━Autora Independente do Cosmos.
Encerrada ✔️
Era o que emanava. Uma imensa e sufocante aura de algo não revelado, nulo, invisível. Algo muito maior e mais intimidante do que todos de seu clã, para não dizer todos de sua espécie.
Ele sabia que não deveria estar ali. O fogo queimava nas esquinas da cidade de Carmel, a rebelião estourava em pontos estratégicos e nada os pararia até derrubar os grandes soberanos sentados no trono de ferro da grande catedral no centro. Os superiores, sua família. A mesma família que não fazia ideia do que ele estava fazendo longe de seu domínio.
Ainda assim, sentia olhos sorrateiros o observando da escuridão. Ele tinha saído às pressas, lançando desculpas sobre ter trabalho a fazer e seus afazeres de guardião da ordem de Carmel, mas se esqueceu de avisá-los para qual ordem corria para apoiar.
O acesso sulcado para o beco ainda estava vazio. Ela estava demorando mais do que o normal.
Vamos lá, .
Ele alisou as mãos nos jeans, sentindo a ansiedade humana e incômoda que já vinha experimentando há um tempo, desde que se metera em tudo aquilo, desde que decidiu trair seus patriarcas, desde que optou correr mais riscos do que estava acostumado. A morte não era um artifício fácil a se alcançar, mas sentir a iminência dela era aterrorizante e, ao mesmo tempo, vibrante.
Com as mãos de volta nos bolsos, ele bufou pela décima vez até ver a luz branca e forte partir do céu.
O sinal de proximidade etérea.
não teve como ver se havia chegado ou não. A luz era tão forte e tão esmagadora que ele precisava fechar os olhos com força para não ser levado para trás. Sua espécie era adepta à noite, às trevas, e toda aquela luz se assemelhava a um elemento mortal e desconhecido, nunca vivenciado, mas que era extremamente atraente. Ambos os lados se sentiam provocados pelo novo e pelo mistério, mesmo que isso pudesse matá-los.
Quando tudo se apagou, ele voltou a abrir os olhos e sentiu o coração de mármore se aliviar. Era ela, vestida em branco, com os cabelos dourados e os olhos cinzentos encarando-o com o mesmo sentimento, o refrigério estampado no rosto radiante.
Céus, como ela era linda. A ode de toda a pureza que ainda poderia existir naquele exterior de morte e enxofre.
— Tive medo de não te ver aqui. — sua voz era aveludada e tranquila, como um cântico divino. Era, inexplicavelmente, as únicas palavras que fazia questão de ouvir até o final. se policiava para não deixar as asas virem à tona quando estava com ele, sabendo da ferocidade do brilho, da violência de sua luz, ainda pouco intensa em comparação aos seus líderes. Ali, sem elas, a garota se movimentava devagar para perto de , esticando os dedos em sua direção.
O rapaz estudou o gesto de maneira pouco entusiasmada, mas os segurou antes que se afastasse, apertando-os incansavelmente, como se sua vida dependesse de mais alguns segundos de toque quente e avassalador. Antes que desistisse e se deixasse ser conduzido pelo medo. Quando estava com , essa palavra não existia. Existia apenas o medo de perdê-la, ou que ela desaparecesse de sua frente.
— Eu daria um jeito. Sempre dou. — falou, com sua voz abafada e obscura, o total oposto da garota. — Precisamos fazer isso. Vamos acabar com tudo, de uma vez por todas.
— Vamos. — ela assentiu. — Ao amanhecer. Os Kim têm postos de controle espalhados por todos os pontos principais de Carmel, e Ted está vendendo a salvação nas igrejas por ordem de Tom. Ele…
— Eu sei. — repuxou os lábios com desgosto. — Meu pai não vai desistir de seu território, muito menos de seu rebanho. Ele despreza todos os humanos, mas sabe que sem eles não teríamos chegado a lugar nenhum.
baixou os olhos, estreitando o aperto nos dedos gelados, imaginando o quão difícil deveria ser para ir contra toda uma linha de gerações e gerações, ainda vivas e perpetuando seus valores déspotas e autocratas. Tom era o líder e o pior de todo o bando. Depois dele vinha , o pupilo mais destacado dos Kim, o primeiro em todas as outras habilidades; políticas e físicas.
— Esse banho de sangue imenso vai terminar, . Juro que vai. Assim como todo o mal que espreita essa cidade. — disse , com seu otimismo incansável. O futuro que ela idealizava realmente dependia disso. — Você está bem com isso?
