Independente do Cosmos🪐
Última Atualização: 22/02/2025Sentiu o rosto queimando, virando-se apenas o suficiente para encontrar o olhar de desaprovação de um senhor que já deveria estar na casa dos seus setenta e poucos anos. Sorriu amarelo em resposta, abraçando os próprios joelhos como se essa fosse a única forma de ao menos tentar fazer com que seus pés parassem de batucar contra o chão incessantemente.
Não era possível que, depois de tudo, ela fosse continuar assim. Essa pilha de nervos em estado de alerta máximo a troco de absolutamente nada. Infelizmente, depois de seis longos anos de tanto estresse e crises, seu corpo não sabia mais a diferença entre esperar um voo e estar sendo assaltada. Não que ela soubesse como era a segunda, graças a Deus. Mas também não sabia reagir à primeira como uma pessoa normal, então o jogo continuava empatado em um zero a zero no qual, aparentemente, ela sempre perdia. O universo tinha criado regras novas só para rir da cara dela.
E não era um voo para prestar a prova de residência dos seus sonhos ou apresentar um trabalho em um congresso da Sociedade Brasileira de Reumatologia. Ela já tinha feito tudo isso também.
Agora, estava tendo uma mini crise de ansiedade por causa de um voo de férias. Não era simplesmente patético? O único momento que havia tirado para si exatamente para se livrar um pouco do peso do mundo que tinha colocado sobre as costas durante a faculdade e era assim que ela continuava reagindo. Ótimo. Ela realmente não tinha mais salvação.
Isso sem contar que ela tinha perdido pelo menos duas semanas pesquisando cidades e hotéis, perdida em meio às opções. Escolher o melhor tratamento para um paciente? Ok. Escolher algo trivial para si? Calma lá, gente. Também não é para tanto.
Com muita persistência e vendo mais possibilidades de tudo que poderia dar errado do que o Doutor Estranho, um belo dia tomou vergonha na cara e escolheu o lugar. Usando um sorteador online após reduzir suas opções a três, mas isso não vem ao caso. Estava orgulhosa de seu trabalho.
Fora que o sorteador provavelmente tinha sido guiado por uma força maior de extrema sabedoria, pois caiu imediatamente no resort cujo site ela havia lido e relido por vários dias. Todas as fotos de um céu azul impecável e a linha do horizonte encontrando o mar tinham abraçado seu peito ansioso. Os textos repetindo sobre como aquele era o ambiente perfeito para quem queria relaxar e esquecer as suas preocupações também tinham sido uma boa arma de persuasão. Ela não precisou de muito mais do que isso para estar completamente convencida.
Tinha levado três dias para organizar a mala: um para fazer uma lista de tudo o que precisaria, um para colocar tudo isso na mala e o último para repassar os itens algumas dezenas de vezes só para ter certeza de que não estava se esquecendo de nada.
Tinha até precisado comprar biquínis novos. Quem diria que voltaria a precisar deles quando pudesse passar um mês sem que noventa por cento dos seus pensamentos fossem sobre hospitais, pacientes, doenças e provas nos hospitais sobre as doenças dos pacientes.
riu sozinha, lendo cada palavra impressa na passagem que tinha em mãos. Estava mesmo fazendo isso. Finalmente algo que era só dela. Só por ela.
Quando seu voo foi finalmente anunciado, pegou sua mala de mão e se colocou imediatamente na fila, sendo a primeira após os passageiros preferenciais.
Sorriu para os atendentes que fizeram a leitura do código de barras em sua passagem e lhe desejaram boa viagem. Logo, estava sentada à janela da sétima fileira, colocando o celular em modo avião. Com um suspiro que era um misto de estranheza e alívio, perguntou-se qual tinha sido a última vez em que havia se permitido estar indisponível. Sem qualquer resquício de preocupação ou peso na consciência.
Não demorou para que a aeronave fosse enchendo. Uma mãe ocupou com uma criança pequena os bancos do outro lado do corredor. A menina encarou com curiosidade. A adulta acenou rapidamente com um sorriso largo, recebendo em resposta uma risada tímida da pequena, que tentou esconder o rosto. Só para repetir todo o processo de novo. E de novo. Mais uma vez.
— Deixa a moça em paz, — a mãe disse, percebendo a movimentação da filha.
— Ah, é minha xará, então. Isso explica porque você é a coisa mais fofa que eu já vi na minha vida.
A mini sorriu largamente, exibindo os pequenos dentinhos de leite, enquanto batia palmas. Sua mãe ofereceu um sorriso à outra , provavelmente agradecida pelo modo como reagia às interações da pequena. Sabia bem como crianças nem sempre conseguiam as melhores respostas das pessoas. Outra pessoa poderia já estar bufando, prevendo com irritação que a criança choraria de forma estridente durante todo o voo.
O que não aconteceu, já que logo se entreteu com o vídeo de um desenho colorido e seu paninho de dormir que funcionava quase como um sonífero. A adulta quase desejou ter um daqueles tecidos mágicos para as noites de plantão vazio em que não conseguia dormir por pura teimosia de seu cérebro incansável. Afinal, qual era a graça de aproveitar o pequeno milagre de ter um tempo de descanso quando era muito mais divertido e proveitoso se perder entre duas deliciosas opções: pensar sobre todos os erros dos seus vinte e seis anos de vida ou sobre tudo que ainda poderia dar errado dali para frente.
Mas não. Não mais. Ao menos, não nessas férias. Não, não, não. Ela já tinha planejado absolutamente tudo e feito uma lista incontestável:
1) Acordaria bem cedo só para garantir que conseguiria alugar uma bicicleta apropriada para dar uma boa volta na praia. E não podia se esquecer de pegar uma garrafinha de água para o caminho e uma água de coco bem gelada assim que retornasse ao hotel.
2) Tomaria um café da manhã reforçado, garantindo uma fonte saudável de proteína e algumas frutas cheias de fibras antes de se permitir comer quantas fatias de bolo de rolo e outras delícias seu coração desejasse — afinal, todo mundo sabe que doces são destinados ao coração e não ao estômago. É verdade, ela tinha aprendido isso na aula de fisiologia da digestão no primeiro ano.
3) Aplicaria uma camada generosa de protetor solar FPS 70 por todo o corpo — sem esquecer dos pés e orelhas, que sempre acabavam preteridos e ardidos. Um pequeno castigo por serem sempre tão menosprezados.
4) De manhã, iria para a praia, aproveitar que quem não estava acostumado a trabalhar às sete horas da manhã ainda estaria dormindo. Depois de escolher um dos bares para almoçar, tomaria sol na piscina. Ah, nesse meio ela tinha direito a alguns — vários — drinks no open bar.
5) Depois disso, a sequência era tomar um banho, colocar um vestido florido que a fizesse se misturar bem entre os demais viajantes e aproveitar a música ao vivo. Depois, dormir ao menos oito horas sem preocupações. A parte boa é que com o álcool ela nem precisaria de remédio para dormir. “Ah, mas superficializa o sono, não é proveitoso de verdade.” Não importa. Já era um sono melhor do que a gigantesca maioria dos que ela conseguia ter em um dia normal.
Além disso, cada dia tinha algum evento como aula de dança de salão, yoga, show de comédia. E ela tentaria ir para alguns. Só não tinha ainda decidido para quais. Era o máximo de espontaneidade que ela tinha a oferecer.
E ela mal via a hora de começar.