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━Autora Independente do Cosmos.
Finalizada ✅️

Chovia bastante naquele verão em Daegu.
A lama tinha tomado conta da entrada da casa baixa e pequena no subúrbio de Sangindong. As poças soterraram e quase engoliram o estreito caminho de pedras do quintal, por onde os pés de Seungcheol pisaram com força, empapando as barras de sua calça e espirrando água para todos os lados. A chuva agora não passava de uma garoa rala, que se transformaria em um temporal até o fim do dia.
— Vai mesmo fazer isso? — a voz veio do batente da porta. Seungcheol freou os passos e virou o rosto em um meio perfil.
— Não tenho escolha, hyung.
— Sabe que vai fazer a mamãe sofrer, não sabe?
— Pois eu vou sofrer muito mais se ficar aqui. — pontuou, ouvindo a chuva bater contra o tecido da mala de mão. — Não posso fazer o que eles querem pelo resto da vida.
O garoto no limiar baixou os ombros e observou o irmão mais novo com expressão impassível. No fundo, queria parabenizá-lo pela coragem de se rebelar, pela coragem de ser egoísta, mas não podia dizer isso em voz alta. Portanto, esperava que Seungcheol entendesse a verdade em seus olhos.
— Você vai se arrepender.
O rapaz deu um meio sorriso, retribuído pelo irmão, e assentiu levemente com a cabeça em sinal de compreensão.
— Isso pode acontecer também. Mas não vou saber sem tentar.
Em uma última troca de olhares, o mais velho se afastou do lado de fora e fechou a porta em um pequeno baque. A chuva pareceu aumentar enquanto Seungcheol gravava na memória os últimos detalhes da pintura lascada e o quintal enlameado, antes de girar os pés e seguir para a rua, agarrando o couro da mala com precisão, obrigando-se a não olhar para trás.

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Foi desgastante pensar que seria fácil.
Quando saiu de casa naquele ano, a confiança em seu talento — reconhecido só por ele mesmo — o deixava esperançoso com seu futuro. Todas as setas apontavam para uma única direção: o sucesso. E era exatamente onde ele pretendia parar e repousar: lá no alto. No topo da fama.
Não foi fácil. Mas não chegou nem perto de ser tão difícil.
Pensar assim, hoje, era o que lhe causava as crises de fúria que terminavam com as vidrarias caras de presente destruídas no chão da sala do apartamento muito bem localizado em Gangnam. Olhar para a cidade lá de cima o deixava enojado e frustrado. Ele não conseguia mais ignorar o recado daquela cartomante de segunda mão que lhe cedeu uma consulta gratuita quando pisou em Seul pela primeira vez em busca de seu sonho: Karma. Se deixar ser levado pelas proezas que escondem línguas maléficas de fogo e que entoam palavras contorcidas como bênçãos, seu destino não estará mais em suas mãos.
Maldita mulher. Ele só tinha parado para comprar uns cigarros. E odiava como tudo fazia um terrível sentido agora.
Seungcheol soltou uma risada sufocada mais uma vez, temendo que não fosse mais capaz de fazer isso caso tudo se encaminhasse como ele pretendia. O cara era dotado de indiferença e rebeldia, moldado com uma vontade de ferro de correr atrás dos próprios sonhos. Acima de tudo, por incrível que pareça, tinha uma boa dose de sensatez e pé no chão, o que o fazia geralmente escutar mais e falar menos. Mesmo que tenha perdido grande parte disso quando chegou à cidade, cego pelas oportunidades que vedaram seu filtro de juízo.
Ele tinha a quem culpar nessa parte. Naquele momento, em pé sobre as luzes da capital, nunca passou pela sua cabeça atribuir nada além do que o necessário para os outros. Se chegou ao sucesso e reconhecimento, devia à algumas pessoas, é claro, mesmo que uma pontada egoísta e arrogante no fundo gritava para que dissesse em voz alta: eu fiz a maioria. Ele ignorava esse sussurro como era de direito fazer, mas o sentimento não o abandonava. O primórdio de humildade verdadeira só estava presente quando se referia a uma pessoa, o sujeito que, agora, subia-lhe o sangue só de pensar em seu nome, quanto mais no rosto estampado nos jornais e internet junto com o seu: Larry Dillon.
