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Independente do Cosmos🪐

Última Atualização: 14/02/2025

Quatorze anos antes

— O que você está fazendo aí sozinho?
olhou para cima, encontrando um rabo de cavalo bagunçado, com alguns cachos fugindo do elástico rosa que os prendia. Os mesmos olhos brilhantes e curiosos que sempre pareciam encontrá-lo, mesmo quando ele queria sumir.
— Nada.
Ela fez uma careta.
— Não vai nem almoçar?
— Perdi a fome.
Ela soltou uma gargalhada forçada.
— Você? sem fome? E eu sou um rinoceronte!
O garoto franziu o cenho.
— Um rinoceronte? Você é maluca, .
Aquelas palavras arrancaram um largo sorriso da garota.
— Você só está nervoso pela peneira de amanhã — ela falou. — Te conheço.
revirou os olhos, sabendo que era exatamente por isso que ele tinha se escondido. Ela sempre sabia. Era impossível fugir.
— E é por isso que deveria estar com todo mundo e não aí sozinho. Vem, a gente vai jogar Uno antes da aula.
estava pronta para virar as costas e sair, quando percebeu que não estava sendo seguida.
— Anda. Agora.
O garoto riu, descrente.
— Você sabe que não manda em mim, né?
— Hm, acho que mando, sim. Eu sou mais velha.
— Por dois meses — ele a lembrou.
— E sou mais alta também.
— Você sabe que isso vai mudar.
— Teorias da conspiração — ela cantarolou.
riu, meneando a cabeça. Deu o braço a torcer e decidiu se levantar. Ficar sozinho, no fim das contas, não era mesmo a melhor das ideias. Parecia bom por um tempo, mas sozinho se tornava solitário em questão de minutos.
— Obrigado.
— Pelo quê?
— Ah, você sabe — ele disse, um pouco constrangido na busca de suas próprias palavras. — Por estar sempre comigo.
A garota sorriu, concordando.
— É, bobão. Você não vai se livrar de mim. Nunca. Nem quando você virar um jogador famoso cheio de fãs e títulos.
Ele riu.
— É claro que não. Eu vou estar sempre lá para você.
— Você promete? — A voz dela falhou brevemente.
Ele fingiu não notar. A resposta não era difícil. Essa era a única certeza que ele tinha em sua vida.
— Prometo.




tinha poucas certezas na vida. Honestamente, bem menos do que ela gostaria. E, mesmo assim, tinha acabado de adquirir uma nova: seus pulmões não tinham nem de longe ar o suficiente para atingir a altura que ela desejava com aquele grito.
Se ela fosse capaz de colocar para fora metade de todo o misto de fúria e desespero que estava sentindo, provavelmente causaria um terremoto que receberia ao menos um 6,5 na escala Richter.
Em vez disso, ela só chutou um poste de iluminação, mesmo sabendo que isso faria seus dedos gritarem. Talvez fosse só uma tentativa idiota de substituir a dor psicológica por alguma dor física.
Conforme esperado, não tinha adiantado nada. Ela continuava se sentindo o maior pedaço de merda do mundo inteiro.
E como se o mundo tivesse descoberto ainda mais uma coisa que pudesse arrancar dela, suas pernas falharam, encontrando o duro asfalto da calçada.
— Por que nada nunca dá certo?
Nenhuma resposta viria. A única resposta que ela parecia continuar recebendo era uma risada maquiavélica do universo, divertindo-se sadicamente enquanto descobria todas as diferentes formas de destruir a sua vida.
Tudo começou naquela manhã. Quer dizer, no fundo tudo meio que tinha começado no primeiro dia após o fim do Ensino Médio, mas pensar nisso só deixaria a história mais longa e mais deprimente do que já era.
De toda forma, não importava quando tinha começado. Não quando, naquela manhã, tudo tinha terminado.
