãs fresquinhas do sítio e pais superprotetores a tiracolo. Mal dava para acreditar que aquela garota ali dentro usando baby doll com estampa de cachorrinho era a mesma que chegou com uma saia muitos metros abaixo do joelho e blusinha polo da Abercrombie. E claro, com seu chapéu de cowboy. era uma garota muito peculiar.
— Então, vovó, agora que você se inteirou da mesmice desse teto, tá na hora de eu ir comer a gororoba do RU. Sem chance de eu perder o fricassê, só servem isso pra deslumbrar calouro. — ela voltou para o próprio quarto, apoiou a Sony na escrivaninha e se inclinou, aproximando o rosto. — Vou levar aquele temperinho de hortelã que você me deu no Natal. Aquele que você disse que era maconha. Eu ainda não abri, mas tenho quase certeza de que não é maconha. Quase. Vou ver se eu acho um especialista pra me ajudar nisso. — olhou o relógio no celular. 11:30. — Tenho que ir. Me deseje sorte.
— Você tá na merda. — Débora misturou a farofa com uma rodela de tomate na boca, falando de boca cheia: — Quero dizer, fazer Cálculo B de novo? Onde você tava com a cabeça?
— Provavelmente no lançamento de Duna e Aftersun no mesmo mês, e maratonando todos os indicados de Cannes. — deu de ombros, separando a própria comida em quatro partes: arroz de um lado, feijão do outro, carne e salada nas outras extremidades.
Ela nem se daria ao trabalho de levantar a cabeça e pescar a expressão horrorizada e até desprezível de Débora.
— Você ainda tá nisso? — perguntou mesmo assim.
— Bom, o Lu de Cinema não vai se tocar sozinho.
— A faculdade também não.
— Eu consigo dar um jeito.
— Eu sei, você sempre consegue. Mesmo eu nunca tendo entendido como. — Débora tomou um longo gole de água, arqueando as sobrancelhas. — Ah, é, eu consigo sim. Eu.
— Não é só você…
— Você colou de mim em todas as provas desde o primeiro semestre.
— E estamos no sexto agora, você não devia estar me parabenizando pelas minhas habilidades?
— Colar é habilidade pra quem, ?
— Isso mostra que eu sou ágil e esperta, consegui chegar no Cálculo B sem nem saber fazer uma derivada direito.
— É, mas agora tu reprovou. Alguma hora essa coisa toda de canal e federal ia se encontrar, e você teria que escolher.
— Eu não escolhi. — levantou a cabeça rápido, sentindo aquele gelo no estômago desagradável. — Quer dizer, sim, escolhi, escolhi a UFSC, escolhi a Engenharia Química, é isso que escolhi.
Débora semicerrou os olhos, desconfiada.
— Aham. Tu ia mesmo escolher fazer Cálculo B, essa matéria difícil do cacete, justo com o Rodolfo? E ainda mais no barra-1, que junta aquela cabeçada toda da Computação e da Matemática. Qualquer um iria preferir um afogamento.
— Pode ser interessante. — insistiu, dando de ombros, tentando convencer mais a si mesma do que a amiga. — Gente diferente, sala diferente, prédio diferente. Só o material que não vai ser diferente, já que é o Rodolfo.
— Você ainda não vai conhecer ninguém, .
— E daí?
— Daí que se você não conhece ninguém, você não consegue colar. E vamos combinar que se você não colar…
— Eu consigo! — pareceu indignada. Débora não estava com ela nos últimos três anos? — Tipo, não é um sistema de passo a passo, é só uma habilidade intuitiva. Você conhece alguém, transparece confiança, deixa a pessoa à vontade com a sua presença atrás dela, vai tornando aquilo um lugar fixo e pronto, o ombro dela fica na elevação perfeita no dia da prova, sempre bem abaixado em um ângulo de 60º na altura do meu olho. E graças a Deus não tenho um grauzinho de miopia.
Débora piscou várias vezes, mastigando mais devagar enquanto as conversas altas ao redor do RU quase faziam com que ela tivesse que se inclinar para falar com .
— É sério, tu é meio bizarra. Eu pagaria pra saber o que acontece no seu cérebro.
— Não precisa perder essa grana, é só assistir uns três episódios de Chaves.
— Onde você é o Chaves, vivendo no seu barril de lixo, convivendo com suas outras personalidades ao redor. A que finge gostar de EQ, a que finge gostar da iniciação científica que te colocaram obrigada, a que finge interesse no formulário da La Roche que teu pai te arrumou, a que finge não gostar tanto do Rodrigo Santoro…
— Credo, você me conhece tanto assim?
— Acho que só você não se conhece mesmo, amiga.
Era verdade. Se tinha algo que fugia bem mais do que os projetos de extensão infinitos da EQ, era de uma terapia. Porque, por mais que pudesse fingir numa consulta também e dizer que sua vida era perfeita e maravilhosa, composta por pais incríveis, uma família unida, amigas amorosas e sem dificuldade nenhuma em estar sempre sorrindo, mesmo assim, ainda existia aquele ruído expiatório no seu cérebro que parecia o barulhinho da panela pegando pressão. E essa panela não estava fechada com a tampa direito. Essa panela ia explodir a qualquer momento, rasgando o ar e espalhando fumaça preta no teto de lado a lado.
Mas, felizmente (ou infelizmente), dava para ignorar isso a maior parte do tempo.
