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Independente do Cosmos🪐
Finalizada em: 17/05/2025


I

— I know I have good judgment, I know I have good taste
It's funny and it's ironic that only I feel that way
O dia na Livraria Butler parecia se arrastar com a mesma velocidade de uma massa de turistas ao redor do Central Park durante o inverno: dolorosamente lento.
A monotonia fazia parecer que quatro horas eram uma quantidade absurda de tempo, ao invés da minha carga horária usual.
Ao meu lado, Evie falava de uma fofoca sobre algum jogador do time de beisebol, que eu não poderia estar mais desinteressada.
— Você não acha? — questionou, a voz transbordando entusiasmo, enquanto eu sequer sabia sobre o que ela falava.
— Claro — respondi, rezando internamente para ter dado a resposta certa.
Eu podia muito bem não estar prestando atenção no que ela falava, mas não queria chateá-la e acabar com a sua animação.
Mas, ao notar o seu longo silêncio, virei em sua direção, com medo de ter respondido errado.
O rosto de Evie estava branco, como se tivesse acabado de ver um fantasma, e seus olhos estavam levemente arregalados, observando alguma coisa além do balcão.
Não tardei em direcionar meu olhar para a mesma direção, notando meu equívoco.
Não era alguma coisa, era alguém.
Miller caminhava em nossa direção.
Miller, o mesmo que estava sendo o suspeito número um do departamento de polícia de Nova Iorque após o sumiço da sua namorada, Jenny Hartman, algumas semanas atrás.
Voltei minha atenção para o meu computador, disposta a tentar diminuir o escrutínio que ele já passava diariamente, e dei uma cotovelada em Evie, rezando para que ela entendesse a pequena agressão como um sinal para ser mais discreta.
estava quase sendo expulso da universidade, já que uma instituição tão famosa quanto a Columbia não podia sujar seu histórico, e tudo o que ele não precisava era de duas estudantes aspirantes a bibliotecárias o encarando como se ele fosse o próprio diabo andando na terra.
— Hm, boa tarde. Preciso de alguns livros de apoio. Podem me indicar a seção? — perguntou ele ao se aproximar, mantendo sua cabeça baixa e o olhar preso ao chão.
Botei o meu melhor sorriso no rosto, disposta a tratar com toda a empatia que mais ninguém ali estava — a julgar pelos olhares atravessados dos poucos alunos presentes ali.
— Claro, mas se você não se importar, eu posso te mostrar. Conheço esse lugar melhor do que a minha própria casa.
levantou a cabeça com uma rapidez incrível, e eu me perguntei se tinha dito algo errado, mas aproveitei para encará-lo pela primeira vez de perto.
Seus olhos pareciam cansados e olheiras arroxeadas os decoravam; sua pele parecia estar mais pálida que o normal, e o ar feliz e saudável que ele aparentava apresentar sempre que estava com a sua namorada tinha sumido.
Assim como ela…
— Você tem certeza? — Seus olhos me encaravam, a dúvida brilhando neles como se eu não soubesse o que estava fazendo.
— Sim, a minha função aqui é ajudar qualquer um que precise — declarei, mantendo meu tom suave, mas firme, querendo que ele conseguisse sentir a verdade através das minhas palavras.
não era perigoso, a polícia não o deixaria solto por aí se ele fosse um maníaco que tivesse sumido com a própria ex — o que era ainda mais estranho, pois parte dele parecia ter sumido junto com ela.
O que eles tinham parecia ser o amor descrito nos livros.
E não parecia ser maluco a ponto de jogar aquilo fora.
— Podemos ir? — Senti o beliscão de Evie na minha perna assim que fiquei de pé.
— Volto logo — comuniquei à minha amiga.
Peguei meu crachá e segui em direção a , verdadeiramente disposta a ajudá-lo.
— Espero que sim — disse ela. A frase não soou baixa o suficiente, alcançando tanto a mim quanto a ele.
Notei quando ele se encolheu, uma mistura de mágoa e algo mais passando por suas feições. Voltei meu olhar para Evie, a encarando com a famosa cara do “mais tarde iremos conversar sobre isso”.
— Desculpa por isso — murmurei, levemente envergonhada.
Uma risada depreciativa foi minha resposta por alguns segundos antes que ele completasse, com a voz soando mais rouca que anteriormente:
— Não precisa se desculpar. Já ouvi coisas muito piores que essa insinuação.
Engoli em seco, sem sequer conseguir imaginar por tudo o que ele devia estar passando.
E o meu coração boboca se compadeceu de , que podia ou não ser culpado no sumiço da sua ex, mas que precisava de um ombro amigo para ajudá-lo a superar a situação.
— Eu me chamo — me apresentei, disposta a tentar levar um pouco de calmaria para a vida de , se ele assim permitisse.