Quando atravessou as portas de vidro grandes demais, percebeu imediatamente que havia um desbalanço claro no rotineiro paradoxo entre a enorme quantidade de pessoas e o ambiente ao redor delas, que continuava estéril e sem vida. De repente, alguns dos funcionários que costumavam ignorar por completo sua existência tinham decidido lançar olhares rápidos em sua direção. O ar sempre pesado parecia sufocante. Em resumo, o que já era ruim parecia mil vezes pior.
E todas as suas suspeitas se confirmaram em um passe de mágica ao ouvir o homem branco de meia-idade, cujo sobrenome estava estampado por todas as paredes, anunciando seu nome e pedindo “um momentinho”. O jeito que os seus supostos colegas desviaram o olhar com pressa tinha terminado de entregar o que viria a seguir como uma maldita bomba embrulhada para presente.
Em algum momento entre o “Infelizmente, estamos passando por cortes gerais” e o “Não é pessoal, eu realmente sinto muito”, ela tinha parado de ouvir qualquer coisa além do eco de uma grande interrogação reluzente rodando como uma sirene no meio de sua cabeça.
Ela gostava de trabalhar ali? Não. Ela ganhava bem para isso? Definitivamente, não. Ela precisava daquele emprego? Ironicamente, a única resposta que ela queria que fosse ‘não’ era, na verdade, um ‘é obvio’.
Trabalhar em um banco era a última coisa na lista de sonhos que ela tinha escrito para a própria vida. Era um fim triste demais até para o seu diploma de administração, que também figurava na lista de coisas que ela havia feito mais por necessidade do que para realizar suas próprias vontades e desejos. No entanto, por pior que fosse, ainda era um salário ao fim do mês. Era seguro. Era um bote salva-vidas remendado com fita isolante sobre furos, mas continuava sendo a porcaria de um bote.
Era.
Agora, tudo o que ela tinha era uma caixa de papelão frágil com os poucos pertences que deixava sobre sua mesa e papelada o suficiente para entristecer uma pequena mata.
Sem qualquer coisa que pudesse fazer, jogou suas coisas com pouco cuidado no banco traseiro de seu carro e seguiu para o único lugar possível em um momento como aquele: sua casa. Só conseguia pensar em como precisava de um banho quente e do seu cobertor azul de estrelas.
Ao estacionar no lugar de sempre, viu que a outra vaga estava ocupada. Elliott nunca estava em casa nesse horário. Ele chegava perto das sete horas da noite, sempre com uma flor, um vinho ou um chocolate. Sempre cansado, mas com um sorriso no rosto e aquela covinha que a lembrava da noite em que tinham se conhecido.
sentiu o estômago revirar sem saber discernir o que era aquela sensação. Não esperava ter que compartilhar a dura novidade com alguém tão cedo, quando nem ela mesma sabia se já tinha absorvido a informação. A sensação de decepcionar alguém era dolorosa demais.
Por outro lado, o que poderia dar errado? Era Elliott. Seu Elliott. Seu amigo, seu parceiro para todas as horas, seu confidente e futuro marido. Provavelmente ele seria a pessoa mais compreensível do universo mesmo que ela dissesse que tinha acabado de cometer homicídio.
Talvez poder compartilhar o peso da situação com ele fosse um presente. O fato de ele estar ali mais cedo era apenas uma feliz coincidência. Uma boa notícia para tentar alinhar um pouco a balança daquele dia.
— Oi! — Falou alto ao entrar, deixando a bolsa sobre o balcão da cozinha. — Amor?
Ele com certeza estava jogando e usando os fones de ouvido novos. Era simplesmente impossível que ele ouvisse qualquer coisa quando tinha aquilo na orelha.
Subiu as escadas tranquilamente, enquanto desligava todos os cinco alarmes que deixava ligado para garantir que acordaria de manhã a tempo. Não precisaria mais disso por algum tempo, mesmo que não fosse pelo motivo que ela gostaria. Esse teria sido um momento muito mais prazeroso se ela tivesse se demitido com um longo desabafo após ganhar algumas dezenas de milhões na loteria.