O culpado de tudo.
Antes disso, ele foi a primeira pessoa a não escarrar pelo nariz quando Seungcheol disse que queria fazer música — e não apenas música, queria fazer rap. Ele estava frustrado por encontrar tamanha descrença em uma cidade grande como Seul, e conheceu Larry em uma noite de bebedeira conjunta onde se viu externando mágoas e sonhos a um desconhecido que poderia facilmente levar-lhe todo o dinheiro que lhe restava. Mas, após tantas rejeições e mágoas verbais que tinha sofrido somente naquele dia, não conseguia se preocupar com seu próprio bem estar — queria apenas esquecê-lo.
Seungcheol não sabe dizer como um homem bêbado e frustrado pode demonstrar algum potencial, mas foram essas as exatas palavras ditas por aquele italiano. Ele as disse por telefone, logo quando Seungcheol acordou no quartinho alugado e apertava algo duro e disforme nas mãos, revelando um cartão de visitas amassado e chamativo. Uma caligrafia sucinta e elegante informava-o onde estivera na noite passada e sua mente com ressaca doeu ao tentar se lembrar. O resquício de decepção do dia anterior ainda o mantinha cansado de tentar, mas mesmo assim, ele aceitou uma reunião com o homem estranho e seguiu para fora sem muitas expectativas.
Ele grunhiu com a lembrança, sentindo-se perfeitamente patético por não ter pensado um pouco mais.
Larry era um achado. O impossível e a exceção para aqueles que eram corajosos o suficiente como Seungcheol. Ele não sabia se deveria acreditar em destino, mas certamente acreditou em alguma coisa quando fechou o contrato e seguiu sucesso acima, pronto para realizar seu sonho da forma como sempre quis: livre e objetivo. Assim, sua convicção soava genuína aos ouvidos de muitos que escutaram suas primeiras músicas, e o apelo racional de suas letras se tornava um diferencial para toda uma indústria saturada de pessoas que achavam que faziam rap por embolar um pouco mais a língua ou segurarem parte da respiração em busca de alcance vocal e rápido. Besteira. As revistas começaram a proclamá-lo como uma nova ascensão necessária na indústria musical de um país, e nada tiraria esse título dele.
Mesmo que, nos dias de hoje, seu nome estivesse estampado na mídia como o maior mentiroso de todos os tempos.
A confiança de Larry também veio acompanhada de uma aposta para cima dele mesmo. Sua empresa não ia bem, e ele enxergava esperança e brilho em um rapaz mirrado do subúrbio, que levantaria a estrutura há alguns metros do chão. Ele não estava errado nessa parte. O prédio localizado no sudoeste de Gangnam não o deixava mentir. A música de Seungcheol fez o impossível e era exatamente por isso que não entendia porque estava passando pelo que estava passando.

A campainha finalmente tocou, fazendo um frio se alastrar pelo seu corpo inteiro. As decisões que havia tomado nos últimos dois dias foram no mínimo impulsivas, e totalmente contrárias à sua recente constatação de que não podia confiar nem em sua própria sombra.
Ele abriu a porta para a garota, soltando a fumaça do cigarro assim que a viu. Ela arqueou as sobrancelhas, olhando o homem de cima abaixo: bermuda de seda, pés descalços e apenas um kimono caro e brilhante cobrindo suas costas e metade dos braços, mas não o abdômen. Embora ele estivesse morrendo aos poucos nos tabloides há um tempinho e isso estivesse dando a impressão de que ele parecia um pouco fantasmagórico, ainda empinava o queixo e encarnava a postura de um rei.
— Já não era sem tempo. — ele resmungou, largando a maçaneta e voltando para a sala. Ela revirou os olhos e entrou, fechando a porta devagar. — Isso vai demorar?
— Depende do quanto vai querer falar, Seungcheol. — respondeu. Ele se virou imediatamente com a menção do nome, fazendo uma careta. — O quê? Não gosta que eu o chame pelo seu nome? Prefere o estigma S.Coups?
