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Independente do Cosmos🪐

Última Atualização: MARÇO/2025

Apesar da mente tranquila, meu peito se comprimia numa dorzinha agonizante que eu tinha aprendido a chamar de “saudade”. Apesar das folgas curtas e do desejo de dormir até que os feriados chegassem, eu tinha um lugar mais importante para estar. Apesar de saber, por fato, que eu não precisava correr, porque o que era meu me esperava debaixo de cobertas quentinhas com uma taça de vinho mesmo sendo quatro da tarde, meu pé pressionava cada vez mais o acelerador.

O caminho para a casa de , já feito mais de mil vezes nesses últimos anos — não fiz as contas, mas tenho certeza de que já passei pelo buraco no início da sua rua pelo menos essa quantidade de vezes desde que a conheci — era o caminho mais gentil que eu já permiti que meu coração fizesse.

Era ir para o meu lar, mesmo que eu nem soubesse mais onde “lar” era. Clichê como isso soava, porque eu nunca tive medo de ser um.

Assim que estacionei na minha vaga, chequei o celular; ainda que soubesse que não encontraria nenhuma mensagem dela, que, em alta probabilidade, estava mesmo esparramada no sofá afogando as mágoas pelos dias de folga forçados que ganhou após sua visita ao pronto-socorro por estar vomitando as tripas e ter recebido o temido diagnóstico: intoxicação alimentar. E com orientações de: Quatro dias de muitos líquidos sem ir para longe do vaso sanitário. Só para garantir.

Usando minha própria chave, que com muito custo ganhei de volta após nossa primeira viagem ao Brasil juntos, eu abri a porta do apartamento e encontrei sentada à mesa de jantar… com a tela do notebook brilhando à sua frente. Sua concentração tão fixa que sequer me ouviu entrando.

— Por que é que eu ainda me surpreendo em te ver trabalhando?

Ela virou o pescoço em um mix de confusão e sobrancelhas franzidas que transicionaram em um daqueles sorrisos quando seus olhos me encontraram.

— Hey, babe! Não sabia que vinha agora.

— Você está linda. — Soltei uma risadinha pelo nariz e parei ao final do corredor, sem, de fato, entrar no cômodo, ou eu mal teria chegado e receberia um tapa ardido.

Seu rosto estava coberto por uma camada de alguma coisa cinza, enquanto seus cabelos eram uma bola bagunçada no topo da cabeça.

— Ah, cala a boca. — Antes mesmo que ela rebatesse, eu já esperava pela revirada de olhos. — Você não deveria estar descansando?

Eu deveria te fazer a mesma pergunta. Você está de atestado! Proibida de ir ao escritório, pelo menos, até amanhã! Não me diga que ficou assim o dia inteiro. Você comeu alguma coisa?

Ela fez uma careta.

Então as respostas eram “sim” e “não”, consecutivamente.

— Para a minha defesa, meu telefone não parou de tocar. — Ela me deu um sorriso amarelo, cheio de desculpas. — Você sabe que eu não consigo ignorar!

— Eu sei, sim, darling, mas você precisa se cuidar. — Ganhei a distância que nos separava e a envolvi em um abraço. — Eu fico todo preocupado e você... — Entortei o corpo para enxergar a tela. — ...fazendo planilhas?

— Tivemos um imprevisto, precisei mandar outro grupo para a fronteira em San Diego e refazer toda a programação. — Ela apontou com a cabeça para o computador também. — Você não faz ideia do gasto extra. O dinheiro nem é meu e eu estou sofrendo.

Dei uma gargalhada muito sincera.

— Tenho certeza de que gastos extras acontecem o tempo todo. — Ela levantou uma sobrancelha como resposta.

— Além disso, eu também precisei preencher e reenviar minha documentação de extensão do visto para a minha assessoria, isso me levou boa parte da tarde.

— E você conseguiu concluir isso? — Perguntei me aproximando um pouco mais da tela para conseguir enxergar o que estava escrito.

— Só preciso enviar pelo e-mail… — Ela explicou enquanto fazia upload dos anexos. — E pronto! — Clicou em enviar.

Com isso, bati uma palma seca, como se desse tudo por encerrado por ela.

— Agora vem, chega de expediente por hoje. Mesmo em um dia normal você já teria vindo embora a essa hora.

Com relutância no olhar, ela fechou a tampa do notebook, deu um passo para o lado, saindo de trás da mesa, e entrelaçou as mãos acima da cabeça numa espreguiçada de ponta dos pés. Ela não usava nada além de um conjunto simples de pijama azul de algodão, a barra da blusa de alcinhas revelando parte da sua barriga ao levantar os braços e deixando também um pedaço da sua calcinha à mostra no cós baixo dos shorts.

— Eu nem vi a hora passar. — Ela seguiu o meu olhar e puxou a blusa para baixo. — O que foi?

— Você é linda.

— Eu já vou lavar o rosto, ok? — Ela revirou os olhos de novo. Antes que se movesse, eu a segurei pelo braço.

— Na verdade, você é uma gostosa, mas está doente e eu não quis ser um canalha.

Ela me abraçou. Um ar quente ventilando no meu pescoço enquanto ela dava uma risada.

— É sério. Você é linda.

Ela se desvencilhou do abraço para me encarar.

— E gostosa?

— Porra, e como! E inteligente. E generosa. E leal. E... quer que eu continue? Posso ficar aqui a tarde toda.

— Não, é o suficiente. — Ela negou com a cabeça, mais uma sessão de risadinhas. — Obrigada pela afirmação verbal.

— Como você está se sentindo?

— Eu estou bem melhor, Harry.

Meu nome saindo da sua boca e milhares de borboletas dançando no meu estômago. Ela não sabia cantar, mas não havia nada mais melódico do que ouví-la falando meu nome.

Meu Deus, eu era, sem dúvidas, um clichê andando em calças de alfaiataria. E um homem muitíssimo apaixonado.

— Bem, eu quis dizer depois da massagem no seu ego, mas como você está fisicamente também serve. Ouch! — Esfreguei meu braço com um choramingo e a soltei do abraço. — Odeio quando você faz isso, sua mão é pesada!

— Você é um idiota.

— Só idiota?

— Sim!

— Mentir é feio, .

— E daí que você é o cantor mais gato da atualidade? Carismático, empático, gentil, criativo...

— Vencedor do Álbum do Ano no Grammys...

— Nem foi desse ano.

— Isso não importa, !

— Se você diz.

— É só um detalhe.

— Se eu bem me lembro, você quem me disse que detalhes são tudo.

Arregalei os olhos. Não bastava usar minhas músicas contra mim, agora também usava cada uma das minhas palavras. Eu tinha que ter muito cuidado com o que dizia perto dessa atrevida.

— E eu vou me lembrar desse detalhe quando estiver escrevendo o próximo álbum para garantir que nenhuma música seja sobre o seu nariz insolente!

— Você não se aguenta, meu amor.

Uuuh.
Um arrepio percorreu minha espinha. Ela sabia que apelidos em português eram golpe baixo.

— Tudo bem, você venceu. Vem aqui. — A puxei de volta e colei nossos lábios, tentei aprofundar o beijo, mas só senti a textura de areia vindo do que tinha na cara.

Ela riu muito e pediu desculpas quando percebeu.

— Sério, o que é isso? — Eu perguntei limpando a boca.

— Uma máscara de argila.

— Eu nem vou perguntar para o que isso serve.

— É, não gaste seu cérebro.

Soltei uma bufada pelo nariz.

— Cruel.

— Você ama.

Entortei a boca em uma concordância.

— Eu adoro quando você é malvada assim. — Me inclinei para beijá-la outra vez, mas desisti.

deitou a cabeça no ombro, em um gesto de inocência e meiguice. E dizem que o diabo que é o rei do disfarce. Há! Isso porque não conhecem minha mulher.

— Quando foi a última vez que você comeu? Posso cozinhar uma sopa.

— Eu gosto da ideia da sopa. — Ela concordou. — Mas você tem certeza de que descansou o suficiente? Eu achava mesmo que você estaria dormindo.

Por que ela era assim? Mesmo doente, estava mais preocupada comigo do que com ela mesma. Comigo, que não fiz nada além de dormir nos últimos seis dias.

— Eu dormi o dia inteiro, para ser honesto. — Coloquei um sorriso no rosto, queria ter a certeza de que a tranquilizaria. Mostrar que ela não precisaria se preocupar comigo.

— Ok. Isso é bom. Quando mesmo você viaja para a parte Europeia da turnê?

— Você não sabe? — Deixei que meu queixo caísse. — E esse tempo todo eu achava que você fosse minha fã.

— Ah, cala a boca, vai! Eu parei de te stalkear quando nos conhecemos.

Balancei a cabeça em negativa.

— Mais ou menos. — Ela completou, movida pelo meu olhar descrente.

Tsc tsc. , você nunca foi uma boa mentirosa, nem mesmo quando não nos conhecíamos bem. Você acha que agora, depois de todos esses anos, você ainda acha que consegue me fazer acreditar?
— Não custa tentar. — Piscou divertida. — Mas sério, eu não tenho certeza do dia exato.

Fechei os olhos e inclinei a cabeça para trás, soltando um suspiro exagerado.

— Daqui quatro dias.

— Mas já? — Ela fez um biquinho e eu me contive outra vez para não a beijar.

— Eu seeeei. — Senti meu peito pesar de saudades outra vez por um momento. Eu nem tinha ido embora, mas como sempre já não via a hora de voltar. — Mas essa parte vai ser dividida por causa do fim de ano, então logo estaremos juntos; preciso resolver suas passagens e confirmar nossa presença para as reuniões de Natal.

Passar o Natal na Inglaterra tinha virado nossa tradição, bem como as festas de confraternização dos nossos amigos; fazíamos uma rodada delas em LA antes de irmos passar uma semana antes do Natal em Londres para fazer a mesma coisa lá e depois pegar a estrada para Holmes Chapel para ficar com a minha família.

O Ano Novo vinha variando, algumas vezes passava com a senhora G, digo, Elinor; às vezes viajávamos para algum lugar no mundo ou ela me acompanhava quando eu estava trabalhando, outras vezes continuávamos na Inglaterra e no ano passado fomos para o Brasil.

— Então... sopa de legumes?

— Não, eu quero frango. Alguma carne, sustância.

Suspirei outra vez.

— E eu achava que você fosse minha amiga.

Ela tentou outro tapa, do qual desviei. Ainda assim, senti sua mão ventilando um ar muito próximo do meu braço. Ufa, essa passou perto.

— Eu sou sua namorada!

— Pior ainda! Uma falta de lealdade dessas. — Neguei com a cabeça, uma decepção exagerada na minha voz.

— Eu sempre como comida vegetariana por sua causa. Mas hoje eu estou doente, qual é!

— Ah, e lá vem a chantagem! — Contorci os lábios para não rir. — Você é inacreditável.

piscava os olhos em um movimento rápido e exagerado. O que quer que ela estivesse fazendo, não estava funcionando. Exceto que ela não precisava fazer nada, o simples fato de ela estar parada aqui na minha frente já era sua mágica.

Fechei os olhos antes de ceder.

— Ok.

Ouvi as palmas curtas e ritmadas seguidas de alguns pulinhos e abri os olhos. Quem olharia para essa mulher na minha frente e imaginaria que é a mesma que grita ordens em meio a palavrões para um bando de peões de meia idade? E, pior, é obedecida. É respeitada. É admirada.

— Mas, antes, bem que você poderia passar uma máscara dessa no meu rosto. — Coloquei as mãos nas bochechas. — Acho que estou precisando.

— O quê? Do que você está falando? Seu rosto é perfeito! — Ela passou o indicador delicadamente pela minha testa e nariz. Segurei sua mão e dei um beijo na palma. — Mas se bem que você está com umas rugas aqui e aqui. — Completou apertando perto dos meus olhos.

— Eu te odeio. — Meu tom saiu esganiçado pelo riso.

— Vamos no banheiro. — Ela estendeu uma das mãos e eu peguei. — Eu vou tirar a minha e passar um creme antirrugas em você. — Acrescentou com um riso maldoso.

Mostrei o dedo do meio e ela gargalhou mais ainda.

No banheiro, ela me sentou no vaso sanitário e observei enquanto ela enxaguava o próprio rosto. Os mesmos brincos delicados de sempre adornavam suas orelhas. Seus cabelos, que nunca permaneciam muito tempo do mesmo jeito, tinham crescido até o meio das costas e agora estavam pretos como obsidianas. Ela não tinha nenhum esmalte nas unhas, esteve muito doente para se ocupar com isso. No entanto, os pés descalços estavam pintados de branco translúcido.

Após secar o rosto, ela passou um hidrante e se aproximou. Com um pincel, aplicou em mim algo diferente do que ela tinha usado em si.

Permaneci sentado quando tudo terminou e ela voltou para a pia para lavar o pincel. Eu não me importei em me olhar no espelho, agradável era o momento de apenas observá-la executar aquela tarefa tão simples e cotidiana. O silêncio entre nós preenchido por uma melodia — minha — que ela murmurava.

Eu sentia muita paz em olhar para alguém como e saber que ela era tão minha quanto eu era dela. Eu era feliz com a escolha que fiz. E mais feliz ainda por ter sido escolhido. Um pouco assustador constatar que eu levaria um tiro por ela, mas sem arrependimentos. Se alguém invadisse aqui, agora, eu entraria na frente dela sem pensar em mais nada além do fato de que preferia morrer do que viver sem ela. Eu não escrevi “I walk through fire for you” levianamente. O mais poderoso disso tudo era que ela faria o mesmo por mim. Era uma reciprocidade inigualável, algo que nunca atingi com ninguém.

E depois de passar por tantas relações em que eu não recebi metade do que entreguei, ter alguém que estava disposta a passar uma gosma esquisita em mim numa quinta-feira despretensiosa era o normal que eu sempre busquei — e achei que nunca fosse encontrar nessa turbulência que é viver no centro dos holofotes.

Ao longe, um som que não vinha do cantarolar de foi aumentando de modo gradativo até se tornar reconhecível. Era uma música minha. Uma que, de fato, era na minha voz.

— O que é isso? — Perguntei franzindo a testa.

— Meu telefone corporativo. — Suspirou. — Eu te falei que não parou de tocar um minuto. — Ela respondeu enquanto já saía do quarto.

— Mas tocando Kiwi? — Questionei em um tom descrente e intrigado.

— Sim. É o meu toque de chamadas. — Seu grito voltou de modo muito mais casual do que eu estava levando.

Outro segundo depois e a música cessou no outro cômodo. Eu conseguia ouvi-la falar, mas não distingui o que dizia.

Fui atrás dela. De volta na mesa de jantar, havia levantado a tampa do notebook e falava sobre coisas que eu não entendia.

Deixei que ela resolvesse o que quer que fosse e fui para a cozinha. Abri a geladeira procurando pelos ingredientes da sopa, mas eu era facilmente distraído por sua presença hipnotizante. Através da meia parede que servia de bancada e dividia a cozinha da sala de jantar conjugada com a sala de estar, eu fitei conversando em um inglês claro, objetivo e com palavras que eu não ouvia saírem de sua boca com frequência e que nem eu mesmo usaria. Tantos anos antes, ela tinha razão, eu apenas não a conhecia o suficiente para não perceber seu sotaque; era sutil e se destacava mais em certas palavras, mas, sem dúvidas, estava lá. Agora, eu já conseguia fechar os olhos e ouvir perfeitamente como ela diria certas coisas.

Sua imagem dando pulos e batendo palmas de animação se reproduziu outra vez na minha cabeça. Como alguém poderia viver tão bem em puro dualismo: ser firme e espontânea, imponente e empática, forte e sensível, confiante e cautelosa...

Ali, diante da sua persona profissional, eu não via mais a sarcástica de humor ácido; a língua continuava afiada, sim, e seu senso desafiador no ponto, mas eu enxergava também alguém séria, confiável, destemida e capaz de lutar até o fim pelos seus ideais.

Não era a primeira vez que eu via esse seu outro lado, mas não era frequente o bastante para eu ter me acostumado e, nessas poucas vezes, eu sempre quis me transformar em uma mosca por um dia e segui-la até o trabalho. Fico me perguntando como seria seu escritório e o que ela faria nesse dia. Esses pensamentos me admiravam e me deixavam inconformado com uma única coisa: Como não aceitei que me apaixonasse por ela antes? Ela sempre brilhou assim, e era como se eu tivesse passado um longo tempo de olhos fechados.

Eu me arrependia dos meses que perdi, que desperdicei perseguindo outras pessoas, outras sensações, quando poderíamos estar verdadeiramente juntos desde o começo. Desde, ouso dizer, o Píer de Santa Mônica. Se eu só tivesse tomado coragem de enviar outro e-mail.

Sequer percebi quando finalizou a chamada, mas ela veio e se sentou no banco da ponta da bancada.

— Você é tão linda. — Passei uma das mãos pela sua cabeça, desmanchando seu coque de ninho de ratos sem querer.

— Agora eu já tirei o creme da cara, não tem por que ficar debochando. — Ela respondeu com aquela dualidade no ar, um misto de sarcasmo e divertimento.

— Eu te amo. — Deixei escapar como um bobo.

— Eu sei. — A resposta não soou atrevida como eu esperava, ela disse apenas em reconhecimento, como se afirmasse que acreditava na minha palavra, que sentia o meu sentimento.

— Senti sua falta, .

— Você me viu ontem, Harold.

— Eu sei. — Eu sorri de lado, quase como se me sentisse vingado por ter conseguido reproduzir sua fala anterior e mesmo que não tivessem o mesmo peso naquela situação. — Mas eu não te vi por três meses seguidos.

— Para de ser dramático. — Ela revirou os olhos de novo, estava até demorando. — Eu devo ter ido em uns cinco shows dessa última parte da turnê.

— Você acha que cinco shows é muito?

— Para estar com você? Nunca.

Ah, ela sabia como me desarmar.

— Eu ia te cobrar sobre os convites que te fiz para ir nos próximos shows, mas dessa vez vou fingir que você não está me enrolando.

— Eu preciso ver se consigo esse monte de folgas, eu não consigo ir e voltar de um dia para o outro igual você faz, Harry. É muito cansativo. Você se lembra daquele dia em que eu fui no show de Nashville? Eu trabalhei igual uma ameba na semana seguinte. E era Nashville!

Eu fiz questão que ela fosse aos shows em Nashville porque eu tinha uma sessão de gravação em um dos meus estúdios favoritos da América um dia antes das duas noites que eu tocaria na cidade, e precisava ver as músicas que escrevi enquanto eu estava longe em turnê. Naquela época, especialmente no começo da turnê, ao fim de cada show eu ia noite adentro conversando com ela pelo telefone. Para ela, muitas vezes ainda era cedo por causa do fuso horário, mas, para mim, eram conversas tarde da noite — uma versão adaptada às nossas saídas de carro.

— Você sabe que eu entendo. — Abaixei o olhar para a tábua em que eu cortava alguns legumes. — É só que eu queria muito que você fosse.

— Eu já falei: Vou nos dois de Londres, isso vai nos dar quatro dias juntos. Depois para o de Manchester, mas Manchester eu só vou porque quero ver sua mãe.

— Você tem que ir para me ver, sua puxa saco. Já vai ver minha mãe no Natal!

— Depois eu voo com você para a Irlanda. Esse só por causa...

— Do Niall, eu sei.

— É. — Ela riu mostrando todos os dentes da boca, descarada.

— Você sabe que ele não vai estar lá, não é?

— É só você convidar. — Eu mal tive tempo de negar antes que ela começasse a implorar. — Por favor, H? Eu quero muito vê-lo. Pensa pelo lado positivo, não é o Louis que estou pedindo para você convidar. Não que eu não quisesse. — Sua voz diminuiu gradativamente no final da frase.

— Isso porque você sabe a confusão que daria se ele fosse visto em um dos meus shows. — Ela riu em concordância. — Mas tudo bem, eu peço para o Niall aparecer por lá.

— Obrigada! Você é o melhor! — Ela se debruçou pela bancada e apertou meu pescoço numa tentativa de abraço.

— Você precisa me confirmar se volta para LA ou me espera para irmos direto para Londres.

— Para te esperar eu teria que ir aos shows da Escócia também.

— Uhum. — Desenhei um sorriso aos poucos, meu olhar dançando entre ela e o que eu cozinhava.

— Eu saquei seu plano, ok? Eu não posso prometer mais do que quatro shows.

Desisti de tentar persuadi-la naquele momento. Além disso, por mais que amasse fazer shows, eu não exatamente queria falar sobre isso agora.

Eu só não pensei direito antes de trocar o assunto.

— E desde quando seu telefone chama com Kiwi?

— Desde que eu tenho aquele telefone, seu debochado. — Ela rebateu antes que eu fechasse a boca.

— E desde quando você tem esse telefone?

— Desde que me mudei para LA. — Deu de ombros.

— Sério? Eu nunca tinha percebido. — Eu era assim tão desligado? Não é possível que o celular dela nunca tocou perto de mim antes.

— Eu não me lembro de alguém já ter me ligado do trabalho com você comigo. — pensou por um momento e eu me senti menos culpado por não notar esse detalhe antes. — O que chega a ser engraçado. Meu telefone toca todos os dias, o tempo todo. E nunca com você por perto.

— Eu acho que é verdade. Mas meu lado narcisista gostou de saber que quando você está trabalhando e alguém te liga, é minha voz que você ouve primeiro, é em mim que você pensa. — Eu pisquei e virei as costas para a bancada, indo para a boca do fogão.

— Sabe o que o meu lado narcisista gostaria de saber? — retrucou, uma nota de petulância crescendo em sua voz.

— Você tem um lado narcisista? — Impus antes que ela pudesse continuar.

Eu sabia o que viria; a esse ponto, a pergunta de era previsível. Eu já começava a me arrepender de ter tocado no assunto. Como eu fugiria disso agora?

— Não tão grande quanto o seu, mas sim.

— Hum? — Murmurei para que ela continuasse.

— Meu lado narcisista gostaria de saber... como você escreveu Kiwi.

— Eu sabia! Eu sabia que em algum ponto você levaria essa conversa para o significado de alguma das minhas músicas.

— É que você nunca me conta sobre Kiwi, Harry, por favor.

sempre fez isso, desde que nos conhecemos. E, de alguma forma, desde que nos conhecemos, ela sempre teve uma facilidade absurda de arrancar tudo de mim: meus receios, minhas inseguranças, minhas histórias... Nada ficava guardado dentro de mim desde que eu tive seu colo acolhedor e seus olhos livres de julgamento ao meu lado.

Eu via essa obsessão pelo significado das minhas músicas como uma espécie de realização pessoal dela. Seu deslumbre palpável a cada mínimo detalhe que eu revelava. Nada era pequeno ou insignificante para um coração de fã como o dela.

Quando nos tornamos amigos, eu tinha acabado de passar por uma traição no meu círculo de relacionamentos — uma pessoa que eu havia me envolvido havia se aproveitado de informações novas que eu compartilhava com ela e estava as vendendo para a mídia — o que me deixou traumatizado por muitos meses, custando muito de mim para que voltasse a me abrir sobre essa parte com alguém. Aos poucos, me mostrou perspectivas diferentes de coisas que eu já conhecia e foi ótimo ter alguém de fora para confiar assim de novo e para compartilhar minhas expectativas e ambições profissionais.

Muitas vezes escrever músicas era mais um processo chato de encaixar os elementos certos na letra do que um impulso explosivo de criatividade e talento. Na maior parte do tempo era frustrante e me levava à loucura. Por isso, as únicas pessoas que me ouviam falar sobre o álbum, sobre essa parte técnica de construção e processo de produção, eram somente as que compunham comigo. Ter alguém que não entendia nada de música ficando feliz e dividindo a minha animação era tudo o que eu queria e nunca soube que precisava. Tirava uma baita pressão dos ombros. Com , nunca foi sobre o quão excelente eu poderia ser ou o quão alto eu deveria alcançar.

Eu não tinha mais medo de enviar trechos de músicas em processo de criação, áudios com segundos de gravação ou alguma informação que estragaria meses de negociação se vazasse. Ainda assim, ninguém pode culpar um cara por querer manter um pouco do mistério, não é?

O que eu gostava sobre quando compartilhava minhas músicas embrionárias com era que ela não tinha uma referência de como elas iam ficar e, mesmo depois de tanto tempo, ela reagia com a mesma animação da primeira vez em que mostrei algo. Ela não tentava fingir ser legal, como se a situação fosse banal — ainda que fosse para mim —, nada do que eu fazia nunca recebeu sua indiferença.

No entanto, uma música nova era diferente de reviver momentos que resultaram em músicas que já estavam no mundo há vários anos. Eu não queria que ela soubesse que eu fui de uma certa forma, que eu não estive no meu melhor. Talvez pegar uma música que seja especial para ela e contar o que realmente aconteceu estrague tudo.

— Babe, você sabe que eu não quero interferir no significado que tem para você.

— Que significado, Harry? Acho que não existe ninguém que entendeu alguma coisa dessa música. Nada faz sentido. — A resposta desesperada e apelativa me fez gargalhar.

— Por isso é aberto a interpretações, você pode imaginar o que quiser.

— Você me respeita, Harry Styles. Eu não sou esses entrevistadores que você enrola. — Cruzou os braços.

— Você fica ainda mais linda emburrada. — Contornei a bancada e dei um selinho no bico que ela fazia.

— E você... você... — Gaguejou. — Você é um clichê.

Eu gargalhei de novo.

— Você também é. Só não admite.

— Que seja. Vai me contar ou não?

— Não.

— Harry!

Gemi com preguiça.

— Já te aviso que não me responsabilizo por decepções.

— Eu não estou esperando nada. Desembucha. E seja detalhista, por favor.

Além de tudo, ela era exigente.

— Ok, vamos lá!



Era início de 2016, logo após o hiato da banda, eu tinha me permitido ficar semanas apenas dormindo, comendo e assistindo televisão. Eu passei uma temporada na Inglaterra depois de muito tempo e minha mãe estava radiante por eu estar em casa. Depois de ficar sem fazer nada, comecei a sentir muita vontade de estar de volta, escrever músicas e cantar. Eu já tinha Two Ghosts porque eu havia escrito em 2014 para o último álbum da banda, mas no fim, não tive coragem de incluí-la. E ainda bem, porque essa música foi a minha desculpa para viajar para Los Angeles, porque eu tinha por onde começar. Funcionou como um pontapé inicial.

Eu decidi as pessoas com quem queria trabalhar e logo nos primeiros dias em que nos reunimos, eu escrevi um monte de músicas ruins. O Ryan sempre me incentivava e era verdadeiro comigo, então quando não estava bom, ele dizia. E tinha o Mitch, ele havia acabado de começar, mas já era muito talentoso, de alguma forma me fez me sentir infectado por tanto talento. Não só dele, mas de todos ali. Mas Mitch e eu criamos uma conexão instantânea e ele logo começou a me ajudar nas composições.

Ir para a Jamaica não tinha sequer virado possibilidade ainda, então estávamos vagando entre estúdios na Califórnia. Alguns dias fomos para o Enormous Studios em Venice e eu me lembro exatamente como surgiu a ideia do refrão, Alex estava com uma namorada nova e o celular dele não parava de apitar com mensagens. Isso gerou muitas piadinhas, todo mundo pegava no pé dele, na maioria das vezes nem mesmo ele ouvia o telefone tocar por causa das conversas — das gravações, eu tentando tocar piano de um lado, Mitch tocando coisas aleatórias na bateria, Ryan no baixo... A confusão de estar em estúdio sem muita coisa pronta. Ainda estávamos criando, então tudo era válido.