Quando estava a um passo de empurrar a porta do pequeno escritório que tinha se tornado um refúgio gamer cheio de luzes de LED colorido, ouviu o barulho do chuveiro sendo ligado e desviou o seu percurso em direção ao quarto deles.
Respirou fundo duas vezes, tentando formar rápido em sua mente o discurso que faria para contar que:
1- havia sido demitida;
2- não, ela não sabia o porquê e só tinha recebido a mesma desculpa vaga e esfarrapada de sempre;
3- não, ela não estava triste pelo trabalho em si, só por não ter um trabalho;
4- ela começaria a procurar por vagas no dia seguinte e tudo ia ficar bem.
Ok, talvez essa última fosse mais para si mesma.
Com um lampejo de coragem, imaginando o semblante preocupado dele que só lhe partiria o coração, abriu a porta do banheiro, preparada para dar a sua notícia.
Até ser ela a receber uma notícia. Uma bem asquerosa e acompanhada de um grito de susto.
E, sinceramente, ela deveria ter percebido. Os sinais estavam espalhados por todo o lado na forma de peças de roupa que tinham sido arremessadas com pouco cuidado pelo quarto em um momento voluptuoso. Estavam no sutiã preto de renda pendendo do braço de sua poltrona. Estavam na cueca que ela tinha comprado para ele no verão passado — logo aquela. Como ela não sentiu aquele cheiro de perfume que obviamente não pertencia a nenhum dos moradores daquela casa?
se sentia a pessoa mais idiota no mundo inteiro. E se houvesse vida em outros planetas, ela com certeza ganharia deles também. Tinha se tornado rainha por mérito do reino dos otários. Não era exatamente esse o cargo real com o qual ela sonhara e brincara quando mais nova.
, meu amor, vem cá — a voz de Elliott de repente quase lhe arrancou uma gargalhada.
— Você não tem um pingo de vergonha na sua cara? Pelo amor de Deus!
Ela continuou pisando firme corredor afora. Aquela casa que costumava ser seu lar de repente parecia estar se enchendo de algum gás tóxico. Ela simplesmente não conseguia respirar. Só precisava sair dali o mais rápido possível.
Mas é claro que ele não permitiria. Ele precisava ser um desgraçado e atormentá-la ainda mais. Parado em sua frente, segurando a toalha amarrada na cintura, com o peito molhado, ele ainda tinha a cara de pau de querer ter a última palavra. Como se houvesse alguma forma de justificar o que era obviamente injustificável.
— Deixa eu explicar.
— Não tem nada para explicar. Eu tenho certeza de que vi o suficiente.
— Não era para você ver isso — ele murmurou, fazendo-a perder o último fiapo de calma que ela tinha.
— Vai se foder. Sinceramente, vai se foder. Como é que você tem a coragem de ainda querer fazer isso de alguma forma ser minha culpa?
— Não foi isso que eu disse.
— No caso, é melhor para todo mundo se você não disser mais nada mesmo. Eu venho buscar minhas coisas amanhã de tarde. Espero que você esteja no trabalho ou que pelo menos arranje um motel para continuar o seu conto de fadas.
Ele se colocou à sua frente, erguendo a mão em uma ameaça de tocá-la. desviou de forma brusca. Tinha a certeza de que a sensação sobre sua pele seria a faísca que faltava para que toda aquela gasolina do cerco entre eles queimasse de vez.
, não faz isso. Eu te amo. A gente pode consertar isso.
Ela não aguentou. A única reação possível era ter uma crise de riso.
— Eu sempre admirei o seu senso de humor, mas eu não fazia ideia de que você conseguia ser assim tão engraçado — ela disse, ainda em meio a risadas. — Juro! Essa é a melhor piada que eu já ouvi.
— Não é piada.
— Bom, então você realmente deve pensar que eu sou uma palhaça — cuspiu as palavras, quase se sentindo prestes a rosnar. — Some da minha frente, Elliott. Agora.