— Não lembro de ter dado liberdade pra você falar informalmente comigo.
— Não acho que você esteja em posição de exigir alguma coisa. — ela rebateu, dando de ombros e abrindo a bolsa. — E respeito certamente é algo que as pessoas não estão dispostas a te dar agora.
Ele soltou uma risada engasgada pela ousadia, sentindo raiva ferver em seu semblante ao encarar a garota bonita, porém afiada. Devo ser um idiota por pensar que ela seria mais delicada que os outros.
Ela caminhou até o grande sofá impecável e desembrulhou o aparelho de gravação retangular e fino, testando alguns botões antes de puxar um caderno com capa de couro gasto com tiras, que se fechava cada vez menos pelo volume das folhas.
Depois de passar algumas páginas, ela enfim ergueu os olhos para encará-lo.
— Não vai se sentar?
— Esperava perguntar isso primeiro, mas você parece bem à vontade. — ele riu com ironia e se acomodou na poltrona grande e acolchoada na sua frente, ao lado de uma mesa esguia e cara de vidro onde repousava seu whisky agora quase vazio. — Qual é o seu nome?
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— Tudo bem, qual é o seu verdadeiro nome?
— Não curto formalidades, Seungcheol. — ela ergueu os lábios em um sorriso fino. — Não é o meu nome que importa aqui. Podemos começar?
Ele levou um tempo antes de finalmente assentir e vê-la reler algo no papel enquanto a luzinha vermelha começava a piscar do aparelho de áudio. Estudou seus movimentos por alguns instantes, tentando captar algo tendenciosamente errado que colocasse à prova que ela não respeitou o acordo 100%. Sua bolsa de pano estava magra de vazia, apenas com o caderno e o gravador, sem nenhum outro aparelho à vista. Ela usava um vestido solto e branco sem bolsos com all star, o que a deixava parecendo uma estudante universitária mais jovem do que uma jornalista formada — talvez ela fosse mesmo. Ele não pretendia, mas reparou que seus seios eram pequenos demais para se esconder um celular ou qualquer outra coisa suspeita ali.
— Veio mesmo sozinha? — perguntou ele, por precaução. deu um sorriso de canto.
— Totalmente sozinha. Mas não se engane, passei por várias caixas pretas até chegar aqui.
Ele levou um minuto para entender do que ela dizia e deixou escapar uma gargalhada que quase fez seu cigarro escapar entre os dentes.
— Agora além de ladrão, sou sequestrador?
Ladrão resume bem todos os adjetivos que estão publicando na internet. — ela riu, e era um sorriso bonito, porém também parecia um pouco perigoso. — E então, pronto?
Ele balançou a cabeça novamente, dando uma última tragada no cigarro antes de apagá-lo no cinzeiro ao lado. pousou o gravador cuidadosamente na mesinha de centro que os separava e o fitou com intensidade, assumindo uma expressão séria e profissional — ele ainda não fazia ideia se ela era realmente profissional.
— Choi Seungcheol, você está sendo acusado de plagiar o trabalho de uma vida inteira de Larry Dillon em benefício próprio no lançamento de vários de seus álbuns no decorrer de 8 anos. Como se sente sobre isso?
— Um merda. O que você acha?
— Acho que preciso supor que toda essa acusação é mentira, senão nem teria me dado ao trabalho de vir até aqui. — deu de ombros, passando mais uma página. — Por que Larry faria isso com você, pra começo de conversa?
— Acho que ele pensou que eu seria o mesmo garotinho necessitado de quando nos conhecemos. — respondeu Seungcheol, estreitando os olhos. — Devo ter dado muito a impressão de que jamais alcançaria tudo que alcancei hoje. Não vou dizer que a falta de tato dele não me decepciona.
Ela soltou uma risada nervosa. Ele estava sendo claramente invasivo em suas respostas; como um último teste de confiança.
— Ele disse que você o chantageou e ainda que se aproveitou das letras de outros artistas da empresa, então não acho que isso mostra falta de planejamento. Ele conseguiu torná-lo um perfeito inimigo público.