— Já escolhi meu lado, . — por vezes, a voz de carregava um sotaque mordaz, como o francês de séculos longínquos, quando a França ainda existia. — Desde que descobri que minha mãe foi humana e usada como um repositório particular de sangue para toda a minha família por décadas, não acho que eu seja capaz de ficar ao lado deles. Há muito pouco proveito em abandonar minha linhagem, minha língua e meus padrões para me comunicar com seres quentes que se recusam a traduzir o latim para um demônio, mas, ainda assim, é o caminho mais fácil para mim. Uma compensação pela minha mãe, que nunca conheci, e um peso a menos para minha alma. Se é que tenho uma.
sentiu uma onda abundante de bondade que lhe era característica e uma queimação em alguma parte do peito que nascia sem aviso quando estava com . Ela havia se resignado originalmente a trabalhar com o inimigo a fim de conseguir um aliado por dentro, sem se preocupar em como isso o afetaria, mas descobriu não ter muita proficiência no controle de suas emoções. Em momentos de euforia ou de tristeza, se permitia relaxar de qualquer urgência dos ensinamentos rígidos sobre coração que haviam lhe ensinado durante toda a vida e sentia uma terrível vontade de abraçar e confortar o homem à sua frente.
— Nós vamos acabar com isso. O Arco Celestial está pronto, e vai soltar as bestas divinas nos primeiros raios do dia. Só precisamos esperar.
Ele assentiu, pronto para qualquer coisa.
— E como quer fazer isso?
se aproveitou das mãos ligeiramente juntas e o puxou para o canto, de encontro à lateral do prédio decaído de tijolos avermelhados, com a placa de Borden House caída e apagada. Uma pequena porta de madeira que rangia intensamente para a noite descansava estupidamente, vestida de pichações e frases vulgares em giz. Uma delas riscava o nome original da construção e a intitulava como Welch Hall, o principal prédio do submundo.
— Precisamos nos esconder. Há muitos olhos e ouvidos se escondendo na escuridão. — disse , apreensiva.
Os dois se esgueiraram pelas escadas de pedra úmidas e fétidas. Caminhavam apressados pelo corredor central do terceiro andar, quando algo bateu no braço da garota, que se afastou em um susto. passou-a para trás de suas costas, usando sua boa visão para o escuro, que já lhe era de nascença. Os grunhidos incompreensíveis partiam de um senhor de idade, sentado debilmente no chão, agarrado a uma garrafa vazia de rum, seca há muito tempo. Os olhos denunciavam noites e mais noites de insônia, somadas à loucura remanescente que o deixava à mercê de uma escuridão interna e eterna. sentiu o coração arder de pena e compaixão, mas os dedos gelados de apertaram em seus ombros e ela soube que não era possível salvá-lo.
Seguindo em frente, nenhuma luz se fazia presente no ambiente, apenas o brilho natural de . Ainda assim, diferentes ruídos surgiam de todos os cantos; uma TV no último volume, com a voz do comercial obrigatório de Tom, as vozes raivosas de um casal que brigava e, concomitantemente, os gemidos de outro que se entregavam à carne em algum lugar de dentro das paredes. Por fim, sussurrou:
— Tem certeza que quer estar aqui?
— Não quero. Mas você está comigo. — disse , menos desanimada do que antes, enxergando o número quase apagado acima da porta no meio do corredor e abrindo-a, sentindo a nuvem de poeira pairar ao redor.
Em silêncio, fechou a porta e observou andar diretamente até a janela, afastando o pequeno cobertor que servia de cortina, revelando a imagem bela e sublime da torre principal da catedral, o grande marco de Carmel, linda e terrível ao mesmo tempo.
Aquela deveria ser a segunda vez que ficavam juntos em um espaço tão pequeno.
— É pacífico, não é? — falou depois de um tempo. — Vendo-a desse ângulo é satisfatório. Nos faz esquecer como a cidade é barulhenta e recheada de podridão.
voltou-se para ele, os lábios travados em uma linha fina.
— Eu não estou aqui há tanto tempo quanto você, mas sei que os humanos não estão perdidos, . Eles são as vítimas. A podridão vem das pessoas que se aproveitam disso e os controlam por trás. É por isso que estou aqui, por isso fui criada.
— É só por isso que está aqui? — ele desafiou, seguindo em frente com as primeiras frases que chegassem à sua boca. — Comigo.
A garota ergueu as sobrancelhas sem muito entusiasmo, sinalizando incompreensão pela pergunta.
— Estou aqui porque preciso de você.
— Sei disso. Você e todos os seus amigos de asas precisam de mim para ganhar essa guerra. Mas que anjo, em sua santa consciência, se encontraria sozinho tantas vezes com um vampiro? — seu tom era questionador e sincero, porém com outras intenções. tentava ligar os pontos. — Ainda mais com o herdeiro do clã Kim.
respondeu, com a voz afiada:
— Não prefere se encontrar comigo sozinho?