Mas não deu tempo de que ele o fizesse. Antes que pudesse ver mais um olhar de culpa sequer, passou por ele, batendo com o ombro sem se importar onde. Honestamente, que ele fosse para o inferno também.
Irrompeu um tanto afoita pela porta da frente da casa que costumava ser seu refúgio, a moradia de dois corações apaixonados que tanto repetiam sobre como construiriam uma linda família. Dois filhos. Um gato e um cachorro. Uma sala de brinquedos. Um fogão e uma batedeira profissionais para ela poder seguir um milésimo que fosse do seu sonho. E todos os natais seriam ali. Com a família dela e a dele reunidas em volta de uma árvore de natal decorada só com enfeites vermelhos e dourados, cheia de presentes na base. E criariam novos costumes, hábitos especiais. Um filme para ver todo fim de ano, um almoço especial de aniversário, uma brincadeira para a páscoa.
Tudo tinha sido lavado por um tsunami individual, levando seus sonhos, perspectivas e esperanças como se não significassem absolutamente nada.
E não deviam significar mesmo. Alguém que se importa minimamente com você não teria coragem de te envergonhar dessa forma. Nem de abrir um buraco no único chão firme que você acreditava ter na vida.
bateu a porta do carro com força atrás de si. Sentada atrás do volante, deu uma última olhada para o lar que se tornara um campo de batalhas. Em menos de vinte e quatro horas, tinha perdido praticamente tudo o que tinha.
Foi quando percebeu que, se não colocasse pelo menos um pouquinho do que estava sentindo para fora, acabaria explodindo. Então, puxou o celular do bolso e ligou para a única pessoa com quem poderia contar em qualquer segundo de qualquer momento.
A chamada foi atendida rapidamente, sem tempo sequer para o segundo toque.
— Alô?
— Oi, mãe.
— Oi, meu amor! Como é que você está?
Ela nunca tinha pensado que um dia essas poucas e simples palavras fossem se tornar capazes de abrir um buraco no seu peito e um maremoto em seus olhos.
Ouvindo a voz calma da mãe, sempre tão acolhedora, finalmente se permitiu fazer o que esteve acumulando o dia todo. E chorou. Chorou como se pudesse colocar para fora toda a água que tinha no corpo junto com a dor, a decepção e o medo do futuro. Chorou como se esse fosse, paradoxalmente, o único jeito de se manter nadando, sem se afogar.
E a mais velha ouviu cada segundo daquilo, com o coração partido por não poder remendar os danos causados ao de sua filha. Ouviu toda a história do emprego e do noivo, chegando à conclusão óbvia de que tudo isso era uma droga e, sim, ela sentia muito, mas também sabia que sua menina encontraria coisas muito melhores em seu caminho. Nos dois casos. Afinal, ela merecia o mundo e, mais cedo ou mais tarde, ele seria todo seu.
deixou uma risada leve escapar mais pelo nariz que pelos lábios. Não sabia se acreditava muito nisso, mas também não tinha opção melhor a menos que quisesse deitar em uma cama e ficar olhando para o teto até se desfazer no tempo. Tudo bem, talvez ela quisesse isso um pouquinho.
— Você saiu da casa?
A mais nova assentiu, ainda tentando se recompor das lágrimas derrubadas. No fim das contas, decepções à parte, era esse o grande problema.
— Você sabe que sempre pode voltar para casa, não sabe?
Ela sabia. Mas aquela era a última opção na sua lista — que só tinha uns dois itens.
— Mãe, eu não posso voltar agora. Se já é difícil arranjar um emprego por aqui, aí vai ser pior ainda. Fora que eu não vou voltar para vocês terem que se preocupar comigo. As coisas já não andam fáceis sendo só você e o papai. Eu não vou voltar para ser um peso.