Seungcheol cerrou os dentes, estendendo as mãos para agarrar o copo de vidro já cheio do líquido âmbar que esperava que fosse capaz de acalmar seus nervos, pelo menos naquele momento.
— É, ele disse várias coisas, . — deu de ombros de forma descontraída, mas seu maxilar trincado denunciava a verdade. — Abriu a boca para vários jornais diferentes. A mesma boca que fala a mesma merda, sem mudar o fato de que é tudo merda no final. As mesmas mentiras.
— Mentiras ditas por um cara que é muito bom de conversa. — ela riu, alisando uma página. — Falei com ele duas vezes e estava quase chamando-o para sair.
— Os melhores sacanas são assim.
— Mas e você, Seungcheol? — ela apoiou os cotovelos nos joelhos, aproximando o rosto para perto da mesinha. — Não se considera um mentiroso?
— Todo mundo mente, linda. Principalmente nessa indústria. Mas existem pessoas que não sabem quando parar. O dinheiro não sabe parar.
Ela franziu o cenho.
— Como é?
— Tudo é dinheiro, . Toda essa gente fede a dinheiro. Os jornais, as agências, o circo midiático, todos eles são movidos por apenas uma coisa e não é a verdade. — ele repuxou os lábios, falando com convicção. — Eu já fui assim também. Todos foram. Gostar de criar e executar pode ser muito bom, mas a realidade é inegável e muitas vezes perversa. Quando saí de casa há dez anos, eu já pensava no dinheiro e em tudo que ele podia comprar. O poder que me faria ter toda a autonomia de controlar minha própria merda. Enquanto ele estiver girando nesse enorme circo lá fora, eles não vão parar. Não até substituírem mais uma peça.
— Você seria essa peça? — ela arqueou as sobrancelhas. — Você ficou famoso justamente por escrever críticas sobre todo esse sistema, para agora me dizer que sempre fez parte de tudo isso. Não é uma grande contradição que põe em risco sua defesa, Seungcheol?
Ele deixou escapar um sorriso.
— Realmente não tenho uma resposta pra isso. — ele deu de ombros. — Não sei te responder como exatamente a fama aconteceu, mas de repente ela estava ali e nunca existiu nenhuma hipótese de que eu não fosse agarrá-la com unhas e dentes. Mesmo que estivesse envolta por toda uma redoma de exigências. Isso não muda o fato de que realmente escrevi cada palavra que saiu da minha boca nos últimos anos, e de que construí uma imagem que está sendo arruinada agora. Isso me irrita, mas me importo muito mais com a origem da difamação do que com a opinião pública. Eles sempre estiveram dormindo enquanto eu estava trabalhando.
— Larry estava com você durante esse processo. — pontuou. — Ele parecia concordar e te ter como um diamante bruto no mercado. Mesmo que agora esteja alegando ter feito tudo isso sob usurpação.
Seungcheol riu, bebendo um grande gole do whisky. Ele cruzou as pernas e recostou-se no couro confortável da poltrona, lembrando-se com pesar do passado.
— Ele sempre achou que sabia o segredo do sucesso. — suspirou. — Me aceitou na empresa com o pretexto de que eu poderia fazer minhas músicas livremente, mas sempre arranhava aquela maldita voz no meu ouvido como um fantasma. Pedindo mudanças aqui e acolá, dizendo que era melhor. Eu sabia que ele estava preocupado e me controlei por bastante tempo, mas um dia deixei bem claro que não conhecia o segredo do sucesso, mas conhecia o da falha, e iríamos caminhar a passos largos para ela se eu não pudesse ser ao menos verdadeiro de alguma forma. — ele balançou a cabeça, fitando-a nos olhos. — A vida não significaria nada para mim se eu não pudesse viver de acordo com a minha verdade.
Ela engoliu em seco, sentindo uma tremenda onda de sinceridade partir do homem à sua frente, que tinha a voz encharcada de melancolia e sarcasmo. Parecia derrotado, mas não admitiria nem que lhe arrancassem os membros. Era um homem que estava disposto a encarar consequências.
— Acho que se esqueceu dessa verdade. sussurrou, sentindo as palavras partirem do fundo de sua mente. — Acha que ela se misturou nessa roda gigante de fama e dinheiro?