Eu poderia falar que a tarde passou em um piscar de olhos, sem que eu percebesse, enquanto continuava ao lado de , o ajudando a recolher os materiais que ele precisava e sendo a tutora mais fajuta da face da Terra, mas as mensagens e ligações de Evie a cada meia hora me deixaram bem ciente das três horas que passei na companhia de .
Nos despedimos quando o horário do fim do meu turno se aproximava, já que eu precisava passar um mini relatório para Rina, a garota que ficaria o resto da tarde em meu posto, e trocamos contato um com o outro.
— Meu Deus, eu já estava começando a ficar preocupada — falou Evie. Sua fala soou mais alta que o recomendado para o local em que nos encontrávamos, fazendo com que algumas cabeças virassem em sua direção, enquanto eu caminhava de volta para o balcão.
— Olha o tom — a repreendi ao me aproximar. — Não tinha como ficar preocupada com você me bombardeando de mensagens o tempo inteiro.
— Que Deus me castigue por estar preocupada com a segurança da minha amiga — resmungou.
Rolei os olhos diante do seu drama.
— Não é pra tanto, Evie. Ele é apenas um suspeito. Isso indica que a polícia não tem provas o suficiente contra ele, e eu tenho certeza que nada aconteceria comigo dentro da livraria do campus, cercada de outros alunos e câmeras.
Seus olhos estreitaram conforme ela me encarava como se pudesse ler cada um dos meus pecados, e eu não contive uma careta.
— Para de me encarar assim.
— Você está defendendo-o muito para alguém que nunca falou com ele…
— É pecado mostrar um pouco de empatia por um cara que está com a vida supostamente virada de cabeça para baixo? — questionei, vendo os olhos de Evie dobrarem de tamanho.
— Ele pode ser um assassino!
— Nós não sabemos disso.
Um gemido sofrido escapou dos seus lábios enquanto seus olhos me olhavam de forma temerosa.
— Não me diga que você está gostando dele, — sua voz soou quase como uma súplica. — Ele não é um livro antigo que você pode restaurar ou um brinquedo quebrado esperando pelo seu conserto.
— É a primeira vez que eu falo com ele, Evie. Não estou gostando de ninguém, não seja incoerente.
Estalei os dedos das mãos, começando a ficar incomodada com aquele assunto, o que não passou despercebido pelos olhos da minha amiga.
— Desculpa, eu só estou preocupada com você — murmurou, diminuindo o espaço entre nós e me abraçando. — Eu te conheço, . Conheço o seu gosto por homens. Você sempre escolhe os mais duvidosos.
Evie estava sendo dramática. Meu bom senso e julgamento para homens era muito bom — a questão é que as outras pessoas tinham um parâmetro diferente do meu.
Mas apertei meus braços ao redor dela, grata por tê-la na minha vida, por ter alguém tão preocupado comigo e com meu bem-estar.
— Não precisa se preocupar, eu sei o que eu estou fazendo — soprei contra os seus fios escuros. — Mas você não pode negar que ele tem um certo apelo.
Brinquei, esperando pela reprimenda da minha amiga que eu sabia que viria.
— Claro, se você estiver afim de fazer uma visita íntima — falou, ao romper o abraço, se afastando poucos passos para trás, de modo que suas mãos estivessem segurando meus ombros. — Só não fique muito perto dele.
— Pode deixar! — prometi, mesmo sabendo que eu estava mentindo.
Eu não podia me afastar de . Eu era a única pessoa que ele tinha, e eu sabia muito bem como era não ter ninguém ao seu lado para te apoiar nas horas mais difíceis.
Se se mostrasse perigoso, eu sumiria antes que ele pudesse tentar algo. Mas eu duvidava que isso fosse acontecer.

Stalker

A mulher à minha frente estava um caco, uma sombra do que um dia já fora, mas aquilo era o que ela merecia por não saber ficar satisfeita com o que tinha ao seu livre alcance: amor incondicional.
Ela tinha escolhido jogar tudo fora. Agora era hora de lidar com as consequências.
Seu rosto abatido me encarava de forma temerosa; os diversos hematomas, em tons de roxo e verde, decoravam sua pele branca. A roupa larga e puída acentuava os quilos perdidos durante sua estadia ali.
— Me deixa sair, por favor — sua voz soou rouca, fraca após os incontáveis gritos ao longo das semanas transcorridas.
Um sorriso irônico pintou meus lábios.
— Não se preocupe, eu vou te libertar.
O alívio estampou seu rosto no segundo seguinte, sendo acompanhado de um suspiro longo.
Ela tinha entendido errado.
Meu sorriso se tornou ainda maior, e algo nele deve ter se tornado levemente predatório, já que o temor voltou a dominar sua expressão.
— Sabe, hoje eu finalmente conheci o meu presentinho. Conversamos pela primeira vez, e eu acho que me apaixonei — observei atentamente quando seus olhos se arregalaram, apreciando o incômodo que isso parecia causar nela. — Tudo isso graças a você. Ou melhor, graças à sua falta.
— Não…
— Você não está na posição de pedir algo, sua vadia — cuspi em seu rosto, diminuindo o espaço entre nós e parando a poucos passos de distância da cama à qual seus tornozelos estavam presos. — E agora, você não é nada mais do que uma inconveniência. Sua existência patética não vai servir para nada, além da chance de atrapalhar o meu futuro.
— O quê…
— Te vejo no inferno, docinho — murmurei, sacando a faca e enfiando-a no pescoço de Jenny.
Permaneci ali, observando a vida se esvair de seu corpo enquanto uma sensação de calma dominava todo o meu ser.
O caminho estava livre para que eu conseguisse alcançar meu novo presentinho.