Em um desses dias, Tyler tinha se sentado na mesa de som enquanto Alex gravava um solo avulso de guitarra. Alex tinha deixado o celular na mesa de som, assim que parou de tocar, o celular apitou com uma mensagem, Tyler olhou para a tela e gritou “Oh, não! Você tem problemas.”, e todo mundo ouviu. Começamos as brincadeiras imediatamente. Eu não sei se ele leu o que estava escrito, mas Alex ficou sério e paramos de brincar. Eu perguntei se estava tudo bem, ele disse que sim e eventualmente nos contou o conteúdo da mensagem, se eu não me engano, a menstruação da namorada tinha atrasado ou alguma coisa do tipo. No fim, ela não estava grávida. Mas enquanto todos estávamos sérios, Jeff Bhasker soltou “Ela vai ter um bebê seu”, ele sempre foi o mais palhaço entre nós. Era brincadeira, mas Alex ficou bravo por um momento e gritou “Não é da sua conta”.

Quando tudo virou só um mal-entendido, se tornou também uma piada interna nossa. Alex dizia “Isso me deixou louco por dias, eu quase não dormi, mas se ela me dissesse ‘eu vou ter o seu bebê’ eu estava pronto para entrar com tudo junto.” Acho que, no fim, ele até ficou um pouco decepcionado.

Depois disso, sempre andávamos pelo estúdio gritando coisas como “não é da sua conta”. E então, um dia, eu comentei com Ryan como seria engraçado se escrevêssemos uma música que dissesse
“I’m having your baby, it’s none of your business”.

Em vez de ficar por isso mesmo, eu fui para casa nesse dia e escrevi a letra. No outro dia, todos gostaram tanto que Alex não pôde acreditar que eu tinha conseguido transformar o que ele tinha dito numa música. Não tínhamos um nome para ela, então por algum motivo que não faço ideia começamos a chamá-la de “kiwi”, mesmo depois de tudo finalizado, resolvemos manter com esse nome.



— Essa é a história.

— Antes das perguntas, aí vai um comentário importante: Eu sempre imagino você escrevendo Kiwi de long hair. Eu queria muito estar lá nessa época, eu sei que você decidiu não personificar o seu cabelo, mas gostaria de dizer que eu faço isso por você.

Comecei a rir, esse era o típico comentário que eu esperaria do seu lado fã.

— Sabe, eu acho que não tinha cortado mesmo o cabelo ainda. Mas no mês seguinte a isso, eu viajei para começar a gravar Dunkirk, então eu não tinha cabelos nem para proteger minhas orelhas do frio daquele lugar. Dessa vez quem gargalhou foi ela.

— Você já pensou em deixar seu cabelo crescer daquele jeito de novo?

— Um dia, quem sabe?

— Você já viu alguma teoria na internet sobre esse verso, especificamente? — Neguei com a cabeça. — Claro que não viu. Eu adoraria que aquelas pessoas conspiracionistas soubessem dessa história. Que isso não tem nem mesmo a ver com você, sua vida pessoal.

— Eu disse. Aposto que não é nem de longe tão obscuro quanto você pensou.

— Eu não pensei nada. — Ela negou muito rápido. — Mas sabe de uma coisa? Essa história só explica o refrão, a música diz muito mais que isso.

Eu não esperava menos sagacidade da parte dela.

— Bem, você está certa. O resto da música escrevi em pedaços de momentos aleatórios.

Ela ficou me olhando por um tempo. Acho que esperava a próxima história, respirei fundo e comecei a me lembrar.

— Era 2015, não havíamos anunciado o hiato da banda ainda, mas já tínhamos tudo pronto, Zayn já tinha saído...

— Aí! Nem me lembra do Zayn que eu fico triste. — me interrompeu e eu dei uma risada.

— Acho que tínhamos acabado de gravar o álbum, por isso estávamos em Nova York, cumprindo a agenda, fazendo entrevistas para divulgar a data de lançamento, o trabalho normal.

— Vocês tiveram que regravar as músicas do Made In the A.M, não? — me interrompeu de novo.

— O quê?

— Depois que o Zayn saiu... Quero dizer, ele saiu em março, e o álbum ficou pronto mais ou menos em julho, certo? — Concordei com a cabeça, mesmo que eu não fizesse mais ideia. Se ela estava dizendo, deveria ser o certo. — Então pela lógica vocês já estavam gravando antes de março, o Zayn deve ter gravado algo que vocês precisaram descartar.

— Uh... Sim?!

— Hum... Ok. Continua.

— É sério que você me interrompeu para falar isso?

— Uh... Sim?! — Imitou a minha fala, mas sua confusão não era tão genuína.

— Você é inacreditável. — Revirei os olhos. — Eu estava quase dormindo e era sexta-feira à noite...

— Então isso aconteceu antes da ideia do refrão?

Soltei a colher dentro da panela e respirei fundo.

— Quase um ano antes. — Eu queria perguntar se ela ia parar de me interromper.

— Entendi. Na verdade, estou tentando entender por quanto tempo você guardou seja lá o que aconteceu antes de transformar em música.

— Acha relevante?

— Claro!

Eu apenas fechei os olhos e balancei a cabeça.



Me lembro de termos tido dias cheios, e em uma sexta-feira os meninos decidiram que queriam ir à alguma festa, fomos parar nessa boate muito exclusiva em Manhattan, num lounge privado.

O começo da noite foi muito do mesmo: música alta, gente bonita, bebidas nos sendo servidas em abundância... Não importa o quão cara ou exclusiva seja uma boate, ela ainda tem os mesmos aspectos de qualquer outra. Eu já estava cansado, nada daquilo me impressionava mais.

Todos tinham dado uma fugida para a pista e eu tinha ficado na mesa sozinho, meio desligado sobre o que estava acontecendo à minha volta. Eu tinha drenado o resto da minha bebida e estava para chamar o garçom para me trazer outra. Quando eu levantei a cabeça, cruzei o olhar com a mesa da frente e teve aquele momento esquisito em que todos desviaram o olhar rapidamente para fingir que não estavam me encarando. Exceto ela.

Ela continuou me encarando. Todos os amigos na mesa fingiram estar conversando entre si ou prestando atenção em alguma outra coisa, mas ela não desviou o olhar mesmo quando foi pega no flagra.

Naturalmente, como um famoso muito bem treinado, eu sorri como se o reconhecimento não me incomodasse e desviei o olhar, procurando por alguém para me trazer outra bebida.

Enquanto pensava se eu deveria pedir uma água ou um energético para aguentar a noite, a mulher que tinha me encarado se aproximou sem que eu percebesse.

— Sozinho? — Ela espalmou a mão sobre a mesa, tinha unhas ovais pintadas de preto.

Subi o olhar pelos longos dedos e pelo braço até chegar ao seu rosto. Primeiro, eu acenei.

— Sim, meus amigos estão na pista.

Sem pedir licença, ela puxou a cadeira ao lado da minha e se sentou graciosamente. Na outra mão, ela tinha um copo de whiskey. Eu senti o olhar dos seus amigos da outra mesa; observavam cada um dos movimentos da amiga.

— Você não é de Nova York.

Neguei com a cabeça, um sorriso se desenhando nos meus lábios. Achei que fosse óbvio.

— Não.

— E o que você faz em Nova York? Trabalho ou lazer?

— Trabalho.

— Você não parece alguém que vem para Nova York para trabalho.

Ela checou as minhas roupas com um olhar de julgamento: camisa de flanela, skinny jeans pretas e botas.

— Bem, não agora.

O casaco de pele que ela usava parecia uma escolha muito quente para o ambiente enclausurado da boate, mas eu não disse nada.

Ainda não tinha conseguido decifrar se ela estava tirando uma com a minha cara ou se ela não dava a mínima para quem eu era. Ela aparentava ser um pouco mais velha e, pelas roupas, One Direction não parecia algo que ela escutaria, então tinha a possibilidade de ela realmente não me conhecer.

O que eu sabia era que ela não assumiria que eu estava interessado em conversar desde que eu a deixasse fazer todas as perguntas.

No entanto, eu cedi muito fácil.

— E você? É de Nova York, então?! — Não foi bem uma pergunta, mas o suficiente.

— Não.

— De onde você é? — Rebati sem pensar muito bem. Fui pego de surpresa pelo não, e não tinha percebido que estava envolvido pelo mistério que ela trouxe ao se sentar ali.

Assim, fui pego mais de surpresa ainda quando ela empurrou a cadeira para trás e se levantou sem dizer nada. Ela se afastou sem olhar para trás.

Eu diria que de qualquer lugar que ela fosse, só tinha gente maluca lá.

Meu telefone apitou. Um dos meninos me enviou uma mensagem perguntando se eu iria descer.

“Hoje não, amigos”, eu pensei e coloquei o celular com a tela para baixo em cima da mesa sem nem desbloqueá-lo.

Não tinha nada acontecendo, eu só estava cansado. Não queira estar ali. Por que eu aceitei ir? Estava começando a achar que teria sido melhor ficar sozinho no hotel.

— Jesus, mulher! Você é sempre assim sorrateira? — Exclamei com uma mão no peito quando ela voltou a se sentar do meu lado e, outra vez, eu não a vi se aproximar.

— Só quando o alvo é um cara que está no mundo da lua. — Ela se concentrou desinteressadamente em depositar um maço de Newport sobre a mesa. Continuou segurando o copo nas mãos.

“O alvo”, ela disse. Era isso que eu era para ela naquela noite.

— O que você está bebendo? — Eu perguntei.

— Rum. Carta ouro.

Observei outra vez o Newport. Ninguém que pode bancar um drink de 60 dólares num lugar como esse fumaria um cigarro tão barato. Ninguém que tomaria um drink forte como esse fumaria um cigarro mentolado.

Ela estava vestida como alguém que tinha dinheiro para estar ali, então provavelmente ela apenas andava com as pessoas certas para garantir sua entrada.

Não que nada disso fosse relevante para mim, mas era intrigante.

O modo que ela se reclinava no encosto da cadeira que indicava que ela fazia pouco caso de tudo aquilo — do lounge exclusivo onde ela desfrutava do rum caro, do cigarro para não escolher um melhor, dos olhares dos amigos queimando às suas costas… de mim ou do que eu pensaria dela se sentando na minha mesa sem ser convidada.

Tudo parecia insignificante para ela.

Esse mundo era comum para mim, eu era um veterano ali. Mas de alguma forma me senti como um novato, sem saber quais cartas deveria jogar. Como eu faria para ser algo interessante no meio de tanta coisa ordinária? — Achei que fosse whiskey. Mas isso explica a cor dourada. — Apontei para o copo.

— Sempre acham. — Ela piscou.

Fiquei sem saber dizer se foi irônico ou se ela estava tentando ser sedutora. De qualquer forma, estava começando a me sentir um pouco idiota como o jogo tinha virado tão rapidamente — agora eu fazia as perguntas porque queria respostas.

— Quer experimentar? — Ela perguntou depois do longo silêncio e estendeu o copo para mim. Com naturalidade e espontaneidade, nas quais eu jamais teria ousado agir. Tive inveja. Ela parecia livre demais. E eu preso demais. Preso não; contido. Amedrontado.

Em um primeiro momento neguei com a cabeça, porque eu tinha medo de estragar tudo. Sempre tive.

O anúncio do hiato da banda seria no mês seguinte.

Não havia mais nada para ser estragado. Tudo tinha acabado. Quem se importaria com mais uma manchete?

— Claro, por que não?

Eu já tinha tomado rum, mas isso também não importava mais.

Ouvi histórias e contei histórias. Sem me preocupar se poderiam estar na mídia no dia seguinte. E eu me preocupava muito com isso naquela época e me preocupei muito pouco depois e, talvez, esse seja o motivo pelo qual Sophie soube de tudo: Porque eu fui de um extremo a outro.

Eu gostei de como aquela estranha me encarou o tempo todo, sem desviar. Com uma intensidade que beirava o insuportável, como se não tivesse mais ninguém na boate além de nós dois.



— Como você, . — Interrompi a história.

— Como eu o quê?

— Você tem esse ar de “estou prestando atenção”, quando conversa comigo.

— Como você! — Rebateu.

— Como eu. — Concordei, porque eu sabia que eu era assim, mesmo.

Sabia que eu sempre olhava as pessoas nos olhos enquanto estava conversando com elas. E eu gostava de encontrar pessoas que faziam o mesmo. Assim como aquela mulher. Assim como .

— Não é como se você me julgasse ou sei lá, você só sustenta meu olhar. Como se estivesse tão interessada pela minha companhia como eu sempre estou pela sua. Você sempre fez isso, mesmo quando o momento foi o mais difícil.

Eu me lembrei de quando ela precisou admitir que sabia quem eu era naquele camarim da minha primeira turnê solo. Quando ela precisou admitir que ainda me amava mesmo que não quisesse mais ficar comigo depois que voltou do Brasil pela primeira vez, ou quando precisou ouvir tudo de errado que eu tinha pra dizer sobre isso.

— Mesmo que o momento seja intimidador, o seu olhar sempre é mais… destemido.

— Meu olhar te intimidava?

— Me intimida. É uma boa competição. Para saber quem transmite mais intensidade.

gargalhou, sua risada tinha um tom de descrença. Como se tudo o que eu disse fosse uma piada para a agradar.



No entanto, eu comecei a ficar incomodado, porque nenhum barulho a distraia e até mesmo eu desviava o olhar para o bar, ou para as pessoas passando ao lado da mesa. Não parecia muito natural.

A mulher, de quem eu ainda não sabia o nome, tinha um tipo diferente de encarar, parecia mais obcecado, focado. Eu me lembrei, eu era “o alvo”.

— Você está me encarando. — Eu disse quando a intensidade de seu olhar se tornou, de fato, insuportável.

— Eu gosto de você. — Ela sorriu com aquele mesmo ar de quem não faz caso de nada. Seu tom era factual, observatório, como quem diz que não tinha cebolas no supermercado.

— Você nem me conhece. — Retruquei na defensiva porque ela não estava falando que gostava do Harry Styles cantor da One Direction.

— Bom, estou te conhecendo agora. — Ela sorriu de novo, ainda indiferente.

Minha mente fez soar todos os alarmes de que aquilo não acabaria bem.

— Por que não pede uma dose de rum para você… se soltar um pouco?

— Acha que preciso me soltar?

— Não sei. Você me diz.

Eu lhe dei um sorriso.

Quer saber? É o que eu faria. Assim seu olhar não incomodaria tanto. Estiquei o braço para cima, chamando o garçom.

Demorou algumas doses para que eu percebesse que seus amigos na outra mesa não estava me encarando, mas, sim, a ela. E eu começava a pensar que “o alvo” tinha a ver com algum tipo de aposta mais do que com a escolha da noite.

Com ser a escolha eu estava ok, as pessoas tinham dessas coisas. Eu mesmo já tinha chegado a lugares, batido o olho em alguém e decidido que só sairia de lá com essa pessoa. Mas, agora, não sabia como me sentia com ter sido apostado. Eu nunca tinha chegado em algum amigo e apostado que sairia de lá com aquela pessoa. Parecia uma coisa muito zoada de se fazer.

No decorrer da noite, isso deixou de ser um questionamento moral.

— Você tem um pescoço bonito. — Eu disse quando ela se inclinou contra mim para gargalhar.

Eu estava no meu… quarto rum?

— Ah é?

— E um rosto bonito. E esse colar é…

— É uma choker.

— Certo. Essa choker é… bonita.

— Uau. Grandes palavras.

— Desculpe, eu estou um pouco bêbado para vir com algo mais complexo do que “bonito”.

— Tudo bem.

— Você curte BDSM e essas coisas?

— Claro, por que não?

Soou como se fosse algo que ela toparia fazer como quem topa experimentar uma comida que nunca comeu.

— É que essa… choker parece algo que seria usado… Tem esse… — Sinalizei com o dedo. — anel que parece para encaixar uma correia ou amarrar uma corda.

Ela deu outra gargalhada.

— Esse não é um acessório sexual, não posso te garantir que não possa ser usado para esse fim.

Fiquei com a impressão de que ela estava pensando que eu queria usar o colar para isso, mas eu só fiquei curioso. Melhor mudar de assunto.

— O que você gosta de fazer…

— Na cama? — Ela me interrompeu.

— Uou! — Eu levantei os dois braços na minha frente e com as palmas contra ela. — Não era isso que eu ia dizer.

Seria uma pergunta muito para frente, mesmo com o meu nível baixo de sobriedade.

— Parecia o rumo natural da pergunta dado a última.

— Desculpe. Eu não… desculpe. — Desisti de me justificar. — Eu quis dizer “o que você gosta de fazer quando não está frequentando boates em Nova York?”

— Eu gosto de ler.

— Por essa eu não esperava.

— Não pareço o tipo intelectual?

— Não, não é isso. Você só não parece o tipo de pessoa que passaria horas em silêncio concentrada em apenas uma coisa.

— Bem, eu sou.

— Ok. Legal.

Meu celular vibrou outra vez, foi a primeira coisa que captou sua atenção naquela noite.

— Eu vou embora. — Ela disse. O feitiço de repente quebrado pela hora.

— Os seus amigos estão indo com você?

— Provavelmente não.

— E como você vai? Precisa que eu chame um táxi para você?

— Eu tenho um lugar há algumas quadras daqui. Vou andando.

— Posso te acompanhar? Parece perigoso que você vá sozinha.

Ela acenou com a cabeça. Em silêncio, recolhemos nossas coisas e saímos pelos fundos.

Assim que a porta bateu atrás de nós, ela tinha um cigarro na boca.

— Hum? — Levou o maço na minha direção enquanto tragava.

— Não. Obrigado. — Coloquei meu casaco e pus as mãos nos bolsos.

Tinha chovido e as ruas ainda estavam molhadas.

— Em qual direção?

— Para lá! — Apontou para a esquerda.

Caminhamos alguns metros em silêncio. Na luz artificial daquela cidade que nunca dormia, ela parecia mais bonita ainda.

— Por que você não quis ir embora com seus amigos?

— Um deles está tentando dormir comigo a noite toda e eu estou sem paciência para ele.

— Então eu acho que… ele não é seu amigo.

— Talvez não.

— E não parece que você se importa.

— Não. Eles são meus amigos, não são meus amigos… Não faz diferença.

Eu não respondi nada para aquilo.

Passamos por várias ruas e todas pareciam iguais. Conferi que meu celular no bolso tinha bateria, porque eu precisaria de GPS ou ligar para alguém para retornar. Isso se algum dos seguranças não desse minha falta antes e começassem a me ligar desesperadamente.

— Bem, é aqui. — Ela parou na frente de um prédio antigo. Uma porta minúscula era a entrada de acesso ao local.

Meu olhar subiu pela frente do prédio até enxergar o final. Quando abaixei e voltei a olhar para ela, dei um passo para frente. Ela não recuou. Peguei uma de suas mãos. Ela não teria me deixado acompanhá-la se não fosse para eu beijá-la.

Então a beijei. Ela correspondeu.

Eu pisquei e já a estava pressionando contra a porta…



— Ok, Harry Styles. — me interrompeu. — Muitos detalhes.

Sorri de lado.

— Suficiente para estragar a magia da música para você?

— Estou falando dos seus detalhes grotescos. Tudo bem você contar sobre como ficar com outras pessoas te inspirou a escrever músicas. Honestamente, eu meio que esperava que tivesse alguma coisa a ver com isso. Mas eu não preciso saber como aconteceu, não é necessário. Acho que peguei a ideia já.

— Então tudo certo com o fato de eu ter transado com outras pessoas? — Coloquei a mão no peito, como se isso fosse uma novidade para mim.

— Engraçadinho. Eu tive um passado também, sabia? Eu posso te pagar na mesma moeda.

— Não, obrigado. Eu não estou pedindo para saber de nada, me poupe de todas as informações. Ela sorriu com a resposta, pois sabia que fosse feita a circunstância, ela poderia me contar tudo. Como sempre fizemos.

Não dissemos nada por um minuto ou dois.

— Fico pensando como você vai contar sobre mim para a próxima. — soltou de repente.

— A próxima?

encolheu os ombros.

— Desde quando eu te conheço, ?

— Desde 2018.

— Então são sei lá quantos anos, muitos, que eu sou seu e você ainda acha que eu vou acordar um dia e não te querer mais? O que falta? Você está me pedindo para te pedir em casamento?

— Bobo! — Ela negou com a cabeça ao ouvir o nosso jargão e olhou para a vasilha com a sopa que coloquei à sua frente.

— É sério. Você quer que eu te peça em casamento? Aqui e agora?

— Bem, você sabe que eu vou ter que recusar porque…

— Touché, . — Revirei os olhos com a sua rapidez em encaixar a resposta. — Felizmente, essa não cola mais desde que você aceitou ser minha namorada.

Ela encolheu os ombros outra vez.

— Vamos aproveitar que seu computador está ali na mesa. — Eu disse enquanto ia buscá-lo. — Pesquise meu nome “e namorada” e me diga o que encontra. — Coloquei a máquina ao lado da vasilha sobre a bancada.

digitou rapidamente e apertou o enter.

— Então, o que aparece? — Insisti quando ela não disse nada após um segundo.

— Fotos nossas; eu com você em algum evento, a gente caminhando aqui no bairro, manchetes sobre entrevistas suas falando sobre alguma coisa que fizemos juntos nas suas últimas férias...

— E tem algo assim com mais alguém?

Ela negou em silêncio.

— E você acha que vai ter “a próxima”?

Ela não disse nada. O sabor da vitória dançava no céu da minha boca. Não era fácil deixar essa mulher sem resposta.

, nesse ponto, nós só temos duas opções: ou você casa comigo ou vai ser o pior término da minha vida.

— Você tem razão. Isso foi uma coisa estúpida a se dizer.

— Você ficou com ciúmes… — Acusei, deixando um sorriso de lado desenhar minha expressão.

— Claro que não!

— …E vai negar. — Falei ao mesmo tempo que ela, chocantemente, negava. — E você não precisa se preocupar, porque nada mais aconteceu.

— Como não?

— Bem, eu ia ter chegado lá, mas você me interrompeu. — Sorri novamente. Percebi que se ela não estivesse do outro lado do balcão, eu teria levado um tapa. — Digamos que ela não estava disposta a dar boquetes de graça.

— Como assim?

— Eu levei ela pra casa, ela disse “bonne nuit” e eu nunca entrei com ela. Voltei para a boate duro e frustrado.

— Ela não quis deixar você entrar? — arregalou os olhos ao repetir.

— Mas ela me deu o número dela. — Expliquei. — Nós conversávamos, ela era amigável. E eu a vi de novo outras vezes, todas por coincidência. Nós parecíamos sempre frequentar os mesmos lugares com as mesmas pessoas; sempre alguém da música, um produtor, um cantor que não era membro de boyband…

Não consegui esconder o tom ressentido nessa última parte.

— E você?

— Acho que eu não era “rockstar” o bastante para ela, por isso ela me deixou cozinhando, meio que de reserva no escanteio.

— Isso deve ter doído. No seu ego.

Encolhi os ombros. Havia passado muito tempo, eu nem me lembrava direito mais — o que eu senti, digo.

— As coisas que eu vi, … Ela fumava um maço inteiro em uma noite, virava vários shots de tequila em seguida. Muitas drogas estranhas, até mesmo para mim. Era loucura.

Holland Tunnel for a nose is always backed up. — Ela recitou sem cantar. — And all the boys, they were saying they are into it.

— Cocaína, a mais fraca delas. — Eu ri. — E eu tentei ser o tipo que ela gostava… O tipo de cara que gostava das mesmas coisas que ela, mas, no fim… eu era só mais um popstar. Se eu tivesse a idade que tenho hoje, uma arma como um gangster e algumas gramas de algum sintético no bolso, talvez eu teria alguma chance.

— Você era muito vanilla pra ela? — debochou.

— É. — Eu respondi meio rindo, aquilo até que resumia bem. — Acho que sim.

— É isso que eu sempre quero saber quando te pergunto sobre as suas músicas. É tão fora da minha bolha… esse mundo de Hollywood, parece que só acontece nos filmes.

— Ah, acredite em mim, não é. Gente como ela só precisa de uma distração de um cara como eu e um drink nas mãos.

E o resto era tudo um tapa buraco momentâneo e superficial.


Normalmente, eu não faria três dias seguidos de shows, mas porque eu queria encaixar essa parte da turnê perto dos feriados para que pudesse me acompanhar, alguns sacrifícios precisavam ser feitos.

Voltei correndo para o suporte do microfone. Busquei por na lateral do palco, dançando com Jeff e Lambert. Ela me pegou lhe encarando e sorriu desengonçada, eu dei uma risada, alegria genuína enchendo meu peito.

Já meus pulmões, eles ardiam pelo esforço. Era o último verso da última música da terceira noite seguida. Eu diria que nunca mais faria uma loucura daquelas, mas seria em vão se a loucura envolvesse .

She sits beside me like a silhouette,
hard candy drippin’ on me till my feet are wet
And now she’s all over me it’s like a pay for it
It’s like a pay for it
I’m gonna pay for this

Foi inconsequente cantar essa parte olhando para ela. Eu conseguia vê-la encaixando a história que eu tinha contando há poucas semanas com as frases que saíam da minha boca, enquanto eu… bem, eu imaginava o serviço que ela me prestou hoje de manhã. Suas mãos me tocando enquanto beijava a curva do meu pescoço e descia pelo meu peito até mordiscar meus mamilos, o combo que ela sabia ser infalível para me deixar pingando de tão melado e implorando por ela, só para depois de muito desespero — meu, é claro —, ela ceder às minhas vontades. Honestamente, eu não sabia como conseguia durar tempo o bastante para satisfazê-la depois de toda a sessão de tortura que ela me fazia passar.

Ótimo! Tudo o que eu precisava eram fãs comentando no twitter como eu fiquei duro mais uma vez no meio do show, e ficar me esfregando no suporte não ajudava.

As luzes se apagaram com a última nota e eu me virei de costas.

Mantive a cabeça baixa e coloquei as mãos na frente da calça. Respirei fundo três vezes rápido. Eu tinha 30 anos e nenhum controle sobre o meu próprio pênis! Que vergonha.

Levantei a cabeça e abri um sorriso, me virando novamente para a plateia e mandando alguns beijos e acenos antes de correr para os fundos e sumir de vista.

Minha irmã e namorada me esperavam no início do corredor. Minha mãe estava vindo, ficou conversando com alguém na pista, Gemma explicou depois que a abracei.

Toda a minha situação lá embaixo tinha se controlado, então achei seguro dar um beijo em .

— Você foi incrível como sempre. — Ela disse.

— Não achou que a minha voz ficou muito rouca em algumas partes? E também cantei o mesmo verso de Golden duas vezes, foi vergonhoso.

— Você poderia ter errado todas as notas com essa camisa aberta que ninguém se importaria. — Ela respondeu e passou as unhas pela minha barriga.

— Jesus, arrumem um quarto! — Gemma reclamou.

e eu gargalhamos.

— Quer me acompanhar até o camarim, babe?

— Não para isso.

— É claro que não, sua pervertida. Só quero tirar essas roupas pregando suor. — Minha cueca também estava pregando, mas esse era outro tópico.