— Você sabe das coisas, . — ele sorriu novamente, baixando os olhos. — Eu sei que sou forte, mas não me atentei em controlar minha única fraqueza. Quando se atinge o que quer, de repente você pensa que é tarde demais para perder. Até que, finalmente, começa de fato a perder, e a primeira coisa que se vai é aquela que o ajudou a chegar até onde está. — ele levantou os ombros, e uma sombra ultrapassou seus olhos. — Eu queria dinheiro, sim. Também queria a honra, seja lá o que isso significava na época. Mas confesso que você está certa, as luzes dos flashes devem ter me cegado em todos os pontos.
— Independente disso, você soube disfarçar muito bem. Assim como tudo na Coreia geralmente é feito. — ela destilou um sorriso sarcástico, fazendo-o retribuir. Uma compreensão mútua e silenciosa pairou entre os dois. — E se Larry também estava ganhando dinheiro, não havia porquê ele acabar com tudo isso destruindo a galinha dos ovos de ouro. Aconteceu alguma coisa que o deixou incomodado ao ponto de tomar essas medidas drásticas?
Seungcheol riu mais uma vez, percebendo que provavelmente estava compreendendo algumas coisas só naquela hora, durante aquela conversa secreta. Várias luzes de interpretações brilhavam em sua mente e um misto de raiva e desprezo se alastraram em sua memória.
— Larry gostava de lidar com peixes grandes. — ele bufou. — Depois de estarmos com os bolsos cheios, ele insistia em me frear sempre que podia. Começava a ter encontros executivos com membros da câmara e de outras grandes empresas do país para conseguir investimentos que nem precisávamos de verdade, e não se importava mais em não me incluir em seus planos. Ele me rebaixou depois de ter seu pedido negado várias vezes; eu não pararia de compor o que eu compunha. Agora que penso sobre isso, suas tentativas de me comprar foram insanas e absurdas. Tudo para que eu cantasse algo que não ofendesse seus parceiros. — ele riu. — Sempre quis a fama e tudo que a rodeava, mas eu não queria nada deles. Nunca quis. Pareceram legais no começo, o que foi outra tentativa de Larry, mas eu queria continuar a fazer o que eu comecei fazendo porque era o que eu acreditava, e talvez porque pessoas demais estavam se identificando, ele decidiu colocar em prática a lei da selva de Seul. Onde o mundo político influencia diretamente na palavra sucesso.
abriu e fechou a boca, não sabendo o que responder de imediato. Tudo parecia um pouco impossível de acreditar.
— Ele… — ela parou, passando mais uma página, mas sem vê-la realmente. — Ele te incriminou a pedido de malditos governantes que não queriam o sistema sendo criticado?
— Não acho que ele precisou de pedidos para isso, querida.
— Mas isso é um absurdo.
— Um absurdo que não vai parar em mim. — ele balançou a cabeça, repuxando os lábios novamente. — Acredite, . Eles vão atrás de toda e qualquer garganta que ousar falar um pouco mais alto sobre os déficits contínuos desse país e assim adeus liberdade de expressão. Voltamos à Coreia dos anos 80.
Ela o encarou por alguns minutos antes de largar o caderno grosso no lado vazio do sofá, encarando o piso de madeira polida com certa hipnose. não poderia dizer que não estava disposta a confiar nele. Quando recebeu a ligação em seu telefone escondido, ela sabia que cruzaria a cidade e toparia com uma história surpreendente, mas aquilo era melhor, muito melhor. Ao mesmo tempo que ultrapassava tudo que já tinha pensado sobre o assunto.
exalava confiança; Seungcheol sentia isso a cada minuto que passava. Os dois não tinham porque não serem totalmente sinceros um sobre o outro. Essa era a vantagem de não se conhecerem.
— Isso é muito grave. — ela falou em voz baixa, ainda encarando o chão. — Grave e perigoso. O que você vai fazer? Como será o próximo julgamento?
— Vou fazer de tudo para que eles não peguem minha cabeça, é claro. — ele arqueou as costas para a frente, encarando-a por cima do vidro que reproduzia seu reflexo. — Por isso disquei aqueles números suspeitos e cá estamos nós aqui agora.