— Bom, tanto faz. Preciso ir. — ela arrastou a cadeira para trás e colocou seu docinho de amendoim da sobremesa na bolsa. — Tenho que fazer o primeiro reconhecimento de campo. Achar o cérebro mais brilhante antes da primeira prova.
— Um cérebro que você não vai conhecer e que provavelmente nem vai responder um boa tarde.
— Acha que alguém é capaz de não me responder? — colocou para jogo sua melhor carinha de poodle abandonado. Ou aquela coisa que ela fazia com os olhos que as meninas diziam que a deixava parecida com um Beagle fofo; qualquer coisa fofa. Mas Débora era imune a isso, aquela calota de gelo polar humana. — Ai, tá bom, qualquer coisa posso oferecer de pagar uma cerveja. Te comprei várias vezes assim já.
— Eu odeio quando você fala comprar. — Débora lançou um olhar fulminante.
— E eu odeio quem não é comprável. Agora fui, me deseja sorte.
— Que sorte o quê, tu precisa é de vergonha na cara.
sorriu para ela, tirando uma mecha caída no olho com o dedo do meio. Débora riu e revirou os olhos.
— Só por isso, sua mensagem pra vovó vai ser adiada pra amanhã. Tchau, ridícula.
A primeira coisa que pensou assim que passou pelo batente da porta da sala 15 do Prédio das Exatas foi: tô no lugar errado. Mas foi só piscar o olho por mais duas vezes para saber que não, nenhuma outra sala de nenhum outro prédio de nenhuma outra universidade do resto do Brasil seria louca e retardada o suficiente para juntar 70 alunos em um quadrado largo, com só um ar-condicionado funcionando e gente apertada igual numa prisão colombiana.
Ela nem estava tão atrasada assim, entretanto, só conseguiu visualizar uma única carteira dura na primeira fileira da lateral, longe demais da lousa e da mesa do professor, mas talvez fosse uma vantagem. Quando Rodolfo começasse a falar, aconteceria em um piscar de olhos: olá, Lu de Cinema! Olá, Instagram. Olá, comentários do canal. Olá, bloco de notas aberto no roteiro da próxima crítica de O Lobo de Wall Street.
Depois de quase tropeçar em uns dois pares de pés esticados para o corredor apertado entre uma fileira e outra, finalmente conseguiu se acomodar, e tentou dar uma olhada ao redor para captar… o que disse para Débora que captaria.
Cérebros brilhantes. Crianças superdotadas. A sósia do Sheldon Cooper.
Mas só tinha uma variedade grotesca de estudantes de todo tipo, raça, cor, credo. Gente que já tava dormindo, ou fazendo unha, ou jogando Free Fire com o celular tombado e alguns enfiando a mão por baixo da mesa vizinha para agarrar… tomara que a coxa de outro alguém.
afundou na cadeira. Odiava dar razão para Débora, mas agora estava pensando a sério no que ela disse: onde estava com a cabeça? Como não colou direito no semestre passado? Ela não tinha que estar ali agora!
Mas a razão disso já estava mais do que óbvia, e não queria meditar nela. Não queria lembrar que sua avó teve uma das piores crises da doença no semestre passado, quando sua tia se descuidou por um minuto, apenas um minuto, e a perdeu de vista, mobilizando a casa inteira em Porto Alegre para procurá-la pela vizinhança. pegou o primeiro ônibus para casa e, quando chegou, passou o próximo mês inteiro chorando em momentos aleatórios (no quarto, no banheiro, caminhando na rua) só de recordar aquela cena padrão e cruel que o Alzheimer te obrigava a viver: “Quem é você, menina? Por que tá usando os olhos da minha filha? Ô, Cristiana! Cristiana, tira ela daqui! Cristianaaaa!”
não compreendia esse processo muito bem, mas daria uma perna para esquecer essa cena para sempre.
Lá na frente, o homem de 1,70 com entradas na cabeça e blusa xadrez de flanela finalmente abriu a boca para falar. Rodolfo Prado, o professor mais casca grossa de todo o departamento da Engenharia Geral. Amava o número zero, dias cinzas e feios, tristeza e dor estampadas no rosto de pobres coitados que dependiam exclusivamente dele para conseguir um diploma. Com certeza, o cara deve ter sido muito humilhado no mundo acadêmico na sua época, e como isso provavelmente afetou o seu sono por anos (ele parecia mesmo alguém que não dormia direito), se viu no direito de fazer a mesma coisa com os vermes em forma de alunos que passaram de raspão pela nota de corte no Sisu.
Mas Rodolfo tinha um calcanhar de Aquiles: puxa saquismo. Caso alguém estivesse disposto a passar essa vergonha, ele gostaria de recebê-lo, e quando gostasse, você não precisaria se preocupar com mais nada. Nem mesmo com aprender a matéria, já que ele tinha esse ponto positivo de sempre usar os mesmos materiais, não importava para qual curso estivesse ministrando. E também ficava extremamente mais dócil quando bebia na noite anterior, mas essa informação já era secreta.
O professor deu boa tarde, apresentou a disciplina e o plano de ensino, a ementa, deixou claro que os trabalhos eram para ser entregues na data marcada e, se não, forneceu o horário que o carro do lixo passava na frente do portão do campus junto com o sorriso que devia dar ao doar mais pedaços de papel para reciclagem.
Escroto. Não era à toa que se parecia com o Fofão, pensou .