— Vão indo. — Gemma incentivou. — Vou buscar a mãe e nós encontramos você lá.

— OK. — Concordei com a cabeça.

— Eu amo você. — Gemma me deu um beijo no rosto.

— Eu te amo também. — Respondi.

estava sorrindo para nós. Eu não pensava no irmão dela há um bom tempo, mas não deveria ser fácil nos ver juntos e se lembrar dele.

— Eu amo você também, ! — Gemma gritou já a alguns passos de distância.

— Amo você mais! — rebateu e Gemma se virou outra vez para devolver uma careta como resposta.

Nós ficamos rindo até Gemma virar no corredor e desaparecer. Então avançamos pelo outro lado enquanto eu esfregava uma toalha nos cabelos com uma das mãos e segurava a mão de com a outra.

— Pode segurar isso para mim? — Pedi, estendendo a toalha.

Me despi da camisa, que ela prontamente havia deixado claro que já estava desabotoada, e peguei a toalha de volta, embolando as duas e colocando debaixo do braço.

Quando peguei a mão de outra vez, ela deitou a cabeça no meu ombro, apoiando parte do seu peso em mim para que eu terminasse de nos arrastar até o camarim.

— Você está cansado?

— Um pouco. — Tossi. — Minha garganta está meio fodida.

— Você parecia com um pouco de falta de ar mesmo.

— É só o ar frio do inverno.

— Eu vou te fazer um chá quando voltarmos para o hotel. Você quer chá preto ou Earl Grey?

— Chá verde.

Chegamos no camarim e abri a porta para que entrasse primeiro.

Assim que fechei a porta atrás de nós, eu a puxei pelo pulso e a prendi contra a parede. Deixei o bolo de panos cair sob meus pés e usei as mãos livres para desabotoar seu casaco enquanto minha boca investia na sua. Logo sua primeira peça de roupa estava ao lado da minha. Por baixo, ela vestia uma simples blusa branca de mangas longas, sem sutiã.

As pessoas que não me conheciam, tinham essa percepção sobre mim, sobre qual seria o meu “tipo” de mulher ou qualquer merda assim. Diziam que eu só saía com modelos. Eu preciso dizer, estava longe de desfilar em um Fashion Week, mas se todas as modelos fossem metade do que ela era, outros caras como eu estariam no seu pedaço particular do céu.

Quebrei o beijo porque eu precisava respirar. Minhas mãos estavam um pouco trêmulas e tive dificuldades para abrir o botão da sua calça. Em um breve momento de frustração, tentei puxá-la para baixo pelos passantes de cinto, mas isso apenas desequilibrou , que caiu na gargalhada.

— Porra. — Eu grunhi frustrado. — Calça apertada da porra!

Isso apenas a fez rir um pouco mais.

— Que isso, Styles, nem parece que transou hoje mais cedo.

— E desde quando qualquer tanto de você é suficiente? No mínimo, a cada vez eu fico te querendo mais.

— Bem, você está dizendo que eu não fiz o serviço direito? — Ela enfiou uma mão dentro da minha calça com uma destreza que eu invejava.

Arfei com o toque, deixando um gemido cruzar meus lábios.

— N-não, você fez um excelente serviço, um ótimo, detalhado, profundo serviço. — Eu repeti enquanto balançava a cabeça repetidamente.

— Nossa. E você está… melado? — Ela constatou em confusão. — O que é isso? Gozou no palco?

Não havia mais espaço para ficar constrangido no nosso relacionamento, ainda assim, sua boca suja me pegava desprevenido às vezes. Digamos que americanas, ou britânicas, nesse caso, não faziam as coisas como brasileiras.

Ela disse algumas coisas em português que eu sabia o significado mas foi um esforço que meu cérebro não quis fazer naquele momento para traduzir.

— A culpa é sua por me deixar pensando em você me cavalgando mais cedo enquanto eu cantava Kiwi. — Eu lutava para controlar minha respiração e fechei os olhos, seus movimentos se tornando ritmados enquanto ela desabotoava minha calça e abria o zíper com a outra mão. — Isso não é justo, eu que deveria estar com a mão dentro da sua calça.

— Bem, você acabou de cantar e correr de um lado para o outro daquele palco por mais de uma hora e meia, nada mais justo do que eu assumir o trabalho duro a partir de agora. — Ela engasgou uma risada na palavra “duro”.

— Suas piadas em inglês não são tão engraçadas quanto você pensa. — Provoquei. Eu tinha que equilibrar o controle de alguma forma.

Em vez disso, me ferrei por completo com ela parando de me masturbar.

— Eu ia dizer que isso é porque inglês é a única língua que você entende. — Ela colocou um dos dedos na boca e o chupou. — Mas me esqueci que você até que se vira bem no português agora.

Eu agarrei sua nuca e puxei seu rosto para perto do meu.

— E no italiano. — Soprei contra seus lábios.

— Certo. Se você diz. — Ela completou só para me alfinetar também.

— Umm, e por que você parou? — Reclamei, passando a língua pelo seu lábio inferior.

— Porque alguém vai chegar a qualquer momento. E você precisa trocar essa roupa gozada de tesão musical.

Dessa vez, eu comecei a rir. Tive que a soltar, e ela cambaleou para firmar os pés no chão.

— Eu não gozei… só… tive uma ereção.

— Ficou duro no palco? De novo? — Seu tom era de choque, mas não de surpresa.

— Como eu disse, a culpa é sua. Eu não tinha percebido que você estava reencenando o último verso da música comigo mais cedo.

— Não muito rápido em pensar, eh? — Ela debochou no seu sempre péssimo sotaque britânico.

Em vez de retrucar, eu a puxei pela clavícula até sua boca encostar na minha. Abri os lábios apenas o bastante para que eu pudesse passá-los pelos dela, atrasando um beijo. Ela colocou a língua pra fora e eu dei uma mordiscada. Ela me deixava maluco.

— Quando chegarmos em casa, — Sussurrei contra sua boca. — o único chá que eu vou tomar é o da sua…

Uma batida na porta nos fez pular para longe um do outro. colocou a mão na frente da boca para abafar a risada e eu olhei para a minha calça, minha mente enviando comandos frenéticos para minhas mãos fecharem o zíper o mais rápido possível.

Antes de girar a maçaneta, deu um passo na minha direção e ajeitou um pouco meus cabelos, o que seria o menor dos meus problemas, considerando que eu tinha acabado de secar o suor com uma toalha e já deveriam estar uma bagunça desde os primeiros minutos que subi no palco. No entanto, o gesto me fez acordar e eu fiz o mesmo com ela; coloquei seus cabelos para trás dos ombros e peguei seu casaco do chão para que ela cobrisse os seios enrijecidos com a brincadeira.

Maneei a cabeça para ela e recebi o gesto de volta.

— Por falar nisso, eu tenho que parar de te ensinar putaria traduzida do português. — Ela sussurrou, o último comentário sobre a nossa interação num momento nada apropriado antes que eu recebesse a minha família e amigos no camarim.

*

O barulho do sino preencheu a loja assim que empurrei a porta e o aquecedor atingiu meu corpo com um calor reconfortante que contrastava com o frio de fora. Entrei primeiro e segurei a porta para , soltando-a para se fechar sozinha atrás de nós.

Estávamos finalmente de recesso pelo feriado. O lado ruim: com a correria não tivemos tempo de comprar presentes de Natal para todo mundo. Tínhamos uma confraternização mais tarde e três presentes para finalizar a lista. tinha visto esse brechó online e decidimos passar ali para ver se encontrávamos algo legal antes de seguir para o centro.

O clima em Londres estava como sempre: úmido e nublado. Para mim, estava um pouquinho frio, mas nada insuportável. Já para , ainda que estivéssemos aqui todos os anos nessa mesma data, era o suficiente para ela precisar de um grosso sobretudo por cima de um moletom, enquanto eu vestia só o moletom.

passou na minha frente e foi direto para a extrema lateral para começar por um canto e percorrer a loja inteira. Eu não tinha tanta paciência assim, então apenas me enfiei em um corredor aleatório, passando os olhos pelas coisas e esperando algo que me chamasse atenção.

Não ouvi o ding do meu celular, mas o senti vibrar uma vez no bolso. Quando o levei ao nível dos olhos, impulsivamente abaixei a mão na lateral do corpo e olhei por cima das prateleiras procurando por . Ela tinha o poder de sempre chegar muito rápido no corredor que eu estava e eu nunca a ver se aproximando com suas passadas tão suaves como as de um gato.

Quando me certifiquei de que ela não estava em nenhum lugar para ser vista e o celular continuava vibrando com novas mensagens, o pressionei no peito e li o conteúdo com cuidado.

“Hey, dude. Dê uma olhada nessas aqui”

Logo embaixo tinha um print de uma ficha, algumas fotos e um link:

1574 Belfast Drive, West Hollywood
5 quartos | 5 banheiros | 447,72m²
$5.399.000,00
Link

Depois, outra ficha, mais fotos e outro link.

2862 Doheny Road, Beverly Hills
6 quartos | 5 banheiros | 546,39m²
$4.800.000,00
Link

“Me diga se quiser que eu agende uma visita”

Os links me levavam para um site imobiliário, no qual eu poderia ver mais fotos das casas e outras informações detalhadas, como data em que foram construídas e valor do imposto anual.

Desde que eu vendi minha casa em Hollywood Hills, eu estava alugando um lugar em Los Feliz que ficava a maior parte do tempo vazio porque sempre que eu estava em LA ficava no apartamento da . Seu apartamento era pequeno e tinha sido o suficiente só para nós dois, mas Glendale era muito afastada de West Hollywood e todos os dias ela sofria no trânsito para ir e voltar do trabalho. E sempre que eu estava no estúdio em Malibu gastava muito tempo para voltar também.

De toda forma, eu não me arrependia de ter vendido a casa, porque a localização era conhecida e, depois do que passamos com o meu stalker em 2019, eu fiquei um pouco paranoico. Queria garantir dessa vez, mesmo que as pessoas soubessem que eu hipoteticamente comprei uma casa, que o endereço não fosse tão público.

Eu tinha passado apenas duas exigências para o meu corretor: Eu queria uma casa que fosse perto do trabalho da , mas que ainda mantivesse a privacidade das colinas. Então a preferência era que não fosse em uma avenida nem na área comercial.

Claro que haviam milhares de imóveis à venda nessas condições, o que tornava a escolha muito difícil. Eu já tinha visto várias nos últimos dois meses, quando entrei em contato com a agência imobiliária pela primeira vez, mas acho que eu estava esperando uma certa magia, olhar para a casa e imediatamente perceber que era aquela.

— Gostou de alguma coisa? — veio caminhando pelo início do corredor.

Guardei o celular no bolso e mexi a cabeça para os lados, tentando fixar o olhar em alguma coisa.

— Hmmm…

— O que foi? — Ela interrompeu antes que eu pudesse escolher algo.

— Nada.

me deu um olhar semicerrado que durou alguns — longos — segundos antes de me questionar:

— O que você está aprontando?

— Como assim?

— Faltam seis dias para o Natal, pela primeira vez em anos você não me provocou sobre isso. É por isso que você escondeu o celular tão rápido quando cheguei? Você ainda não escolheu o meu presente, Harry?

— Quê? Claro que já escolhi!

Ela ficou mais desconfiada ainda. Talvez eu devesse ter mentido e dito que era isso, não que eu estava ocupado demais procurando uma casa e seu presente já estava comprado há tantos meses que eu já tinha até me esquecido dele.

— Tá me traindo então?

— Que absurdo é esse? — Entortei a cabeça e fiz uma careta.

— Você disfarça muito mal. E nunca escondeu seu celular antes. — Eu não soube avaliar se ela falava sério ou se só estava me testando para ver o que eu diria. De qualquer forma, seu tom de voz não era exatamente acusatório, mas não tinha um ar de brincadeira também.

Tirei o celular do bolso e estendi na sua frente. Eu sabia que ela não ia aceitar, então não ia descobrir nada.

— Toma. Pode mexer. Olha as minhas mensagens, minhas fotos, minhas DMs…

A resposta que ela deu para isso foi um levantar de sobrancelha.

Insisti:

— Acha que eu levaria você para a casa da minha mãe para ficar de conversa com alguém na sua frente?

— Guarda esse celular, seu otário. — Balançou a mão num gesto de indiferença enquanto pressionava os lábios para continuar séria. — E é melhor escolher alguma coisa logo porque não vou decidir tudo sozinha.

Com isso, ela se virou de costas e foi para outro corredor, me deixando plantado ali com o coração esmurrando o peito.

*

As gargalhadas altas preenchiam o ambiente. A minha perna estava começando a ficar dormente, mas eu não tinha coragem de dizer nada.

— Sua vez, H! — falou ao meu lado e eu olhei para a última carta lançada na mesa de centro.

Ela estava sentada no braço esquerdo do sofá e tinha as duas pernas sobre uma das minhas. Antes de escolher meu próximo lance, eu a puxei pelas panturrilhas e trouxe seus calcanhares para cima da minha outra perna. O alívio foi instantâneo.

Descansei os braços em cima das suas pernas e observei as minhas cartas, escolhendo sem muita estratégia a mais fraca delas para descartar. Então foi a vez de , ela passou sua carta para mim e eu a coloquei sobre a mesa, já que ela não alcançava. Em seguida, peguei a minha garrafa de cerveja do chão, tomei um gole e passei para , que fez a mesma coisa antes de me devolver e eu colocar de volta no mesmo lugar. Estávamos nessa dinâmica a noite toda. Era gostoso ter essa sincronia, como se compartilhássemos um mesmo corpo.

Enquanto havia esse recorte entre e eu, cada uma das pessoas na sala pareciam ter os seus próprios: Nick encarava a todos com bastante cuidado para ter certeza que ninguém roubava, Finn xingava Arthur, e Jess e Max pareciam estar em seu próprio mundo também.

Quando conheceu meus amigos de infância pela primeira vez, eu também contei que tive um rolo com Finn um ano antes de ir para o X-Factor. Este ano, a confraternização era em sua casa, e todos já eram tão amigos de ao ponto de facilmente ficar ao lado dela em qualquer argumento bobo que tínhamos em todas as versões de jogos que jogávamos a cada ano.

— Agora você vai ser enterrado, mate! — Arthur gritou de volta e se ajeitou no sofá, assumindo uma posição ofensiva, determinado a não perder.

— Eu não sei sobre isso. — Nick disse quando jogou sua carta. Era um Ás de Copas.

Fizemos um coletivo “uuuuh”, seguido de gargalhadas.

— Ah, você está fodido! — Eu gargalhei.

Max jogou em seguida e o jogo ia tomando um lado, parecia que Nick ia ganhar dessa vez. Eu estava mais preocupado com a diversão, então eu ia perder também.

não tinha bolsos na roupa que usava, então seu celular passou a noite toda no bolso da minha calça e, quando começou a vibrar de repente, me distraiu mais ainda da estratégia — que eu já não tinha. Precisei tirar o meu e o dela dos bolsos para descobrir qual vibrava, porque eu nem sabia mais em qual lado estava qual.

— Babe, seu telefone. — Eu entreguei o aparelho para ela, vendo de relance que o número era um contato salvo com alguma palavra em português enquanto tentava focar no jogo.

Ela pegou o celular e saiu do meu colo.

— Já volto. — Ela murmurou.

— Ah é? Então toma essa!

não foi muito longe, só até um canto da sala, onde, eu esperava, o barulho da nossa gritaria não a atrapalhasse. Acompanhei seu movimento com o corpo, me virando na sua direção.

Eu conseguia ver sua boca se movendo, mas não dava para escutar muito bem. E eu nem queria. Era sua ligação privada. Virei a cabeça de volta para a roda e encarei a mesa, as cartas estavam sendo recolhidas. Quando o jogo acabou?

— Eu duvido você aceitar isso!

— O Max não é o problema aqui. Eu quero ver vocês convencerem o Harry. — Só quando Jess falou meu nome que eu levantei o olhar.

— O quê? — Eu perguntei.

— Lembram daquela vez na casa do Jonny?

— Vamos fazer uma aposta… O próximo perdedor precisa raspar o cabelo.

Eu ri pelo nariz.

— Acha que eu tenho um problema com isso? — Respondi.

Outro coro de “uuuuh”.

— O Jonny sempre foi um péssimo perdedor. E o Harry também é.

— Agora não é mais como antes. — Rebati.

— Então você topa? — Max me encarou, seu olhar acirrado em desafio.

— Claro. — Encolhi os ombros. — E não tem nada de errado em não gostar de perder. — Concluí.

— Aham.

— Solta as cartas, lad.

Finn começou a distribuí-las.

— Ei, H. Tá tudo bem com a ? — Jess, que estava sentada do meu lado, perguntou.

Olhei de relance para trás, gesticulava agressivamente enquanto falava. O que eu tinha conseguido entender era pouco, uma frase solta aqui: “como assim eu não…”, uma frase solta ali “...com a extensão foi…”, “mas eu achava que tinha mais um”. Ela tinha essa mania de falar algumas palavras mais marcadas, mais cantadas do que o seu normal, essas eu conseguia distinguir de longe, mas quando ela aglutinava várias juntas num sotaque mais americanizado não dava para ouvir direito o que era. Poderia ser sobre qualquer coisa.

— É. Eu acho que sim. — Respondi. — Ela conversa assim mesmo. Coisa de brasileiro. — Soltei uma risadinha, que morreu assim que Jess não estava mais me olhando.

— A não vai jogar essa? — Finn perguntou ao terminar de dar as cartas. Havia dois montinhos na minha frente.

— Hum, acho que podemos ir sem ela. Ela não ia querer raspar o cabelo.

Com isso, fiz todos rirem e começamos. Não demorou muito para ela voltar e se sentar do mesmo jeito.

Eu abri minhas cartas em um leque e mostrei para ela. Ela olhou para a mesa e depois para mim antes de concordar com a cabeça.

— Está tudo bem?

— Sim.

Eu nem precisava me olhar no espelho para saber que estava franzindo a testa. E também nem precisei dizer mais nada para interpretar o que eu queria dizer.

— Falamos disso mais tarde, ok? — Ela disse.

Eu tinha ficado esperto o bastante para saber que não deveria mais tocar no assunto.

— Sim, senhora.

Ela sorriu e me deu uma estapeada — leve — com o dorso da mão antes que escolhesse minha próxima carta.

— Por que ele não está aqui, por falar nisso? — Alguém perguntou.

— Quem?

— Jonny.

— Eu acho que ele viajou para a casa da família da namorada…

*

Eu soltei a porta com tudo quando deixei o corpo cair dentro no banco do carro. fez o mesmo no passageiro.

— Cara, eu tô exausta!

— Você acabou de me chamar de “cara”? — Virei o pescoço para encará-la com genuíno horror transformando minhas expressões.

— Desculpe, babe. — Ela se corrigiu com uma risadinha enquanto fazia aspas com os dedos.

— Eu não gosto disso. — Cruzei os braços. — Não gosto nem um pouco.

— Você deveria ser dramaturgo e não compositor.

— Uma noite com os meus amigos e eu viro um dos seus bro? Eu sou seu namorado, . — Bati o dedo indicador no meu peito. — E muito orgulhoso, por sinal.

— Ah, a Broadway está te perdendo! — Ela riu e se inclinou sobre o braço do meu banco, fazendo um biquinho na minha direção.

Ainda que muito emburrado, eu quebrei o restante da distância e dei o selinho que ela me pedia. Sorrindo, ela acariciou meu rosto e passou as mãos pelos meus cabelos.

— Ainda bem que você é meu namorado.

Meus braços perderam a força.

— Aw! Vem cá! — A puxei para um abraço, o qual ela partiu para me puxar para um beijo intenso.

Todos os beijos com eram intensos, mesmo quando ela não tinha intenção de ir a lugar nenhum com o gesto. Ela me explicou uma vez que era assim que todos os brasileiros se beijavam sempre, em todas as ocasiões. Não tinha meio termo. Era sempre sua mão puxando a minha nuca e sua língua dentro da minha boca. A próxima coisa que eu percebia era ficar sem fôlego. E depois ela me culpava por ficar duro no meio do palco. Ou dentro do carro.

Ela me soltou do mesmo jeito que me puxou. Inafetada.

— Imagina se sentar dentro de um carro apertado desses nessa rua escura sem nem um poste de iluminação do lado de um gostoso e não poder fazer isso?

Eu não soube se grunhia ou gargalhava minha repentina frustração.

— Você vai dirigir, .

— Ah nem, mas por que eu?

— Porque é a volta e você sempre dirige na volta.

— Mas eu bebi.

Soltei uma bufada pelo nariz com essa.

— Desce do carro e faz um quatro com as pernas. — Desafiei.

Não foi necessário pedir duas vezes para ela abrir a porta, atravessar para o meu lado e abrir a minha também.

— Sabe, ter bebido e estar bêbado são coisas diferentes. — Reclamou e estendeu a mão. Aceitei, ela tentou me puxar para fora, mas, claro, não me movi. — Desce logo, seu chato.

Ela preferia dirigir a ter que se humilhar fazendo algum tipo de teste para comprovar sua — não — embriaguez. Fazia horas que tínhamos parado de beber e três garrafas de cervejas não eram nada para o fígado dessa mulher.

— Quanto amor. Assim fico emocionado. — Coloquei uma mão no peito e, com a outra, mandei um beijo no ar.

Trocamos de lugar e deu partida.

— Bem, como o copiloto também é DJ, vamos ver o que vamos ouvir agora.

O choramingo era sempre instantâneo e dessa vez não foi diferente. No entanto, a mudança veio de mim. Em vez de colocar o que eu escolheria normalmente, fui direto na playlist mais recente que ela tinha feito na minha conta. Eu conseguia sentir que não estava no seu usual animado e divertido. Desde a ligação ela tinha ficado pra baixo. Ela disfarçava muito bem, muito bem mesmo, mas, para mim, sua fachada era transparente.

Coloquei o celular no suporte com o mapa aberto na rota de casa para facilitar para e apertei o play em seguida. Eu sabia que aquilo ia animá-la pelo menos um pouquinho. No mesmo segundo em que a primeira música começou a tocar, ela virou o pescoço para me encarar por meio segundo.

— Que isso? Tá passando bem?

Mesmo que eu encarasse apenas seu perfil naquele momento, eu ainda conseguia ver que uma de suas sobrancelhas estava arqueada.

Você está bem? — Rebati a pergunta. — Eu não consegui ouvir nada, mas sua ligação de mais cedo parecia séria. Quer falar sobre isso?

— Ah! Agora tudo isso faz sentido. — respondeu enquanto mexia uma mão no ar, os olhos pregados à sua frente. — Eu sei o que você está tentando fazer.

, você sabe que nossas melhores sessões são no carro. — Recostei no banco e coloquei uma mão na sua perna, mesmo que não fosse eu dirigindo. Ela correspondeu colocando a dela por cima da minha. — É terapêutico, vamos lá! Coopere.

Como primeira reação, entortou os lábios, mas disse em seguida:

— Você se lembra como naquela semana em que eu estava doente eu enviei minha documentação para extensão do meu visto?

Pensei por um momento.

— No dia que te fiz sopa?

Ela concordou com a cabeça.

— A assessoria me ligou dizendo que não posso pedir outra extensão.

— Como assim? — Fechei os olhos em uma piscada demorada, meu pescoço se retraiu, travando em confusão. — Por que você não pode? O que você precisa fazer, então?

deu um grande suspiro. Ela não me lançou o olhar mesmo quando começou a explicar:

— Eu tenho um tipo de visto que é de trabalhador visitante, e uma vista implica que…

— Que você precisa ir embora em algum momento. — Concluí por conta própria.

— Eu não posso pedir outra extensão porque só é possível fazer isso por até seis anos e o meu status atual expira na mesma época em que atinjo esse limite.

Nós nunca conversamos sobre isso antes. Sempre sobre como foi a proposta para ela ir para LA, mas tudo de um ponto de vista romantizado, nunca sobre a parte burocrática de uma imigração em si. Nunca me ocorreu que em algum dia haveria um problema quanto a isso e ela nunca expressou nenhuma preocupação. Parece que, realmente, por mais que convivamos e conheçamos uma pessoa, sempre há coisas que nunca saberemos. Coisas que nunca vão nos ser reveladas.

— Você já sabia disso? Digo, que você tinha um prazo para ficar?

— Sim, mas eu achei que… — Ela balançou a cabeça mudando de ideia sobre o que ia dizer. — Eu questionei a empresa quando aceitei ir, mas eles disseram que iam se preocupar com isso quando chegasse a hora. Acho que eles não acreditavam que ia dar certo, que eu ia dar certo.

— E você não pode, sei lá, ir para o Brasil e reaplicar? Pedir uma renovação?

— Sim, mas para isso eu preciso passar um determinado período no Brasil.

Embora para os meus ouvidos leigos isso soasse como uma solução simples, a maneira como ela falou me fez repensar a ideia. O meu visto era permanente, eu tinha o que era chamado de “feito extraordinário”, a única coisa que eu precisava fazer era renovar quando expirava como se faz com um passaporte. Eu não sabia como outros tipos de vistos funcionavam, mas estava começando a perceber que talvez não fossem tão fáceis quanto o meu.

— Quanto tempo?

— No mínimo um ano.

— Não é muito tempo. — Tentei soar animado, queria acreditar que parecia simples, ainda que eu continuasse sentindo que era mais complicado do que eu entendia. — Dá para você fazer isso, seria tipo férias. Podemos dar uma viajada, conhecer vários estados, eu ia gostar de fazer isso com você. Talvez eu não consiga até terminar a turnê, mas, depois, eu posso passar o resto do ano no Brasil com você.

— Mas a empresa não ia esperar um ano por mim e, sem eles, eu não tenho como aplicar para esse visto e sem esse visto eu não tenho como voltar a trabalhar nos Estados Unidos.

É claro. Aí estava a complicação que eu não conseguia ver.

— Você não precisa voltar para trabalhar. — Eu sorri. — Pode só…

— O quê? Ficar dentro de casa lavando suas meias sujas enquanto você passa o dia no estúdio?

A lembrança daquela fala me tirou um sorriso de lado, ela nunca esquecia das primeiras roupas que eu deixei na sua casa. E daí que tinha um par ou dois de meias para lavar no meio? Ela esperava que eu fosse calçar o que com os sapatos?

— Bem, eu ia dizer que você poderia viajar comigo enquanto eu estivesse em turnê e quando eu estiver em pausa não precisamos passar longos períodos em LA, só fazemos isso justamente porque você trabalha lá. — Você sabe que eu não suportaria ficar assim… sendo inútil e vivendo do seu dinheiro. Além do mais, se a gente terminasse…

— Aí, meu Deus! Isso de novo? — Bati a mão na testa. — , nós não vamos terminar! — Eu encarei seu perfil. — É por isso que você tem falado de término nos últimos tempos? Porque você já sabia que poderia ir embora em breve?

A pergunta foi o que a fez desviar os olhos da estrada pela primeira vez desde que a conversa começou, ainda que de maneira breve, meio de soslaio.

— H, eu juro que não! Eu achei que tinha mais uma extensão ainda antes de me preocupar com isso. Me pegou de surpresa também.

Eu concordei com a cabeça. É claro que eu acreditava nela.

— Eu sei que eu tenho esse histórico de terminar relacionamentos quando eu vou embora, mas eu juro que eu não…

— Só porque você assimilou uma coisa a outra não significa que é um padrão aqui. — Provoquei.