— Nunca mais fale que você é um peso para nós, ouviu? Você é o que nós temos de mais precioso no mundo. Nós temos muito orgulho de você, entendeu? E nossas portas vão estar sempre abertas. Independentemente do que acontecer.
deu mais uma fungada, concordando. Tinha plena ciência do quão sortuda era por ter o apoio deles.
— Eu vou dar um jeito, mãe. Prometo. E obrigada por tentar ajudar.
— Bom, se essa oferta de ajuda não deu certo e você está tão decidida a ficar aí, eu ainda tenho mais uma coisa que posso fazer.


Quando o céu deu os primeiros indícios de escurecimento, deixando bem claro que expressaria o seu descontentamento com o universo por meio de pesadas gotas de chuva, quase sentiu dor física. Literalmente. Porque não era possível que as coisas fossem mesmo dar tão errado para ela a todo o tempo.
Sério? Já não era ruim o suficiente ficar recebendo alguns olhares de pena, uns de desprezo e outros tantos de puro descaso — todos terminando no mesmo retumbante ‘não’ — a cada lugar que passava? Não, aparentemente ela ainda teria que ficar andando na chuva. E é claro que ela tinha deixado o seu melhor guarda-chuva na casa de Elliott — não era mais deles, ela precisava lembrar — e ficado com um menor que provavelmente a abandonaria no primeiro sinal de vento.
Sinceramente, não gostava de ser a pessoa que sempre reclamava de tudo e parecia ser o indivíduo mais ingrato da face da Terra. Mas, em um momento como aquele, era quase impossível não se permitir sentir ao menos um pouco de pena de si mesma. A droga do universo tinha se alinhado para destruir a sua vida e isso estava bem claro. Todos os mercúrios retrógrados e espelhos quebrados tinham se unido e mancomunado contra qualquer possibilidade de alegria. Enquanto ela achava que doses homeopáticas de azar eram uma constante para a vida de qualquer pessoa, existia um plano maligno infalível preparado só para ela. Era a única explicação para aquela tempestade. Literal e metaforicamente falando.
O carro ainda estava a pelo menos umas quatro quadras dali quando ela sentiu o primeiro pingo pesado lhe acertar bem na base do nariz, escorrendo até a sua boca. Não conseguiria chegar sequer à esquina antes que a primeira nuvem se desfizesse bem em cima de sua cabeça.
Deu alguns passos rápidos, quase saltando os paralelepípedos até conseguir se colocar sob o primeiro toldo largo. Um vermelho e cheio de barras de ferro que o sustentavam. É, era o suficiente. E ela teve provas disso bem rápido ao perceber que, mesmo com o vento, a ira do universo que escorria pelos céus não a atingia. Mal conseguiu esconder um pequeno suspiro de alívio ao ter aquela — mesmo que só aquela — pequena vitória.
Apertando o sobretudo cinza um pouco melhor ao redor da cintura, permitiu-se finalmente olhar para a vitrine da loja que havia lhe emprestado um momento de proteção.
Aquilo só podia ser algum tipo de piada.
De todos os lugares do mundo, tinha se refugiado logo sob o cheiro de café fresco e de massa folhada extra crocante recém-saída do forno. Rodeada das cores mais diversas e dos melhores trabalhos de bico que via em um bom tempo.
E era um tanto sádico para aquele momento, não era? Mas ao mesmo tempo existia um magnetismo ali que a impedia de desviar o olhar. Como se não tivesse outra escolha, caminhou até a mesa de dois lugares livre perto do balcão, enquanto engolia em seco, absorvendo a cada instante que passava algum novo detalhe do ambiente. Um quadro na parede, uma samambaia pendente, um biscoito decorado em forma de urso panda. Aquele com certeza deveria fazer um sucesso enorme com as crianças.
Com um sorriso educado, a garçonete veio anotar o seu pedido: uma fatia de Victoria Sponge e, apesar de ainda faltar um bom tempo para cinco horas, uma xícara de Earl Grey servido com leite.
esperou pouco, tamborilando as pontas dos dedos contra o tampo da mesa no ritmo da música ambiente que tocava — tão doce quanto a maioria dos itens da vitrine da confeitaria.