II

— Please, please, please
Don't prove I'm right
Os olhos de Evie me encaravam como se eu estivesse dizendo a maior loucura do mundo e, para a minha melhor amiga, talvez eu estivesse.
— Você está falando sério? — O tom de voz agudo e alto entregava todo o seu choque.
— Sim. Me desculpa? — Fiz a minha melhor expressão sofrida, enquanto Evie continuava a me encarar com uma feição que se intercalava entre o ultraje e o descontentamento. — Não me olha assim ou eu vou me sentir a pior pessoa do mundo.
Evie fez uma careta.
— Não tem como você ser a pior, já que você namora ela.
Revirei os olhos diante do seu drama, imaginando que Evie já teria deixado de lado sua implicância com após nossa aproximação nas três últimas semanas.
— Para com isso. Você sabe que ele não é mais considerado suspeito em relação à ex. A polícia encontrou novas provas — frisei a verdade, disposta a que ela conseguisse, ao menos, deixar a antipatia e o receio que sentia por de lado.
Uma risada irônica escapou de seus lábios.
— Claro, como se isso não fosse nem um pouco suspeito.
Arregalei os olhos, não acreditando no que estava escutando.
— Você está tentando insinuar que isso foi alguma coisa planejada por ele? Evie, você está indo longe demais — rebati, chocada demais com a suposição. — Não fale uma coisa dessas novamente, por favor. Você não consegue tentar se dar bem com ele? Por mim?
Seus olhos me analisaram por alguns segundos antes que seus lábios soltassem um suspiro cansado.
— O que você não me pede sorrindo, que eu não faço chorando?
Me joguei contra seu corpo, puxando-a fortemente para um abraço.
Evie não precisava gostar de , mas se ela ao menos o tratasse bem e parasse de achar que ele era um dos assassinos perigosos de American Horror Story, eu ficaria feliz.
Quem não daria tudo para que sua melhor amiga e seu namorado se dessem bem?
— Eu te amo, você é a melhor amiga do mundo — beijei sua bochecha enquanto me afastava. — Vou marcar alguma com nós três e te aviso.


O percurso do café da universidade até o meu studio em Dutch Kills, no Queens, tinha sido tranquilo, já que, por um milagre, nenhuma das duas linhas de metrô que eu pegava estava apresentando instabilidade.
Um peso parecia ter saído dos meus ombros após eu ter contado sobre mim e o para a Evie. As coisas entre nós eram recentes, mas, ao que tudo indicava, caminhávamos para uma possível eternidade juntos.
Quando o conheci na biblioteca, semanas atrás, tudo o que consegui ver foi a casca de um homem perdido após o sumiço da namorada. A única razão pela qual eu ousei me aproximar de , mesmo com todos os burburinhos, foi o fato de que eu sabia muito bem como era estar sozinha enquanto o mundo todo parecia estar contra você — e isso era algo que eu não desejava para ninguém.
Então eu me dispus a estar ali, disposta a ser um ombro amigo quando ele precisasse, quando a polícia percebesse o equívoco que era achar que aquele homem podia ter algo a ver com o sumiço da própria namorada.
E, durante esse tempo, eu o apoiei quando ninguém mais parecia disposto a fazer isso. As horas ajudando-o com alguma matéria ou simplesmente jogando conversa fora durante os meus horários na livraria foram nos aproximando, até que um dia, após o fim do meu turno, me acompanhou, como sempre, até a minha estação do metrô — mas, diferente de todas as outras vezes, ele me beijou.
E eu retribuí, percebendo então que nunca tinha sentido algo similar com qualquer outro beijo.
Era quase como se algo me indicasse que nós tínhamos sido feitos um para o outro.
E, a partir daquele dia, foi como se eu tivesse virado um amuleto da sorte para .
Novas pistas tinham chegado até a polícia, de modo que eles não o consideravam mais um suspeito. O ostracismo que vinha enfrentando estava mudando gradativamente, enquanto todos pareciam se dar conta do que eu já sabia: que o homem que eu chamava de namorado nunca cometeria algo tão horrendo com alguém que ele amava.
Eu esperava que Evie um dia conseguisse vê-lo do mesmo modo que eu.
Destranquei a porta de casa, dando logo de cara com jogado preguiçosamente no meu sofá, com um baseado entre os dedos. Não tardei em adentrar e trancar a porta, rezando para que o cheiro de maconha não chegasse até a vizinha e ela resolvesse reclamar.
se levantou e veio em minha direção, selando nossos lábios rapidamente e me entregando o baseado.
Eu não era fã de fumar, mas entendia como a situação estava complicada para , por isso sempre dava alguns tragos quando ele me oferecia e nunca reclamava do cheiro ruim que impregnava todos os meus móveis — já que ele fumava com tudo fechado, para o ar nunca sair.
— Como foi o dia, docinho? — questionou, atencioso, como ele sempre fazia quando eu voltava para casa e ele estava lá.
E era por situações assim que eu não reclamava sobre seu fumo descontrolado em lugares não arejados.
— Foi tranquilo. Encontrei a Evie para um café e contei pra ela sobre nós.
Sua única reação foi me passar o baseado outra vez. Seu rosto inexpressivo não me deixava saber o que ele achava do fato de eu não ter conseguido manter aquilo entre nós por mais de alguns dias.
— Isso é um problema para você ou te incomoda em algo? — questionei, após dar mais algumas tragadas, ansiosa para saber a resposta que eu não conseguia achar em seu rosto.
Um balançar de ombros indiferente foi seguido por:
— Depende. Você está pensando em me largar ou me magoar?
Seus olhos brilharam com uma emoção que eu não consegui identificar.
Ri, descrente com a sua pergunta.
— É claro que não. — Devolvi o baseado para , mas ele se contentou apenas em apagá-lo no dorso da mão e jogá-lo no chão, usando as mãos livres para segurar minhas pernas e me puxar para o seu colo.
— Então você pode gritar para o campus inteiro a quem você pertence — seus lábios reivindicaram os meus antes que eu pudesse ter qualquer reação, roubando todo o meu ar e me fazendo derreter em suas coxas. — Você é minha, . E eu não gosto de dividir o que é meu.
— Eu sou sua — ecoei sua frase, embriagada de felicidade com aquelas palavras.
Um sorriso ferino estampou seus lábios.
— Só não me magoe, , por favor…