— Eu prefiro. Eu gosto. Esse é o problema, princesa.
Agora ele falava guiado pelos instintos, por algo que já estava queimando há muito tempo, pelo calor dela que ficara marcado em sua pele, tão pobre de afeto, pobre de luz, pobre de sensações. Alguns meses antes, era tão impensável que hoje parecia ridículo.
conseguiu oferecer apenas sua feição surpresa, genuína e verdadeiramente temerosa com o restante da conversa.
— Achei que não era capaz de gostar de nada.
— Eu não era. — ainda estava vivo na mente de : o dia em que a princesa dos céus disse, com todas as letras, que ele era capaz de amar. Que seu coração existia e batia, que um lado humano prevalecia naquela casca sobrenatural e de como ele a achou deveras patética com esse discurso, que rendeu a briga mais longa que já tiveram, uma semana de silêncio que se resolvera somente quando Tom fez algo mais ofensivo do que qualquer um dos dois conseguiria fazer. — Mas coisas terríveis tem me acontecido desde que te conheci, e essa é apenas uma delas.
Ele é um Kim, pensou ela, com agonia. Coisas terríveis estavam fadadas a lhe acontecer, e não quero estar no meio disso, não quero, não quero, não, não quero…
— Por que está me dizendo isso agora? — perguntou, calando as vozes, sentindo os dentes trincarem. Aquilo era o que a presença de fazia com ela: torná-la instável. Imprevisível.
— Porque existe uma grande chance de morrermos daqui há algumas horas, e ouvi dizer que confissões são uma boa maneira de ir sem arrependimentos.
A princesa riu, com um certo desespero. Ela era dona das vozes em sua cabeça, ou pelo menos achava que era, e todas elas imploravam com todas as letras para que seus pés se afastassem o máximo possível da criatura da noite parada em sua frente, e de toda a profusão de sua espécie, mas esta voz perdia força e credibilidade a cada dia.
— Essa é a primeira vez que pensa na morte? — perguntou, de novo contra seu regulamento inicial de não adentrar a vida e os sentimentos daquele homem.
— É a primeira vez que penso nela com raiva. Com medo.
— Por que está com medo, ?
— Porque ela pode levar você. E tenho plena certeza de que, no fim, nós dois não iremos para o mesmo lugar.
Qualquer dúvida foi sutilmente esvaída no ar. O repertório de acabou em um piscar de olhos. Ela se deixou embalar profundamente por aquelas palavras, imaginando a verdade por trás delas, sentindo o coração explodir dentro do peito.
Ainda assim, tentou manter o tom de voz firme, sem olhar diretamente para seus olhos.
— Quer arrancar sentimentos e confissões de mim também? — perguntou, desconcertada.
— Não quero nada, . Só quero aproveitar meus possíveis últimos momentos olhando para o seu rosto pra que ele seja a última coisa que eu veja ou, se eu não conseguir morrer, pelo menos que ele fique vivo na minha memória que continuará durando pela eternidade.
ajustou a postura, cedendo os ombros, a boca deixando um silvo pesado escapar. Toda sua programação interna foi paralisada pela aproximação lenta de , ainda a uma distância segura, mas que fez toda sua noção da realidade desaparecer.
— Pois eu não quero nada disso. — disse, sobressaltada. E então, encarou-o firmemente: — Você pode guardar mais do que apenas o meu rosto.
Em um segundo, ela o beijou. Seus braços demandaram pelos ombros altos e largos, a boca movia-se por instinto, o coração teria de dar um jeito de se segurar. se sentia igualmente perdido e, concomitantemente, encontrado. Teve plena certeza de que, se aqueles seres de luz vieram especialmente para destruir a sua raça, ele foi o primeiro a perder.
Era inevitável que caminhassem até a cama, e também que se entregassem à paixão aniquiladora que os rejuvenescia, que energizava cada célula de seus corpos, mesmo que não soubessem, de maneira nenhuma, o que amor significava. Duas pessoas que não foram criadas para sentimentos, experimentando-os em totalidade de seu ser. Luz e escuridão se tornando uma coisa só.
Quando os primeiros raios de sol nasceram, eles acordaram com a primeira explosão. Não era preciso fazer perguntas. O cheiro de enxofre tomava o lugar do oxigênio.
— Vamos. — disse . — A guerra vai começar.
FIM.
Nota da autora: Olá! Espero que você tenha gostado, e obrigada pela sua leitura. Até a próxima!
beijos,
Sial ఌ︎
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