— Vou começar chamando o nome de vocês pra verificar a pauta. Viviane, Danton, Nathália… — sua voz encharcada de tédio foi recitando conforme os nomes apareciam, desembaralhados, até finalmente: — Matarazzo…
— ! Eu, presente. — ela levantou o braço, emendando na fala dele antes mesmo que o professor chegasse na última letra do nome. Um nome que ela preferia que não fosse dito assim, abertamente.
Mas, pelo visto, o grito foi alto demais, porque vários pares de olhos se viraram na direção de , tanto os lá da frente quanto os de trás. Só que nenhum deles foi mais feroz do que o olhar do próprio Rodolfo, que parou com a caneta apoiada no papel e a encarou por cima das lentes quadradas do óculos Aviador dos anos 80.
Aquele olhar sem acompanhamento de um sorrisinho só significava uma coisa: você de novo. Não de um jeito agradável ou simpático. Era apenas: ah, você de novo. Que decepção.
Rolava um burburinho por aí que o Rodolfo não curtia muito repetentes (mesmo que mandasse todo mundo para a prova final sem dó). Mas repetir a matéria na mesma sala que a dele, e não com qualquer outro professor do departamento que lecionasse alguma das dezenas de disciplinas de Cálculo, deixava o cara frustrado; era o tipo de gente que ele não tinha conseguido converter, ensinar, fazer gostar nem que fosse um pouquinho do diagrama bem desenhado de uma série de Taylor e Fourier, e nem ia conseguir isso agora, em uma turma de 70 cabeças.
Ele continuou com a aula, agora falando sobre o cronograma de provas e trabalhos. Estava tudo bem nos primeiros minutos, nada novo sob o sol; até mesmo se lembrava daquela dinâmica: três provas valendo 10, duas listas de exercício, justificativas nas respostas. Débora tinha tudo isso no computador. Até que alguém rasgou o silêncio parcial da sala para dizer:
— Professor, você acha uma boa ter só um trabalho pro semestre?
Rodolfo estava quase terminando o seu discurso de abertura quando foi interrompido pelo novato. Agora todos os olhos estavam nele.
— Como? — Rodolfo perguntou, os olhos com cílios finos batendo rápidos.
— O seu plano de ensino. Ele é ótimo, mas sua distribuição de notas poderia ser um pouco melhor. Se vamos ter um momento pra aprender equações diferenciais, seria interessante uma prova só sobre esse conteúdo ou mais um trabalho sobre elas, com listas discursivas e até um simulado. Como elas são as derivadas bases do cálculo, provavelmente precisam de mais atenção, e entre as de primeira e segunda ordem…
mal ouviu o resto. Só ficou paralisada, assim como o restante das pessoas, com bocas entreabertas e cenhos franzidos enquanto o bocudo lá na frente não parava de… acabar com a vida deles.
“Professor, você poderia complicar mais as coisas? O seu conteúdo tá parecendo coisa da 5º série”, ele estava quase dizendo isso!
E no início, provavelmente, Rodolfo estava sendo uma imitação clara do restante da sala, olhando para o desconhecido como se ele fosse um camundongo que de repente começou a falar. Mas depois, quando ouviu todas as sugestões, o que saiu de sua boca foi:
— De qual curso você é mesmo?
— Sou da Matemática. 6º período.
— Ah. — e o rosto de Rodolfo de repente relaxou, perdendo todos os traços duros que o resto da sala ainda tinha. — Lembrei. Você é o que mandou o formulário? — o garoto assentiu. — Agora sei do que está falando. Conheço um pouco da bibliografia de vocês.
— A maior parte deles são ótimos.
— Na maioria das vezes eles são em alemão ou inglês. Essa metodologia que você acabou de sugerir…
— É uma proposta pedagógica, senhor. O mesmo sistema de médias ponderadas, só que mais eficiente. É a melhor forma de unir o útil ao agradável.
— Certo, certo… — e então, Rodolfo fez uma coisa que nenhum calouro, veterano, egresso ou muito provavelmente sua própria família nunca via: ele sorriu. Pelo menos, aquela elevação no canto dos lábios cheios de rugas se parecia muito com um sorriso. — Bom, eu vou considerar essas coisas. Mais alguém quer dar uma sugestão sobre o nosso cronograma?
A sala permaneceu em silêncio fúnebre. Como era de se esperar depois de um dos pobres mortais sem diploma praticamente levantou uma faca e ameaçou a todos pelo pescoço ao mesmo tempo.
automaticamente já não gostou dele. As aulas de Rodolfo Prado eram e sempre foram padronizadas, sem fru-frus modernos que se preocupam com o aprendizado do aluno. Aquele cara não estava nem aí para isso, e honestamente, nem o julgava por isso; tinha estudado para caramba para ser doutor e passar naquele concurso para ter um trabalho razoavelmente confortável ganhando seus cinco dígitos por mês para passar o mesmo slide e os mesmos exercícios todos os anos, ajudando pobres estudantes a conseguir um dos certificados mais difíceis da UFSC, que era qualquer um da área de exatas (e que, com certeza, chegam lá sem saber o que é um cálculo vetorial até baterem 20 anos de carreira e serem obrigados a fazer um curso de atualização).
Não havia razão para Rodolfo dar ouvidos a isso. Mesmo que ele tenha exibido aquele sorriso humano e satisfeito, não importa: a zona de conforto dele era quentinha e conveniente. Que permanecesse nela até aquele semestre acabar.