✴✴✴

— Temos algum plano para hoje? — soprou contra a minha pele, enquanto beijava minhas coxas nuas.
— Não — resmunguei, com o rosto parcialmente enfiado no travesseiro. — Podemos simplesmente passar o dia no seu dormitório. Ninguém saberia que estou aqui.
Sua risada rouca ecoou no silêncio do cômodo.
— Discordo disso. Se você ficar aqui, acredito que o andar inteiro vai acabar sabendo que eu não estou sozinho — disse ele, no mesmo instante em que mordeu o interior da minha coxa, arrancando um gemido meu. — Você acabou de provar o meu ponto.
Revirei os olhos, mas não contive a risadinha que escapou dos meus lábios.
— Ridículo — murmurei, virando o rosto para encará-lo, deitado entre as minhas pernas. — Não sei se quero sair de casa pra fazer alguma coisa.
— Um pouco de ar fresco vai bem. Aproveitar o fim da brisa de outono, que a cada dia fica mais gelada — sugeriu ele.
Fiz uma careta, sentindo o cansaço acumulado da semana toda.
— Eu viveria feliz, presa eternamente nesse quarto, só com você e o suficiente pra me manter viva — confessei, sem me importar se era cedo demais para dizer aquilo. Mas simplesmente parecia... certo.
Como se eu finalmente estivesse onde precisava estar.
— Eu posso te prender nessa cama e realizar essa sua fantasia — disse ele, com os olhos fixos nos meus, carregados de promessas.
— Eu ador…
Minha fala foi interrompida pelo toque do celular de , me assustando levemente por romper o silêncio no qual nos encontrávamos. Observei enquanto ele se afastava para pegar o aparelho, sua expressão tranquila sendo substituída por uma que misturava descrença e algo mais que eu não consegui identificar.
— O que aconteceu? — perguntei, esperando por uma resposta que não veio. — ?
Levantei da cama e caminhei até ele, envolvendo meus braços em sua cintura assim que parei ao seu lado. Mirei a tela do celular e vi o que o deixara tão atônito.
Uma mensagem de um número desconhecido brilhava na tela, com a frase: "A vadia mereceu o que aconteceu", acompanhada de uma foto de Jenny, aparentemente em uma festa, sentada no colo de um cara enquanto beijava outro — e nenhum dos dois era .
Apertei ainda mais os braços ao seu redor.
— Eu sinto muito — sussurrei, imaginando o quanto aquilo devia doer.
Minha voz pareceu finalmente despertá-lo do transe em que se encontrava.
— Eu preciso saber quem me mandou isso — esbravejou ele, pouco antes de tentar ligar para o número, me apertando contra si como se buscasse consolo.
O celular não precisava estar no viva-voz para que eu escutasse a voz eletrônica informando que o número não existia. xingou e tentou de novo, mas ao ouvir a mesma mensagem, jogou o aparelho longe.
— Podemos ir até a polícia tentar descobrir quem mandou isso, se é isso que você quer — sugeri, e logo percebi que tinha dito a coisa errada.
Ele se afastou de mim abruptamente, me segurando pelos ombros enquanto seus olhos arregalados me encaravam com uma intensidade que eu nunca havia presenciado.
— Você não vai contar isso pra ninguém, . Tá me ouvindo? — disse, em um tom tão firme que sequer parecia uma pergunta. Concordei com um aceno de cabeça, encolhendo os ombros. — Desculpa, docinho, mas a polícia não pode saber disso de jeito nenhum. Vão pensar que eu descobri isso antes, fiquei puto, e por isso dei fim na Jenny. Você entende, né?
Concordei outra vez com um gesto.
Se precisava do meu silêncio, era isso que ele teria.
Nem precisava pedir duas vezes.
Eu faria o que ele me pedisse, por ele.
Nada na minha vida tinha dado tão certo quanto esse relacionamento, e eu faria de tudo para que continuasse assim.
Eu seria a pessoa que precisava ter ao seu lado.

