
Independente do Cosmos🪐
Finalizada em: 18/05/2025
CAPÍTULO ÚNICO
De clima sem nuvens e céu estrelado;
E toda a perfeição da escuridão e da luz encontra-se
Em seu semblante e seus olhos
Dessa forma enternecida até esta luz suave
Que os céus ao dia fúlgido negam.
Uma sombra a mais, um raio a menos
Teria parcialmente danificado a indescritível beleza
Que ondula em cada negra trança de seu cabelo
E ternamente brilha em seu rosto;
Onde os pensamentos serenamente expressam
Quão puro, quão querido é o lugar que habitam.
E nessa face, e sobre essa fronte
Tão gentil, tão suave contudo eloquente,
Jazem o sorriso que conquista, as cores que dardejam
Mas que falam de dias em benevolência passados
Uma mente em paz com tudo
Um coração cujo amor é inocente!”
Enquanto balançava lentamente os pés que pendiam pouco acima do chão — cortesia da banqueta alta demais do bar —, se perguntou se deveria mesmo estar ali.
Deveria ter ficado em casa, embolada em suas cobertas, com um pote de sorvete de brownie e uma comédia romântica dos anos 2000 a ser revista pela centésima nona vez. Se aquela escolha servia para lembrá-la de que ainda existia alguma esperança de finais felizes na vida, ou apenas para se martirizar ao perceber que sua própria história jamais seria como a dos filmes, já era outra questão.
De toda forma, o saldo era sempre o mesmo: se sentia a maior idiota de todos os tempos.
Quando Michael a chamou para sair a primeira vez, seu sexto sentido já deveria ter apitado como uma sirene de ambulância. A reputação do quarterback dos Blue Devils o precedia da pior forma possível: sua beleza era diretamente proporcional ao seu nível de irresponsabilidade afetiva.
Mas ele tinha o sorriso mais brilhante, o corpo mais atraente e o jeito mais doce de te fazer se sentir como se fosse a pessoa mais especial do mundo. Até que ele se cansasse e a lembrasse que a única pessoa que realmente lhe importava seria sempre ele mesmo.
E não é como se ela quisesse chorar de saudades ou despejar as mágoas de um coração partido. queria gritar até esgotar o ar dos pulmões por conta da raiva que sentia de si própria. Quão idiota ela tinha que ser para ter se envolvido com um cara desses? Pelo amor de Deus, ela nem gostava de atletas!
Provavelmente era esse o motivo de ela ter parado bem ali naquela noite. Um sarau majoritariamente composto por poetas amadores e amantes das artes era literalmente o contrário de tudo o que ele representava. E talvez — só talvez — fosse melhor do que ficar em casa sozinha mais uma noite.
Reconhecendo o fim de uma de suas poesias favoritas de Lorde Byron, balançou as mãos erguidas. Aproveitou o breve intervalo para pedir um espresso martini, enquanto uma garota, aparentemente alguns anos mais nova, organizava-se junto de seu violoncelo no palco.
— Deixa eu adivinhar. — Ouviu uma voz ao seu lado. — Espresso martini?
se virou, encontrando o mesmo rapaz que acabara de declamar Lorde Byron. Os cabelos revoltos e a covinha no canto direito da boca emolduravam os olhos curiosos.
Ela não podia negar que estava um pouco curiosa também. Talvez fosse a poesia. Talvez fosse apenas o fato de que ela literalmente não tinha nada melhor a fazer. Talvez ela não precisasse de justificativa alguma para se divertir um pouco.
— Como soube? Tão previsível quanto escolher Lorde Byron? — retrucou com um singelo erguer de sobrancelhas.
Ele levou as mãos ao peito como se tivesse acabado de tomar uma facada bem ali. Sorrindo com ela, estendeu a mão em um cumprimento:
— .
Os lábios dela se ergueram em um sorriso contido antes de corresponder ao gesto.
— .
— , como em a maior hater de Lorde Byron de todos os tempos?
Ela revirou os olhos, esboçando um riso contido.
— Não odeio Byron. Esse inclusive é o meu texto favorito dele. Só disse que é um clichê. Você tem algo contra clichês, senhor ?
— Não, nem um pouco. Mas tenho várias coisas contra você me chamando de senhor. Principalmente quando eu arriscaria dizer que temos a mesma idade.
— Não sei se quero saber porque você acha isso. Não sei se meu ego aguentaria.
riu, meneando a cabeça. Foi naquele exato momento que percebeu que poderia fazer uma lista de algumas coisas das quais abriria mão só para poder ouvir aquela risada de novo.