— O quê?

— Você disse isso para mim uma vez.

— Eu disse?

— Faz muito tempo. Quando eu mencionei sobre a Sophie pela primeira vez… no meu camarim. Eu disse algo sobre ela ser uma fã que se tornou uma amiga. — Ela me deu outra olhada de relance. — Você disse que eu conhecer você, uma fã que poderia se tornar uma amiga, não era um padrão. Você ter terminado com um namorado porque se mudou de país não significa que vai terminar comigo se precisar se mudar de novo. Você não é a Sophie, eu não sou o Daniel.

— Eu odeio quando você faz isso?!

— O quê? Estar certo?

Ela soltou um riso abafado que foi seguido por um negar de cabeça. Observei a estrada por um momento, aquele silêncio confortável que construímos há — uau, que loucura perceber — quase seis anos.

— Você quer voltar para o Brasil?

Até então essa possibilidade não tinha me ocorrido e poderia ser o que determinaria nossa abordagem nesse problema.

— Eu… — Ela hesitou. — Não. — Reconsiderou com firmeza, voltando atrás e percebendo que não tinha porque não ser sincera.

— E você quer continuar nesse emprego?

— Sim, quero.

— Então nós vamos dar um jeito, ok? Eu não me importo se você está em LA, no Brasil ou na porra da lua. Se é onde você quer estar, eu vou te ajudar a conseguir.

— Obrigada. — Quando ela desviou o olhar para mim, havia um brilho molhado dessa vez, mas também havia um sorriso sincero.

— Assim, se você quer trabalhar nesse emprego… tudo bem. Desnecessário, mas se é importante para você…

— Harry! — Ela me repreendeu com um riso.

Nós já estávamos em casa e eu nem percebi. virou na esquina e subiu a rua, parando na entrada enquanto o portão se abria. Depois seguiu pela estrada de acesso à garagem e parou na porta. Desligou o carro e virou o corpo para mim.

— Se já não tivéssemos bebido, eu diria que preciso de um drink.

— Eu tenho uma ideia. — Respondi e abri a porta do carro.


me seguiu pela casa perguntando o que eu tinha pensando. Fui direto para a cozinha, que estava limpa e estocada para a nossa chegada que tinha acontecido há menos de dois dias. Eu imaginei que seria melhor ter alguém para fazer as compras e deixar toda a comida organizada, porque com a correria dessa vez não teríamos tempo de fazer isso.

Abri a geladeira e havia uma variedade de frutas separadas em potes de vidros já lavadas e cortadas ou descascadas. Joguei um pouco de tudo de qualquer jeito em uma vasilha e fui em direção às escadas para o segundo andar.

— Uma substituição interessante para as bebidas. — comentou com ironia na voz.

— Você não vai dizer isso em um minuto.

No corredor, abri a porta de um dos quartos de hóspedes e puxei a poltrona até debaixo da janela. Deixei a vasilha em cima e subi no peitoral da janela, atravessando para o outro lado e me sentando no telhado.

Essa parte da casa ficava do lado contrário da rua, encarando os decks e jardins dos vizinhos. Na lateral direita, até mesmo conseguíamos ver as mesas vazias do pub àquela hora fechado ao lado da minha casa.

— Ah, nós não fazemos isso faz tempo! — bateu as mãos em uma palma solitária.

Olhei para ela por cima do ombro.

— Você não vem?

Diferente de mim, que usei a força dos braços para lançar o pé sobre o peitoral, ela se ajoelhou nele e engatinhou até o meu lado. Em sequência, ela fechou os olhos e inspirou fundo.

— Ah, nada como o ar úmido e poluído da cidade grande.

Nós rimos.

— Na verdade, o ar é até bem limpo aqui, com o Heath do lado e tudo mais.

Uma das vantagens em morar em Hampstead Heath era estar protegido nessa rua que passava no meio do parque. Era recluso, mas perto o suficiente do centro.

— Ah, esqueci de uma coisa!

Entrei outra vez, peguei a vasilha que tinha ficado na poltrona, entreguei para e disse:

— Já volto.

Fui no meu quarto e voltei num trote. Nas mãos eu trazia um isqueiro e um cigarro de maconha, os quais levantei no alto e mostrei para .

— Uma substituição interessante para a bebida. — Ela repetiu em tom jocoso. — Dessa vez é verdade.

Acendi o cigarro ao me sentar ao seu lado e passei para ela sem tragar.

— Faça as honras, você precisa mais do que eu.

— Achei que Harry Styles fosse contra o uso de drogas para escapar das coisas.

— Nesse caso, — Peguei o cigarro de volta depois que ela tragou e perguntei: , você está fumando este baseado para fugir dos seus problemas, da realidade?

negou com a cabeça e sorriu de lado.

— Por que eu ia querer escapar de uma realidade em que tenho você? — Ela espetou um pedaço de melão com um dos garfos e o colocou na boca enquanto encolhia os ombros, sua postura tão casual quanto seu tom.

Meio sem reação, eu abaixei a cabeça e ri um pouco sem graça. Eu não estava esperando por esse flerte gratuito. Mas, até então, eu sabia que nunca deixava de me surpreender nos mais pequenos gestos. Ela sempre soube o que dizer pra mim, mesmo quando quase não me conhecia. Ela sempre fez eu me sentir amado e cuidado. Não havia nada mais singelo na minha vida do que ser dela por todos esses anos. Como eu estava em boas mãos.

— Sabe de uma coisa? — Eu perguntei devolvendo o cigarro. — Deveríamos fazer isso mais vezes. — Apontei com a cabeça para os muros que víamos além dos jardins e vagas de garagens das casas. — Ótima vista. — Eu ri ao fim.

— É mesmo. — concordou com um suspiro. — Me faz lembrar do Brasil.

— É mesmo? — Repeti. — Bem, eu estava sendo irônico.

— Eu não. Achou que eu tinha crescido com uma vista perfeita para o centro ou em uma casa de frente para o mar?

A imagem da janela do quarto de no Brasil se projetou na minha mente. Tentei me lembrar da vista em si, mas a paisagem não era tão clara para mim quanto era para ela que morou quase 25 anos de sua vida no mesmo lugar.

— Bem, eu sei que não.

— Era exatamente assim, menos os carros de luxo. — Sorriu satisfeita quando eu ri. — Observar o muro dos vizinhos… é meio reconfortante, sabia? — Ela desviou o olhar de lá e me fitou. — Acompanhar essa sua loucura de direto da primeira classe para um show, te assistir gravar um programa da plateia ou um quadro de algum canal no youtube de trás das câmeras, no meio disso tudo… sentar no telhado da sua casa fumando um e comendo uma bacia de frutas é mundano, real, é voltar a ser eu mesma.

— Nós sempre podemos voltar aqui. Voltar a ser nós mesmos. Quando tudo parecer demais, basta você me dizer. Você sabe que pode me falar, não sabe? Podemos sempre nos esconder num canto do Heath, .

Assim que falei isso, fiz um “hum” e puxei o celular do bolso. Uma ideia. Eu tive uma ideia.

— Há quanto tempo estamos aqui? — Perguntei enquanto abria o bloco de notas e começava a digitar. — Já deu tempo de bater? Acho que já tô chapado. — Gargalhei enquanto negava com a cabeça, envergonhado da minha própria gracinha.

Reli o que eu escrevi. “Thought that we could hide away in a corner of the Heath”. Não era ruim.

— Você tinha razão. — Eu disse me levantando.

— Sobre o quê?

— Precisamos beber. Vou buscar uma garrafa.

Na adega, não havia o nosso vinho do mercado do outro lado da cidade. Eu achei inútil colocar na lista de compras que não seria feita por nós dois. Em fato, havia só um vinho caro que tinha comprado faz tempo e acabou ficando guardado esperando a ocasião. Por um momento, pensei que seria um desperdício abri-lo agora que já não estávamos mais tão sóbrios.

Cheguei a dar alguns passos para fora e de mãos vazias, mas pensei melhor e voltei para trás.

Era só um vinho. Eu sempre poderia comprar outro.

Quando subi no telhado outra vez, questionou:

— Sem taças?

Me sentei ao seu lado e fiz as honras, tomando o primeiro gole antes de lhe passar a garrafa.

Meu celular tinha ficado ao lado de e eu só me lembrei dele por causa do contraste da tela preta contra as telhas brancas. O desbloqueei e escrevi outra linha. “A bottle of rouge. Just me and you.” Sem taças.

Brega. Apaguei.

Me arrependi. Escrevi de volta.

Naquele momento, meio chapado e desperdiçando aquela garrafa cara que a minha ficha começou a cair. Eu refleti sobre o que tinha acabado de me contar. Eu tinha muitas dúvidas, poucas respostas e uma única certeza: Passaríamos por isso juntos.

Eu tinha ciência de que conseguiria passar por qualquer coisa sozinha, mas todas as vezes que precisei, ela estava lá, mesmo que não pudesse fazer nada para me ajudar. Tenho certeza de que não conseguiria sem ela do meu lado.

Sem que eu mal olhasse para a tela, deixei que meus dedos procurassem pelas teclas certas. “There’s just no getting through without you”

E era por isso que eu encontraria a solução para que ela nunca precisasse ir embora se não quisesse.


No decorrer da noite, as roupas que usava se mostraram inapropriadas para estar no teto de casa. Ela tremia, e eu já tinha falado duas vezes que deveríamos entrar e ligar o aquecedor.

— Vem, vamos entrar, . — Na terceira vez, eu não esperei por sua negativa teimosa e atravessei a janela, levando comigo o toco do cigarro e a garrafa já meio vazia. — Traga as frutas, por favor.

Assim, sem lhe dar muita escolha, ela obedeceu. Esperei que ela se sentasse na janela e coloquei a vasilha de volta na poltrona. Em seguida, passei um braço na sua cintura para suavizar sua descida. A janela não era alta, então foi só um pulinho, mas estávamos chapados e bebendo, e da última vez que eu usei drogas e pulei uma janela arranquei um pedaço da língua.

Antes que eu pudesse a soltar, ela me abraçou pelo pescoço e jogou o peso contra mim. Passei o outro braço pelas suas costas e a apertei contra meu peito. O cheiro do seu perfume ainda era marcante mesmo misturado com a fumaça. Inspirei fundo, meu coração batia calmo e compassado. Nunca estive tão seguro.

— O que você estava escrevendo? — Perguntou baixinho no meu ouvido.

— Ah, você sabe… nada demais.

— Posso ouvir?

Eu soltei algo parecido com uma risada nasalada.

— Acho que eu não tenho o suficiente para isso.

— Conhecendo você tão bem como eu conheço, Harry, você já tem uma possível melodia em mente, ainda que ela termine sendo descartada.

O cuidado que ela tinha para separar “Harry” de “Harry Styles” nunca passava despercebido por mim. O estágio inicial de uma música sempre era só eu mesmo escrevendo sozinho sobre minhas próprias experiências pessoais, sobre coisas que testemunhei. Depois, quando ia para o estágio do estúdio, que é quando envolvia outras pessoas, é que se tornava uma música de Harry Styles, mas, antes disso, era só um cara dando seu melhor para absorver e processar o mundo à sua volta.

— Mas posso tocar outra coisa.

Ela abriu um sorriso.

— O quê?

Havia uma música que eu tinha escrito durante os últimos shows desse ano enquanto me acompanhava e que eu ainda não tinha tido tempo de mostrá-la. Eu tive a ideia depois de relembrar sobre quando escrevi Kiwi, ou, mais precisamente, quando vivi a experiência que me levou a escrever essa música.

— No outro dia eu estava revirando minhas músicas descartadas… — Contei enquanto descíamos para o primeiro andar. — Eu não costumo fazer isso, mas eu me lembrei que Kiwi não foi a única música que escrevi sobre… sobre a história que te contei.

— Então Kiwi tem uma irmã?

— Bem, na verdade, agora duas.

— Uma continuação todos esses anos depois?

— Acho que sim. — Passei a mão pela nuca. — Mas eu meio que imaginei como se fosse você que eu tivesse conhecido na época.

— H, você não precisa dizer isso para justificar ter escrito sobre outra pessoa. — Ela parou no meio do corredor e se virou para trás. — É a sua história, e eu não fui a única na sua vida.

— Não, eu sei, . — Coloquei a mão nos seus ombros. — Você vai entender quando ouvir.

— OK. — Ela concordou com a cabeça.

Estendi a mão e ela entrelaçou nossos dedos.

Em uma das salas, havia um piano e um violão, eram os instrumentos que eu mais usava para escrever. Tirei o violão do gancho da parede e me sentei no banco do piano. Dedilhei algumas notas e se sentou numa poltrona próxima.

Um pouco fora do ritmo, cantei, sem me esforçar muito em ser afinado, a letra que estava no topo da minha cabeça.

Living in a daydream
She said "love me like you paid me"
You know I’ll be gone for so long
So give me all of your love
give me something to dream about


me observava com atenção, embora eu quebrasse o contato visual para conferir que eu estava tocando as notas certas, quando eu levantava a cabeça, lá estava ela, um sorriso sutil no rosto e a cabeça balançando no ritmo que eu tocava.

'Cause baby, loving you’s the real thing…

Era sempre um pouco estressante mostrar uma música nova para pela primeira vez, mas, nesse caso, eu não havia mostrado para mais ninguém também.

— Acho que é isso. — Coloquei o braço por cima do corpo do violão ao terminar. — Q-quero dizer, ainda não está terminada, é só uma ideia e ninguém ouviu ainda, então pode ser que eu tenha que mudar tudo…

— Você sempre faz isso! — exclamou com um negar de cabeça.

— O que eu faço?

— Me mostra a letra mais bonita ou a melodia mais divertida e justifica que ainda não está finalizada como se a demo estivesse péssima.

Pego no pulo. Outra vez. Ela passava por cima de todas as minhas defesas fácil demais.

— Ok. — Dei risada. — Eu meio que gosto dessa. Acho que estava buscando algo que me desse a mesma sensação de performar Kiwi ao vivo. Algo não muito sério, mais atrevido.

— E conseguiu! O importante é que você goste e se divirta. Todo mundo vai também.

se levantou da poltrona e eu escorei o violão ao lado do piano enquanto ela se aproximava. Ela me abraçou antes que eu pudesse me levantar, seus seios na altura do meu rosto. Dei um beijo por cima do pano e, em seguida, encaixei o queixo no meio dos seios e levantei a cabeça, encarando-a.

— Confortável?

Sempre que ela sorria daquela forma conseguia disparar o meu coração.

— Uhum. — Mexi a cabeça para baixo e para cima, arrastando o pano da blusa no movimento. Dei um suspiro profundo e de olhos fechados.

— Você está babando.

— É que você é uma visão.

— Ah! — Ela gargalhou. — Tenho certeza de que de baixo para cima essa é a última coisa que eu sou. — Forçou seu queixo contra o pescoço, criando uma papada enquanto fazia uma careta.

— Até assim. Continua linda.

— E você continua brega! Com um sorriso que não saía dos meus lábios, me apoiei na sua cintura para me levantar, mal me equilibrando em pé e já sentindo sua boca colando na minha.

O beijo tinha um leve gosto de cigarro já quase todo apagado pelo vinho. Tinha gosto de intimidade só adquirida com uma construção que leva anos. Tinha o único gosto que eu queria sentir e não conseguia me imaginar ficando sem.

Beijar alguém por quem você sentia atração era uma sensação engraçada, tinha muito mais a ver com as respostas do seu corpo com aquele estímulo externo, mas beijar alguém que você amava tão profunda e intensamente trazia uma sensação que vinha de um lugar diferente, tão profundo quanto o sentimento; do núcleo do seu ser, da alma.

E por mais que eu tentasse explicar, ainda parecia inexplicável. Eu sentia. Sentia muito.

me puxou com um pouco mais de firmeza, uma tentativa de nos aproximar ainda mais, mas acabou se desequilibrando e se apoiando cegamente na coisa mais perto dela: as teclas do piano. O som seco tocado sem ritmo ecoou pelo canto.

Depois de nos fitarmos com olhos arregalados, eu fechei a tampa com cuidado antes que algum estrago fosse feito.

O piano que eu tinha em LA era um vertical básico e compacto. Este, em Londres, era um Parlor Grand da Steinway & Sons em madeira nogueira, conhecido por ser um modelo de sala de estar. Era o meu xodó. Escrevi as minhas músicas mais sentimentais nele.

Era longo, mas não tanto quanto um piano de concerto. Pisquei algumas vezes, alternando o olhar entre o piano e . Era longo… o suficiente para uma pessoa se deitar em cima. Comecei a puxá-la de costas para o piano antes de terminar meu raciocínio.

— O que você está tentando fazer? — questionou quando pressionei a palma aberta sobre seu colo.

— Você se lembra quando dançamos na avenida do Nobu?

— Ahn? Anos atrás?

Concordei.

— Eu, você e esse piano. O que te lembra?

Ela pensou muito séria por um momento.

— Nós reassistimos juntos no dia dos namorados… — Dei a dica.

— Dia dos namorados do Brasil ou o universal?

— Valentines. — Revirei os olhos.

Os seus lábios se curvaram em um sorriso quando associou o que eu dizia:

— Agora vamos encenar todos os filmes de comédia romântica que já assistimos?

— Bem, para isso temos que agir mais e falar menos.

— Cala a boca. — Ela me repreendeu com um risinho.

— Estou tentando. — Me aproximei dos seus lábios e iniciei um beijo, mas não o aprofundei. — Além do mais, só vamos averiguar quais são realmente possíveis de reproduzir. — Pisquei enquanto ela apoiava as mãos nos meus ombros para pegarmos impulso e a tirarmos do chão. — Sabe, pelo bem da sociedade.

— Pelo bem da sociedade.

deitou a parte de cima do corpo sobre o piano, o posicionamento parecia um pouco esquisito, suas pernas meio penduradas, mas eu acho que conseguiria fazer funcionar.

A calça de ioga foi fácil de tirar e ela mesma puxou a blusa por cima da cabeça. Os casacos tinham ficado pendurados nos ganchos próximos da porta quando chegamos.

— Você está confortável, ?

— Não muito, mas dá para ficar.

— Me avisa se começar a te machucar. — Pedi e ela concordou com a cabeça.

Agora só de calcinha e sutiã, seu corpo revelava mais tatuagens minúsculas desde a primeira vez em que a vi assim. Todas ainda muito escondidas, mas ela já estava ficando sem lugares ocultos.

— Quantas tatuagens você tem agora? — Eu perguntei ao me aproximar da sua boca e deixar um beijo estalado antes de começar a descida pelo seu pescoço.

— Você não sabe? — Seu tom era de ultraje.

— Bem, eu não sou seu fã. Deveria saber?

Ela riu pelo nariz.

— Não é meu fã? — Era engraçado vê-la tentando soar ofendida e falhando.

Para amenizar minha resposta maldosa, deslizei a mão direto para dentro da sua calcinha, tocando-a com o mais leve dos toques.

Ao mesmo tempo, ela tinha começado a rebater algo como “deveria saber por ser meu namorado”, mas as palavras se perderam no meio do seu arfar alto e surpreso.

— Uhum. — Murmurei sem muita atenção, eu começava a ritmar meu toque, ainda que de leve, só brincando. — E você sabe?

— Q-quinze. — Ela rebateu com a voz entrecortada. — Eu acho.

— E por que você já está molhada assim? — Tentei manter o tom sério, mas não conseguia impedir os lábios de se curvarem. — Andou gozando no… telhado?

O som da sua risada ecoou pelo cômodo. No ritmo da chuva leve que começou a cair lá fora.

— Não é tão constrangedor quanto no palco, mas…

— Me fode logo, cretino.

Se eu já não estivesse muito duro antes de ouvir isso, agora eu teria ficado.

— Apressada? — Mantive o máximo de compostura que eu consegui. Era a minha vez de me vingar.

Levei o dedo indicador da mão livre à sua frente, balançando-o de um lado para o outro em um gesto negativo antes de tocar seus lábios.

— Vamos saborear o momento, sim? — A resposta foi apropriada… Com a minha trilha de beijos chegando até o seu ventre e tudo mais.

tentou rir debochada outra vez, mas um gemido saiu no lugar.

— Suas piadas não são tão engraçadas quanto você pensa. — Ela seguiu o script direitinho, sua cabeça levantada para conseguir me encarar com uma sobrancelha desafiadora.

Como ela tinha feito comigo, eu também parei, mas só o tempo para trocar a carícia e introduzir um dedo nela.

Filho da puta! — Ela gritou em português, eu segurei a risada enquanto usava a outra mão para lhe prender parada. — Harry, eu não fiz isso com você. É tortura!

Ignorando-a, beijei o lado de dentro de uma coxa e depois da outra, meu dedo se curvando dentro dela, recebendo de volta seus espasmos involuntários.

— Tem razão. — Tirei o dedo só para vê-la pingando. Levei-o aos lábios, finalmente concretizando minha promessa de saborear o momento.

Ela não tinha razão. Mas o ponto era que torturá-la significava me torturar, e quando se tratava de , eu não tinha muita resistência.

*

No outro dia à tarde, eu fui até o centro comercial comprar comida de um restaurante que e eu gostávamos. Ela não quis ir e acabei indo sozinho. Era talvez um quilômetro de distância, mas tinha que descer toda a rua, então a parte ruim de subir ficava para a volta.

Como tinha ficado meio pra baixo desde que recebeu a notícia do seu visto, eu também ia passar na floricultura ao lado.

Na verdade, a ideia de buscar comida era mais uma desculpa para comprar flores para ela. Quando peguei a comida que já tinha feito o pedido antes de sair de casa, passei pelo outro lado da rua para buscar as flores.

Havia algum tempo que eu não ia em Londres e me surpreendi em como algumas lojas tinham mudado. Passei por uma loja de bebidas e entrei por impulso ao me lembrar que limpamos o estoque do dia a dia e não tínhamos mais nada além de destilados fortes e garrafas de borbulhantes para o resto da semana.

Nossa semana estava passando muito rápido, tínhamos tantas coisas para fazer antes de ir para Holmes Chapel, tantos amigos para encontrar… Queria que pudéssemos vir algum dia sem ter data para voltar.

Andei pelos corredores procurando nada específico, e só percebi que a loja tinha itens selecionados quando parei na frente de uma parede protegida por vidro e li a etiqueta de uma garrafa de bourbon datada dos anos 60.

— Quanto é esse? — Eu perguntei depois de cumprimentar o atendente que se aproximou.

Era uma garrafa do mesmo vinho que e eu tomamos na noite anterior, parecia apenas um pouco mais antiga.

— Esse está £2.175.

— O quê? — Eu não tive intenção de soar surpreso.

— Esse é um Chateau La Mission Haut Brion de 1982. Essa safra é particularmente renomada porque foi considerada uma das melhores da década e o rendimento é naturalmente baixo, então são uvas de altíssima qualidade. O blend é dominado por Merlot, mas complementado por Cabernet Sauvignon e Carbenet Franc, o que traz uma complexidade mais elegante para o sabor.

— Merda. — Murmurei para mim mesmo.

Eu ia mesmo pagar mais caro do que da outra vez.

Isso não estava sequer aberto para discussão. E eu não queria uma aula de sommelier, porque eu sabia muito bem que vinho era. — Eu vou levar esse.

*

Nos dias que se seguiram foi um pouco difícil ter tempo para pesquisar mais sobre o meu tipo de visto sem que percebesse. Já que parecia que não poderíamos fazer mais nada com o seu, achei que no meu encontraria a solução, mas eu não queria lhe dar falsas esperanças e por isso não disse nada. Usei todo o tempo que tive sozinho — quando lavava os cabelos, pois os banhos eram mais longos; quando ela foi para o dia anual de shopping com a minha irmã; quando ela ficava lendo em frente à lareira antes de dormir. — para aprender sobre as partes burocráticas e que sempre foram irrelevantes para mim.

Depois de quase uma semana pensando apenas nisso, eu estava confiante de que tinha coberto todos os cenários possíveis, ainda que superficialmente.

Enquanto se arrumava no meu quarto de infância, ou melhor, no quarto que guardava todas as minhas coisas de infância numa casa que nunca passei mais do que poucas noites seguidas por vez, atravessei o corredor e bati na última porta da esquerda.

— Oi, mãe. Posso entrar? — Perguntei ao ouvir o seu “pois não” vindo do outro lado. — É o Harry.

A porta se abriu quase que no mesmo momento.

— Eu sei que é você, querido. — Ela sorriu e passou para o lado para me dar espaço para passar. — Claro que pode entrar. — Era como me olhar no espelho.

Minha mãe se sentou numa ponta da cama, aos seus pés havia dois pares de sapatos. Eu entrei, fechei a porta atrás de mim e me sentei na outra ponta.

— Não sei se calço as botas ou as sandálias. — Ela disse encarando o chão. — Vou experimentar ambos e você me diz qual gosta mais?

— Claro. — Concordei com a cabeça ao cruzarmos o olhar.

— Então… o que está acontecendo? — Ela me perguntou pegando primeiro a bota.

— Por que você acha que tem algo acontecendo?

Ela parou de calçar a bota com metade do pé para fora e levantou a cabeça, me dando um olhar desconfiado.

— E não tem nada acontecendo? — A sobrancelha arqueada garantia a ironia da pergunta.

— Bem, sim. Mas como sabe?

— Vejamos: Você tem estado distraído no celular e isso só acontece quando você nos visita sem a , então passa o tempo todo conversando com ela, o que não é o caso dessa vez. Você se isolou pensativo todas as vezes que ela não estava por perto e agora bateu no meu quarto antes da Ceia de Natal sozinho com uma cara de quem precisa confessar algo.

— É sobre a . Nós meio que temos um problema.

— Ela está grávida? Porque isso não seria realmente um problema.

— Jesus, mãe. Não!

Com cuidado para não demonstrar nenhuma opinião, ela voltou a calçar o sapato.

— Minha teoria original sobre o seu comportamento esquisito era que em algum momento você viria até mim para saber a minha opinião sobre pedi-la em casamento, mas você disse que é um problema, então estou começando a pensar que não é isso também.

— Você achou?

— Querido, vocês estão juntos há algum tempo, é o natural.

— Mas essa foi a primeira coisa que você pensou que eu falaria quando bati na porta?

Ela encolheu os ombros, quase com culpa.

— Ela é a minha favorita. Você sabe. — Balançou a cabeça. — Não diga para ninguém.

— Eu sei disso como você já deixou claro várias vezes. — Eu ri, um pouco do peso do meu peito se aliviando como só o colo da minha mãe poderia fazer. — Talvez seja um pouco sobre isso…

— Me conte.

Eu contei tudo. Sobre o visto da estar expirando, sobre o que eu encontrei sobre o meu próprio visto, as nossas poucas opções…

Não tive muito tempo de pesquisar sobre o visto dela, pois como ela já tinha sido enfática pela falta de alternativas, foquei no meu que sabia pouco. Descobri que as possibilidades se resumiam a uma única: ela poderia ganhar um visto de acompanhante com a condição de que nos casássemos.

A ideia de um casamento como resolução não me assustou, eu estava em busca de uma casa, pelo amor de Deus! Ainda que isso nunca esteve diretamente influenciando a compra, a confirmação da minha mãe de que a ideia não seria muito súbita me trouxe certa segurança. Não era tão ousado como imaginei que julgaria. Parecia ser o que todos esperavam de nós dois.