✴✴✴

— Como as coisas estão indo? Parece que eu nunca mais consigo te ver — resmungou Evie assim que me sentei na cadeira ao seu lado, no sábado, cobrindo a menina que geralmente trabalhava nesse dia.
— Está tudo ótimo. É como se eu e nos conhecêssemos há anos, as coisas simplesmente fluem naturalmente — confessei, um sorriso raro e sincero estampando meus lábios. — Parece que fomos feitos um para o outro.
...
Não precisei encarar minha amiga para saber que ela me lançava um de seus olhares preocupados, receosa de que eu estivesse romantizando demais a situação.
— Eu não estou exagerando ou sendo emocionada, eu juro pra você — virei em sua direção, esperando que ela conseguisse enxergar a verdade através dos meus olhos. — Ele é diferente dos outros.
— Ele é homem, . No final do dia, eles são todos farinha do mesmo saco — rebateu. Sua frase me irritou levemente; como ela podia falar com tanta propriedade, se sequer o conhecia como eu?
Ela não sabia o que estava dizendo.
— Eu prometo que ele é diferente.
— Não coloque sua mão no fogo por um cara que você conhece há poucos meses — resmungou, me encarando como se eu estivesse sendo cabeça-dura.
— Ele é meu namorado, Evie. O mínimo que posso fazer por ele é isso.
Um suspiro fraco escapou dos seus lábios.
— Eu só não quero que você se magoe depois.
Deslizei minha mão pelo balcão até encontrar a de Evie, e segurei seus dedos entre os meus.
— Não precisa se preocupar comigo. Está tudo certo — murmurei. — Melhor do que já esteve em muito tempo.
Evie apertou levemente minha mão.
— Você é minha melhor amiga, . Eu sempre vou me preocupar com você. — Um sorriso fraco dançou em seus lábios, mas não alcançou seus olhos. — Preciso te levar a um lugar depois do fim do expediente. Você confia em mim?
Não precisei pensar duas vezes antes de responder:
— Sempre.

As quatro horas do turno na Livraria Butler passaram rápido, mesmo que o local estivesse tão vazio quanto um mausoléu, já que poucas pessoas iam durante os fins de semana. Mas Evie e eu aproveitamos para jogar conversa fora e colocar a fofoca em dia, além de não deixarmos faltar reclamações sobre nossos cursos — artes visuais e psicologia.
Passar um tempo com a minha melhor amiga era ótimo e, desde que eu comecei a namorar o , eu sabia que estava pecando ao deixá-la de lado. Mas ele precisava mais de mim, e eu estaria ali, sempre por ele.
Não me preocupei em perguntar para Evie onde iríamos. Ela devia ter achado alguma nova cafeteria ou descoberto um novo brechó pelos galpões da cidade e queria me mostrar. Com isso em mente, apenas peguei minha bolsa e a segui para fora da livraria assim que as meninas que nos renderiam chegaram.
Percebi que estava errada quando continuamos caminhando pelo campus, seguindo para a direção norte.
— Ei, para onde estamos indo? — questionei, após andarmos por mais de quinze minutos em completo silêncio.
— É logo ali na frente, na Igreja de Riverside — respondeu simplesmente, como se visitar igrejas fosse um passeio comum que fazíamos no nosso dia a dia.
De todos os lugares que eu imaginei que Evie poderia me arrastar, igreja foi um que não passou pela minha cabeça em nenhum momento.
Seria possível que ela estava me achando uma amiga tão ruim que ia pedir intervenção divina?
— Certo... e qual a razão específica para estarmos indo até lá? — insisti, observando enquanto a imponente igreja crescia cada vez mais à minha frente.
Eu conhecia Evie há três anos, desde a palestra para calouros em que me sentei ao seu lado, e sabia muito bem que ela não era cristã ou católica — sua espiritualidade estava mais ligada a borras de café e cartas de tarô do que a qualquer ser divino.
— A igreja disponibiliza três salas para que os alunos de artes possam usá-las para ensaios. Elas são usadas majoritariamente pelo pessoal do teatro e do cinema — explicou, mas, ainda assim, sua frase não sanou minhas dúvidas.
— E estamos indo assistir a um ensaio? — chutei.
Por mais que Evie fosse do ramo das artes, minha melhor amiga preferia ficar trancada em algum ateliê pintando ou visitando todos os museus da cidade. Artes performáticas, como o teatro, não eram a sua praia.
— Sim. Algumas alunas do meu curso me arrastaram pra cá alguns dias atrás e tem algo que eu acho que você precisa ver — declarou, com um tom que me causou um arrepio desconfortável.
Eu sabia muito bem que o que Evie queria me mostrar não seria algo de que eu gostaria... eu só não imaginava o quê.
Adentramos a igreja e nos aproximamos de um segurança próximo a uma escada. Evie mostrou sua carteirinha estudantil e eu fiz o mesmo, observando em seguida enquanto ele liberava nosso acesso, indicando que as salas em uso hoje eram a 12T e a 15T.
Seguimos até a segunda e, antes mesmo de cruzarmos a porta, eu já conseguia ouvir os burburinhos de diversas vozes lá dentro. Esperei que minha melhor amiga cruzasse a soleira, mas Evie empacou no meio do batente, deixando-me mais perto do corredor do que da sala.
— Você não vai entrar? — murmurei, minha voz soando baixa para não atrapalhar o ensaio que ocorria lá dentro.
— Não, e nem você — retrucou, virando-se rapidamente para me encarar. — Só olha para o canto direito.
Estranhei sua frase, mas decidi não questionar. Talvez Evie tivesse desenvolvido uma quedinha por algum aluno de teatro e queria me mostrar pessoalmente, já que ela sempre dizia que as fotos não faziam jus a eles.
Inclinei meu corpo levemente para a frente, seguindo com os olhos a direção que minha amiga discretamente indicava — e, num instante, senti o chão escapar sob meus pés.
Do outro lado da sala, entre risos abafados e uma iluminação suave demais para a dor que aquilo causava, estava sentado... com uma garota no colo.
Eles pareciam íntimos, confortáveis demais um com o outro. As mãos dele repousavam com familiaridade na cintura dela, enquanto ela inclinava o rosto para dizer algo perto de seu ouvido, sorrindo.
Por um segundo, tudo ao redor ficou em silêncio. Como se o barulho do ensaio tivesse sido sugado para longe, deixando apenas o som do meu coração descompassado e uma sensação amarga se espalhando pelo meu peito.
Permaneci com os olhos colados neles, imóvel, como se meu corpo tivesse esquecido como reagir. Vi quando seus lábios se tocaram — devagar, íntimos, como se o mundo ao redor não existisse. Vi quando as mãos que, até tão pouco tempo atrás, desbravavam meu corpo com urgência e cuidado, agora acariciavam o corpo dela com a mesma familiaridade, a mesma ternura.
Era como assistir a um filme mudo em que eu já conhecia cada cena, mas agora protagonizado por outra pessoa. A cada gesto, a cada sorriso compartilhado, algo dentro de mim se despedaçava. Observei tudo, sem piscar, como se o simples ato de desviar o olhar fosse negar o que estava acontecendo.
Meu mundo ruiu em silêncio. As certezas, os planos, a felicidade efêmera das últimas semanas — tudo escorria por entre meus dedos, invisível, incontrolável. E eu só conseguia ficar ali, presa naquela imagem, tentando entender quando foi que deixei de ser o centro do seu mundo para virar apenas mais uma espectadora.
, me desculpa — pediu Evie, com a voz doce e terna, despertando-me do meu transe.
Olhei uma última vez para o casal, sentindo as lágrimas embaçando minha visão enquanto eu focava apenas na minha amiga.
— Você não precisa se desculpar, você não fez nada de errado — respondi, fungando. — Obrigada por me mostrar isso, Evie. Eu não sei o que seria da minha vida sem você.
Voltei para o corredor, de forma que , ou qualquer outra pessoa além de Evie, não conseguisse me avistar.
A abracei rapidamente.
— Eu vou sair daqui. Preciso espairecer.
Dei as costas e comecei a caminhar sem esperar uma resposta. Eu precisava sair dali antes que fizesse algo estúpido e me arrependesse.