— Respira fundo, você vai ter que ouvir. Eu sei que pode ser um grande choque para você…
— Para, eu não sei se estou pronta.
— …Mas nós literalmente estudamos na mesma faculdade.
piscou algumas vezes, enquanto tomava um pequeno gole do seu espresso martini. Por que não tinha pensado naquilo? E, mais que isso, como nunca tinha reparado em no campus? Deveriam ter se esbarrado em alguma das bibliotecas, em eventos ou mesmo no refeitório principal. E quase proporcionalmente a quanto Michael não fazia o seu tipo, fazia. Era exatamente o tipo de cara pelo qual ela sempre parecia se apaixonar. Ainda mais se ele tivesse alguma pretensão de embalar seus sonhos lendo poesias ultrarromânticas de séculos atrás
— Que curso? — perguntou apenas para se obrigar a abandonar os próprios devaneios.
— Ciências políticas. E você vai dizer que eu estou amarrado dos pés à cabeça em uma dúzia de clichês, mas eu escolhi esse caminho realmente por acreditar que eu poderia fazer algo para melhorar o mundo de alguma forma.
Mas não dessa vez. Ela não via como discordar. Realmente achava que ele poderia mudar o mundo. Ou que pelo menos ele genuinamente acreditava que sim.
— Eu acredito em você.
passou os longos dedos pelo cabelo, interrompendo o movimento apenas para repousar a lateral do rosto contra a palma de sua mão. O olhar que a fitava era tão penetrante que temeu que ele pudesse enxergar todas as suas inseguranças e fraquezas, escavar o cerne de todos os seus medos e seu complexo de abandono.
Mas ele só perguntou:
— E você?
Outro gole de seu espresso martini desceu por sua garganta antes que a taça encontrasse novamente o tampo do balcão. Alguém aparentemente tinha acabado de cantar alguns versos originais e ela sequer percebeu, tendo perdido todo o seu foco para prestar atenção apenas nele.
— História da arte. — Ela deu de ombros. — Não para mudar o mundo, mas só porque é o que eu amo. Acho que eu sou um pouco egoísta demais.
— No dia em que amar for egoísmo, o mundo encontrará seu triste fim.
E ele nem imaginava como.
E após mais algumas dezenas de minutos em que o resto do mundo parecia ter simplesmente encontrado um botão de pause, o modo vibratório do celular de os trouxe de volta à realidade.
— É o meu irmão — ele explicou. — Aparentemente, a minha mãe decidiu que nós precisamos estar presentes em algum jantar entediante de alguma amiga dela. E fez ele vir me buscar.
— Que pena — disse com pouca emoção, tentando parecer a pessoa despreocupada que ela definitivamente não era.
— Quer uma carona até o campus? não vai se importar de atrasarmos um pouco. Na verdade, acho que nós dois adoraríamos uma boa desculpa para isso.
Ela realmente cogitou aceitar aquela proposta. Racionalmente, isso lhe economizaria dinheiro e tempo. Também lhe daria mais tempo para conhecer , que tão rápido parecia ter encontrado um jeito de subir um campo magnético que a prendia por perto. Mas não. Ela ainda precisava ter algum traço de autonomia.
Quase conseguia ouvir a voz de sua mãe lhe dizendo, desde a adolescência, que os homens preferiam as mulheres que eram apenas levemente alcançáveis. Não que acreditasse cegamente em qualquer migalha de sabedoria amorosa ofertada por uma mãe que, assim como ela, tinha sido abandonada pelo único homem que deveria ter feito o mínimo de esforço que fosse para ficar.
— Vou ficar um pouco mais — respondeu, por fim. — Divirta-se no jantar.
— Não vai ser nada divertido sem você por lá — retrucou, com um longo suspiro, seguido daquele sorriso de canto com o qual ela poderia se acostumar facilmente. — Quando posso te ver de novo?
deu de ombros, fingindo que seu coração não tinha dado um pulinho ao ouvir as palavras que se tornaram música para seus ouvidos.
— Bom, como você mesmo disse, estudamos na mesma faculdade. Vamos nos esbarrar por aí.
O sorriso no rosto dele tinha se tornado ligeiramente mais largo. Uma diferença que só alguém que vinha prestando muita atenção perceberia.
— Será o maior prazer da minha vida esbarrar em você por aí, .