As próximas duas horas se passaram com números inteiros e quebrados, frações, desenhos difíceis de integrais múltiplas e coordenadas polares. Débora tinha sido severa quando disse para que colar não era uma habilidade, mas agora, talvez estivesse um pouco certa: a pessoa que sabia resolver todas aquelas coisas é que tinha um talento, algo diferente do restante da população. Eram muitos números, muitos símbolos entre eles, muito raciocínio pesado que deixava com vontade de jogar o livro do James Stewart no chão e pisar em cima.
No fim da aula, ela esperou que todas as fileiras da frente se levantasse e saísse para que pudesse pentear a franja com os dedos e ficar de pé num pulinho, indo direto para a mesa de Rodolfo, que arrumava o notebook e seus um milhão de arquivos encadernados dentro de sua bolsa pasta.
— E aí, Rodolfo. — ela disse com descontração, o sorriso de quem era minimamente íntima dele. — Mais um semestre, hein… Como que vai ser dar aula pra quem não é da EQ?
Ele parou de ajeitar as folhas e a encarou.
— Vai ser a mesma coisa de sempre, . Um pouco melhor, até. Sem alunos que acabaram de sair das fraldas pensando que descobriram a América porque o Teorema de Gauss deu certo.
torceu a boca. Não só porque ele insistia em chamá-la de , mas também porque o pessoal da EQ realmente não tinha a melhor fama. Até o próprio Sherlock Holmes os odiaria.
— E é um prazer vê-la aqui de novo. — ele abriu um sorrisinho fraco, mostrando que ver outra vez era tudo, menos um prazer. — Ano novo, vida nova?
— Nova só a minha franja, Rodolfo. E com quem mais eu poderia fazer essa matéria de novo? É claro que tinha que ser com você. Com a sua presença marcante e o seu material maravilhoso, que é sempre uma alegria estudar mais uma vez. — porque é o mesmo e eu tenho várias cópias.
— Se você não se esforçar, pode ver as mesmas coisas pra sempre que vai continuar reprovando. — ele retrucou, fechando o notebook. A sala estava quase vazia agora.
— Mas as coisas vão continuar as mesmas, né? O resto eu me viro. Esse negócio do pra sempre aí.
Ele soltou um suspiro cansado.
— Tá muito nova pra ficar na universidade pra sempre.
— Eu não vou ficar se o seu material for o mesmo.
— Mas por que esse papo? Por que tá ciscando em cima do material, ?
— Nada, Rodolfo, é um elogio. Você tem palavra, tem rotina, não é só porque um novato qualquer te diz pra mudar o material que você vai fazer isso.
A voz de saiu com confiança, mas geralmente esse tipo de coisa não funcionava tão bem quanto quando ela estava de frente para uma câmera. Pessoas de carne e osso fora de telas geralmente a deixavam nervosa. Era errado e talvez um pouco esquizofrênico, mas era assim que seu cérebro funcionava.
Rodolfo fez a mesma careta confusa e projetou o queixo para a frente.
— Tá falando do Hansol?
— Não conheço esse nome. Seja lá quem for. Como eu disse, tô elogiando.
— Você acha que me engana, ?
Ela segurou a vontade de dar um tapa naquele bigode dele que se emaranhava junto com costeletas horríveis perto das orelhas.
— Ah, não. Eu não engano nem a Cornélia da padaria, e olha que ela tem 89 anos, mal enxerga as moedas mais. O que eu quero dizer…
— Acha que eu não sei que vocês dão um jeito de guardar o material do semestre passado porque acham que se usar ele de novo vão conseguir passar?
Hã… sim?
— Eu nunca disse isso…
— Nem deveria. Isso não é garantia de nada.
— Eu sei, mas se, e isso é um imenso SE, eu os tivesse, eles me ajudariam um pouco mais, assim como todo mundo aqui. Essa coisa de integral é muito difícil, Rodolfo, qualquer ajudinha vale a pena. É por isso que os veteranos agem e montam uma máfia da matéria de Cálculo, reunindo o material e passando de geração em geração, ou desde o tempo em que o senhor está…
parou. Seu cérebro tinha aberto os portões do porão de novo.
— O quê?
— Eu… não disse nada.
— Disse que os alunos vão passando os trabalhos.
— Não exatamente passam.
— .
— É que tudo é muito parecido, Rodolfo. — ela gesticulou com as mãos. estava percebendo, muito lentamente, que não tinha um jeito exatamente legal e agradável de dizer aquela verdade. Percebeu também que seus pensamentos estavam começando a ficar em francês, coisa que eles faziam quando ela estava nervosa. — Você fala de equações diferenciais parciais e as pessoas não entendem, os monitores se acham no direito de faltar os horários de monitoria, não existe diálogo entre as suas questões da prova e nem todo mundo é apaixonado por integral! A maioria das pessoas fala isso pra te impressionar, e porque precisam passar nessa matéria obrigatória pra conseguir vestir uma beca e segurar um canudo vazio no auditório! — arfou. Os olhos dele estavam completamente parados e inexpressivos. — I-isso… Tipo, é por isso que seria bom se os seus materiais continuassem os mesmos. Ou os mais parecidos possíveis.
A voz dela foi abaixando nas últimas linhas, e se sentiu sufocada com tanta humilhação. Rodolfo continuou ali, encarando, o semblante indecifrável, sem demonstrar raiva ou sequer a possibilidade mais do que óbvia de jogar a garota para fora daquela sala.
Com certeza, a partir daquele dia, aquele rosto apareceria nos sonhos dela, como um despertador obrigatório antes do meio-dia: você acha que enquanto não ir até a administração abrir o processo de trancamento, vai conseguir se livrar de mim?