Minha caminhada não me levou tão longe quanto eu queria. Assim que cruzei com a fachada de um bar chamado “Ninguém Me Contou", uma risada amarga escapou dos meus lábios.
As ironias da vida.
Em momentos como aquele, eu me perguntava se alguém lá em cima me odiava — ou se era apenas o karma batendo à porta, cobrando com juros por tudo que eu já tinha feito.
Independentemente de qual fosse a resposta, eu sabia que o problema era só um: eu.
Não pensei duas vezes antes de empurrar a porta de madeira envelhecida.
Fui direto ao balcão, como se já soubesse o caminho. Sentei e apoiei os cotovelos ali, sentindo o peso do dia despencar sobre meus ombros. Eu precisava beber. Precisava apagar a dor que tinha deixado ao trair tudo que construímos. Beber até o nome dele virar ruído.
— Você tem cara de quem precisa de algo forte — disse uma voz firme, com um toque de simpatia.
Levantei o olhar e dei de cara com o barman. Ele era bonito, do tipo despreocupado, com olhos claros e um sorriso fácil demais. Usava uma camisa preta dobrada nos braços, deixando as tatuagens visíveis. Provavelmente sabia o efeito que causava.
— E você tem cara de quem fala isso pra todo mundo que senta aqui com cara de choro engolido — rebati, mas com um meio sorriso.
Ele deu de ombros, divertido.
— Talvez. Mas isso não torna menos verdade. — Começou a preparar um drink, o sorriso ainda enfeitando seus lábios. — Vou te fazer um "Coração Partido", é o especial da casa.
— Que criativo — comentei, sarcástica.
— Não é? — Ele sorriu, deslizando o copo na minha direção. — Mas posso mudar o nome se você me disser o seu.
.
— Noah.
Brindamos com um leve tilintar de copos, e eu deixei o álcool queimar minha garganta como um castigo necessário. Noah ficou por ali, puxando conversa, flertando com aquele jeito leve, meio ensaiado. E, estranhamente, eu deixei.
Não porque estava interessada. Mas porque doía menos quando alguém me olhava como se eu fosse desejável, inteira… escolhida.
Deixei que a conversa fluísse, que os sorrisos se soltassem e que meus dedos tocassem os dele por cima do balcão de propósito. Era uma encenação. Um pequeno teatro que eu montei para o meu ego ferido respirar um pouco de alívio.
Estava prestes a aceitar o segundo drink — e talvez o número dele, por que não? — quando a porta do bar se abriu, e o universo decidiu brincar de novo comigo.
entrou.
Junto com ele, o grupo de teatro inteiro. Risos altos, vozes desconhecidas, aquela aura artística forçada. Mas só uma coisa me interessou: os olhos dele, quando me viu ali. Sentado, sorrindo, conversando com outro cara. Os olhos dele endureceram. Não piscavam. Não se desviavam de mim.
Sorri. Não para o Noah, mas para o . Do tipo de sorriso que diz "olha a merda que você plantou, agora está na hora de colher".
O ciúme queimava no olhar dele, mesmo que tentasse disfarçar. Mesmo que estivesse cercado de gente. Mas eu o conhecia demais. Sabia ler aquele franzido de sobrancelha, o jeito que os lábios se contraíam, como se não soubesse se vinha falar comigo ou se virava as costas.
O jogo tinha virado.
E, pela primeira vez naquela noite, eu não fui a única a ser quebrada.
separou-se do grupo com passos duros, atravessando o bar como se cada metro o afastasse da razão. Ele parecia prestes a explodir, e o jeito como olhava para mim — como se eu fosse propriedade dele — fez meu estômago revirar.
Ele parou ao meu lado, perto demais.
— O que você está fazendo aqui, ? — disparou, a voz baixa, mas afiada como navalha.
, não começa — murmurei, cruzando os braços e sem olhar para ele. — Eu poderia estar te fazendo a mesma pergunta…
— Não começa? — Ele deu uma risada seca, nervosa. — Você tá de gracinha com esse barman ridículo como se eu não tivesse te comido hoje de manhã?
Eu me virei, devagar, olhando direto nos olhos dele.
— Você não tem o direito de me questionar, quando você próprio parece ter esquecido o que nós fizemos de manhã — falei, firme, cada palavra marcada com intenção. — Não depois do que eu vi naquela sala de ensaio. Aquela sua amiguinha do teatro... no seu colo... os risinhos, os toques? Não finja surpresa, . Eu sei.
Ele empalideceu por um segundo. As palavras pareceram cortá-lo mais do que esperava.
Como se ele não esperasse que eu fosse descobrir, e isso foi como mais soco.
— Você não entendeu nada... — murmurou, recuando meio passo.
— Eu entendi mais do que queria — retruquei, sentindo a raiva se erguer por trás da dor. — Você me trocou. Me apagou. E agora tá aqui fazendo cena porque eu aceitei um drink?
O silêncio entre nós pesou. Noah, atrás do balcão, observava com um olhar atento, mas não interveio. O bar, ao nosso redor, seguiu no mesmo ritmo: música baixa, copos tilintando, vozes abafadas — mas o mundo, pra mim, estava parado ali. Naquele confronto.
me olhou uma última vez. Seus olhos carregavam algo estranho — dor, sim, mas também raiva. Ferido, talvez mais pelo próprio ego do que por mim.
Ele se inclinou levemente, os dentes cerrados, e murmurou:
— Isso não acaba assim.
Foi a sua promessa, antes que ele se afastasse.