“you’re so dumb and poetic,
it’s just what i fall for, i like the aesthetic
every self-help book, you’ve already read it
cherry-pick lines like they’re words you invented”
estava exausta. Deveria ter pelo menos umas cinco horas que estava na biblioteca, enfurnada em livros para se preparar para a prova de Museologia. O problema era que nunca parecia ser o suficiente e essa sempre fora uma questão ao longo de toda sua formação. simplesmente não conseguia parar. Estava sempre se cobrando excessivamente e se culpando por quaisquer possíveis erros e deslizes antes mesmo que eles pudessem sonhar em acontecer. De certa forma, amarrava o seu sucesso acadêmico de forma intrincada e indissociável ao seu próprio caráter. Mal sabia quem era sem se preocupar com notas ou méritos.
Mas mesmo ela precisava admitir que não havia sentido algum em continuar se matando quando seu cérebro parecia ter virado geleia dentro do crânio. O único saldo disso seria uma péssima noite de sono, um humor péssimo pela manhã e uma memória falha, incapaz de reter informações cruciais mesmo que sua vida dependesse disso.
Quando fez as pazes com a vozinha dentro de sua cabeça que queria insistir para que ela continuasse e estava prestes a fechar o último pesado livro, contudo, foi interrompida por uma voz que havia acabado de conseguir roubar o maior susto de toda a sua vida.
— Isso deve ser seu.
A garota precisou de alguns longos instantes respirando profundamente até parecer menos alterada para poder olhar para o rapaz ao seu lado, estendendo-lhe um lápis rodeado por uma estampa em tons de rosa e roxo, com uma pequena borracha gasta na extremidade.
sorriu, agradecendo, ao reaver seu objeto de estudo.
— Como sabia?
Ele deu de ombros. reparou nos detalhes de seu rosto. Havia algo de estranhamente familiar na forma que eles se ordenavam para compor a fisionomia que a olhava de volta.
— Você é basicamente a única pessoa que continua aqui estudando.
não conseguiu se conter. Aparentemente, não tinha nascido com a brilhante capacidade de evitar que um comentário idiota ou uma piadinha boba escapassem de sua boca como se estivessem tentando fugir da forca.
— Na verdade, não sou exatamente a única pessoa aqui.
— Eu disse a única pessoa estudando — ele apontou, corrigindo-a. — Eu só vim devolver um livro. E não costumo usar lápis de oncinha. Acho que sou o tipo de cara que prefere as canetas com pompom.
deu uma risada alta, sem se preocupar com as regras de convivência do ambiente — afinal, aparentemente ela era a última alma viva (por pouco) por ali em um horário daqueles. Quer dizer que ele também era afeito às gracinhas?
— Péssimo gosto — respondeu, enquanto guardava os materiais por fim na bolsa. — Essas sempre vêm com pouca tinta e você paga caro por uma caneta vagabunda. As de bichinho são melhores. De preferência as que têm pandas ou unicórnios.
Foi a vez de ele soltar o ar no que parecia uma pequena risada.
— Levarei a dica em consideração da próxima vez que for fazer compras de papelaria.
— ? — Outra voz os interrompeu, chamando a atenção de ambos.
Aquela, sim, era uma voz conhecida. E uma que automaticamente fez todos os pelos da nuca da garota se erguerem. Se era apenas o êxtase de sua chegada ou o seu senso de ‘luta ou fuga’ agindo, ela não saberia dizer. havia se tornado uma exímia profissional em confundir borboletas no estômago com paradas cardíacas.
— Ah, oi, ! — disse, sorrindo largamente ao vê-la. — Eu disse que ainda nos esbarraríamos por aqui.
Na verdade, ela quem tinha dito aquilo, mas decidiu relevar. Não precisava estar sempre certa.
— Vocês se conhecem? — O outro rapaz questionou.
— Nos conhecemos recentemente — explicou. — , esse é o meu irmão mais velho, .
Então era essa a familiaridade que ela estava tentando buscar em sua mente enquanto memorizava cada detalhe. De fato, alguns de seus traços se assemelhavam consideravelmente aos daquele que tinha ocupado a maioria de seus pensamentos antes de dormir nas últimas noites.
— Eu falei muito de você para ele — o caçula continuou falando. — Ele deve ter me odiado tanto.
De repente, ela estava cinco vezes mais interessada naquela história. Tão interessada que não percebeu a força ligeiramente desproporcional com que colocou as mãos nos bolsos da calça jeans.
— Ah, é? E o que foi que você disse? — quis saber.