Era um processo relativamente simples, o visto de acompanhante; depois dos papéis assinados no cartório, havia alguns formulários que precisávamos preencher e algumas taxas para pagar, assim analisariam o documento procurando por fraudes, o que dificilmente seria uma análise rígida, considerando que, bem, não tem porque imaginarem que uma celebridade está aceitando se casar com alguém apenas para lhe dar um visto, mesmo se fosse o caso — ou o contrário, o visto para a celebridade — eles sempre escolheriam fechar os olhos para essa possibilidade, não seria benéfico para eles impossibilitar essa pessoa da indústria de trazer dinheiro e visibilidade para o país. E então haveria uma entrevista, ou não… essa parte era aleatória. Após aprovação, ela teria o passaporte retido para inclusão do visto.

Ainda assim, havia restrições: Ela não poderia trabalhar se entrasse no país com esse visto, uma vez que estaria apenas me acompanhando e eu sou o único com a permissão para trabalhar; o processo todo poderia demorar desde 30 dias até mesmo seis meses; e ficou um pouco confuso para mim se ela deveria entrar e sair do país comigo fisicamente junto e ao mesmo tempo… isso seria estranho e não ajudaria muito, não ficaria nada feliz de ter que depender de mim para ir para LA ou ter que ir embora porque eu fui.

— …E o visto expira em algum momento ano que vem. Ela não me disse exatamente quando, mas pelas minhas contas seria em março ou abril. Eu estou preocupado em não termos tempo suficiente para encontrar uma outra forma. — Concluí o raciocínio.

— Filho! — Ela estendeu os braços e pegou minhas duas mãos. Ela não precisava dizer mais nada para que eu lesse o que ela queria dizer.

— É claro que eu quero me casar com ela, você sabe. Por mim, eu poderia pedi-la em casamento agora, com ou sem visto em risco. Mas talvez ela não queira se casar por agora… — Meu olhar dançou pelo quarto, tive um pouco de medo que minha mãe pudesse ler também as incoerências que eu tentava reprimir.

— Vocês já conversaram sobre isso?

— Sobre o visto ou sobre o casamento? — Descontraí.

— O casamento. — Minha mãe rebateu em um tom de falsa irritação. — Como você tem tanta certeza de que ela não quer se casar agora?

— Nós sequer moramos juntos e ela não liga para essas convenções sociais e…

— Esses não são motivos reais, querido. Você diz que não moram juntos, mas passa a maior parte do seu tempo livre na casa dela, então é só uma questão de oficialização que, em teoria, não é necessária já que não ligam para essas “convenções sociais”. — Ela debochou.

Eu suspirei fundo. Como sempre minha mãe tinha razão, meu problema não tinha nada a ver com termos ou oficializações… era mais um medo genuíno porque…

— Bem, nós sempre falamos sobre casamento, mas é sempre de maneira abstrata, sempre tem esse teor de provocação, nunca parece sério. Então eu não sei… se ela…

Casamento era uma coisa séria. E se ela não quisesse se casar… comigo?

— Talvez então seja o momento de conversarem sobre isso. Seriamente dessa vez.

— Mas esse é o ponto, mãe! Casar comigo só possibilitaria que ela permanecesse nos Estados Unidos, ela não poderia continuar no emprego, ela não poderia trabalhar em outro lugar… O visto não permitiria. Ela teria mais chances de conseguir voltar trabalhando se fosse para o Brasil e ficasse por lá pelo tempo requerido. No fim, eu não conseguiria ajudar em nada.

— E que diferença faz você passar o tempo em LA com ela do tempo no Brasil com ela?

— Eu, na verdade, disse isso para ela. Mas pensando de maneira prática e realista sobre isso… enquanto eu estivesse em turnê seria praticamente a mesma coisa, mas quando eu precisar trabalhar em novas músicas… todos os meus colaboradores estão em LA ou em Londres, passaríamos muito mais tempo longe se eu perdesse a conveniência de poder dirigir para a casa dela no final de um dia no estúdio.

— H, posso te dizer uma coisa? E eu quero dizer isso com todo o carinho do mundo, como sua mãe que se preocupa somente com a sua felicidade.

— Claro, mãe. — Eu rebati sério diante do seu tom.

— O amor não é apenas para quando é conveniente. — Ela balançou a cabeça, me encorajando a espelhar em uma concordância. — Você realmente a ama?

— Sim. Eu amo. — Respondi sem hesitar.

— E você acredita que ela te ama?

Concordei com a cabeça.

— Eu só estive tão esperançoso de que resolveria tudo isso para ela, que ela não precisaria se preocupar em ir embora se não quisesse, e essa porcaria de visto que só lhe daria direito de viver lá comigo, mas ela perderia o emprego de qualquer forma… Não queria que ela tivesse que passar por isso.

— Eu entendo, querido. — Ela me deu um sorriso acolhedor, mas sua pontuação pareceu mais um questionamento para mim. Era como se ela quisesse dizer: O amor que você diz sentir está disposto ao inconveniente?

— E eu faria isso, ir para e voltar do Brasil quantas vezes fossem possíveis se fosse o que ela quisesse, mas eu sei que não é, mãe. E agora eu não sei o que fazer, sem o trabalho ela não tem motivos para ficar em LA.

Seu sorriso pendeu para um lado, de repente ela me olhava como quando eu era um garoto ingênuo de 12 anos e acreditava que não ganhar dinheiro para ir ao cinema com uma garota significaria o fim da minha vida social.

— Tem você.

— Eu não acho que eu sou motivo suficiente para ela, mãe. Ela odiaria saber que eu a pedi em casamento só para que ela pudesse ficar comigo em LA. Até mesmo para mim soa egoísta que eu a prenda lá porque não quero ficar longe.

O sorriso continuou de um jeito engraçado.

— Você tem medo de ela ir embora e terminar com você.

— Não. — Neguei com veemência. — Eu não me preocupo com isso. Eu posso mudar todo o meu trabalho para o Brasil se esse for o caso. Seria a mesma coisa de LA, eu arrumo algum estúdio muito bom por lá, pago passagens para Tom, Mitch e os outros irem me encontrar.

— Então parece um ótimo plano, filho.

É claro que minha própria mãe, compreensiva e doce como era, não apontaria a desconexão dos meus pensamentos com as minhas palavras. Nem eu mesmo sabia dizer exatamente o que eu tinha certeza e o que eram possíveis respostas sendo testadas pelo meu coração. Eu jogava no ar o que achava para ver como eu me sentiria. Nada resolveu. Não conseguia decidir o que fazer.

— Seria se ela quisesse ir embora. O que eu faço para resolver isso? Como eu posso ajudá-la?

— Se aceitar o seu visto e ficar em LA sem o emprego não é uma opção que a agrada, talvez ela não tenha outra senão voltar para o Brasil. Você já está trazendo soluções, não são perfeitas, infelizmente nenhuma delas vai lhes dar tudo, mas é o que está ao seu alcance.

— Mas eu deveria poder alcançar mais!

— Por quê? Você é famoso e muito influente, eu entendo, mas você não pode tudo, meu filho.

— Eu deveria poder fazer mais porque eu a amo, mãe, e não quero vê-la sofrer.

Antes de dizer qualquer coisa, ela estendeu os braços para eu me aconchegar num abraço.

tem sorte por ter você, Harry.

— E eu tenho sorte de tê-la. — Respondi, minha voz abafada nos seus cabelos.

Apoio era tudo o que eu precisava, ninguém para me dizer que propor essa alternativa para — ainda que eu soubesse absolutamente que ela não aceitaria — era um caminho errado. Eu apenas precisaria garantir que ela soubesse que ela poderia contar comigo, que eu faria, sem esforço, qualquer coisa por ela.

O que eu não poderia tolerar seria que ela sentisse que eu não tentei de tudo para ajudá-la, ainda que ela ache todas as minhas opções ridículas. Eu precisava dar algo a ela. Qualquer segunda alternativa que fosse.

A campainha tocou e interrompeu o nosso momento, assim, de repente e sem pedir desculpas.

— Eu confio que vocês vão escolher a melhor solução juntos, ainda que não seja perfeita, sei que farão funcionar.

— Obrigado, mãe.

— Desce comigo para vermos quem chegou?

Fazia alguns anos que não hospedávamos a Ceia de Natal, era agradável ver todas aquelas pessoas depois de ter passado o ano inteiro fora. Passar pela mesa e ver os biscoitos que e eu fizemos no dia anterior, apostar com ela qual seria a estampa do suéter que a minha mãe teria encontrado para nós daquela vez… eram todas coisas que eu me esquecia durante a correria do dia a dia, mas me via aguardando ansiosamente sempre que a data se aproximava.

A única coisa que eu queria atingir com isso tudo era que continuasse ao meu lado para repetir tudo aquilo muitas vezes ainda.

— Oi, querida! — Minha mãe cumprimentou a neta muito mais animada do que teria cumprimentado a mim ou minha irmã. — Como você está, neném? — Mexeu nas mãozinhas dela antes de tirá-la do colo de Gemma.

Com quase um ano, o máximo que a bebê respondeu foi um sorriso com um gritinho.

— Ela está melhor. Um pouco fanha ainda pela gripe, mas sem febre. — Gemma respondeu lhe dando um beijo no rosto. — E você, irmãozinho? — Ela fez o mesmo comigo.

— Estou bem. — Também mexi com minha sobrinha no colo da minha mãe. — E aí, cara? — Troquei um aperto de mãos com Michal.

Pensei por um momento sobre o casal na minha frente. Minha irmã e Michal não se casaram, ainda assim, eu via o compromisso com o relacionamento na passagem do tempo, não por causa do papel, mas pelo que eles viveram juntos nessa duração, e também na linda bebê na nossa frente. Minha mãe estava certa, como sempre. Não tinha porque esperar um papel para ver isso no meu relacionamento com , nós já tínhamos esse mesmo forte compromisso selado e que era renovado no que passávamos todos os dias. Menos o bebê, claro. Muito cedo para essa parte.

— Nós somos os primeiros a chegar? — Ele perguntou. Minha mãe disse que sim com a cabeça.

— Onde está a ? — Gemma perguntou enquanto adentrava pelo cômodo, procurando-a.

— Ainda se arrumando. — Respondi. — Vou subir e avisar que vocês chegaram.


Bati na porta antes de entrar e disse “sou eu”, mas não esperei sua resposta.

— Ei, H. — me encarou pelo espelho, alcançou o celular que estava em pé sobre a bancada e apertou a tela, a qual ficou travada numa imagem minha falando. — As pessoas já estão chegando? Eu já estou quase pronta, prometo.

Sem dizer nada, atravessei o cômodo e a abracei por trás, encaixando o queixo na curva do seu ombro.

— Só a Gemma.

Ela se desvencilhou do meu abraço, soltando um pincel ao lado do celular, e disse:

— Vou ver a minha sobrinha!

Enquanto ela caminhava até a porta, eu a segurei pelo pulso e respondi:

— Ela não está indo a lugar nenhum e pode te esperar terminar de maquiar.

— Argh! Ok! — Reclamou em falsa decepção e voltou para a frente do espelho.

— O que eu estou fazendo no seu celular? — Perguntei com a testa franzida.

— Tem uma entrevista sua para aquele programa de TV na Austrália que eu não tinha visto que saiu.

— Aquela que você atrapalhou o take porque me ligou no meio da coisa?

Ela riu.

— Acho que sim. Desculpe.

— Tudo bem. Eu já te perdoei por causar toda uma comoção no estúdio e eu precisar começar a me desvencilhar do assunto do zero quando eu já tinha quase conseguido.

— Que assunto?

— Você. — Eu me sentei na ponta da cama. — Dê play novamente e veja.

Antes de fazer o que pedi, ela virou o pescoço para me encarar de soslaio. Depois, pressionou a tela e pegou o pincel que tinha largado ao lado.

Não soube dizer que momento da entrevista era aquele, fiquei na dúvida se o momento constrangedor já tinha acontecido ou ainda ia passar. Era sempre uma chuva de perguntas sobre a minha vida pessoal, as quais eu tentava evitar ou respondia o mais superficial possível, não queria dar muitas informações, mas também não queria mais esconder o fato de que eu era um homem indisponível.

Tudo na vida tem seus lados positivos e negativos, isso é fato para todo mundo. Nessa profissão, um dos lados negativos era a perda de privacidade. E dentro dessa perda de privacidade também havia pontos positivos e negativos. Um negativo era ser vinculado a várias pessoas, muitas vezes desconhecidas, quando eu estava solteiro. Um positivo era não ter que lidar com nenhum rumor ou assédio desse teor desde que assumi um relacionamento oficial.

Na entrevista, as perguntas estavam caminhando para planos do futuro, o que significava que se estávamos nos direcionando para o momento final e não demorou para o corte aparecer e as nossas imagens darem lugar a um fundo preto e uma mensagem que dizia: “Nesse momento da gravação, Harry Styles recebeu uma ligação da namorada, a brasileira .”, passaram uma sequência de fotos de comigo e algumas sozinha, depois, a mesma tela preta: “Muito afetuosamente, após garantir que estava tudo bem, ele pediu desculpas e perguntou se poderia ligar mais tarde ao justificar estar com a nossa equipe.”

A minha imagem voltou à tela em seguida.

“Desculpe por isso. Ela deve ter confundido o fuso horário.”

“Não se preocupe, Harry. Como está ?”

“Ela está bem, achou que eu já estava no hotel. Ela vai morrer de vergonha se isso for ao ar.” Junto comigo, toda a plateia riu.

“Podemos editar isso fora, claro.”

“Não tem problema, se não atrapalhar a entrevista para vocês”


Eu me lembrava disso, sabia que ainda mantinha o hábito de assistir todas as minhas entrevistas, então tinha certeza de que ela veria.

“Momento de demonstração de afeto pública entre Harry Styles e namorada pego nas câmeras? Nunca atrapalharia.”

Todos nós rimos.

“Podemos continuar agora se estiver tudo bem para você.”

“Claro. Vamos lá.”
Concordei.

A entrevistadora limpou a garganta e encarou o cartão nas mãos. Aguardamos o “ok” da direção.

“Diante do acontecido, não podemos seguir em frente sem endereçar os rumores mais recentes. As revistas na América estão reportando que você vai se casar, Harry. Temos uma confirmação oficial?”

Ponto negativo: Todo dia uma revista diferente reportava que eu estava noivo ou que ia ser pai.

Para ganhar um pouco de tempo, eu ri sem graça. Pensei que agora sim morreria de vergonha.

“Bem…” Fiz um suspense “Eu provavelmente vou me casar em algum momento, mas não tenho nada planejado oficialmente.”

“Então você e querem se casar?”

“Definitivamente. Bem, eu quero me casar com ela.”

“Mas e ela?”

“Você vai precisar perguntar para ela”


Nada do que aconteceu depois disso pareceu importar mais para . Ela se virou lentamente pelos calcanhares e me encarou de boca aberta.

— Você não falou em rede nacional para me perguntarem se eu quero me casar com você, falou?

— Não achei justo responder por você. — Eu sabia que ser engraçadinho naquele momento era um risco, mas não consegui evitar.

— Eles vão começar a me ligar pedindo para comentar nisso e eu vou te matar, Harry!

Seu negar de cabeça foi suficiente para eu me levantar e tentar colocar a maior distância possível entre nós. Não adiantou, porque a cada passo que eu dava para trás, ela dava dois na minha direção. — É por isso que você “me perdoou” muito fácil, porque a vingança já estava pronta, não é mesmo? — Ela colocou as mãos na cintura, um dos pés batendo ritmicamente no chão.

— Se você vai me levar para o buraco, nada mais justo do que ir junto, não acha?

Ela revirou os olhos, mas não conteve o sorriso.

— Justo. — Encolheu os ombros. Era o sinal para que eu pudesse me aproximar de novo.

— E qual é a sua resposta?

— Sobre o quê?

— Você quer? Digo, se casar? Comigo?

Com os olhos arregalados, abriu e fechou a boca algumas vezes. Demorou alguns seguros para que ela destravasse.

— Está esperando eu dizer que preciso recusar, porque, você sabe… Digo, está tirando com a minha cara como sempre? Ou… é sério? Você parece sério.

— Não! — Levei uma mão até o pescoço e ri nasalado. — Quero dizer, não estou não falando sério, nem te pedindo em casamento assim, agora, só… perguntando. Você quer? Assim, é algo que você queira?

Uhhhhh.

Sua hesitação esmagou um pouquinho o meu coração. Com isso, me sentei outra vez na cama.

— Ok. Abordagem errada. — Bati na parte do colchão ao meu lado. — Se sente aqui por um momento, por favor.

me olhou um pouco desconfiada mas fez o que eu pedi.

— Eu sei que não tivemos muitos momentos sozinhos nesses últimos dias, mas você está bem?

A sua primeira reação foi encolher os ombros.

— Você teve alguma outra notícia sobre o seu visto?

— Não. Aquela foi a resposta definitiva.

… — Eu segurei suas mãos e a fitei com cuidado. — Eu estava pesquisando sobre isso… Eu não sei se agora é a melhor hora de conversarmos, mas eu sinto que quanto mais rápido puder tirar isso do peito vai ser melhor para nós dois, eu não aguento mais te ver angustiada. Você se importa se eu falar agora sobre o que encontrei nas minhas pesquisas?

— Tudo bem, pode falar. Eu prometo que quando sairmos por aquela porta o que conversamos vai ficar aqui, não vou deixar atrapalhar nosso Natal.

— OK. — Alisei o dorso da sua mão direita com o dedão e respirei fundo, enrolando um pouco.

Como eu fiz com a minha mãe, eu contei tudo o que encontrei. Expliquei nossas opções e as restrições.

— …Por isso nos casarmos é uma opção definitiva, não vai resolver o seu trabalho, mas você não vai precisar se preocupar mais com um visto. — Respirei fundo e, quando não pegou a deixa para responder, fiquei preocupado que sua reação seria aquela que eu temia. — M-mas eu não quero que ache que eu estou te dando essa alternativa só para você não ir embora, eu faria isso porque eu quero. Acho que o que eu quero dizer é… Eu me casaria agora com você de qualquer jeito. Com visto ou sem.

Quando eu menos esperei, me abraçou apertado. Eu não vi, mas ouvi que ela fungava. O conforto do cheiro tão característico do seu cabelo era a prova de que não precisávamos de LA para estarmos em casa. seria a em qualquer lugar.

— Você faria isso por mim?

A pergunta repentina não me fez hesitar, porque a resposta era a mesma desde sempre.

— Não é como se eu não quisesse você comigo para sempre. — Ri sem graça. — Eu sei que não é o cenário ideal…

— Não, você me deu uma ótima ideia. — Ela se afastou e segurou nossas mãos outra vez. — Não acredito que não pensei nisso antes. — Ela murmurou em represália para si mesma. — A única maneira de ficar seria conseguindo residência permanente e o caminho mais direto para ela seria me casando com um Americano, o que não é uma opção, visto que você é Britânico… Inglês! — À essa altura, ela mesma se corrigia sem que eu precisasse intervir mais. Era um pouco ofensivo que ela ainda errasse, de qualquer forma. — Mas essa não é a única opção de conseguir residência.

— O quê? Honestamente, minha cabeça deu um nó. — Esfreguei a têmpora com as duas mãos e deu uma risada.

Num ato singelo, ela beijou a palma da minha mão e a colocou sobre seu rosto, depois fechou os olhos e inspirou fundo. Eu conseguia sentir a minha fragrância se misturando na dela. A textura da sua pele na minha mão era familiar. Era como aquele clichê sobre segurar todo o seu mundo nas próprias mãos.

— Só para você saber… eu também me casaria agora com você de qualquer jeito. Com visto ou sem.

— Isso quer dizer que vamos fazer… isso?

ponderou por um momento e, em seguida, um movimento mais sutil com a cabeça de um lado para o outro.

Na expectativa pela explicação, meu coração começou a bater descompassado. Nada fez sentido, mas a minha confiança nessa mulher era inabalável. Eu sabia que sua cabeça não era cheia só de sagacidade e força de vontade, era quase como se eu pudesse ver através dos seus olhos sua inteligência, que eu tanto admirava, trabalhando.

— Eu não sei muito para te explicar agora… Mas você sabe que vamos ficar bem, não sabe? — Sua afirmação me pegou desprevenido. Eu esperava que fosse eu a confortá-la e não o contrário. — Eu te amo. Nós vamos ficar bem. Eu dou um jeito.

— Eu sei disso, .

— Você acredita em mim? — Com essa pergunta, ela me pedia não somente para acreditar nela, mas para confiar que ela tinha a outra opção além de um casamento que eu tanto quebrei a cabeça a semana toda para encontrar.

— Não tem ninguém que eu acredito tanto quanto em você. — Eu me lembrei do que a minha mãe disse, sobre ainda que eu fosse o mais influente dos homens, eu não poderia tudo. Ainda assim, eu acreditava que existia alguém que sim. — Se tem alguém que pode tudo, essa pessoa é você.

— Então vamos comemorar esse Natal como sempre fazemos. Rodeados da nossa família, das pessoas que amamos. Não vamos deixar esse problema pairar sobre nós, porque acreditamos que vamos resolver, não é? Então em janeiro, em janeiro a gente pensa sobre isso.

— OK. — Exalei audivelmente depois de respirar fundo, a meu modo de encerrar o assunto.

Meu coração se acalmou. A confiança avassaladora de que nós ficaríamos bem se instalou na minha mente e correu pelas minhas veias.

Como pude me esquecer do que eu mesmo escrevi?

“We’ll be alright”, eu disse primeiro e agora era o que me dizia.

— Você está pronta?

— Só vou passar batom. — Ela voltou para a frente do espelho e em menos de um minuto a boca estava com uma leve coloração rosada. — Pronto.

Nós demos as mãos e eu abri a porta para mais uma vez irmos desvendar o mundo juntos.



colocou o melhor dos seus sorrisos quando descemos as escadas para já encontrar meus primos e tios enchendo a sala. Por ela, não havia motivos para preocuparmos nossas famílias com coisas que eles não poderiam ser mudadas. Diferente de mim, que buscava pelas palavras da minha mãe, irmã ou amigos sempre que ficava difícil pensar em uma solução para os problemas sozinho.

Em vez de uma entrada modesta, como era do feitio de , eu preferia algo mais espalhafatoso, foi por isso que eu pulei ao entrar no cômodo e gritei:

— Olá, olá!

De volta, recebi mais gritaria e uma fila de abraços calorosos de pessoas que eu não via há meses.

— Como você está? — Eu perguntei a esmero. A atenção dividida não me permitiu de início ouvir com interesse as respostas. De qualquer forma, eu conversaria individualmente com todo mundo em algum momento.

— Cadê a bebê? — Ouvi questionar em um canto.

A família toda estava obcecada pela minha sobrinha e não era diferente. Só era particularmente difícil para mim ter que carregar um presente para ela todas as vezes em que voava para a Inglaterra. não queria saber se eu não veria a minha irmã, eu poderia estar indo para o extremo sul do país que ela ainda comprava alguma coisa para eu levar.

Ao observá-la deixar a sala em direção a um dos quartos com Gemma em busca da bebê que já deveria estar dormindo, me permiti admirar uma outra vez. Ela sempre conseguia encontrar uma maneira nova de me deixar ainda mais caído por ela e com pensamentos apaixonados sobre como ela estava linda mesmo que aquela fosse sua única calça limpa do momento ou que tivesse tido que calçar outra das minhas botas com pontas gigantes porque a sua nova molhou na última chuva.

A forma que toda a minha família agia perto dela era outro positivo. Eu nunca passei por uma situação em que tive um relacionamento que minha família não gostasse da pessoa. Todos que apresentei eram sempre muito amigáveis e educados e, em retorno, meus entes os trataram com simpatia e acolhimento. Nada disso foi diferente de … no começo. Hoje em dia era fácil ver a distinção. Ela não era uma visita, uma convidada; ela era uma de nós. Tão da família quanto eu.

E isso era mérito unicamente dela, que lapidou esse lugar no coração de todos, assim como fez no meu.

E eu acho que a minha mãe soube disso desde o primeiro Natal, porque ela nunca tinha comprado um par de suéteres para mim e ninguém antes. Ela sempre soube que já era a única na minha vida.

Com essa paz e envolvido no calor de tantas pessoas que eu amava, me sentei no sofá e peguei um dos cookies que decorou, engatando uma conversa sobre isso enquanto ela não estivesse lá para me ouvir a elogiando demais para não ser culpado quando alguém mencionasse como estavam gostosos e ela ficasse sem graça.

Mais tarde, novos jogos não tomaram os lugares de honra dos antigos. Como prometemos, e eu não deixamos que nenhuma eventualidade estragasse aquele momento e nos preparamos para a comilança como em todos os anos: com muita alegria, afeto e amor.

*

No dia 26, exibindo nossos suéteres combinando, borgonha e com uma rena e flocos de neve estampados desta vez, saímos pela manhã para tomar café. Em uma rápida pesquisa, descobri esse local novo que era apenas a alguns minutos a pé.

Enquanto caminhávamos de mãos dadas e em passadas lentas e preguiçosas, notei que também usava o par de brincos que comprei como presente de Natal deste ano. Refleti sobre como era um pouco difícil comprar presentes para sua namorada depois de anos juntos, chegava em um ponto em que não havia nada que você já não tivesse dado. E quando eu dizia nada, não era um exagero, especialmente para mim que acabava comprando presentes fora das datas especiais.

A originalidade não era mais uma opção e eu ficava feliz em apenas pagar por algo que ela escolhesse. O que, conhecendo-a, eu sabia que conseguir que ela aceitasse conscientemente alguma coisa não era fácil. Assim, eu estava sempre atento a toda a ajuda não intencional que me dava quando saíamos juntos e tomava nota de todas as coisas que ela se interessava porque eram possíveis presentes. Dessa vez, ela tinha visto os brincos em uma joalheria quando me acompanhou em algum show na região.

gostava de tradições, ela passava dias muito antes do Natal escavando lojas de segunda mão em LA por alguma camisa vintage ou um disco de alguma banda dos anos 60 que eu gostasse para encontrar o dito presente perfeito. Eu sempre dizia que ela poderia comprar uma camisa ou um disco numa loja qualquer, mas ela gostava de aumentar a minha coleção de vintages para mim.

Era uma pena que ela não tivesse nenhuma coleção ou paixão do tipo para que eu pudesse ter um presente certeiro assim todos os anos. Ela ria quando eu apontava a injustiça e justificava que ela tinha uma paixão, sim, e que o artista alvo era eu. Eu até tentava me esquecer de que também era ídolo de toda uma geração, só que ela não deixava.

Mas tirando o Natal e meu aniversário — que sempre tinha uma nova mixtape —, os seus demais presentes eram qualquer coisa que eu estivesse precisando no momento. No último dia dos namorados ela tinha me dado Havaianas para nossas próximas férias no Brasil. E no nosso aniversário de namoro ela pagou por novos Vans brancos para mim e, de quebra, ainda me deu uns pares de meia junto.

Ao fim do caminho curto, quando entramos na cafeteria, escolheu uma mesa no canto. Era um hábito que ela adquiriu desde quando começamos a sair juntos ao perceber que sentados num canto ficávamos de certa forma protegidos pelas outras mesas, especialmente se estivessem cheias. Era muito útil quando não queríamos chamar atenção no começo, mas, em Holmes Chapel e todos esses anos depois, eu não me importava muito mais com isso. Não tenho certeza se já me importei ou só me preocupava que ela se importava.