Por fim, ele finalmente se mexeu para soltar um suspiro fundo, ajeitando os óculos cafonas.
— Eu tenho que ir. Obrigado pela informação. Teremos um bom semestre.
— Ah, qual é, Rodolfo. — entrou na frente dele antes que ele saísse. — Vai deixar um novato chato te fazer mudar de ideia? Tava na cara que ele tava puxando seu saco.
— Ah, é mesmo? Pois você sabia que os professores amam puxa sacos, ? Só que esse não é o caso do garoto Hansol. Ele estava interessado na matéria de verdade, diferentemente de 97% dos seus colegas estavam no semestre passado.
— Ok, já deu pra entender que o senhor pegou ranço da turma da EQ, e até consigo imaginar porque. — era uma lista tão imensa. A começar pelo Bernardo chamando-o de baby toda vez que Rodolfo dizia “é isso aí”; os vários debates com Fernanda, que jurava que os cálculos dele estavam errados e que “não tinha nenhum problema nisso, afinal, Rodolfo, você já saiu da facul há um tempão”; ou até mesmo de , que fui reprovada por falta (a aula era 8 da manhã) e, quando ia, ou estava de ressaca e dormia ou estava apenas com sono e… dormia do mesmo jeito. — Mas a turma era participativa, não era? O senhor não pode dizer que não. A Fernanda, eu lembro dela te dando um monte de dicas, respondendo os cálculos no quadro, de todo mundo fazendo abaixo assinado pra P2 não ser na época da festa de Halloween do Vanguarda, e daí o senhor vai e dá a prova um dia antes. Por que o protótipo do Isaac Newton vai conseguir mexer no seu cronograma?
— Eu não disse que ele vai coisa nenhuma, .
— É que do jeito que ele disse, parecia que ele estava se divertindo, Rodolfo. Se divertindo em dizer que você deveria alguma coisa. Olha, nem a Fernanda fazia isso, viu? Ela ficava com dor no coração de apontar algum erro seu, eu garanto isso. Agora esse cara… quem é ele mesmo? Nem é da engenharia. Qual o curso que ele…
— Matemática. — a voz soou das costas de , e ela demorou até que muito para virar a cabeça. — E nem é o bacharelado. Achei que você tivesse prestado atenção quando eu falei na aula.
O… quê?
De perto, o cara era bem maior do que , não que isso fosse difícil com seus 1,60, mas de alguma forma, a postura e o jeito de falar o deixavam com quase dois metros de altura. Seus olhos cravaram nela de um jeito fuzilante, e diferente de Rodolfo, dava para saber exatamente o que ele estava pensando.
E não era como se fosse um: “nossa, que garota legal e interessante.”
— Aqui, Rodolfo, meus horários. — ele desviou os olhos dela e estendeu um pedaço de folha A4 para o professor. — Posso passar na sua sala amanhã? Tenho monitoria agora e uma aula mais tarde.
— Claro, Hansol, amanhã 13h. Tenho 40 minutos antes de uma reunião do comitê. Te vejo lá.
— Beleza. Até mais. — Hansol a encarou com uma última carga de Raio-X vermelho dos X-Men e saiu em disparada.
ficou encarando suas costas até desaparecerem e a voz agora mais energizada de Rodolfo surgiu:
— Uma atitude essencial pra se passar em Cálculo, senhorita , é fortalecer a ação e não a conversa fiada. — comentou, juntando suas coisas agora em todos os braços e lhe dando um sorrisinho de canto que soou maléfico e provocador. — Espero que a senhorita tenha um ótimo semestre, cheio de novidades. Porque o meu será.
Se não estivesse maluca, podia jurar que ouviu uma risadinha escapando da garganta dele quando deixou a sala. Ah, Rodolfo com certeza iria rir tanto quando se sentasse na sua poltrona presidente e se lembrasse da cara que ela estava fazendo naquela hora.
Porque estava paralisada, sentindo que tinha feito um estrago mil vezes maior do que o cabeçudo da Matemática teria feito.
E agora só conseguia pensar:
— Tô fodida.
20:00 era o horário que normalmente Hansol cruzava a avenida e chegava em casa, sentindo o cheiro do frango do Mingyu cozinhando e ouvindo a música alta de Cheol do quarto.
Mas antes de passar para dentro do portão baixo de grade da casa de dois andares da dona Neiva, ele viu o que já tava esperando ver: aquela gatinha manchada brincando com alguma coisa embaixo da árvore do quintal. Ele chegou mais perto dela. Parecia uma batalha sanguinária contra um pedaço de papel rasgado de picolé de abacaxi. O negócio tava tão violento que o papel parecia estar ganhando do bicho; ela estava grunhindo como se ele estivesse tentando matá-la.
Vernon suspirou e se abaixou, segurando a alça da mochila no ombro.
— Ei. Ei, Baguete. — ele falou baixo, para sua voz não alcançar a janela baixa da dona Neiva. — Eu já falei pra você me esperar lá fora, na calçada. Você não pode entrar aqui dentro, sabe o que a dona Neiva faria com você se te visse?
A gatinha parou de espernear quando ele disse, como se realmente soubesse. Quer dizer, ela sabia mesmo. Todo mundo sabia. Se não visse Baguete um dia por aí, ele nunca mais comeria churrasquinho na vida.