— Que a vida tinha um jeito muito engraçado de esfregar na sua cara o que sempre esteve ali. E que, para mim, tinha sido a mulher mais incrível que eu já tinha visto na vida.
— E você achou que ia me conquistar com essas palavras bonitas?
Mas ele tinha. Por mais que ela quisesse manter a pose de durona inabalável, sabia que já tinha se enfiado naquele buraco até o último fio de cabelo. Palavras bonitas seriam sempre o seu ponto fraco.
— Só preciso de uma chance para te dar outros motivos.
lhe estendeu o braço da forma mais cavalheiresca possível e ela não conseguiria fugir nem que quisesse muito. E estava bem longe de querer.
Enquanto eles davam as costas para deixar a biblioteca, se sentiu o mais desconfortável que já havia sentido em toda a sua vida.
— Só tomem cuidado.
levaria um bom tempo até perceber que aquilo era bem mais do que a simples fala de um irmão preocupado cumprindo o seu papel.
“gold star for highbrow manipulation
and love everyone is your favorite quotation
try to come off like you’re soft and well-spoken
jack off to lyrics by Leonard Cohen”
— Onde é que a gente está indo?
riu, continuando a puxá-la pelo campus, ainda sem dar uma resposta. tentava tomar cuidado para não enfiar os pés em algum buraco pelo caminho e acabar destruindo aquele momento, seu rosto e sua dignidade.
Quando finalmente pararam, ela se viu em frente ao observatório.
— Vamos, senhorita?
riu da piada, até perceber que aquela não era uma brincadeira.
— Claro que não, né? Sabe que fica fechado durante a noite.
— Não se você tiver trabalhado aqui no seu segundo ano de graduação e ninguém tiver pedido a sua cópia da chave de volta.
Ela sentiu de novo aquela coisa borbulhando na barriga. Agarrou o braço de com as duas mãos, ainda descrente.
— Mentira!
separou uma das chaves do molho que tinha no bolso e rodou a maçaneta, apontando o caminho.
estava simplesmente encantada. Nunca entendeu porque o reservatório ficava fechado logo de noite, mas o fato de o lugar só abrir ocasionalmente para alguns eventos a tinha privado do que, agora, ela confirmava ser a vista mais linda sobre a qual seus olhos já tinham repousado.
— É a coisa mais linda que eu já vi.
— Te garanto que a minha vista é bem melhor.
Quando ela se virou e encontrou os olhos de fixos apenas nela, sentiu as bochechas queimarem como se tivesse tomado sol no fim de uma tarde de verão sem se preocupar com protetor solar. Era como se, mesmo embaixo daquele gigante céu estrelado, ela ainda pudesse ser o centro daquele microcosmo. E, em seu coração, sentir-se especial assim valia mais do que todo o universo.
adiantou-se, deitando no chão mesmo, sem nenhuma preocupação. Naquele momento, era como se estivesse flutuando acima de todas as nuvens. Não existia um problema sequer em todo o mundo que fosse mais importante que aquele instante.
se deitou ao seu lado, entrelaçando os seus dedos.
— Obrigada por me trazer aqui.
— Eu que agradeço por ter topado essa maluquice no meio da noite.
— Por mim, eu poderia ficar aqui assim para sempre.
O rapaz levou a mão dela até os lábios, beijando carinhosamente cada um dos nós de seus dedos. O toque fez temer que pudesse simplesmente explodir.
apontou algumas estrelas, contando seus nomes e algumas histórias da mitologia. Ela ouvia tudo atentamente, mais porque gostava de sua voz do que pelo conteúdo em si.
Quando o assunto pareceu acabar, ela decidiu comentar:
— Você e seu irmão são parecidos.
A respiração dele pareceu ficar mais pesada.
— Eu e não temos nada em comum.
temeu ter dito algo errado.
— Digo por alguns traços na fisionomia só. Não conheço o seu irmão, nem posso falar nada sobre qualquer outra coisa.
continuou sem responder. Ela sentiu um bolo na garganta.
— Desculpa, eu não queria te chatear — murmurou.
A expressão no rosto dele suavizou levemente. Bem menos do que ela esperava.
— Tudo bem. É só que é difícil, sabe? sempre foi o filho perfeito. A mãe dele morreu em um acidente trágico quando ele ainda era só um bebê, então ele se tornou algum tipo de vítima intocável que todos sempre quiseram proteger.
Ele respirou fundo, engolindo algo amargo antes de prosseguir.