— O que você vai querer? — Eu perguntei quando já folheávamos o cardápio.

— Um Café da Manhã Inglês, é claro. — riu.

— Feijão, as salsichas, o negócio todo?

Ela assentiu, eu fiz uma careta.

— Poser. — Ela acusou.

— Ei! Eu tenho o direito de não gostar da mistura. — Encolhi os ombros e fechei o cardápio ao memorizar meu pedido.

— Você não gosta de leite no chá, Harry. Você é o Britânico mais falso que eu já vi.

Com um meio sorriso, absorvi o insulto em silêncio.

Nesse momento, a garçonete se aproximou para anotar nossos pedidos. O silêncio foi prolongado pelo olhar de choque da menina ao me reconhecer e fingir que não. Eu vagamente me lembrava do seu rosto, talvez fosse a irmã muito mais nova de algum dos meus amigos da época da escola.

Numa cidade pequena como essa, as possibilidades não eram muitas e eu provavelmente já conheci todo mundo no passado. Pelo menos todo mundo com idades próximas ou mais velhos.

Quando a atendente nos deixou, eu voltei meu olhar para e, me projetando para frente, disse em um tom próximo de um sussurro:

— Na verdade, eu sou In…

— Inglês. Eu sei. — Ela colocou a mão por cima da mesa e esperou que eu completasse a distância para segurá-la. Apertei de leve seus dedos entre os meus.

— Você sabe que eu te amo, mas você é muito irritante.

Sua risada foi de imediato abafada pela sua outra mão.

— Estou falando sério, . — Eu ri também. — Você se acha uma sabe-tudo.

Recostando-se de volta na cadeira e abrindo a distância entre nós, sua mão foi da boca para o lado esquerdo do peito.

— Eu achava que isso era o que você mais gostava em mim.

— Peitos? — Arqueei uma sobrancelha discretamente na direção que sua mão repousava. — Claro. — Dei de ombros em uma concordância indiferente.

Pouco abalada e com um sorriso sagaz se formando no rosto, ela envolveu o seio e deu duas apertadinhas rápidas.

Menos abalado ainda, eu balancei a cabeça em negativa ao manter os olhos fixos no dela. Eu não ia cair nessa e olhar.

— Você consegue a primeira página de algum tabloide de baixa qualidade se for fotografada fazendo isso.

Com minhas palavras assustadoras, ela se recompôs e abaixou a mão para o colo.

— Acho que venci… — Cantarolei em provocação.

— Só porque você joga sujo.

— Eu jogo sujo? Eu? — Ela concordou com a cabeça como resposta. — Sério, . Você já se conheceu?

Outra vez, sua resposta veio primeiro em forma de silêncio. De maneira repentina, ela se levantou e deu um passo para se aproximar da minha cadeira. Se inclinando sobre mim, sua boca tocou de leve o lóbulo da minha orelha.

— Sim. E você também me conhece. — Sua voz suave e lânguida passou direto pelo meu ouvido, mas todo o meu corpo reagiu em resposta.

Cada sílaba pronunciada foi uma recordação do que eu já sabia e uma promessa de que mais tarde ela me relembraria mesmo assim de quem ela era.

Ao se afastar, eu li a confirmação de que estava certo por todo o seu rosto. Eu quis imediatamente que esquecêssemos da comida e fôssemos embora para descobrir o que quer que fosse que ela ia me mostrar.

— Vou ao banheiro. — Ela pronunciou em seguida com um largo, nada inocente, sorriso.

Enquanto eu tentava fazer o sangue bombear de volta para o resto do meu corpo e dissipar a cor avermelhada das bochechas junto da ideia irracional de ir embora — para ser justo, também estava muito frio —, eu evitei cruzar o olhar com qualquer pessoa ali dentro para não correr o risco de ter meus pensamentos lidos.

Nisso, não me restaram outros lugares para fixar os olhos que não a entrada. Com a cabeça vaga encarei o tapete que, da minha perspectiva, lia-se “bem-vindo” de cabeça para baixo.

A porta se abriu e um par de pernas femininas cobriu as letras no tapete. Sem um real interesse, subi o olhar e me assustei ao reconhecer o rosto ao qual as pernas pertenciam.

Recebi de volta um sorriso alegre. Ainda em choque, corri os olhos pela cafeteria. Ainda não havia sinal de , mas o que se passou pela minha cabeça naquele instante foi: “merda, isso vai ser esquisito” enquanto minha velha conhecida cruzava o local ao meu encontro.

— Harry! — Ela exclamou ao se aproximar e eu me levantei para cumprimentá-la. — Harry, eu achei mesmo que fosse você!

— Não acredito! — Desviei o olhar outra vez na direção do banheiro. — Abby? — Murmurei enquanto ainda nos abraçávamos.

— Eu passei pela calçada e te vi pela janela. Pensei em entrar e te dizer oi.

— Uau, Abby! — Abri um sorriso amarelo quando nos afastamos, mas ainda nos segurávamos pelos braços. — Quanto tempo, como você está?

— Ótima, e você? Veio passar o Natal em casa?

— Isso mesmo. — Acenei, evidenciando meu desconcerto. — E você, por onde esteve?

— Eu tenho um salão de beleza na avenida atrás da casa da minha mãe, então, ainda estou por aqui.

— Isso é ótimo, Abby! Eu me lembro que minha mãe disse que você cursou Cosmetologia em Manchester. E acho que me lembro de Gemma ter comentado sobre ter ido lá algumas vezes para fazer o cabelo ou as unhas.

— É mesmo! Ela passa por lá algumas vezes quando vem visitar Anne. Como está o bebê, por falar nisso?

— Ela está enorme! — Soltei a respiração pela boca. — E muito esperta também. Para ser honesto, acho que estamos estragando ela. — Eu ri com falsa culpa.

— Ela está sendo muito mimada pelo tio babão?

Pelo canto do olho, vi caminhando de volta para a nossa mesa.

— Não. Na verdade… — Me virei para e estendi o braço. Ela se encaixou ao meu lado e eu fechei a mão na sua cintura. — …a minha namorada está estragando a nossa sobrinha.

— É verdade. — respondeu e as duas riram.

Aproveitei para fazer as introduções:

— Abby, essa é a . Babe, não acredito que vou dizer isso, mas essa é a Abigail. — Apontei para a última em um gesto exagerado.

Como sempre agia quando conhecia algum dos meus amigos, se inclinou para um abraço caloroso cheio de palavras cordiais no meio, daqueles que eu só via quando estava na América Latina. Para mim, isso já era normal, mas era sempre engraçado testemunhar outras mulheres tentando — e falhando! — equiparar sua simpatia e os homens ficando levemente corados com a proximidade repentina de uma mulher desconhecida e bonita como .

Pressionei os lábios juntos.

Mas era melhor eu só dizer logo e acabar com isso.

Não diga nada, eu me reprimi.

Era só eu falar.

Pra que eu vou falar isso?

Eu ia só dizer mesmo.

— A Abby foi a minha primeira namorada. — Cuspi quando elas se separaram do abraço.

— Aquela que filmaram para o This is Us? — rebateu de boca aberta.

Com um aceno, confirmei.

— Fala sério?! — Ela gargalhou. — Que vocês iam comer naquele restaurante de comida chinesa do lado da sua casa de infância?

— Sou eu. — Abby riu confirmando.

Fiquei boquiaberto, a situação não foi nem de perto para o caminho que eu esperava. Imaginei que o clima ficaria esquisito, mas me esqueci do principal:

— Ela é minha fã. — Fingi tapar a boca e surrar para Abby.

— Ah! Que fofo. — Ela riu comigo

— Eu tenho tantas perguntas! — estendeu as mãos, mas deixou para Abby a opção de segurá-las. — Digo, as fotos na internet… — Ela continuou encorajada pela resposta física de Abby. — Aquilo sim era fofo! — Completou rindo.

— Você não é da região… — Abby disse sugestivamente. — Não tem sotaque do Noroeste da Inglaterra.

— Nope. Brasil. — esclareceu. — E você? Mora aqui? Está passando o fim de ano na casa da família, como o Harry?

— Oh, eu estava agora há pouco dizendo para ele que tenho um salão aqui no bairro.

— Chique! — elogiou. — Por isso o seu cabelo é tão bonito e brilhante! Com você sendo uma profissional e tudo mais.

— Ah, obrigada! Você é muito gentil.

a ignorou com um gesto, como se dissesse “imagina!”.

— E você, ? Faz o que no Brasil?

— Na verdade, eu trabalho em Los Angeles. É um emprego corporativo.

— Ela está sendo modesta. — Eu interrompi. — Ela é gestora de áreas… distritos… de logística. Alguma coisa assim. — Completei quando me embolei com o título. — Ela é uma mulher de negócios igual a você, Abby.

— Que legal! Então você mora com o Harry na América?

— Mais como eu moro com ela. — Rebati antes que pudesse concordar.

— Ele passa mais tempo no meu apartamento do que eu. — completou com uma encolhida de ombros. — Cuida das minhas plantas… quando não está tropeçando nelas.

e eu trocamos um olhar, a nossa piada interna passando despercebida por Abby.

— Harry Styles cuidando de plantas… — Abby disse com um sarcasmo divertido.

— Não imaginaria isso quando eu tinha 12 anos, huh? — Arqueei uma sobrancelha.

— E como ele era, digo, nessa época? — perguntou.

— Como qualquer menino dessa idade. — Abby respondeu. — Eu tinha 14, não sei o que vi nele. — As duas riram. — Adorava uma atenção. E ficava sendo expulso da sala por fazer imitações dos professores na frente da turma.

— Eu totalmente consigo ver isso. — balançou a cabeça sem desviar o olhar de Abby.

Quando as nossas comidas chegaram, convidou Abby para se sentar e comer conosco.

— Eu não posso. Estou indo para o salão agora. — Foi o que ela respondeu.

Ugh. a olhou com pena. — Trabalhar na quinta-feira após o Natal? Difícil.

— Eu sei. — Abby riu.

— Eu também estaria trabalhando se não estivesse aqui. — disse. — Bem, foi um prazer conhecer você, Abby. — Abraçou-a outra vez. — É sempre ótimo conhecer pessoas que conhecem o H desde quando ele era criança.

Fiz o mesmo e disse:

— Passa na casa da minha mãe algum dia desses se puder. A família vai adorar te ver.

— Eu vou sim.

Com acenos e despedidas, ela foi embora.

Enquanto nos sentávamos e eu pensava que isso tinha ido muito melhor do que eu imaginei, se virou para mim e perguntou:

— Acha que ela vai fazer isso? Tipo, combinar com você e aparecer na sua mãe antes de irmos embora?

— Nah. — Neguei com um sorriso. — Ela nem tem o meu número.

Segurando a risada, me repreendeu:

— Harry!

*

O balançar do avião não me deixava fechar os olhos e fingir que ainda estava numa cama quente com enroscada nas minhas pernas. Eu não podia acreditar como o meu recesso tinha passado rápido e eu já tinha retomado a turnê.

A caminho de… me esqueci por um breve momento qual era o destino. Eu nunca sabia onde eu pousaria quando voava, o único local que eu me importava em chegar era quando eu ia encontrá-la.

Com as palmas abertas, apalpei os bolsos até encontrar em qual estava a carteira. De uma das repartições, puxei uma foto 3x4 da . Aparentemente, isso era uma coisa que as mulheres faziam com seus namorados e maridos no Brasil. Digo, deixar uma foto na carteira deles. Junto com essa, eu também tinha colocado uma polaroid nossa. Era muito antiga e já estava desgastada e marcada em muitas dobras; nossas bochechas estavam coladas enquanto sorríamos. Eu tirei aquela selfie na câmera dela na primeira vez que fui à sua casa.

“Eu queria te dar uma coisa”, ela me disse ao me entregar o envelope antes que eu saísse para o primeiro show da primeira turnê que fiz depois que começamos a namorar. De dentro eu tirei a 3x4 e uma nota que dizia: “Para você me levar com você todas as vezes em que for para longe. Sua .”

Foi muito especial. Eventualmente, eu acrescentei a polaroid para que mesmo longe estivéssemos juntos, ainda que ambos congelados no tempo. Aquele Harry de 2018 — que tinha acabado de terminar sua primeira turnê solo, que ainda lidava com consequências desastrosas de um envolvimento mal calculado e que não sabia direito o que era aquilo que ele estava sentindo por aquela mulher desconhecida e tão cativante — não acreditaria em como as coisas estavam indo agora.

A nota escrita com uma caneta de tinta preta simples estava meio apagada pelo tempo, mas as palavras já tinham sido cravadas para sempre na minha memória.

Ao pousar quinze minutos depois do anúncio do piloto, eu ainda estava me sentindo meio nostálgico. Então, em vez de enviar uma mensagem para avisando que cheguei bem, eu liguei para ela assim que entrei no carro e antes mesmo de sair da pista de pouso.

Cometi o erro de não checar o fuso horário antes de fazer isso, ainda assim, ela atendeu quando achei que a ligação cairia na caixa postal.

— Olá, darling. Liguei em uma má hora? Só queria te avisar que acabei de pousar.

Oi, meu amor! Como foi o voo? — O seu tom de voz pareceu animado, então imaginei que não a tivesse acordado. — Nunca é uma má hora para falar com você, eu só estava no banheiro. — Número um ou número dois? E foi tudo bem no voo. Nenhum acontecimento.

Sua gargalhada saiu um pouco falhada do meu lado da linha.

Você é nojento.

— Número dois, então. Entendi.

Eu estava tomando banho! Satisfeito?

— Muito. Ainda está sem roupas?

Harry Styles, pelo amor de Deus!

— Ugh,
. Não o primeiro e último nome. — Fiz uma careta.

Onde você está agora?

— No carro indo para o hotel. — Tampei o microfone do celular. — Quanto tempo até chegarmos, Fred?

— Quarenta minutos, chefe.

Ei, eu ouvi isso! Quem está no carro com você?

— Ainda tenho quarenta minutos. — Repeti no telefone. — Então, ainda está sem roupas?

Me liga quando você chegar no hotel, Harry.

— Por quê? Só vai me dizer se estava ou não sem roupas quando eu chegar?

Não! E para de dizer isso na frente dos outros.

— Só tem o Fred aqui. Ele está dirigindo.

Surpreendentemente, consegui ouvir quando ela deu um tapa na própria testa.

— Que vergonha! Não fica falando essas coisas na frente dele.

— Ele sabe que estou brincando e que não vamos fazer sexo pelo telefone de verdade.

Pelo retrovisor, eu vi Fred engolir uma risada.

Cala a bocaaaa.

— Ok. Tudo bem. — Fingi me dar por vencido enquanto fazia uma careta para Fred. — Mas te ligo mesmo quando eu chegar lá, combinado?

Combinado. E só para você saber: deitada na cama só de calcinha.

Sua risada ecoou por meio segundo e ela encerrou a chamada antes que eu tivesse chance de responder.

— Que cretina. — Eu disse para a tela inicial do meu celular. — Desligou na minha cara. — Levantei o celular para Fred.

— A senhorita é a única que não se intimida pelas suas provocações. — Respondeu com uma risada.

— Enfurecedor, não é?

Sem ter o que fazer pelo resto da viagem, resgatei a polaroid da carteira outra vez e contei os dias até que pudéssemos nos ver de novo.


Passei pelas portas automáticas com o peso de uma das bolsas pendendo o meu ombro para baixo. Toda a banda tinha chegado há dois dias para se prepararem para o próximo show que já era amanhã. Posterguei a minha viagem o máximo que pude para passar mais tempo com . E agora, como eu estava sozinho, teria que fazer o meu próprio check-in.

— Olá. Tudo bem? — Deixei as malas no chão e apoiei os braços no balcão da recepção. — Gostaria de fazer check-in em nome de…

Merda. O responsável pelas reservas de hotéis tinha trocado todos os nossos nomes recentemente e eu me esqueci disso.

— Desculpe. — Eu sorri sem graça para o recepcionista. — Eu tenho o nome aqui em algum lugar…

Sem jeito, saí tirando tudo dos bolsos: recibos soltos, um pacote de chicletes, chaves — por que as chaves da ainda estavam no meu bolso? Ela me mataria se eu as perdesse —, carteira e, finalmente, celular.

Passei pelas mensagens, grupos de organização, — quando foi que falaram disso? — rolei as conversas sem rumo e sem saber direito onde procurar. Porra. Ia precisar ligar para alguém? Eu já estava começando a suar, o recepcionista me aguardava com um sorriso congelado.

Calendário!, exclamei dentro da minha cabeça. Lá estava a informação dentro de um evento bloqueando as datas.

Meu assistente, um anjo! Um salvador!, eu pensava quando li: “Check-in no Hilton - Mark Campbell.”

Campbell? Ugh. Você me odeia, Luis?

Levantei a cabeça e devolvi o sorriso para o recepcionista.

— Meu quarto está reservado sob Mark Campbell.

— Ah, sim. — Ele sorriu de volta. — Aqui estão suas chaves, Sr. Campbell. Quarto 1304.

Franzi o nariz em outra careta involuntária.

— Pode me chamar de Harry mesmo, por favor. — Sorri de canto e estalei a língua, piscando de forma descontraída enquanto apontava o indicador na direção dele.

Antes que eu pudesse enfiar tudo de volta nos bolsos, abri a carteira e ajeitei as nossas fotos nos compartimentos, as pontinhas agora meio para fora depois que eu as guardei de qualquer jeito para descer do carro.

Take you with me every time I go away
In a hotel using someone else’s name
I remember back at Jonny's place
It’s not the same anymore


*

— Você não vai acreditar no meu nome nesse hotel. — Exclamei assim que atendeu a chamada.

Vocês mudaram os nomes? O que aconteceu com John Berry?

— Era muito óbvio. — Gesticulei com a mão livre depois de soltar as malas ao lado da porta. — Mudaram de todos. E tenho certeza de que o meu novo tem dedo do Luis na escolha.

Caminhei pelo quarto me despindo: Os sapatos ficaram ao lado das malas, as calças na divisão da suíte e a camisa na porta do banheiro.

As cortinas estavam fechadas e me joguei na cama.

Descanse em paz, John Berry. disse em um tom fúnebre. — Qual é novo?

— Campbell. — Fiz uma pausa. — Mark Campbell.

Sua gargalhada estourou do outro lado da linha. Tive que tirar o celular do ouvido por um momento com um dos olhos fechados. Doeu em agudo.

Oh, vou mandar uma mensagem para o Henry. Ele vai achar isso hilário!

— Fico feliz por te prover com esse entretenimento. — Debochei. — Como ele está, por falar nisso?

Desolado. Tyler está se mudando para Chicago para fazer faculdade. Ele conseguiu uma bolsa de esportes.

— Mas isso é bom, não? — Franzi a testa.

Ele e Kate queriam que Tyler fizesse finanças em Berkeley. Aparentemente foi o que o pai da Kate fez, ou qualquer merda de rico assim.

— Problemas de rico, cara. — Eu dei uma risada. — Problemas de rico.

Meus pais ficaram felizes que eu fiz qualquer faculdade. — Ela riu junto.

— E eu que não fiz nenhuma!

No meu caso, eles ficaram felizes porque não poderiam pagar. Há! Ganhei.

— Não sabia que estávamos competindo. Tsc. — Retruquei fingindo indiferença.

Competindo? Claro que não. — Ela soou tão indiferente quanto.

— Ah! Já estou com saudade. — Reclamei. — O que você está fazendo?

Devorando um pote de Ben & Jerry’s na frente da TV para lidar com o vazio desde que você me deixou.

Eu gargalhei.

— Clássico.

E você?

— Estou para tomar um banho. Voo longo. Queria que você estivesse aqui, .

Eu também, baby. Eu também.

— Eu te ligo amanhã antes do show?

Por favor. E vou procurar contas que farão live para assistir.

— Eu vou ser o cara com o microfone no palco. — Rimos. — Difícil não perceber.

Eu te amo. Até amanhã.

— Te amo também. Beijo. — Finalizei em português.

Com um suspiro, deixei o celular escorregar na cama. Depois, com um grunhido, me pus sentado e peguei o celular de novo.

It’s not what I wanted
To leave you behind
Don’t know where you’ll land when you fly


*

Quando as últimas notas soaram nos pratos de Sarah Jones, dei as costas para o público e corri para trás do palco.

“Ótimo show, H”

“Muito bom”

“Arrasou”

Enquanto desacelerava no corredor para receber os cumprimentos da equipe, eu sorria e tentava regularizar a respiração ofegante.

Tudo correu bem. Nenhum acontecimento especial.

Uau. Isso foi incrivelmente rude. Quero dizer, cada show tinha algum detalhe que o fazia especial a seu modo. Mas, querendo ou não, se alguém me perguntasse em alguns anos: “De qual show você se lembra dessa turnê, Harry Styles?” Esse não seria mencionado.

O que eu quero dizer é que deu tudo certo. Tudo saiu como planejado. Eu não fiz nada demais para receber todos esses elogios.

Alguém levou um daqueles cartazes em que perguntavam “como você está? 1-10” esta noite, e eu mostrei dez dedos, mas deveria ter abaixado três.

Se fosse para ser honesto, eu preferia ter ficado em casa. Não. Eu preferia ter feito um show mais perto de casa. De preferência perto o bastante para que eu pudesse sair da arena e dirigir eu mesmo direito para o apartamento, estacionar o carro na minha vaga, colocar minha chave na fechadura e encontrar dormindo por cima das roupas dobradas e com a porta do closet ainda aberta porque ela começou a guardar tudo para me esperar acordada mas dormiu no processo.

— Ei, H! — Uma das meninas da banda me parou no meio do corredor. — Ótimo show. Nós vamos sair daqui para tomar uma num pub perto do hotel, quer ir?

— Hoje não, Elin. Estou cansado, mas obrigado.

— Vemos você no café amanhã, então?

— Claro. — Levantei o punho para que ela desse um soquinho. — Divirtam-se.

Depois de virar no final do corredor e entrar no camarim, eu revirei a bagunça para encontrar meu celular. Eu nunca o levava para os palcos. Eu conhecia cantores que faziam shows inteiros com o aparelho no bolso, mas isso não era algo que eu conseguia fazer. A minha imprevisibilidade não deixaria.

Algum dia eu poderia subir no palco com tudo planejado, no outro saltar da passarela para uma caixa de som, quem sabe. Eu não tinha como saber o que eu poderia aprontar naquela noite. Melhor não arriscar em nenhuma delas, então. A tela se acendeu assim que o resgatei debaixo de uma das almofadas do sofá. Havia mensagens de de muitas horas antes que eu não tinha visto e uma única ligação perdida.

“H, você está aí?”
“Te liguei e deu caixa postal. Droga, já deve ter subido no palco. O bebê da Jane nasceu!!”
“Lucy saiu mais cedo do escritório e vai me encontrar no hospital. Nós vamos jantar juntas em seguida. Me liga de volta quando puder.”


Retornei a chamada assim que terminei de ler as mensagens, mas deu fora de área. Jane, amiga dela do trabalho, estava grávida quando eu conheci e agora ela ia ter o segundo bebê. Era outro menino e ela pediu para que fosse madrinha.

Quando eu respondi a sua primeira mensagem com um “agora estou” e digitava uma resposta para a segunda, ela me retornou.

Desculpe, eu perdi sua ligação. Estava passando numa área com pouco sinal. disse frenética assim que atendi.

— O bebê nasceu? Foi tudo bem?

Jane e ele estão muito bem. Ele nasceu maior que o baby Eddy, mas eles são idênticos! Os poucos fios de cabelo são da mesma cor dos dela. Eu tirei uma foto, vou te mandar, só um minuto.

Coloquei o celular no alto-falante até receber a foto.

— Chegou. — Respondi. — Ah! Ele é muito fofinho. Mande meus parabéns para Jane e Dylan.

Ela murmurou uma concordância.

— E o nome, eles já escolheram?

Você se lembra como todos pudemos sugerir um nome? Lucy, Henry, eu… Bem, eu disse que ele poderia se chamar Andrew, porque é um nome parecido com André em inglês. E já que eu sou a madrinha meu voto conta mais.

— Conta?

Não. — Ela gargalhou. — Mas Jane amou o significado especial que seria criado para mim com esse nome e Dylan concordou. Então eles vão chamá-lo de Andrew mesmo.

— Andy e Eddy… — Refleti. — É meio parecido.

Ah, eu achei fofo!

— Meus parabéns pelo seu primeiro afilhado!

Estou tão feliz que acho que poderia explodir! — Ela quase gritou do outro lado da linha.

Ouvir dizer que estava feliz também me deixava feliz. Acho que agora eu poderia levantar mais um dedo no termômetro de “como estou me sentindo” do dia.

— E o jantar com Lucy?

Acabei de sair do restaurante. Ela tinha aula da pós e não podia se atrasar. Ela está tão crescida, H. — Fungou. — Nem acredito que é a mesma menina que ainda nem tinha idade para beber quando entrou no meu escritório pela primeira vez. E eu sinto falta dela todos os dias. Mas eu entendo como ela não poderia ser minha assistente para sempre. Além disso, ela está indo muito bem no trabalho atual.

— Fico feliz por ela.

Eu também. — Fiquei em dúvida se ela grunhiu ou se foi um uivo de contentamento. — Mas me fala de você, meu amor! Como foi o show? Se divertiu?

— Sim, eu me diverti. A plateia estava bem animada. Não errei ou esqueci nenhuma letra.

Meus parabéns! — Ah, o sarcasmo dela, até disso eu sentia falta. — Tenho certeza de que foi um sucesso! — Esta parte foi genuína.

— As pessoas pareceram gostar.

E o próximo show é em dois dias?

— Isso. Estou off amanhã, então alugamos algumas horas em um estúdio local para brincar um pouco.

Mas você nunca descansa? Você já está há duas semanas mal tendo dias de folga.

— Eu vou descansar quando eu estiver de volta em LA estirado no seu sofá assistindo Netflix e roubando sorvete do seu pote. Além do mais, estamos querendo começar a juntar umas músicas para o próximo álbum.

Com isso, eu quis dizer que já tínhamos músicas suficientes para um álbum e só precisávamos escolher quais, ou seja, “juntá-las”. — É como se o que acabei de dizer sobre descansar nem tivesse entrado no seu ouvido. — Ela suspirou teatralmente. — Você nem terminou a turnê desse e já está pensando no próximo!

— É que eu venho escrevendo tanto, . E as músicas que eu tenho escrito, ah! Estou morrendo para ver como vão soar gravadas em estúdio.

Você terminou aquela que tocou para mim em Londres no final do ano?

— Talvez…

Talvez?

— Vamos ver.

Vamos ver?

— Você só vai repetir o que eu disse com outra entonação? — Zombei. — Você sabe como eu acabo mudando o arranjo mil vezes até ficar sem tempo e ter que escolher um na pressão.

Talvez você devesse descansar antes de pular direto da turnê para fazer outro álbum. E assim, talvez, isso não aconteceria. Por falar em descanso… Eu estive pensando em adiantar minhas férias para o final da sua turnê. O que você acha? Nós poderíamos aproveitar algum lugar aqui dos Estados Unidos, tipo o Havaí.

Eu não gostei nem um pouco de como aquilo soou.

— Havaí? O que aconteceu com praias no Brasil?