Por Deus, como depois de tanto tempo aquele tipo de lugar conseguia continuar sendo o único que lhe trazia conforto? Em que momento havia simplesmente aceitado abrir mão de seu sonho por uma ideia aparentemente mais sólida, prática e confiável quando aquilo a destruía diariamente?
Grande porcaria de plano confiável que havia explodido bem no meio da sua testa.
Alguma partezinha de si desejava, lá atrás, ter sido só um pouquinho mais corajosa. Infelizmente, agora era tarde demais e a vida adulta tinha lavado seus sonhos como a correnteza de um rio levando seixos embora.
E não é como se ela estivesse aceitando uma vida infeliz. Não, não. Ela ainda esperava conseguir fazer melhor e viver bons momentos ao longo dos próximos anos. O aniversário de sessenta anos dos pais, quantos natais fossem possíveis, uma festa de aniversário com amigos, uma família com quem a amasse de verdade. Só tinha entendido que aquela parte em específico tinha ficado no passado. Agora, só precisava também deixar no pretérito o status de desempregada e dar um jeito de reverter toda essa situação de merda de uma vez por todas.
Por ela.
Bastou um pequeno gole de chá para que ela pensasse que deveria ter pedido um chocolate quente. Nem se lembrava da última vez que havia tomado um. Em algum momento, tinha se perdido em meio às caixas de chás importados de Elliott e só aceitado a nova rotina, como se a única opção plausível fosse se encaixar a ela. E a ele.
Ao comer um pedaço de seu Victoria Sponge , em contrapartida, fechou os olhos em reflexo, sentindo-se abraçada. Enquanto saboreava cada diferente camada de sabor, com uma leve pitada de egocentrismo, deixou escapar uma risadinha que reconhecia uma verdade irrefutável: a textura de seu pão de ló era melhor do que aquela.
Ao terminar o consumo, percebeu que a chuva havia diminuído consideravelmente — o suficiente para que o seu pobre velho guarda-chuva aguentasse as quadras que restavam até o carro. O céu, ainda tingido por pinceladas em mais tons de cinza do que E. L. James seria capaz de contar, deixava mais do que claro que, se ela pretendia não chegar completamente encharcada ao hotel, era melhor aproveitar aquela oportuna pausa o mais rápido possível.
Finalmente dentro do veículo, arrancou os sapatos com pressa, jogando-os sob o banco do carona. Enquanto recuperava o fôlego após a corrida que denunciava seu preparo físico, encontrou o número de Brooke, sua melhor amiga do antigo trabalho. Assistindo às primeiras gotas voltarem a batucar no vidro do carro, pensou se deveria ligar. Mas não queria incomodar. As pessoas continuavam seguindo as suas vidas normalmente, mesmo que a dela de repente tivesse dado uma freada brusca por ver que o GPS tinha errado o caminho.
Contentou-se em digitar uma mensagem que resumia os acontecimentos recentes sem grandes detalhes e outra com o endereço do hotel em que estava hospedada. Por mais que tentasse se convencer de que esta última tivesse sido compartilhada em caso de emergências ou de Brooke precisar de algo, sabia perfeitamente que o fizera por, no fundo, não querer ficar sozinha. Ela não daria a ideia, mas não poderia fazer nada se a ideia partisse da amiga, não é mesmo? Ainda mais quando precisava voltar à casa de Elliott para buscar o resto de suas coisas e só o pensamento de atravessar aquela porta mais uma vez já lhe dava ânsia.
Cantarolando ‘Feather’ — que Deus abençoasse Sabrina Carpenter e sua tendência homicida contra homens —, ela chegou ao estacionamento do hotel sem maiores dificuldades. Cumprimentou a funcionária da recepção com um sorriso, quando esta desviou a atenção da planilha de hóspedes do computador:
— Senhorita , temos uma visita lhe esperando.