— O pai dele casou com a minha mãe uns anos depois e eles me tiveram, mas tudo continuou sendo sobre ele. E eu era só uma decepção; o filho deprimido que nunca chegaria à altura dele. Não tinha as mesmas notas, o mesmo talento esportivo e nem a mesma simpatia para lidar com as pessoas. Eu já nasci fadado a nunca ser bom o suficiente.
Bom, disso ela entendia muito bem. Ver o pai a abandonar antes mesmo que pudesse aprender a ler tinha deixado cicatrizes eternas em alguém que nunca compreendeu porque não tinha o direito de ser cuidada e amada por quem a colocara no mundo. A única resposta plausível era: ela simplesmente não era boa o bastante. Não tinha sido uma criança boa o suficiente para fazê-lo ficar.
— Eu sinto muito. — Era tudo o que ela conseguia dizer. Não queria falar que sabia como ele se sentia ou contar a sua própria versão da história. De alguma forma, sentia que fazer aquilo só pioraria a situação. merecia um espaço para expor o seu sofrimento sem ressalvas e sem sentir que precisava compará-lo ao dela.
O rapaz só deu de ombros e voltou a contar outras histórias, como se nada daquilo tivesse acontecido. Aninhada em seu peito, ouviu cada palavra.
Até que, entre um e outro trecho de seu monólogo, ele a fitou nos olhos — aquela profundidade quase assustadora que ela só tinha vivenciado com ele.
— Sabe, , às vezes eu fico pensando se existe alguma força superior ou alguém que rege nossos destinos. Se existir, eu vou precisar agradecer pessoalmente por ter te colocado na minha vida.
Ela se moveu sem mesmo que seu cérebro assimilasse o que estava fazendo. Colou os seus lábios aos de como se a sua sobrevivência dependesse disso. Precisava dele como precisava de ar. E ele retribuía o gesto como se a recíproca fosse genuinamente verdadeira.
“don’t think you understand
just ‘cause you talk like one, doesn’t make you a man”
Se alguém perguntasse a há quanto tempo ela e estavam juntos, primeiro ela diria que eles não estavam exatamente juntos. Quer dizer, o que realmente significava isso? Eles se viam praticamente todos os dias, andavam de mãos dadas pela rua, ficavam conversando sobre arte e bobagens do cotidiano até tarde da noite e depois trocavam beijos e toques até que estivessem satisfeitos daquela sede que pareciam ter um pelo outro. Mas não era nada sério. Ele nunca ousou dizer a palavra ‘namorada’ e ela decidiu que era melhor assim. O que tinham era tão leve e bonito, que não precisava de rótulos criados por uma sociedade careta.
Depois, responderia que fazia algo por volta de vinte e nove dias e treze horas desde aquele primeiro beijo sob as estrelas. Não que ela estivesse contando. Não era como se todo o seu universo tivesse se realocado naquele exato instante. Nem como se o pensamento de que aquilo pudesse ruir de repente lhe desse calafrios severos.
Por isso, ao bater na porta do endereço que ele havia fornecido, ela respirou fundo. Tinha levado a melhor garrafa de vinho que cabia em seu curto orçamento e ensaiado sozinha em frente ao espelho algumas respostas a perguntas comuns, até decidir quais pareciam melhores e mais palatáveis para oferecer aos pais de .
Quando finalmente se sentiu pronta — ou tão pronta quanto possível —, tocou a campainha, ouvindo imediatamente passos rápidos pelo corredor, entrelaçados aos acordes de ‘Dance Me to the End of Love’ de Leonard Cohen.
abriu a porta usando um avental longo e um sorriso enorme. sorriu instantaneamente, sendo puxada por ele para um beijo longo. Sentiu o rosto todo arder, um pouco pela sensação que ele sempre lhe causava e muito por pensar o que a família dele pensaria se o primeiro contato que tivessem fosse bem ali naquela situação um tanto comprometedora.
Quando se separaram, ela deixou escapar uma risadinha nervosa, enquanto sussurrava:
— , calma. O que seus pais vão pensar se nos virem assim?
Ele segurou o seu rosto com as duas mãos, fitando-a com um sorriso breve, antes de se virar para retornar à cozinha. o seguiu de perto, deixando de reparar nos detalhes da decoração elaborada e da mobília cara de uma casa grande demais para os seus padrões.
— Não esquenta. Meus pais viajaram para a Alemanha ontem e só voltam daqui umas duas semanas. E está em reunião com o orientador do mestrado dele basicamente o dia todo. Hoje, seremos só nós dois e um monte de comida que eu espero ter feito certo.
assentiu com um sorriso pequeno. O que era aquilo? Decepção? Estava mesmo decepcionada por não ter que passar pelo transtorno de se preocupar com cada movimento seu para agradar os pais dele? Ela deveria estar agradecendo de pés juntos por isso.