Ele puxou a embalagem do picolé, amassou e colocou no bolso, sem se importar com a lambança. No outro bolso, pegou um pedaço de guardanapo embrulhado e abriu na palma da mão, estendendo os pedacinhos minúsculos de carne e abóbora cozida picada que tinha separado do RU. Baguete (que parecia mesmo um pãozinho de baguete) atacou o jantar, e Hansol esperou, sempre olhando sobre o ombro para não ser pego.
— É sério, tu precisa me escutar, tô tentando garantir tua sobrevivência. — ela miou. — Dá pra sobreviver na rua também, garota, larga de ser mimada. Você sabe que não posso te levar pra casa. — mais um miado. Vernon bufou. — Você não aceitou o abrigo de animais, não aceitou adoção de ninguém, e não arreda o pé daqui desde que eu cheguei, vai ter que viver sob as minhas condições. Agora chega? Não me estressa hoje não, Baguete. Já basta o dia que eu tive na faculdade.
A gata lambeu o restante da comida na palma da mão dele, sem mais miados de curiosidade sobre qualquer merda que estivesse afligindo Vernon. Gato era assim mesmo; só queria saber da refeição, de um carinho rápido diário, exercer seu controle sobre os humanos e depois seguir sua vida. Hansol nem sabia como tinha chegado aquele ponto: ter encontrinhos secretos com uma gata de rua que ele conheceu assim que se mudou para a casa de número 17, e que tentava, até hoje, forçar a adoção, sonhando com uma caminha aconchegante em uma sala que não batesse sol 18 horas por dia, mas não tinha o que fazer quando a dona das condições se chamava Neiva Damasceno (com seus vestidos sempre floridos, alpargatas marrom, cabelo ralo preso em um coque e expressão perpetuamente taciturna). A não ser quando…
— Oh! Hansol!
Vernon viu a pequena faixa estreita de luz invadindo o quintal na mesma hora que a voz da mulher escapava para fora. Já esperto, ele pulou para ficar de pé, limpando a mão que serviu de prato de comida para Baguete e vendo, com alívio, a gata vazar para a escuridão das árvores, direto para o muro que dava para o condomínio da vizinhança, com muitos gatos, papagaios, cachorros e um zoológico inteiro de amiguinhos e possíveis lares, mas ela ainda continuava voltando ali.
— Dona Neiva! — ele abriu um sorriso impressionado, parecido com o dela. Segundo os seus cálculos, aquele era o único sorriso que a velha era capaz de dar (e para a única pessoa). — E aí, como vai a senhora?
— Ah, meu filho, bem, bem, só esse calor que tá difícil, né? Não tá sentindo calor com essa roupa, não?
— Eu tava no ar-condicionado. — ele apontou para a jaqueta levinha de tecido. — Nessa época, ninguém desliga lá, daí nem dá pra sentir.
— Ah é, é, mas toma cuidado, viu? Essa coisa de ar-condicionado é um perigo. Eu fiquei sabendo que a radiação pode causar câncer na gente. E um monte de pessoas aí dormindo com isso ligado a noite inteira, Jesus amado…
Vernon sorriu de forma elegante e compreensiva. Só Deus sabia a lista de argumentos, provocações e gritos consternados que queriam disparar da sua boca, mas sua razão estava empurrando-as para bem, bem baixo da sua garganta. Hoje, especificamente, estavam tendo que agir com mais força do que o normal.
— É verdade, dona Neiva, é por isso que eu não deixo colocarem ar-condicionado lá em casa. Já viu o quanto um troço desse gasta de energia? Mas o que é a conta de energia perto da nossa vida, né?
— É isso mesmo, querido. Você é um jovem tão sensato. Quer entrar e tomar um chá? Eu tenho um daqueles de camomila que é ótimo pro sono.
Normalmente, Vernon aceitaria o convite. Não porque amasse a companhia da velha, não porque sentia prazer em ser sufocado por suas próprias palavras diante das besteiras por segundo que escapuliam dela, não porque tinha um plano em mente de sempre ser simpático para que ela nunca aumentasse o aluguel, não porque queria sondá-la sobre o que achava de seus colegas de quarto e depois instaurar novas regras para que eles “não chamassem a porra da atenção da dona Neiva”, não porque gostava de ouvir os hinos da harpa cristã que tinha decorado especificamente para acalmá-la, não…
Ele aceitaria porque gostava mesmo de chá. E porque precisava, mais do que nunca, de uma boa noite de sono. E porque, no fundo, ele sabia que ela só era uma senhora sozinha que precisava conversar, e ele era bom com idosos.
Mas hoje, Vernon estava muito estressado. Com tudo.
— Hoje eu vou ter que recusar, dona Neiva, preciso ir estudar. O semestre já começou com tudo.
— Ah, é verdade, bem que eu vi a cidade cheia hoje quando fui na feira. Os meninos voltaram também?
— Aham, tem uma semana já. O nosso novo colega se mudou também.
— Como é o nome dele?
— Mingyu.
— Ahh. Quando vou conhecer o Mingyu?
— Hum… talvez no fim de semana, quando eu for pagar o aluguel.
Nota mental: adestrar Mingyu até o próximo fim de semana.
A velha deu mais um sorrisinho simpático.
— Tudo bem, rapaz, conhecendo você, sei que é um menino de bem. Pode ir, vá, você precisa descansar.
— Obrigado, dona Neiva, fica com Deus, viu?
— Amém, querido. Durma bem. E ah… — ela disse antes que ele pisasse no primeiro degrau. — Eu andei escutando uma música alta aí de cima. Avisa pro menino de cabelo grande que ruídos são só até 16:30, e como aqui é uma casa de família, não escutamos… esse tipo de coisa.