Ela encarou toda a extensão de seu rosto e notou os traços firmes, porém relaxados. Ele sabia exatamente o que estava fazendo, tanto antes quanto agora.
— Sabe o que eu faço exatamente, Seungcheol?
— As más línguas te chamam de justiceira, mas isso não faz muito sentido para mim já que estou te pagando. — ele deu de ombros. — Na verdade, te acho uma mercenária oportunista, mas não quero que se ofenda com isso. Só espero que saiba que sempre vou dobrar a quantia que te oferecerem. Infelizmente, não estou aqui para brincar.
Ela trincou os dentes disfarçadamente, se sentindo de fato ofendida, mas sabendo que ele não precisava ter conhecimento disso. não precisava explicar-lhe que, na verdade, o dinheiro aceito era necessário, porém selecionado. Ela não aceitava um novo trabalho de qualquer um que discasse os números e entrasse em contato. Era preciso, primeiro, aguçar seus olhos para o potencial do serviço. E a história de Seungcheol era um ótimo exemplo dele.
— Eu só brinco em algumas ocasiões, senhor Choi, e nenhuma delas envolve o trabalho. — ela estreitou os olhos, pegando o gravador. — Aqueles porcos são terríveis, mas conspirar com o meio artístico é o cúmulo do desprezível. Eles realmente devem ouvir as vozes da minha cabeça quando eu digo que eles não serão mais capazes de me surpreender.
Ele a encarou por um minuto e puxou um cigarro do maço jogado ao lado, tentando organizar seus pensamentos debilmente quando ele já havia se decidido há muito: confiaria naquela postura confiante de uma garota que parecia ser, bem… uma garotinha.
— Sempre vai existir espaço para o conluio de merda dessa corja. — ele colocou o cigarro entre os lábios. — Agora sinto que me importo de verdade com isso. Por causa de um motivo egoísta, mas ainda conta um pouco, certo? Quero todos eles expostos o mais rápido possível.
Ela assentiu brevemente com a cabeça, esfregando as mãos lentamente como se tivesse um plano bem ali, pronto para vir à tona a qualquer momento.
— Então, quando vai me falar os nomes? — perguntou ela.
— Como sei que não vai me trair?
— Procurou saber o bastante sobre mim, Seungcheol?
— Foi o bastante para que eu te ligasse, mas informações avulsas e números soltos em um papel não dizem nada sobre uma pessoa. — ele murmurou com os olhos baixos enquanto acendia o isqueiro, espalhando a segunda leva de fumaça ao redor de si. — Só poderia tomar uma decisão de verdade depois da sua visita.
— E qual a decisão que você tomou? — ela levantou uma sobrancelha.
Ele tragou sem tirar os olhos dela.
— Vou confiar em você, . — respondeu. — Você é minha última jogada.
A garota deu um sorriso singelo de canto e gostou do que viu naqueles olhos meio loucos e insanos, que também a chamavam para algo perigoso.
— Também vou confiar em você. — sussurrou. — Acho que podemos vencer mais rápido do que você imagina.

ᯓ★

TRÊS MESES DEPOIS


Eu incendiei a glória
Eu incendiei o sonho
Eu incendiei a única coisa
Que me conduzia nas ruas


O belo Toyota Supra anos 80 estava embrenhado em poeira e grama alta na planície ensolarada da costa de Jeju. O vento batia forte nas ondas logo abaixo, mas não atingia o cabelo de com tanta intensidade. A espera já parecia longa demais quando o motor baixo de uma SUV anunciou sua chegada logo atrás dela, parando ao pé da rodovia e revelando seu dono que batia a porta um minuto depois.
Ele caminhou pela pequena trilha tentando acender seu famoso cigarro, mas desistiu após a maresia se recusar a diminuir. Ela riu ao vê-lo balançar a cabeça e guardar o isqueiro. Ele retribuiu o sorriso, que ficava ainda mais cintilante por debaixo dos óculos escuros e se aproximou do carro, encostando o quadril no veículo enquanto se virava para ela.