Será? Tão rápido assim? Era tudo o que ela pensava consigo mesma. Brooke era mesmo maravilhosa, mas a agilidade para entender a intenção por trás da mensagem e se dirigir ao hotel tão prontamente equivalia a um super poder. Quem era Barry Allen comparado à sua amiga?
Seu sorriso se tornou mais largo:
— Claro, claro. Onde posso encontrá-la?
Antes mesmo que a recepcionista pudesse completar o movimento com a mão direita que apontava para trás de , o ambiente foi preenchido com uma única palavra:
— Charlie.
A mulher congelou por completo no lugar, certa de que qualquer movimento brusco faria com que seus pés cedessem e afundassem em direção ao buraco que parecia ter sido aberto à sua frente. Nunca havia tido vontade ou coragem para saltar de paraquedas, mas a sensação em seu coração deveria ser o mais próximo disso: uma queda livre. E, para piorar, uma na qual todo o aparato de segurança, que havia construído com tanto afinco, havia falhado em protegê-la do violento choque contra o solo.
Só existia uma pessoa no mundo inteiro que a chamava assim. E aquela maldita voz tinha feito seu estômago embolar ao ponto de dar um nó em torno de si próprio. sentiu o Earl Grey queimando a garganta, como se quisesse fugir.
Bom, ele não era o único.
Mas esse não era o jeito de lidar com aquela situação e nem havia rota de fuga para tal. Fora que a descrença de que aquilo estivesse mesmo acontecendo a movia, incentivando-a a confirmar com os próprios olhos que não era uma alucinação.
Não era. A voz, cujo timbre e cada oscilação de frequência estavam tatuados em sua mente, tinha rosto e corpo — os quais ela também já havia memorizado muito bem.
Ele não tinha mudado nada. E, ao mesmo tempo, tinha mudado tudo. O cabelo estava… Que corte era aquele? Mais parecia um belo caos contido com os fios mais longos.
Os ombros pareciam mais largos, provavelmente efeito da musculação que deveria fazer parte indissociável de seus treinos. Para ser sincera — não que ela tivesse notado —, muita coisa ali com certeza tinha sido criada em algumas várias horas de academia.
Tinha uma nova cicatriz esbranquiçada à altura de seu punho direito, quase sendo escondida dentro do bolso do casaco, junto com a mão que ele afundava nervosamente no tecido. Claramente, o moletom da marca esportiva que o patrocinava era bastante resistente ou sua força já teria aberto um belo buraco na costura.
O sorriso, adornado por cada fina linha de expressão, variando entre a genuína simpatia e a assustadora incerteza, continuava exatamente o mesmo. Era a lembrança de quantas vezes seu próprio riso havia sido tomado por ele que fazia seu coração arder um pouco no peito. Ou talvez fossem os seus olhos que estivessem ardendo. Não importava.
— ela respondeu, como se tudo o que ela quis dizer por tanto tempo só pudesse se resumir a uma simples constatação.
Ele meneou a cabeça, parecendo cavar em si algum tipo de resposta certa para o que deveria dizer. Em algum canto ali dentro deveria haver um mapa para direcionar a navegação à moda antiga.
— Já faz um tempo, né?
— Tipo uns oito anos.
A rigidez na voz dela ao responder deixava bem claro que ele tinha escolhido errado. Aquela tinha sido a coisa mais estúpida possível para se dizer naquela situação. Meu Deus, ele era um completo idiota.
— Charlie — ele tentou de novo. — A gente pode conversar? De preferência sem ser no meio do saguão do hotel.
Ela soltou o ar pelo nariz em uma lufada só, como uma singela risada envolta em deboche.
— Está com medo de que as suas fãs o encontrem? Para ser sincera, é uma surpresa que isso aqui ainda não tenha virado um grande e inabitável caos.
— Eu não sei se você notou, mas eu não sou o Harry Styles. — Ele respirou fundo, passando a mão pelos cabelos com alguma impaciência. — Mas, é, seria bom poder conversar sem que possam nos interromper.
se sentia exposta. Tinha passado noites demais em claro, remoendo a perda de seu melhor amigo e todas as formas como as coisas poderiam ter sido diferentes.