Um leve rubor se espalhou pela bochecha enrugada da dona Neiva, que tirou o sorriso e fez um bico de autoridade. Vernon repassou rápido na mente do que ela poderia estar falando (ou quem), mas nem precisava pensar muito.
— Claro, pode deixar que eu falo, dona Neiva. Ele devia estar com visita, sabe como é as más companhias. — ele projetou os ombros para baixo, intensificando a voz. — Peço mil perdões, mesmo. A letra da música…
— Coisas obscenas, vergonhosas. Alguma coisa de tacacá, queimar no fogo do amor, coisas que as pessoas não deveriam comunicar em voz alta desse jeito. Vê se pode, esse mundo tá perdido…
Ainda bem que não era a playlist de funk.
— É uma lástima da humanidade. Se a senhora me der licença, eu vou agora mesmo…
— Claro, claro, vai sim. Não precisa se preocupar com isso agora. Descansa, meu filho, e tenta tomar uma água com limão, viu?
— Vou fazer isso, dona Neiva. Boa noite.
Vernon estava sorrindo assim que se virou e pisou na escada que levava ao segundo andar. No meio dos degraus, já tinha trocado o sorriso para uma linha fina e dura dos lábios, subindo mais rápido e soltando um bufo tão forte como se tivesse tirado um lutador de sumô do ombro.
Como era cansativo engolir um grito. Caralho, era tudo que ele queria agora: soltar a merda de um palavrão em alto e bom som, alguma coisa que faria a proprietária lá embaixo mandá-los embora na mesma hora.
Quando entrou em casa, não tinha mais o som de Cheol, mas o cheiro do frango ocupava a casa inteira. Era quarta-feira, dia do preparo das marmitas do Mingyu, o que significava que todas as bocas do fogão estavam ocupadas e as bancadas também.
Que se dane, ele já tinha desistido de tomar chá mesmo.
Vernon foi direto para a porta mais perto da sala, batendo duas vezes. Ouviu um “entra” e agarrou a maçaneta, colocando só a cabeça para dentro:
— Maneira no Calypso que eu acabei de sair de uma sessão da terapia da dona Neiva reclamando do barulho. A gente já não falou sobre isso?
Cheol franziu o cenho, o console na mão e o olho na partida de FIFA.
— Eu só liguei o som umas 15:30 pra varrer o quarto.
— Mas você tava ouvindo o tacacá.
— O que tem o tacacá?
— Tem que ela não gosta. Porra, Cheol, quer mesmo lembrar do que aconteceu quando você escutou Mc Livinho aqui?
— Não fui eu, foi o Felipe. — Cheol desviou o olho da tela por um instante. Pescou as sobrancelhas levantadas de Vernon. — Tá bom, vou controlar o volume da JBL na próxima. Se bem que do jeito que ela é, é capaz de ouvir a música saindo do meu fone de ouvido.
— Então que tal começar a colocar o padre Marcelo Rossi na sua playlist pra iniciar? — Vernon disse em seu tom fluentemente desdenhoso. Cheol levantou o dedo do meio. — Que bom que entendeu. Fui.
Ele fechou a porta e jogou a mochila no sofá quebrado, indo até a cozinha esfumaçada de frango. Viu Mingyu tirando a casca de umas batatas doces e Wonwoo passando requeijão em uns biscoitinhos cream cracker, grudando um no outro para fazer um sanduíche. Coitado, mais um dia sem jantar.
— Eu tenho um miojo ali, se você quiser. — Vernon disse para o amigo de óculos, roubando um dos seus sanduíches de biscoito.
— De legumes ou de galinha caipira? — perguntou Wonwoo, mastigando.
— Tomate da turma da Mônica.
Wonwoo assentiu.
— Tu não tava guardando esse?
— Eu jantei no RU. Mas nada pra se gabar, com certeza o miojo vai ser melhor.
Ele riu com Wonwoo. Do outro lado da cozinha, Mingyu olhou para eles com a cara torcida. O cara odiava miojo (e tudo que era industrializado).
— Vou pegar, então, depois te pago.
— Não precisa. Eu não chuto cachorro morto. — Vernon catou mais um biscoito. Wonwoo revirou os olhos e foi para a despensa. Na parte de baixo da dele, na prateleira de Cheol, ele viu um fardinho de Brahma, as cervejas que o amigo mais gostava, dentro de um plástico muito fácil de abrir. Ainda era quarta-feira, mas os olhos de Hansol pararam ali, namorando o metal, imaginando o líquido descendo pela garganta, mandando a ideia da água com limão pra casa do caralho.
— Você tá legal? — Mingyu perguntou, jogando os pedaços grossos de batata doce na panela com água.
Vernon olhou para ele.
— Aham, tô sim.
— Tem certeza?
— Tenho. — Vernon franziu o cenho. Ele mal o conhecia e já sabia que ele não tava normal?
Mingyu não pareceu convencido.
— Eu tenho uma latinha de Itaipava ali dentro, se você quiser.
— Hansol não bebe durante a semana. — Wonwoo disse, quebrando o miojo de embalagem verde por dentro. — Só na semana de prova.
— É o quê?
— Tem umas provas que precisam que a gente saia dela direto pro Betinho lá no fim da rua. Você já conheceu o Betinho?
— O barzinho pé sujo com sinuca cheio de vovô jogando baralho?