Se eu precisar voltar de vez, não faz muito sentido passarmos férias lá. Eu gostaria de fazer algo aqui dentro… Explorar mais.

— Ainda não tem nenhuma atualização sobre o seu visto?

Estou trabalhando nisso. Não quero nos cansar de ficar batendo na mesma tecla sobre isso, mas eu prometo que assim que tiver alguma atualização definitiva você será o primeiro a saber.

Sem uma resposta, acabei ficando em silêncio. Um momento melancólico se instalou no ar. Eu não precisava estar olhando para para perceber que ela tentava manter o seu tom casual de sempre que planejávamos férias, mas o peso era diferente dessa vez. Não era possível ignorar isso.

Mais do que tudo eu queria falar com ela sobre isso, que ela não precisava fingir que nossos mundos não estavam para se abalar com a iminência da sua partida. Eu queria dizer que ela não precisa agir como se nada disso estivesse acontecendo, porque estava. E o pior era que eu não parecia capaz de fazer nada para impedir.

No entanto, eu não me senti no direito de lhe privar do desejo expressado. Naquelas condições, eu faria tudo o que ela quisesse. Por isso, tudo o que eu disse foi:

— Havaí será, então.

*

— O que você acha se adicionarmos alguns segundos nessa nota e a prolongarmos assim… — Cantei metade do verso da forma que estava imaginando para Ryan e dei o meu melhor para imitar os sons no resto.

Com a mão sobre o painel de controle, ele me encarou através do vidro da cabine. Depois, trocou um olhar silencioso com Tom.

— Eu gosto assim. — Tom foi quem deu o aval final.

— Então vamos fazer. — Ryan concordou.

— Você quer começar outra vez, H? — Tom sugeriu.

— Ok. — Troquei o peso das pernas. Eu era cantor há mais de 15 anos, mas ainda não tinha me acostumado com as longas horas parado em pé para gravar as músicas.

— Vamos continuar do verso dois, então. Vai!

Respirei fundo e troquei o peso outra vez; meu pé direito foi um pouco para frente enquanto me inclinei mais próximo do microfone pendurado pelo teto, mas sem o tocar.

Na lateral e sobre um suporte, havia uma folha com a letra separada por partes, deslizei meus olhos até chegar na parte para baixo do meio, localizando o verso dois, antes de puxar o ar e começar:

“I've never been a fan of change / But I'd follow you to any place / If it's Hollywood or Bishopsgate, I'm coming, too” Minha garganta deu uma travada no final e, apesar de não ter sido suficiente para estragar a tomada, minha voz saiu mais rouca do que eu queria. Com meus olhos se enchendo de lágrimas, eu percebi que minhas próprias palavras estavam voltando até mim para me estapear bem na cara.

Nada do que eu estava passando com no momento era remotamente uma possibilidade quando escrevi esse verso. E agora com um novo significado, com uma iminência de realidade, isso me atingia como um soco na boca do estômago.

Puxei o ar com força, como se realmente tivesse apanhado. Com a respiração presa no lugar errado do corpo, eu continuei:

“If you're feeling down / I just wanna make you happier, baby / Wish I was around / I just wanna make you happiеr, baby”

Eu não me lembrava que eu tinha escrito uma letra tão filha da puta. Agora eu queria que fosse eu mesmo a me dar o soco.

Espera, pensei. Em teoria, eu mesmo já me dei. Se eu tivesse uma máquina do tempo, Harry Styles teria uma conversa muito séria com o Harry do passado. Ele tinha estragado a minha gravação.

“We’ve been doing all this late n-n…” — Em um engasgo, não consegui completar a linha.

De imediato, a base instrumental parou de tocar e percebi que Ryan tinha apertado algum botão no painel. O som divertido e animado deu lugar aos olhares tensos dos meus amigos me encarando.

— Hm, caras… — Limpei a garganta. — Vocês acham que podem me dar um momento?

— Claro… — Eles trocaram outro olhar, um muito diferente do anterior que apenas ponderava a melhor escolha artística. — Por que não fazemos um intervalo, sim?

— Nós vamos lá embaixo pegar um café, não é, Ryan? — Tom completou.

— Você quer alguma coisa? Água, uma barrinha de cereal? — Ryan me perguntou.

— Não, estou bem. Obrigado.

De maneira nada sutil, eles se levantaram e saíram.

Com uma das mãos no estômago, respirei fundo e senti meu diafragma. Péssimo momento para se esquecer como respirar corretamente para cantar.

Mais do que apenas um pouco chateado comigo mesmo, abri a porta da cabine e parei no meio do ambiente. Dali, eu via com pouca nitidez o que já tínhamos feito até então refletir no monitor sobre a mesa. Era promissor, eu gostava dessa música. Não era suposto que eu sofresse com ela. Eu não a escrevi com esse propósito. Então por que doía tanto?

De algum modo, me lembrei como estava frio lá fora e peguei minha jaqueta antes de me aventurar pelo corredor. Atravessei o estúdio sem hesitar em direção ao único lugar que imaginei que eu fosse ser capaz de conseguir respirar direito de novo.

Os lances de escadas só serviram para me deixar ofegante e abri a porta corta-fogo já sem fôlego.

Puxei o ar pelo nariz e pela boca ao mesmo tempo e caminhei até a ponta da laje. Coloquei um dos pés no muro e olhei para baixo. O prédio em frente era muito menor. Os meus pensamentos estavam tão disparados quanto o meu coração. Tudo o que eu conseguia pensar era que nada disso daria certo no final. Poderíamos, e eu, sobreviver à sua volta ao Brasil? E se isso a destruísse de modo que ela me ressentisse? O meu privilégio pesando sobre nós dois. Afinal, eu poderia ficar em LA e ela, banida sem saber quando poderia voltar.

Não havia nada que eu pudesse fazer para deixá-la feliz se essas fossem as circunstâncias.

A princípio, assim que tirei o celular do bolso, busquei primeiro digitar seu número no teclado. Com as mãos trêmulas, percebi que não teria forças para ouvir sua voz.

Em vez disso, digitei uma mensagem.

Demorou um segundo para ela visualizar e outro para aparecer que ela digitava uma resposta. Como eu não saí da sua tela, o aviso de que visualizei a resposta deve ter aparecido para ela de imediato.

Passaram dois ou três minutos antes da sua foto aparecer ampliada na tela e o celular deixar a minha mão ainda mais trêmula. Parece que eu teria que verbalizar palavras, no fim das contas.

— Ei, lindo. — Ela abriu em português. — Já saiu do estúdio?

— N-não. Ainda estou aqui.

Então por que está me mandando mensagens perguntando o que estou fazendo? — Seu tom era um misto de confusão e desconfiança.

— Só q-queria checar se já tinha chegado em casa… C-como está o seu dia…

Você está bem?

Ela pegou tudo muito rápido no ar. Achei que teria mais tempo para me recompor. Entrei em pânico. Não queria deixá-la preocupada.

— É, é. Estou bem.

Olha, em caso algum dos seus planos de turnê mudem… Eu não vou estar em casa pelos próximos dias.

Meu coração deu um solavanco tão forte que precisei colocar uma das mãos no peito.

— O que aconteceu? — Tentei não soar alarmado.

Achei que tivéssemos mais tempo.

Achei que poderíamos driblar isso.

Tivemos uma emergência em San Francisco… Porra! — Ela soltou de repente. Muito português na sua fala e eu já sabia que tinha algo muito estressante acontecendo. — Você pegou o caminho mais longo! — Isso não pareceu ser comigo. — Campbell e eu estamos a caminho do LAX. Na porra do Dia dos Presidentes.

E no horário de pico de segunda-feira. Não é minha culpa. — Escutei a voz masculina rebater e protestar com um grunhido. — Quer dirigir, então?

Cala a boca e olha para a estrada.

Por um segundo especial me esqueci de tudo o que pesava à nossa volta enquanto engasgava uma risadinha.

— Você sabe que deveria estar dirigindo para isso não acontecer.

Harry, de que lado você está?

— Você é muito mandona. Eu não queria estar no lugar do Henry agora.

Ughhh! — Ela grunhiu de novo. — Preciso de férias. Estamos tão sobrecarregados esse mês que parece que já trabalhei o equivalente a um ano. Preciso de férias. De novo.

— Sabe, talvez seja bom irmos mesmo para o Brasil durante um tempo. Você pode descansar.

É. — Sua resposta com uma única letra que nem formava uma sílaba me incomodou.

Com o vento gelado e forte, mechas do meu cabelo pinicavam meus olhos. Apertei o casaco em volta do corpo e funguei pelo ar secando minha respiração.

— Ei! ! Estou aqui, ok? Estou bem aqui.

De tudo o que eu havia dito até então, de toda a hesitação, essa era a única certeza que estabilizava a minha voz.

Ah, eu sei o que você está dizendo. — Seu tom se tornou um pouquinho mais vivo.

— Como assim?

Isso não é exatamente o que você escreveu no refrão de uma música? Como é o nome mesmo? — Eu não respondi nada enquanto ela pensava. — Aquela que você escreveu quando brigamos e precisou viajar antes de fazermos as pazes?

Depois de um tempo pensando também, em um estalo entendi do que ela falava.

Satellite. — Respondi entredentes, segurando um sorrisinho que só ela para conseguir arrancar de mim num momento como aquele.

Certo. Certo. — Ela riu e, junto com sua melodia ritmada, ouvi Henry rindo também.

— Diga ao senhor, seu amigo, Campbell, que ele precisa ficar do meu lado. Algo como bro code. — Transformei meu sotaque aos poucos e terminei a frase como um completo americano. — Código de homens.

De certa forma, e apesar das implicâncias pontuais que eu fazia contra Henry, eu gostava dele. Houve um momento muito breve no passado em que eu me senti ameaçado pela sua presença constante na vida de .

Isso não era mais a realidade. Primeiro porque eu confiava de olhos fechados nela; segundo que eu entendia o que era se tornar um grande amigo de alguém com quem você já teve um envolvimento íntimo — eu era expert nisso; o que nos levava ao terceiro ponto: eu não era um hipócrita — ou pelo menos tentava não ser.

— E eu quis dizer tudo o que escrevi naquela época. E continuo agora.

O silêncio pairou pesado, como se ficássemos sem respirar até os ouvidos começarem a zumbir. E então, um suspiro audível do outro lado da linha.

Como está no estúdio? retomou no mesmo momento em que abri a boca, decidido a falar algo. Sua voz elevou alguns decibéis enquanto tentava enterrar ainda mais fundo quaisquer que fossem seus pensamentos sobre esse assunto.

— Está legal.

Apertando os olhos, levantei o pescoço e encarei o céu cinza e nublado. Era engraçado quando o clima, de uma forma muito poética, espelhava o que sentíamos por dentro. Apalpei os bolsos procurando pelo meu celular para escrever algum verso, me esquecendo de que ele estava no meu ouvido.

— Finalizamos a mixagem de uma música que eu estava enrolando há meses. — Foi a minha vez de suspirar.

Fazia um tempo que eu não me sentia assim… sem saber o que estava fazendo. E não gostei de me lembrar como era.

— O Ryan acha que já temos músicas mixadas o suficiente para masterizar o álbum, mas eu acho que ainda precisamos otimizar a sonorização para igualar… — Soltei uma bufada. Junto com meu desconforto, uma névoa saiu pela minha boca. — Desculpe. Só estou falando demais. Você não quer saber sobre a parte técnica.

Eu não me importo. — Ela rebateu antes que eu finalizasse. — Eu amo te ouvir falar sobre o que você ama. E eu não sabia que vocês estavam tão próximos de terminar o álbum.

— Bem, eu continuo escrevendo, então não sei se estamos lá ainda. Mas deveríamos fazer uma festa como fizemos com Fine Line. No Brasil, claro. Eu posso comprar passagens para todos e…

Eu ainda posso tirar um visto de turista, Harry. — Ela me interrompeu. — Não é como se eu nunca mais pudesse pisar aqui.

— Claro, eu não quis dizer que… — Parei de falar subitamente com algo molhado pingando na minha boca. — Olhei para cima, imaginando que ia começar a chover, mas tudo o que vi foi um borrão vermelho. — Merda. Merda!

Continuei com a cabeça para cima e pincei as narinas com os dedos.

O quê? questionou e, diante do meu silêncio, adicionou: — H, você está bem?

— Meu nariz está sangrando. — Respondi com a voz em cortes nasalados. — Desculpe. Vou ter que te ligar daqui a pouco.

Sem esperar que ela respondesse, enfiei o celular no bolso. Fiz o caminho reverso, descendo as escadas em passadas rápidas, mas cuidadosas, para não despinçar o nariz e nem pingar sangue na minha roupa, eu não tinha outras ali e não voltaríamos para o hotel em algumas horas ainda. No andar correto, atravessei os corredores direto para o banheiro.

Demorou uns bons cinco minutos para controlar o sangramento. Eu deveria ter imaginado que a altitude misturada com o ar seco não seria uma boa combinação.

Com parte do meu rosto coberto por papel higiênico, encarei meu reflexo no espelho. Quem me encarou de volta foi apenas eu mesmo — um pouco cansado da rotina restritiva de shows; dava para ver nas olheiras um pouco fundas e suavemente escurecidas. Não era nada alarmante, mas eu também não era mais tão jovem, não tinha mais 19 anos.

Sorri. Era bom envelhecer.

Lavei a boca outra vez; meus dentes estavam com resquício de sangue.

Quando toda a adrenalina da confusão foi esfriando, junto eu me esqueci que estava conversando com e tomei um susto ao puxar o celular vibrante de bolso e encontrar sua foto.

, eu esque…

Harry, que caralho? — Precisei afastar o aparelho do rosto com o agudo estridente que penetrou meu ouvido. — Você não pode dizer que está sangrando e parar de falar, porra! — Sua voz flutuava entre grave e agudo, ambos em alguns bons decibéis mais alto do que o seu normal. — Eu ouvi um monte de barulho e você não me respondia. — Agora as sílabas chegavam até mim falhadas. — Achei que alguma coisa tinha acontecido, alguma pessoa…

Quando seu estado passou de ira para temor senti meu coração se despedaçando na transição. Eu era muito idiota.

— Me perdoa, minha linda. Eu achei que tivesse desligado. Eu estou bem, eu juro. — Implorando, eu queria cessar seu pavor o mais rápido possível.

Na verdade, queria que não a tivesse assustado de forma alguma. Não foi minha intenção. Queria estar na sua frente e poder lhe dar um abraço acolhedor.

Só de pensar em estar nos seus braços eu já conseguia manifestar o cheiro doce, familiar e inconfundível dos seus cabelos — geralmente misturado com o cheiro do seu perfume de notas opostas e do musk ambarado do meu próprio, já que era bem comum que sempre que eu chegava a encontrava vestindo algo meu.

Depois, era quase como se eu pudesse sentir a textura macia de sua pele — meus dedos desenhando círculos no seu braço enquanto conversamos lado a lado no sofá.

Seria assim o tempo todo se ela fosse mesmo embora? Minha imaginação vagando por momentos agridoces e meu coração apertado pela falta da sua presença física?

— Estou sentindo muito sua falta. Saudade.

Harry, o que aconteceu?!

Ela ainda estava nessa? Achei que já tivéssemos encerrado esse assunto. Não percebi que tudo ficou na minha cabeça e, que para ela, não houve explicação.

— Está muito frio e eu fiquei no vento do lado de fora, meu nariz secou e sangrou. Só isso. Eu te disse que estou bem, .

É, mas eu não posso ver, então você precisa me dizer, ok?

Sem avisar e com um sorriso no rosto, eu troquei a ligação para vídeo.

— Veja por você mesma. — Enquadrei meu rosto na câmera e tirei o papel do nariz, fungando para conferir: tudo seco; sangue e umidade corporal.

No entanto, meu nariz estava bem vermelho se comparado ao resto do meu rosto; uma mistura de fricção do papel e mancha de sangue.

me observou em silêncio, suas pupilas se mexendo conforme parecia esquadrinhar cada canto do que eu mostrava na tela. Seu olhar, desconfiado. Movi o aparelho em volta para que ela me visse de diferentes ângulos.

Como era um banheiro comercial, a luz brilhante e fria evidenciava as minhas imperfeições.

— Você parece cansado. — Disse por fim. — Tem dormido o suficiente? Bebido bastante água? Porque descansando sei que não.

— Sim, estou me cuidando. Só ando um pouco preocupado.

— Com o que você está preocupado, meu lindo? — Aproximou o rosto da câmera. — Não é porque ainda não teve retorno sobre as músicas que você submeteu para o Grammys deste ano, é?

Resmunguei, o ar saindo pelo meu nariz como se eu quase soltasse um “aff” abafado, meio confuso e certamente irônico. No entanto, eu não queria parecer grosseiro com ela.

Com cuidado e depois de prender o ar para medir o meu tom, eu respondi:

, você acha que isso é o que se passa pela minha cabeça? De todas as coisas que estão acontecendo, você acha mesmo que eu ligo se meu álbum vai ser indicado para a porra de um grammy?

Por algum motivo; ou melhor, por esses motivos, meu humor estava instável nos últimos dias. Qualquer mínima coisa me tirava dos eixos; como a letra de uma música ou uma pergunta com propósito de desviar o foco, tudo podia ser motivo para disparar uma reação exagerada.

— Babe, você não precisa se preocupar comigo. Se tiver como dar um jeito, eu vou dar um jeito.

— Não, . Nós vamos dar um jeito, ok? — Eu quase gritei para a tela. — Você precisa me incluir nisso. Pra que eu sirvo se você não vai contar comigo?

No minuto que levou para abrir a boca mas permanecer estática, mil outras coisas borbulharam até a minha superfície e pareceram essenciais serem ditas.

— Isso me afeta também! Eu estou passando por isso também, porra!

— Harry, podemos…

Naquele momento, me esqueci por completo que ela estava no carro com alguém indo ao aeroporto para uma viagem de trabalho. Na verdade, eu não me importava com isso. Se era agora que teríamos que falar sobre isso, nessas circunstâncias, então que fosse! Eu também estava trabalhando, não me esqueci disso.

Ao olhar em volta, eu ainda estava naquele maldito banheiro branco num estúdio de gravação no meio da Europa… e a milhares de quilômetros de distância dela.

— Não, podemos conversar agora! Por que está agindo como se tudo isso estivesse acontecendo só com você?

— Porque sou eu quem está perdendo tudo! — Ela explodiu. Suas narinas inflaram enquanto sua respiração parecia se preparar para algo grande. — Eu que estou indo embora! Você pode ficar aqui; na sua vida perfeita, com a sua turnê perfeita, seus estúdios de gravação e seus amigos produtores.

Para isso, eu não respondi nada.

Seu silêncio encontrou o meu de volta.

Aos poucos, eu percebi, abaixou o celular e desviou o olhar da tela. Ficamos assim, sem dizer nada pelo que pareceu um período desconfortável de tempo.

— Olha, eu preciso ir. — Ela quebrou o silêncio, tinha levantando o celular até o rosto, mas ainda não me olhava. — Campbell está entrando na estrada do aeroporto.

— Não, , espera! — Implorei. Com um pouco de sorte, isso bastou para que ela voltasse a encarar a tela. — Você tem razão! Me desculpe.

Isso pareceu pegá-la de surpresa.

— Me desculpe. Você está certa, a maior prejudicada nisso tudo é você. Eu não deveria fazer isso ser sobre mim. Eu quero ajudar você, não piorar tudo. Você me perdoa?

Seu suspiro veio junto com outro inflar de narinas, esse para segurar o choro. — Tudo bem, H. — Outro breve silêncio. — E eu tenho algo para te contar, mas queria esperar a próxima vez que nos veremos pessoalmente… ou quando estivéssemos sozinhos, pelo menos.

Essa foi sua maneira respeitosa e delicada de dizer que… eu estraguei tudo. Como sempre, fui um idiota.

Embora nós soubéssemos que Henry nos escutava, ele não fez nenhum barulho. Fosse outra situação, o momento não passaria sem sua interjeição. Eu agradeci em pensamento pela sua discrição e respeito. Ainda assim, não pude evitar o constrangimento pelo meu comportamento. Eu perdi a cabeça por um momento, e esse não era o homem que eu era. Especialmente não o homem com quem estava há quase seis anos.

Um relacionamento duradouro só sobrevive com comunicação e transparência. Desespero e medo não vencem nenhuma guerra. E eu precisava me lembrar que nas minhas batalhas, meu oponente nunca seria a . Ela era minha aliada.

“Nós realmente precisamos ir, ”, escutei Henry murmurar.

Eu sequer notei quando eles tinham chegado, mas percebi — talvez um longo tempo depois — que o carro estava parado pois a imagem de estava mais estável. Há quanto tempo Henry estava esperando que terminássemos aquela discussão?

— P-podemos conversar mais tarde? Quando você pousar em San Francisco?

— Eu te ligo de volta quando chegar no hotel.

Os dois trocaram algumas outras palavras que não ouvi bem e então virou a tela para o lado e Henry apareceu momentaneamente.

— Quando vocês dois pararem de discutir, você deveria aparecer lá em casa para um jantar, eu faço uns drinks para as patroas e tenho um whisky envelhecido que tenho certeza de que você vai gostar.

Um convite casual para jantar depois de presenciar uma discussão de relação parecia exatamente a coisa certa a fazer vindo da posição em que ele se encontrava. Eu mesmo não poderia ter pensado em algo melhor para amenizar tudo. E isso me fez rir.

— Só marcar com a .

Ele acenou de leve com a cabeça. Nós homens éramos muito mais simples mesmo, bem que sempre me dizia.

— E outra coisa! — Campbell trouxe a atenção de volta para ele. — Você não deveria se preocupar com nada isso, não está indo a lugar nenhum.

— Campbell, você não sabe disso. — contrapôs de fora do enquadro.

— Não, mas eu sei. Eles não seriam burros de te deixar ir.

Naturalmente, ela ficou um pouco desconcertada com o elogio.

No fim, ele não sabia. Apenas acreditava nela, assim como eu.

— Nós temos mesmo que ir agora ou vamos perder o voo. — Henry reforçou, direcionando o encerramento. — Mas não se preocupe, bro. — Desviou o contato visual da câmera por um breve segundo, mas, antes de continuar, me encarou de volta. — Eles nos reservaram quartos separados.

— Henry Campbell! — O grito de horror de foi imediato. — Babe, ele só está brincando. Quero dizer, é óbvio que não vamos dormir num mesmo quarto, ele só está te provocando.

A reação de trouxe um certo alívio para a nossa despedida. Eu odiava quando algo acontecia e eu não podia dirigir até a sua casa e esclarecer tudo cara a cara. Não importava quantos anos passassem, eu não sabia me acostumar com isso: estar longe.

, tudo bem se você precisasse dormir no mesmo quarto que ele. É trabalho, eu entendo. Você não precisa se justificar pra mim, ok? — Parte da resposta foi para provocar Henry de volta, mostrar que eu era superior, que eu não tinha ciúmes dele, que ele não passava de alguém que ela estava indo viajar por obrigação. — Tenha um ótimo voo e me manda uma mensagem quando pousar, por favor. — Antes que ela desligasse, completei: — E vai se foder, Campbell.

— Ótimo falar com você também, Styles.


Saí do banheiro com um misto de sentimentos — uma parte de mim era alívio por ter extravasado um pouco do que eu estava guardando; outra parte sabia que isso poderia ter sido feito de modo diferente; mais uma parte, além das anteriores, que discordava de tudo; um quarta parte, bem pequena, tinha ficado presa em .

Quando entrei no estúdio, Tom questionou onde eu estava.

— Tive um sangramento nasal. — Encolhi os ombros. — Estava no banheiro.

Sem olhar para Tom, me contive antes de estalar os dedos da outra mão. Uma já tinha ido sem que eu me desse conta.

— Você está bem? Pensamos que tinha ido embora. — Ele deu um passo para frente e colocou a mão no meu ombro, o que inevitavelmente me fez encará-lo.

— Pra onde eu iria?

— Eu não sei, de volta para o hotel?

— Não tenho o endereço.

— Ah, merda…

— É. — Cruzei os braços e olhei em volta. — Cadê o Ryan?

— Foi até a recepção perguntar se te viram sair.

— Porra, desculpa.

— Tá tudo bem, cara. Você é o chefe. — Tentou descontrair, mas voltou a ficar sério quando eu não ri. — O que aconteceu?

Apenas encolhi os ombros outra vez.

Tom deu a volta e foi até o violão apoiado na lateral da mesa de controle, se sentou na cadeira mais próxima e começou a afiná-lo.

— Estava no telefone com a , ela está indo em uma viagem de emergência com um cara do trabalho.

As notas eram suaves, preencheram o vazio do estúdio com um leve tilintar. Me escorei na mesa, ainda em pé, e aguardei até que ele finalizasse afinar duas cordas antes de me responder:

— Aquele lá que ela é amiga? — Levantou a cabeça e me estudou com cuidado para manter sua expressão neutra.

Como resposta, pude apenas concordar com um balançar de cabeça.

— Hum.

— O quê?

Devagar, Tom tombou a cabeça para um dos lados.

— Você não gosta dessa ideia. — Balancei a cabeça de novo, não exatamente negando sua sugestão, enquanto ele ainda falava. — É isso que estava te incomodando mais cedo?

— Ela acabou de me contar. Na ligação.

— Então você não gosta da ideia. — Repetiu como uma confirmação.

— Não é como se eu estivesse preocupado com onde ela está, ou com quem, nesse caso.

— Mas…?

— Mas eu não consigo parar de pensar nela. — Esfreguei a testa, abaixando a cabeça até que eu encarasse meu par de botas UGG; fazia uma combinação horrível com a calça de moletom azul marinho e me colocava no mesmo patamar que uma mulher de meia-idade que morava em Beverly Hills. — Eu não acho que estamos exatamente em um bom momento, com toda essa questão de ela ter que ir embora a qualquer instante e tal.

— Então você está me dizendo que acha que ela pode fazer alguma coisa… nessa viagem?

— Não, cara! Esquece a viagem!

— Ok. Foi mal!

— Não… — Suspirei. Quando eu fiquei tão ruim nessa coisa de se expressar? — Tom, desculpe. Eu não estou preocupado com isso, mas com ela. Da última vez que algo grande assim aconteceu, ela sumiu no Brasil, não atendeu as minhas ligações e eu não a vi por um mês e meio!

— Você foi para uma festa com a sua ex modelo e não atendeu as ligações dela de novo, seu idiota?

— Não, claro que não!

— O que você fez dessa vez, então?

— N-nada. Eu não fiz nada.

— E o que te faz pensar que ela vai sumir de novo sem te avisar?

Travei o maxilar quase sem perceber e prendi a respiração por longos segundos antes de soltá-la em outro suspiro audível.

— O problema é que ela também não me conta nada… — Murmurei. — Então eu não sei se ela precisa de ajuda.

— Uma mulher como a vai te dizer se ela precisa de ajuda. Se ela não diz nada… Aqui vai a novidade: é porque ela não precisa! — Tom franziu a testa em uma negação ultrajada. — Você não a conhece?

Eu já estava levantando meu braço para argumentar com ênfase, mas, em vez disso, gaguejei. Deixei que o braço caísse de volta na lateral do corpo com um baque seco e balancei a cabeça, reconhecendo minha derrota naquela discussão.

— Às vezes me esqueço que você é casado há 30 mil anos.

— Me respeita, garoto, eu só tenho quarenta anos.

— Quarenta… e dois.