Stalker

Hoje meu presentinho sorriu para alguém que não era eu.
Foi um daqueles sorrisos pequenos e sedutores, mas eu conhecia todos eles. Sabia identificar cada variação. Esse foi o tipo de sorriso que era direcionado só pra mim. Mas que hoje foi dado para outra pessoa.
Senti como se tivessem arrancado algo de dentro de mim.
Passei semanas tentando me convencer de que isso era normal, que eu precisava ser quem meu presentinho precisava. Que pessoas mudam, que fases passam, que talvez fosse só uma turbulência. Mas, no fundo, eu sempre soube.
Eu não era o suficiente, e ele tinha percebido isso também.
Mas eu o amava de verdade. Ainda amo. Mesmo agora. Mesmo depois de tudo que me fez passar, da promessa que quebrou.
Só que o amor, às vezes, não é suficiente. E isso me destrói. Porque eu tentei. Eu tentei tanto. Dei tudo. Me entreguei inteiro. Eu era o que ele precisava. Era tudo. E, mesmo assim, fui deixado de lado como se nunca tivesse significado nada.
Não se trata de vingança. Nunca foi. É sobre memória. Sobre permanência.
Eu só queria que se lembrasse.
Do que fomos.
Do que eu fui.
Eu não era um erro.
Não sou.
E se agora meu presentinho já não for suficiente... então, eu vou precisar de algo mais.
Algo que grite. Algo que marque. Algo que não possa ser esquecido.
Porque o amor também pode ser uma cicatriz.
E cicatrizes duram para sempre.