E, de repente, ele estava ali em sua frente como se fosse capaz de agir como se nada tivesse acontecido? Não era justo.
— Como é que você me encontrou aqui, afinal? Por que agora?
Ele deu um passo para a frente, desistindo de dar o próximo ao percebê-la encolher os ombros.
— Charlie, eu sinto muito por tudo o que aconteceu.
Seu cenho franzido denunciou o espanto:
— Como é que você sabe…? — Mas ela não precisava que ele respondesse. Só tinha um caminho possível para aquele telefone sem fio. — Minha mãe. Aquela fofoqueira safada.
assentiu.
— Ela explicou o que tinha acontecido para a minha mãe e pediu que eu viesse pelo menos ver como você estava e se precisava de alguma coisa.
quase riu em descrença. Então essa era a misteriosa ideia de ajuda que a mãe teve quando se falaram. Era tão absurdo que era a cara dela.
— Eu estou ótima — ela respondeu secamente, mesmo sabendo que era o oposto perfeito de como ela realmente se sentia. — Não preciso de nada. Muito obrigada pela preocupação.
— Não faz isso — ele praticamente implorou, a voz mais grossa tremendo entre as sílabas. — Eu só quero conversar.
Todas as vozes dentro de si gritavam “Perigo! Fuja para as colinas o mais rápido possível!”, tentando protegê-la do que se parecia demais com outra grande decepção prestes a atingi-la bem no meio do nariz. Depois da sucessão de catástrofes recentes, sentia-se quase obrigada a desenvolver alguma habilidade em construção civil só para erguer em torno de si alguns muros enormes e triplamente cobertos com cimento, argamassa, vigas ou seja lá o que fosse que se usava para sustentação. E obviamente era graças a todo esse brilhante conhecimento que ela continuava se ferrando.
E a melhor forma de se livrar da possibilidade de uma conversa que poderia colocar tudo a perder era simplesmente desviar da bola como se ainda fossem duas crianças perigosamente competitivas jogando queimada.
— Eu não posso agora, ok? Preciso buscar minhas coisas na minha antiga casa.
— Eu vou com você — ele anunciou, ainda decidindo se aquilo deveria ter sido uma pergunta ou uma constatação.
fez uma careta. Sua vontade era gritar: “Retire o que você disse agora, porque não foi assim que eu planejei essa conversa na minha cabeça nos dez segundos que tive para pensar nisso!”.
— Não vai, não.
— Vou — ele repetiu —, porque eu te conheço bem o suficiente para ver na sua cara que a única coisa que você quer menos do que ficar perto de mim é ter que voltar lá sozinha.
E ali estava mais uma coisa que ela odiava desde o primeiro dia da pré-escola: quando ele estava certo.
— Ok. — Ela se deu por vencida. — Mas você dirige.




Continua...


Nota da autora: WE ARE BAAAAAAAAAACK! Capítulo novinho em folha com o retorno da minha querida dupla dinâmica em um dia bem oportuno, não? rs
Feliz Valentine's Day para vocês! ~ain, mas a gente tá no Brasil~ EU SEI, ME DEIXA SER FELIZ!
E, como nessa data especial também tiramos um tempo para as outras pessoas que enchem nosso peito de carinho, gostaria de agradecer cada um que deu uma chance a essa história. Obrigada por viverem essa nova jornada comigo e OBRIGADA PELO PRÊMIO DE ASTROAPOSTA DO MÊS!!!!! Vocês serão sempre os maiorais <3
No mais, espero que gostem e DEIXEM COMENTÁRIOS PELO AMOR DE DEEEEEEEEUS! EU SOU CARENTE! UMA FADA MORRE TODA VEZ QUE VOCÊS LEEM E NÃO COMENTAM!
Um beijo e um queijo,
Mi

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