— Cala a boca e vai escrever num papel essas coisas que você falou antes que se esqueça.

— O-o quê?

— Eu preciso fazer tudo aqui? — Tom bufou, colocou o violão de volta onde estava e cruzou o cômodo de novo, dessa vez se sentando em frente ao piano.

Com uma pose de superioridade, ele pressionou um Fá Maior — outra vez e mais uma, até pegar o jeito e o ritmo que, muito claro para mim, tinha acabado de vir da sua cabeça. Quando estava pronto, puxou o ar e cantou num tom baixo:

“I’m not worried about where you are, with who you’re traveling to…” — Tirou as mãos das teclas de repente e se virou no banco. — Para onde você disse que ela ia mesmo?

— Eu não disse.

— Certo.

Revirei os olhos.

— Só San Francisco.

Uma pausa. Dava para ver na sua expressão que, assim como eu, ele pensava no que viria depois disso.

— E se fosse... Toca outra vez. — Pedi e ele recomeçou a melodia. — “I’m not worried about where you are, or who you will go home to…”

— “I’m just thinking about you…”
— Tom completou de onde parei.

— Eu gosto disso.

— Eu sei que você gosta. Agora abre suas notas aí e vamos trabalhar.

*

No nosso relacionamento, embora eu fosse a pessoa que acordasse agitadamente cedo enquanto só se levantava depois de o despertador tocar três vezes, em alguns momentos eu me percebia acordando e, ao esticar o braço no seu lado da cama, não a encontrando mais. Não porque ela acordou mais cedo do que eu, mas porque eu dormi mais.

Nesses momentos mais frequentes do que raros sempre que dormíamos juntos, havia um padrão: eu sempre acordava com o cheiro de café sendo coado à la Brasil. Dessa vez, no entanto, senti cheiro de torradas e frutas tropicais.

Só depois do cheiro que abri os olhos. Da janela do nosso quarto era só azul até onde a vista alcançava. Azul, verde dos coqueiros e bege da areia com cristais tão finos que passariam numa peneira. Eu nunca estive no Havaí antes. Acho que, de todos esses anos, essa era a primeira vez que e eu viajávamos para um lugar que era novo para os dois.

A suíte do resort era modesta, assim como a maioria das acomodações da região — o preço era pela vista; era por descer até o térreo, caminhar cinquenta metros pelo caminho de tábuas entre a grama e já estar com os pés na areia quente, os olhos apertados pela claridade do sol e da maré quente e úmida da ilha.

Assim, eu só precisei pôr os pés para fora do quarto e lá estava ela de costas para a bancada que separava a cozinha da sala: uma camisa branca com mangas curtas, mas que de tão largas iam até seus cotovelos, e com a barra embolada acima da bunda — que era muito grande para deixar que até mesmo a camisa números maiores ficasse folgada no quadril — e… aquela era uma das minhas cuecas?

Com o barulho dos meus passos, ela parou de se balançar no ritmo da música que saía baixinho do seu celular.

— Olha. — Ela se virou e apontou um pedaço de fruta na minha direção. Eu freei antes que me atingisse no nariz e não vi nada além de um borrão rosa. — Tem gosto de goiaba!

Ainda meio sonolento, passei um dos braços pela sua cintura e deixei um beijo desajeitado em alguma parte lateral do seu rosto, me virando em seguida para a bancada que já dispunha de dois pratos feitos.

— Onde você arrumou tudo isso?

Abacaxi em rodelas, manga em tiras, goiabas descascadas, torradas e um café que não cheirava como eu estava acostumado.

— Tem um mercado no final da avenida saindo do hotel.

— Que mercado?

— Aquele lá da frente, que tem uma Walgreens no mesmo lote.

Procurei pelas chaves do carro, encontrando o molho no mesmo local que deixei quando chegamos ontem à tarde. Ela nunca voltava com as chaves para o lugar certo depois de usá-las.

— Você foi andando? — Franzi a testa, o resort era enorme. A coisa mais perto ficava pelo menos a uns dois quilômetros de distância.

— Sim. — Ela sorriu. A cada uma de suas respostas, ela parecia ainda mais radiante. — Por que o tom surpreso?

— Você foi andando assim?

— Claro que não, doido!

— Você poderia ter me acordado para te levar, .

Sua reação ao meu comentário foi um franzir de testa tão forte que seu rosto se deformou por um momento.

Em sequência, soltou uma longa frase em português.

— Eu poderia ter levado eu mesma! — Disse isso em inglês para que eu entendesse, mas continuou a resmungar em português.

— Babe, não foi o que eu quis…

— H, estava lotado de turistas, eu não ia fazer compras em paz exibindo sua cara por aí. Eu fui andando porque queria apreciar a vista. Relaxa, tá tudo certo. — Ela terminou rindo e eu ri junto por reflexo.

— Desculpe mesmo assim, isso saiu meio errado.

Ela balançou uma das mãos como se pedindo para eu esquecer e, com naturalidade, retomou seu ponto:

— As frutas aqui são de verdade, olha isso! Como poderíamos perder a chance de comer algo que não está empacotado há semanas?

Não sabia qual era o meu prato, mas considerando que isso não importava muito, pesquei uma rodela de abacaxi e dei uma mordida.

— Tem o mesmo gosto pra mim. — Dei ombros e grunhiu.

— Isso porque você é da Inglaterra, não é como se fosse muito melhor do que a Califórnia.

Travei um sorriso; não seria inteligente da minha parte argumentar em nenhum momento, mas especialmente nesse em que eu tinha acabado de acordar — a perda era certa.

— Também tem água de coco, se você quiser.

Eu já estava com a xícara na mão prestes a dar um gole no café. Só não estava calor ali dentro pelo ar condicionado.

— Quero sim.

deu a volta na bancada e tirou um coco inteiro da geladeira. Observei boquiaberto enquanto ela remexeu a gaveta de talheres, da qual tirou um furador e abriu o coco na minha frente.

— Isso foi uma surpresa. — Eu respondi ao receber o copo.

— Isso é a vida na praia, meu amor.

— Isso você nunca fez isso no Brasil.

— Isso porque no Brasil você já compra o coco aberto. Sem precisar sair da areia.

— Isso… — Não consegui pensar em uma resposta à altura. — Justo.

Ela murmurou uma concordância em tom de satisfação e cruzou a bancada novamente até mim; em vez de jogar seus braços pelo meu pescoço, me abraçou pelo tronco e deitou a cabeça no meu peito. Seu cabelo bem debaixo do meu nariz me trouxe aconchego.

Depois de alguns segundos em que a abracei apertado de volta, eu disse:

— Posso te perguntar uma coisa?

afastou a cabeça para me encarar.

— Qualquer coisa.

Sua resposta me desarmou um pouco, mas segui firme:

— Por que você está usando a minha cueca?

— Ah, Harry! — Ela revirou os olhos e voltou a deitar a cabeça no meu peito.

Não aguentei e explodi numa gargalhada.

— Posso te perguntar uma outra coisa?

— Não me… te… um tapa. — Sua voz saiu em um tom abafado sobre a minha camisa, mas entendi o suficiente pelo contexto.

A segurei mais apertado, como se para prendê-la o suficiente para que eu terminasse de falar sem ser agredido pelos seus tapas ardidos no braço.

— É sério, eu juro. — Eu rebati em uma gargalhada quase histérica. — Que horas você acordou para ter tempo de já ter feito tudo isso?

Não eram nem oito da manhã ainda.

— Faz umas duas horas. — Ela chacoalhou os ombros, o movimento tão sutil que só percebi porque a senti se mexer.

— Aconteceu alguma coisa? Não conseguiu dormir?

— Bem… sim, aconteceu uma coisa.

Meu coração disparou. Eu não deveria ter dormido tanto, mas eu estava cansado da viagem e o fuso horário bagunçou o meu ciclo de sono.

— Você está bem? — Eu a afastei do meu peito para olhá-la nos olhos, ainda a mantive próximo, segurando-a pelos braços. — Está se sentindo bem?

Pela forma que me abordou quando entrei, eu imaginei que ela estivesse feliz. Eu já estava acostumado a não ser sempre cumprimentado de maneira normal, sempre partia para o comentário que estivesse guardando para quando me encontrasse, como se nunca tivéssemos passado um momento sequer afastados.

Prendi a respiração mais ainda quando ela puxou a dela.

— Você se lembra há algumas semanas pelo telefone… quando eu estava indo para SF e eu disse que tinha algo para contar?

— Eu me lembro, mas nós conversamos mais tarde quando você chegou no hotel.

— Você se lembra do que eu te disse?

— Você me disse que não é sobre o que eu posso fazer para você. Que eu te ajudo te amando.

— E eu mantenho o que eu disse. — Empinou o nariz. — Mas não isso, a outra parte…

— Que a sua empresa estava… Que eles tinham enviado uma solicitação para uma documentação para você e que… Espera! Você teve uma resposta?

— Eles me ligaram hoje… faz duas horas. Pelo fuso horário, já é horário comercial para eles lá, então eles não fizeram as contas e acabou que…

! Pelo amor de Deus, o que falaram? — Bati os dois braços ao lado do meu corpo, soltando-a ao interromper.

Devagar, ela desenhou um sorriso nos lábios; foi resposta suficiente para que eu a pegasse nos braços e a levantasse do chão em um rodopio. Eu estava em completo… O meu coração poderia facilmente ter parado naquele momento.

— Harry! — Ela gritou em meio aos risos enquanto eu ainda a girava. — Me coloca no chão!

— C-como eles conseguiram? — Eu perguntei assim que parei de nos rodar, outra vez a segurando pelos braços. — Você tinha me dito que eles te deram uma bronca por não ter os lembrado disso com mais antecedência e para eu não ficar muito animado porque talvez eles não tivessem mais tempo suficiente…

— Eles enviaram um fax para sei lá onde; honestamente, eu não entendi o nome, mas era alguma coisa do governo, e nesse fax eles pediram para expedir o processo porque não poderiam correr o risco de ficar sem mim até que fosse aprovado. E então foi aceito.

— Então é isso? — Eu ainda estava um pouco atônito, mas não conseguia parar de sorrir.

— É isso.

Minhas mãos deslizaram para o seu pescoço e eu a beijei. Com vontade, sentindo seu gosto e aprofundando conforme nossos corpos se alinhavam e sincronizavam. Empurrei-a para trás, nos forçando a dar passadas cegas até que eu tinha o seu corpo contra a bancada onde estava toda a comida. Eu sabia que eu não poderia levantá-la por causa disso, então me contentei com apertar os dedos de uma mão na sua cintura enquanto a outra entrelaçava seus fios de cabelo, os quais puxei para afastar sua cabeça quando precisei de ar.

Suspiramos com as bocas ainda coladas, sorrisos que não nos deixavam, selei nossos lábios algumas vezes antes de me afastar, sabendo que eu não teria como esconder o volume nas calças — ou na falta delas.

seguiu o meu olhar quando abaixei a cabeça para puxar as pernas da cueca e riu ao perceber o que eu olhava.

— Desculpe, me empolguei.

— Que falta de respeito!

Não, que isso! Eu te respeito. Muito. A-assim, m-muito.

Enquanto ela gargalhava do meu tom que poderia facilmente ser confundido com embriagado, o motivo que me fez beijá-la daquela maneira voltou ao meu foco. Era como se eu não conseguisse acreditar. Quero dizer, eu acreditava, mas não parecia ser capaz de processar que tudo o que passamos nos últimos meses tinha, finalmente, chegado ao fim. A sensação de alívio abriu o meu peito de tal maneira que percebi que o que eu precisava não era subir até o telhado para respirar melhor.

— Quer dizer que não precisamos ir embora?

Senti o quanto a minha escolha de palavras foi capaz de balançá-la, suas micro expressões, de um jeito que só eu conhecia, denunciaram. O mais leve tremor nos lábios, seguido de um piscar mais espaçado, preocupado em não produzir lágrimas.

Em cada um desses detalhes, ali estava a prova de que eu achei o que procurava: essa pessoa que teria uma parte de mim que ninguém nunca vê. Essa pessoa que teria todas as minhas partes. Eu sou seu. Eu não precisava dizer, ela sabia, estava estampado em mim.

— Não precisamos ir embora se não quisermos. Mas eu nunca vou estar indo embora se você estiver comigo, meu amor. E sabe qual a melhor parte?

Eu, inocente e sem notar a pegadinha que ela montava, respondi:

— Qual?

— Se você se casar comigo ganha um green card também! — Piscou, e eu imediatamente tombei a cabeça para trás numa gargalhada.

Foi para disfarçar o reviro que aconteceu no meu estômago. Eu poderia dizer que era culpa das frutas sem teor de plástico, que eu não estava acostumado, mas seria mentira. Aquela era a primeira vez que mencionava, por conta própria, sobre se casar.

Parece que depois que eu sugeri aquilo como uma saída é que ela evitou o tema a todo custo, nem mesmo de brincadeira, como sempre fizemos. E todas as vezes em que eu tentei tocar no assunto, de relembrar que ainda era uma opção para que ela ficasse, ela me impedia antes de começar.

— Ah, sim. — Tentei soar inafetado, agir como eu agiria. Retrucar uma provocação. Meu cérebro trabalhou rápido, mas tudo o que conseguiu produzir foi: — Essa é a parte mais importante nisso tudo.

— Claro que para isso você vai precisar comprar uma casa, não dá pra gente morar pra sempre naquele meu apartamento de um quarto.

Ah, … Se você soubesse o quão certa estava.

— Ah, eu vou precisar comprar uma casa? Sozinho?

— Mas é claro, o milionário é você. Não acha que eu vou te ajudar nisso, acha?

— E o que você quer nessa casa?

— Ah, não precisa ser muito grande. Aquela em Hollywood Hills era exagerada, você fez bem em vender. Dois quartos já está bom. Pra gente receber amigos. Não, três, pra caso a gente vá ter filhos. Uns armários grandes na cozinha pra guardar todas as vasilhas boas, uns espaços fora dos corredores pra você parar de derrubar as minhas plantas…

Confesso que eu esperava coisas grandiosas. O que ela pediu não foi… nada. Não era nada perto do que eu poderia proporcionar e ela sabia disso e, ainda assim, não pediu.

— E o que mais? Diga o que você quer e você terá, amor.

— Tem que ter um bom espaço de garagem para os seus carros. E também paredes amplas pra caber quadros grandes, tipo de galerias, porque eu sei que você gosta.

Não tinha porque eu esperar nada além disso de . A voz de Tom veio na minha cabeça: “Você não a conhece?”. Sim, gosto de pensar que a conheço mais do que qualquer outra pessoa.

— Pois bem. Considere feito.

Sua reação, como eu esperava, foi gargalhar. Diante disso, mantive a expressão sem sinais de ironia e aguardei para ver quanto tempo demoraria para ela perceber que eu falava sério.

— Por que está me olhando assim? — Afiada como ela era, demorou menos do que imaginei.

— Antes de viajarmos, coloquei uma oferta em uma casa.

Ela arregalou os olhos

— Você está brincando…

— Não, não estou. Pode ser que seja um pouquinho maior do que você espera. — Pouquinho como sendo um eufemismo.

— Mas por quê? Quero dizer, eu estava brincando. Você não precisa comprar uma casa! O apartamento está ótimo.

— Eu estou olhando casas há algum tempo e… você teria que devolver sua casa se fosse embora, e eu pensei que você precisaria de um lugar quando voltasse.

— Awn, Harry! — Ela selou nossos lábios por um breve momento. — Mas agora não vou precisar. E você também não precisa ter a sua própria casa, pode ficar no meu apartamento sempre que quiser, ou precisar, como quando está em LA a trabalho e tudo mais.

— Bem, eu estava considerando que essa casa fosse ser nossa. Como eu disse, é só uma oferta, eu gostei bastante, mas eu gostaria que você fosse olhá-la comigo e… enfim, você precisa gostar também.

— Ah… — Murmurou sem me olhar, mais um reflexo do que uma tentativa de resposta.

Conforme o ar ficava mais denso, girei meu dedão e dedo indicador no anelar da outra mão como se eu tivesse um anel ali. Tentando aliviar a tensão, dei um meio sorriso e soltei em um ar descontraído:

— Afinal, você também vai morar lá quando nos casarmos.

Não era como se eu fosse negar que eu sabia que isso a pegaria de surpresa, mas talvez eu devesse ter escolhido um momento melhor.

Eu tinha lido as entrelinhas todas erradas?

Aos poucos, levantou a cabeça até me analisar, sua expressão indecifrável. Era o livro aberto escrito em outra língua outra vez.

— Harry Styles… — Ah, não. Prendi o ar, congelado. — Você está me pedindo em casamento?

E então, tudo mudou. Lá estava o brilho divertido em seu olhar estreito, o cantinho dos lábios entre os dentes, moldando um sorriso sagaz.

Soltei o ar todo de uma vez, quase me engasgando, e coloquei a mão no peito por reflexo. Eu senti mesmo uma dorzinha ou só imaginei?

— Ainda não, estou esperando o anel chegar.

estreitou os olhos um pouco mais, sem saber se eu falava sério de novo ou se era uma extensão da nossa piada interna.

— Mas… você não precisa esperar nos casarmos para morar lá…

Outro momento de silêncio. abriu e fechou a boca algumas vezes. Quando, por fim, respondeu:

— Você está falando sério. — Ela aprumou o corpo, ficou toda travada.

— Sim, estou. Nós deveríamos morar juntos, oficialmente. — Completei antes que ela me questionasse que meio que já morávamos. — Aquele dia… no Natal… Eu te perguntei se se casar era uma coisa que você queria e você nunca me respondeu.

— Eu disse que eu me casaria com você.

— É, mas foi em uma situação hipotética por causa do visto. E você sabe, eu já cometi muitos erros ao presumir saber o que você queria, e eu não quero cometer o mesmo erro duas vezes. Você disse… você disse quando voltou do Brasil daquela vez que eu nunca te assumi porque nunca tinha te pedido em namoro até então. E eu juro que é só por isso que estou voltando nesse assunto. Qualquer que seja a sua vontade, o que for mais importante para você, eu estou disposto a fazer.

— Eu… não sei se quero me casar agora.

— Ok. — Balancei a cabeça em concordância, eu podia trabalhar com o “agora” sendo “no futuro, sim”. — Se eu te pedisse em casamento, você aceitaria? Nem que fosse para nos casarmos daqui cinco anos. O que eu quero saber é… Você diz que não quer se casar “agora”, mas se casaria comigo?!

— Sim, eu aceitaria. — Sorriu. — Só não posso prometer a data. — Completou em um tom jocoso.

— Ok. Muito bom. Ótimo! — Passei a mão na nuca, de repente me sentindo tímido com sua confissão. Ela se casaria. Comigo. — Vou fazer isso quando você menos esperar, do jeito que você merece.

— Tem certeza de que não está me pedindo em casamento agora? — Provocou outra vez.

— Já disse, estou esperando o anel chegar. — Sorrimos, o que virou várias risadinhas.

Meu coração parecia pequeno demais para todo aquele sentimento. A dor era doce e dolorosa como seus beijos. Era acordar de madrugada com suas mexidas na cama e passar vários minutos observando-a sorrir entre sonhos. Era buscar uma roupa já lavada no guarda-roupa, mas sentir seu cheiro ainda grudado nela. Era a linha fina entre o sufoco e o brilho da vida. O calor vibrante no desespero de perder e a alegria extasiante de dividir todas aquelas experiências ao seu lado.

Eu nunca tomaria nada daquilo como garantido. Eu apreciaria e agradeceria por cada momento, sabendo que, ainda que tivéssemos outros, o que passasse nunca poderia se repetir.

— Mesmo que você tivesse que voltar para o Brasil, eu sempre tive certeza de que eu faria a minha parte para funcionar. Mas sabe o que essa ameaça me fez perceber? Que eu não queria mais ter que “ir pra minha própria casa” quando nos despedíamos. Eu quero voltar pra casa e te encontrar lá. Nunca ir embora.

— Só para ficarmos claros, ter certeza de que estamos na mesma página… Você está dizendo que quer que moremos juntos a partir de agora. Tipo, mover todas as minhas coisas, devolver o meu apartamento, coisa e tal?

— Exatamente.

suspirou.

— OK.

Meu queixo caiu, e eu pisquei, uma, duas vezes, mas continuei estático.

— S-sério?

Nenhuma objeção? Eu não teria que convencê-la disso?

— Sim. Você está certo. Está na hora de morarmos juntos e, depois de toda essa declaração, como eu poderia recusar?

Nós choramos, eu admito. Acho que eu comecei primeiro, e sentiu que tudo bem não segurar o choro também. Eram lágrimas de felicidade. Apesar dos nervos aflorados, estávamos prontos para passar por toda aquela dificuldade juntos, mas era muito mais gostoso saber que não precisávamos sofrer. Não com a distância. Não quando já havia muitas outras coisas com as quais nos preocupar. Menos essa. Menos mais uma.

A vida se move com desvendanças; com o desbravamento de situações e complicações. Essa vencemos e isso nos fortaleceu para a próxima, a qual poderíamos ou não ter sucesso, mas isso não importava, porque eu sempre estaria com ela. E ela, bem, ela nunca precisaria me deixar.

*

O sol estava tão quente quanto seria na Califórnia, mas o ar úmido me lembrava do clima tropical do Brasil. Eram duas da tarde, pelo menos naquele fuso horário, e eu dirigia um clássico Jeep sem portas, desses que só encontramos aos montes para alugar num lugar como esse. Tínhamos sido alertados de que costumava chover de repente e, uma vez que escolhêssemos tirar as portas, não poderíamos colocá-las de volta; não era um processo tão rápido.

Ainda assim, eu sabia que, para , não existiria outra opção. Ela preferia arriscar se molhar na rápida hora que demorava para cruzar toda a ilha do que perder essa experiência.

O que ela não contava, eu acho, era que seria igualmente inconveniente a falta de cobertura mesmo sem chuva — ela lutava para controlar os cabelos ricocheteando com o vento, seus óculos de lente amarela tornavam difícil ler sua expressão, mas pelo sorrisinho que não mostrava os dentes, eu confiava que ela estivesse contente.

A música saía do rádio num volume estridente; o carro não era dos mais novos, e não ter paredes, pela falta de uma palavra melhor, para conter o som, devia forçar as caixas embutidas no interior.

A estrada era sinuosa e cercada pelas crateras dos vulcões há tantos milhares de anos extintos. De qualquer forma, não parecia que estávamos no meio do Oceano Pacífico. Era fácil de se enganar, olhar para as placas azuis, em vez do clássico vermelho, de “pare” e imaginar estar numa versão alternativa de qualquer cidade fora das capitais dos Estados Unidos. Mas, parando para pensar, ali ainda era mesmo os Estados Unidos, sem versão alternativa.

Tão igual e tão diferente. Dei outra espiada em , dessa vez, ela me olhou de volta.

— O que você está pensando?

— Em como eu amei esse momento.

me olhou engraçado: um bico nos lábios e os olhos semicerrados.

— Nem fomos embora, mas sei que vou sentir saudades. — Elaborei, levando uma das mãos até a sua coxa descoberta, dando-lhe um olhar um pouco mais longo.

Suas pernas estavam cruzadas em uma postura lótus fácil em cima do banco enquanto seus quadris, tronco e ombros se moviam no ritmo da música.

E eu gosto quando você dança pra mim. É algo na maneira que você se mexe. — Completei com o olhar fixo na estrada, discretamente citando o verso de uma música que ela ainda não ouviu. — E você?

— Em como os protetores solares daqui são fortes. Tem um pedaço do seu bigode que ainda está branco.

Com um grunhido, esfreguei o rosto; minha mão nem um pouco satisfeita com a perda de contato com sua coxa aquecida pela exposição ao sol.

Sem que eu tivesse tempo de reagir, sacou sua câmera nova — de filme! — que tinha comprado especialmente para essa viagem e tirou uma foto minha, o flash sequer me incomodou, depois de tantos anos sendo cegado por um mar deles.

— Eu estava sendo romântico.

— Eu sei, baby, e eu te amo por isso! Mas estava me distraindo! — Ela gargalhou enquanto eu ainda resmungava uma reclamação incompreensível.

Voltei com a mão para a sua coxa, dando uma apertadinha leve.

— E o que mais? Não é possível que isso seja tudo o que se passa nesse seu cérebro gigante.

deu um meio sorriso com a piada disfarçada de elogio.

— Também estou pensando em como gosto dessa música.

Eu nos vejo em preto e branco. — Falei o verso com uma risadinha. — Também.

— E você quer que o mundo todo seja testemunha quando dissermos “sim”?

— Talvez não o mundo todo. Podemos manter só entre todo mundo que conhecemos?

— Você vai usar uma aliança, Harry Styles, como quer que o mundo todo não veja?

— Não pensei nisso ainda.

— Você não pensou em nada. — Ela balançou a cabeça em uma falsa repreensão. — Por falar nisso, acho que podemos ir ao show em Los Angeles mesmo, o que acha?

Niall estava saindo em turnê e me fez prometer que íamos vê-lo juntos em Londres no mês que vem. Isso e, claro, decorar o setlist até lá.

— Você está dispensando uma viagem de bate e volta para a Inglaterra? Quem diria, logo você que ama isso.

— Engraçadinho. Agora que é certo que não vou me mudar, não tem porque viajarmos para o show.

— Claro, sem problemas. Vou mandar uma mensagem para ele.

— Ok.

— Agora podemos, por favor, ouvir outra coisa?

Sua boca formou um “o” perfeito.

— Harry!

— Nós estamos escutando essa mesma playlist por três dias seguidos, eu não aguento mais! — Argumentei sob os protestos de , que não me impediram de trocar de música.

— E como você quer aprender as músicas se não escutá-las?

— Não basta apenas ir e nos divertir? Meio que ter a surpresa de conhecer a música na hora? — Desviei o olhar da estrada, dessa vez a encarando apenas de soslaio. — Ei, esse motor está fazendo um barulho estranho para você?

— Não, não basta! Que tipo de fã é você?

— Bem, teoricamente…

— Não se atreva!

— Mas…

— Harry, só… continua dirigindo.



FIM
(Dessa vez é sério)


Nota da autora: Esse spin-off só existe pelas solicitações incansáveis de todas as meninas que participam do "Poderosas". A elas, meu obrigada. Essa fic só é assim por causa de vocês.
Eu sinto saudades da Liza e desse Harry todos os dias, embora tenham outras versões do Harry e novas e diferentes "Ls" em cada uma das minhas histórias. A Liza caminhou para que a Lily e agora a Lia — e muitas outras que ainda estão por vir — pudessem correr.

Escrever essas fanfics tem sido o meu passatempo favorito por anos e eu me salvo um tanto a cada vez que posso mergulhar na infinidade desses universos.
Espero que esses refrescos atingam vocês também. (Eu com certeza fico dando risadinhas pra tela com as coisas que eles falam)

Eu sempre digo que é o fim, mas vocês sempre me convencem de que eu posso contar um pouquinho mais. Então talvez não seja tão sério assim.

A única certeza pra hoje é que se você ainda não participa do "Poderosas", está perdendo todas as ideias abstratas (uma porrada de spoiler aleatório) e o poder de me influenciar diretamente, tomar decisões e dar pitacos no rumo desses e outros personagens. Por isso, te espero AQUI pra amigar. E a minha DM tá sempre aberta no INSTAGRAM

Beijinhos da Cam Vessato e até breve.

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