III

— Heartbreak is one thing, My ego's another
I beg you: Don't embarrass me, motherfucker
As dezenas de mensagens e ligações de estavam começando a me incomodar profundamente. No começo, eu ignorei. Depois, desliguei na cara dele. Mas no quinto dia após a traição — depois de reviver aquela imagem podre mil vezes na minha cabeça —, percebi que não adiantava. Ele não ia parar.
E foi por isso que, naquela noite, eu decidi ir até o dormitório dele.
Queria encerrar aquilo de uma vez. Dizer na cara dele que estava acabado, que ele me perdeu. Queria ver o rosto dele quando ouvisse isso. Queria que doesse. Que queimasse como queimou em mim.
Atravessei o campus com passos firmes, o capuz do moletom cobrindo parte do rosto. As luzes amareladas dos postes deixavam sombras alongadas no chão. Tudo parecia quieto demais.
Quando me aproximei do prédio, vi a janela do quarto dele acesa.
Não esperei. Subi as escadas com raiva acumulada e os nós dos dedos prontos para bater na porta — ou nele.
Mas ela estava entreaberta.
Algo em mim gelou.
Empurrei devagar, e o que vi me fez parar.
Ali estava ele. De novo.
Com ela.
A garota do teatro — aquela sombra risonha que ele tentava fazer parecer insignificante.
Os dois estavam na cama. Ela sobre o colo dele, os rostos próximos demais, rindo de algo que ele sussurrava. As mãos dele estavam na cintura dela. De novo. O mesmo toque. O mesmo olhar.
Tudo o que antes era meu.
O mundo ficou em silêncio outra vez.
Senti como se algo dentro de mim tivesse estalado, como uma corda que, esticada até o limite, finalmente se rompe. Um vazio seco tomou o lugar da dor.
Ele estava correndo atrás de mim, e ainda assim não tinha se preocupado em ser discreto com aquela vagabunda.
E então ele me viu.
O riso sumiu do rosto dele como se tivesse levado um tapa invisível. Ele empurrou a garota para o lado com uma urgência estranha, levantando-se tão rápido que a cadeira quase tombou quando ele esbarrou nela.
! — gritou, o rosto vermelho, os olhos arregalados. — Não era pra ser assim! Você não devia estar aqui ainda!
Fiquei imóvel. Como se meu corpo tivesse congelado. Mas meu olhar estava cravado nele, como uma lâmina.
— Você… — a voz dele falhou, os passos hesitantes na minha direção. — Você tá estragando tudo.
Estragando tudo.
Essas palavras ecoaram na minha mente como um veneno.
Ele não parecia arrependido. Ele parecia irritado. Porque eu quebrei o roteiro.
A garota ainda estava na cama, puxando o lençol com pressa. Mas ela não importava mais. Nada importava.
Me virei e saí.
Não lembro como cheguei até o lado de fora, nem quantos passos dei. Só lembro do gosto metálico na boca e da sensação de que tudo o que eu era, tudo o que eu fui com ele, tinha acabado ali.
Que não tinha mais volta.


Stalker

— Eu não queria fazer isso… mas você me deixou sem escolhas — falei, a voz baixa, carregada de um rancor que queimava como brasa.
Meus olhos encaravam a pessoa amarrada na cadeira — aquela que, um dia, tinha sido minha obsessão. Meu amor. Mas agora, seu rosto só me causava asco. Uma repulsa visceral que brotou no exato momento em que percebi: eu nunca seria suficiente.
Nunca fui.
Eu precisaria agir outra vez.
— N-não...
A voz fraca, quase inaudível, tentou interromper o inevitável. Mas já era tarde. Não havia mais o que pudesse ser feito. Suas escolhas a tinham trazido até aqui, tinham traçado o caminho até essa sala, essas cordas, esse desfecho. E tudo o que eu queria — tudo o que eu sempre quis — era ela.
A minha pessoa. Meu par. Meu presentinho.
Mas ela precisou colocar tudo a perder. Precisou me empurrar até o limite. E agora… não havia retorno.
— Você não me deu escolha — repeti, e minha voz soou como sentença.
As lágrimas escorriam em silêncio por seu rosto avermelhado; os lábios ressecados tremiam, frágeis, e — eu podia apostar — se as mãos não estivessem presas, estariam unidas à frente do corpo, em súplica patética.
— Por favor… — sussurrou, quase num fio de voz.
Aquela palavra — a mesma que tantas vezes saíra da minha boca sem ser ouvida — bastou para libertar algo sombrio dentro de mim.
— Por favor? — repeti, soltando uma risada vazia, o som seco e sem vida. — Isso foi tudo o que eu pedi a você. Só isso. Mas, aparentemente, as minhas súplicas não significavam nada, né? É tão difícil assim ser fiel? É tão difícil assim amar alguém de verdade, nessa porra de mundo?
Inclinei a cabeça para o lado, lentamente, enquanto sacava a faca esportiva. Fiz questão de colocá-la ao alcance de sua visão — da pessoa que um dia eu chamei de amor… que eu jurei amar de forma diferente, ser diferente.
— Vocês se mereciam — cuspi, com o gosto amargo da decepção se misturando à raiva que me entorpecia. — Eu fiz tudo por você. Absolutamente tudo. E, ainda assim, aqui estamos nós.
Me aproximei. Sua respiração ficou mais curta, mais urgente. Um soluço engasgou em sua garganta quando depositei um beijo casto em seus lábios.
Selar nossos lábios, naquele instante, foi um gesto fúnebre.
Uma despedida.
Um fim.
— Mande lembranças pra vadia da Jenny — murmurei, contra sua boca trêmula. — Adeus, .

FIM!

Nota da autora: Meu Deus, eu penei pra conseguir parir esse VF, mas ele finalmente saiu e egostei muito MUITO do resultado, espero que vocês também tenham gostado <3
Mesmo com a minha interpretação louca da música rsrs