— Você demorou. — disse ela, virando o rosto agora iluminado pelo tom laranja do céu.
— Foi o suficiente pra você sentir minha falta? — ele arqueou uma sobrancelha. A garota revirou os olhos. — Estava resolvendo os últimos detalhes com o advogado. Ele ainda está meio perdido com tudo que aconteceu, mas o veredicto é indiscutível. O incêndio não vai se apagar tão cedo.
— Foi mais como uma explosão. — ela suspirou. — Uma defesa disfarçada de ataque. Eles vão tentar todos os meios possíveis para saírem dessa, e alguns talvez até consigam uma manobra para se livrarem da punição. Sabe disso, não é?
— Sei sim. Mas existe algo chamado karma. — ele fitou seus olhos de sol. — Sei mais do que ninguém. E mesmo que os desgraçados continuem assistindo o pôr do sol de suas coberturas, esse rastro negro nunca vai sair de seus históricos, por mais que tudo seja juridicamente apagado. A população jamais os deixaria esquecer. Eles estão acabados, de uma forma ou de outra.
inclinou a cabeça, satisfazendo-se do tom sério e ao mesmo tempo descontraído de Seungcheol. Ela vira o semblante várias vezes, por vários meses, e sentia que ele ficava melhor a cada dia. Ela se via apreciando aquele rosto sem perceber.
Mas ele percebeu. E sustentou o olhar, deixando-a no impasse entre se sentir constrangida ou permitir a investida silenciosa.
Ela se conteve em apenas coçar a garganta.
— E o que vai fazer agora? — perguntou. Seungcheol franziu o cenho. — Digo, até que o processo chegue ao fim. Vai escrever sobre essa aventura?
— Ah, com certeza vou. Em breve. — ele riu. — Mas não agora, querida. Agora tenho planos leves e divertidos, que envolvam uma praia deserta no México e essas coisas tolas.
— Vai ver alguns golfinhos e beber margaritas em cima de uma espreguiçadeira? — ela riu, cruzando os braços.
— Não sei, é o que você gostaria de fazer? — ele girou o isqueiro nas mãos, sem sorrir. — Achei que quisesse mais privacidade e nadar à noite em uma piscina natural, mas posso incluir a viagem com golfinhos agora mesmo.
Ela girou o corpo para Seungcheol, franzindo as sobrancelhas em expressão totalmente confusa. Ele continuou impassível, como se nada do que havia dito fosse estranho.
— Do que está falando? — perguntou ela.
— Do que estou falando, ? — deu de ombros, frisando o nome verdadeiro. Algo dentro dela se remexeu bruscamente com aquele tom abafado.
— Está dizendo pra eu ir com você?
— Estou dizendo que quero que você vá comigo. — respondeu, se aproximando da garota, agora cada vez menos refém do vento. O sol ia descendo cada vez mais. — Já incluí você nos meus planos.
Ela não soube o que responder de imediato. Vinha ignorando toda e qualquer menção da batida forte no coração que aparecia toda vez que aquele homem estava por perto, alternando sua intensidade conforme certas palavras ou atitudes partissem dele, mas as mantinha em silêncio. Apesar dos planos terem dado certo, ela não sabia o que tinham se tornado agora — e se era prudente aquele tipo de viagem, aquele tipo de relação, mesmo depois de tudo que enfrentaram.
Ela teve os pensamentos calados pela boca dele na sua, e ainda levou algum tempo para notar o que estava acontecendo. Há um mês, aquele beijo tinha acontecido em uma situação totalmente diferente e inepta de qualquer reação imediata. Eles estavam cada vez mais perto da vitória e tinham sido guiados pelo whisky que ele guardava na pequena adega. Não foi premeditado, mas não tinha nenhuma cara de acidente.
Depois disso, a condição de seu coração piorou e Seungcheol não parecia disposto a falar sobre o assunto. Ele se desculpou como se a tivesse atingido com uma bala de borracha, enquanto ela só queria que ele repetisse o ato e terminasse o que começou, mas jamais admitiria isso.
Portanto, quando ele se afastou devagar e encarou os olhos confusos da garota, a confirmação do que ela pensava o atingiu de imediato. Ele abriu um pequeno sorriso, que parecia lindo abaixo dos óculos, tão raro quanto a vista que presenciavam.