— Isso. — Vernon e Wonwoo responderam juntos.
— Eles quase nunca deixam a gente jogar. — Vernon resmungou.
— O Cheol já insistiu uma vez, e eles ameaçaram ele com um isqueiro.
— O Cheol nem sabe jogar.
— Ué, os velhos não sabiam disso. E uma garota que ele conhece tava lá.
— Que garota?
— A que trabalha com ele na biblioteca.
— A que ele quer pegar?
Wonwoo riu alto e olhou disfarçadamente para a porta de Cheol ainda fechada.
— Ele nunca falou isso.
— E precisa falar? — Vernon ergueu uma sobrancelha e olhou de novo para a despensa, como se aquele negócio estivesse chamando por ele. — Mas tô quase aceitando tua oferta, Mingyu. Hoje o dia foi foda.
— Que foi?
— Eu me candidatei pra monitoria de um professor da Engenharia Química, o mesmo que vai me dar aula esse semestre, e tinha que levar uns documentos pra ele. Só que aí, tinha uma guria lá falando nada com nada no fim da aula sobre os materiais, querendo que continuasse os mesmos pra ela poder mamar no resumo dos outros e passar com decoreba. — Vernon contorceu o lábio. Só de lembrar da cena já dava raiva de novo. — Eu dei uma dica pro cara, falei pra ele melhorar as paradas do cronograma, otimizar o serviço dele e tal…
— Você é consultor de professor? — Mingyu perguntou, recostado na bancada. Wonwoo riu da pergunta, mas Hansol balançou a cabeça.
— Eu só acho que se tu ganha 20 mil conto todo mês pra passar um slide e mudar uns valores da mesma prova, tem alguma coisa errada, essa porra de país tem que perder o medo de falar com quem é rico, ainda mais se for rico do dinheiro público. No fim, tá todo mundo no mesmo barco.
— E é assim que ele um dia vai virar deputado. — Wonwoo brincou, mas a piada saiu como areia na boca. Vernon negou com a cabeça.
— Deus me livre, prefiro ir morar com a dona Neiva. — ele riu. — Mas o lance é que essa menina aí falou um monte de merda, disse pro Rodolfo não me escutar porque eu era novato e chato. Mal sabe ela que eu já tinha dito tudo isso no meu formulário e ele me aceitou na seleção.
— A mina falou mal de você na sua frente, então? — Mingyu perguntou, apagando o fogo do frango.
— Basicamente, ela não tava me vendo, mas falou, sim. E foi tão escroto, ela me julgando sem nem me conhecer. Esse povo tá perdendo a noção.
— Mas ela era bonita? — Mingyu perguntou, com um sorriso sugestivo e estranhamente animado. Vernon franziu o cenho.
— Quê?
— É, essa guria aí que te detonou, era bonita?
— Bonita? Sei lá. — ele coçou a cabeça, repentinamente com vontade de encerrar a conversa e sair decidido daquela cozinha, que tinha ficado muito apertada. — Eu nem reparei nisso.
Era verdade, mas nem tão verdade assim. Na vida real, Vernon achava muitas garotas bonitas, e todas elas vinham de conclusões depois de uma olhada, e ficava por isso mesmo. A cabeça dele vivia tão cheia de provas, aulas, estudos, matrizes, integrais e derivadas, se suas irmãs Mariana e Amanda estavam se dando bem na escola, se seu pai tava conseguindo tocar a oficina sem ele, se a avó tinha parado de ficar tentando subir no telhado para limpar as calhas depois da cirurgia na coluna, que não sobrava tempo para meter outra coisa ali no meio (só nas calouradas ou nos rocks de integração do começo de semestre, que aí sim, ele largava as fórmulas de lado e pensava nas cantadas horríveis e nos beijos na boca aleatórios que poderia dar numa festa que terminava 6 da manhã).
Só que usar tudo isso não era uma boa comparação quando se lembrava da menina maluca lá. Ele não tinha mesmo reparado direito nela, mas ainda estava pensando nela. Com ranço, com aquela vontade de nunca mais vê-la na vida.
— Então, provavelmente era feia. — Wonwoo disse, já enchendo a panela com água para ferver. — Não esquenta a cabeça com isso, não. Pelo visto, você deu um fecho nela e agora ela nem abre mais a boca pra falar de você.
— Pode ser. — Vernon disse distraído. O que mais queria era esquecer das besteiras da repetente e ir para cama. — Vou aceitar tua cerveja, Mingyu. Amanhã passo no Betinho e te pago.
— Tá bom. Pode ser até sábado, esquenta não.
Vernon se virou para a geladeira, ao mesmo tempo que Wonwoo perguntava em voz amena:
— Tem como vagar um boquinha aí pra eu fazer meu miojo?
Com barulhada de panela e tampa caindo, Vernon deixou o cômodo e foi para o quarto, se enfiando no seu minimalismo aconchegante e se esquecendo da menina sem noção da sua turma de Cálculo B antes mesmo de deitar.
Mas ele não esqueceu que mentiu um pouco para os amigos.
Talvez ele tenha reparado nela, sim.
E infelizmente, ela era bonita.
Continua...
Nota da autora: Olá! Essa história está sendo escrita por quatro autoras e as atualizações podem demorar um pouco. Esperamos que você goste e comente sempre que possível. Com carinho e com loucura, Daphne M, Ilane CS, M-Hobi e Sial.
Se você encontrou algum erro de codificação, entre em contato por aqui.
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