— Eu sei, eu não sou o melhor de todos nessa parte. — ele balançou a cabeça, ainda com uma mão na lateral do rosto dela. — Mas não foi um erro. Nunca foi. Eu só não sabia o que dizer, porque… Bem, era diferente. E não queria te magoar caso perdesse tudo.
Ela soltou um riso fraco.
— Eu sabia que você não iria perder. E disse que gosto de brincar em certas situações.
— Não quero brincar com você, . — interrompeu, com a voz repentinamente grave e séria. Ele tirou os óculos pela primeira vez, aproximando-se mais de seu nariz. — Quero encher minha vida de coisas significativas, coisas de verdade, e nada chega perto do que você se tornou pra mim. Eu sou um baita desgraçado, mas não vou mentir pra você, nunca menti. Quero experimentar viver algo sério e real que não acabe em uma noite. Você me entende?
Ela piscou os olhos algumas vezes, uma queimação característica de felicidade ou a contenção da própria dentro de si. se lembrava de ter lhe dito seu nome em algum momento, e se lembrava também de que ele era usado apenas em situações de emergência. Aquela era a melhor forma de sinalizar que Choi Seungcheol estava sendo totalmente verdadeiro, assim como quando saiu de casa há tantos anos.
Ele estava em busca de um novo objetivo.
— Eu entendo que você quer se tornar um homem decente. — ela sorriu e afastou alguns fios de cabelo dele na testa. — Mas já se tornou, Seungcheol. Na verdade, se tornou bem antes de eu aparecer. Decente e agora dono do próprio negócio.
— Quero ser dono de várias coisas, querida. Inclusive do seu coração.
— Ainda ganancioso. — ela estalou a língua. — Acumulando conquistas sem nem perceber porque só olha para o futuro. Se tivesse percebido antes, veria que deixei meu coração com você naquele fatídico dia de vitória, e ainda não o recebi de volta.
Ele fez uma careta de derrota enquanto ela voltava a rir. Aproximou-a de seu corpo, passando uma mão por sua cintura, sentindo o coração bater forte como se sentia ultimamente por outra coisa que não fosse a música.
— Então vai aceitar tomar drinks tropicais comigo enquanto assistimos golfinhos em mar aberto? — ele lhe deu um selinho rápido, e o leve acúmulo de nuvens não o deixou ver seu rosto corado.
— Vou, mas… E o seu trabalho? Acredito que tenha bastante coisa pra organizar.
Ele deu de ombros, relaxado.
— Deixe os que estão tentando crescer, crescerem um pouco mais. Depois eu volto com tudo. Vou ter bastante inspiração nessa folga.
Ela abriu um enorme sorriso e deixou que ele a beijasse de novo. O vento soprou um pouco mais forte, cravando a memória e as sensações em sua pele de forma eficiente. Ela estava feliz e podia sentir isso partindo dele também. Como um verdadeiro sonho que , ou , nem sabia que sonhava.
Ele abriu a porta do Toyota, inclinando a cabeça para que ela entrasse. Ele cruzou o carro e pegou o telefone, entrando no banco do motorista e usando sua voz séria e profissional para falar algo sobre o carro alugado deixado naquele lugar incomum ao topo da planície. Em seguida, recolocou os óculos e baixou a capota do carro, apertando o pé no acelerador e levantando alguns grãos de poeira ao voltar para a estrada.
E lá se foram os dois, fugindo em direção ao pôr do sol, deixando uma cidade incendiada para trás.




FIM.


NOTA DA AUTORA > oláá!
sim, apostei no s.coups pra fazer esse papel e achei que incrivelmente deu certo (?) não sei qual vai ser o levante geral, mas eu amei rsrsrs. desculpem se a fic ficou meio wtf, mas eu tinha essa tirada bem aqui e não podia desperdiçar pra não entrar nessa expedição querida. de qualquer forma, espero que tenham gostado!
obrigada por ter lido até aqui, e me segue no insta! (@sialversion)
beijos,
Sial ఌ︎


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