Ou talvez estivesse um pouco triste consigo mesma por ter assumido as coisas mais uma vez. Em defesa de , ele só a havia convidado para sua casa. Nunca tinha dito uma palavra sequer sobre a família. Fora um erro dela supor que aquilo significava dar um passo tão importante em um relacionamento. Um erro de principiante, ela diria. Ainda estava se acostumando com o jeito dele de dizer — ou deixar de dizer — as coisas.
— Deixa eu servir um pouco desse vinho que você trouxe — ele disse, tirando da gaveta um saca-rolhas automático. — Não precisava trazer nada, eu te falei.
Mas ela só tinha feito o exato oposto por pensar que seria um gesto a ser apreciado pelos pais dele. Os mesmos que ela não fazia ideia de que tinham viajado para a Alemanha e provavelmente sequer sabiam da presença de uma estranha em sua casa enquanto estavam fora.
Em algum canto da sala, ‘Hallelujah’ começou a tocar.
— Para o menu de hoje, temos: coq au vin, batatas gratinadas e brócolis assados. E, por segurança, o telefone da pizzaria bem aqui caso eu tenha cometido algum tipo de crime culinário.
tomou um longo gole do vinho e entrelaçou seus dedos aos de , que a puxou para mais perto em um abraço.
— Aposto que está tudo perfeito. Você é incapaz de fazer qualquer coisa ruim.
Ele deixou um beijo estalado em sua bochecha antes de soltá-la e virá-la para ele.
— Sabia que você é literalmente a pessoa mais gentil do mundo? Não sei o que eu fiz de tão bom nessa vida para merecer alguém como você.
não sabia se era exatamente assim que ela se descreveria.
— Vem, deixa eu te mostrar a casa.
Passaram por umas quatro salas diferentes — sala de estar, sala de jantar, sala de jogos, sala de leitura — antes de parar na frente de uma porta branca igual a todas as outras.
— Você está pronta?
— Se for um quarto vermelho ou algo assim, eu não posso te garantir que eu esteja.
Ele riu alto.
— Claro que não. Esse fica lá no porão.
Com um empurrão leve, a porta se abriu para o que só poderia ser o quarto do — que sozinho deveria equivaler a pelo menos metade da casa em que ela cresceu.
deu um giro, absorvendo a visão panorâmica. Uma cama king size coberta por uma colcha em tons escuros de azul, mobília escura e um lustre imponente.
As estantes, altivas ao lado da cama, traziam de um lado vários livros de auto-desenvolvimento, poucas ficções e uma quantidade razoável de coletâneas de poesia. A gigantesca maioria escrita por homens.
Do outro lado, uma coleção de vinis de cantores da velha guarda. era, aparentemente, a única pessoa no mundo que tinha todos os discos de Leonard Cohen, Lou Reed e Tom Waits.
Mas o que finalmente roubou sua atenção foi um gabinete menor, recoberto por medalhas e troféus.
— Meu Deus, quantas centenas de competições você ganhou?
— É bobagem, a maioria é de quando eu ainda estava no colégio — ele disse, mas começou a apontar um a um dos prêmios mesmo assim. — Esses três são de competições de soletração. Fui campeão nacional naquele ano. Esses dois são de matemática. — correu a mão pela sucessão de medalhas que descansavam acima das outras. — Todas essas aqui são por concurso de poesia, crônicas ou escrita criativa.
jamais poderia dizer que aquilo lhe causava alguma surpresa. Ela mesma já tinha dito pelo menos umas quinze vezes como ele era o mestre das palavras bonitas. E ela caía por todas elas, como se fosse uma cobra saindo de seu cesto, incapaz de não ceder à armadilha do encantador de serpentes.
— E esses troféus?
— Ah, são do basquete.
— Não foi você quem disse que não era nada atlético?
Ele deu de ombros, como se aquilo não importasse.
— Eu nunca colocaria isso como uma qualidade minha se tivesse que fazer uma lista, mas eu era um armador bem razoável.
Aquela definitivamente era uma novidade. Todas as vezes que o assunto sequer esbarrava no tópico de esportes, ele terminava desdenhando dos times da faculdade e de torcedores fanáticos, criticando o nível intelectual dos atletas ou reafirmando que a família o menosprezava por nunca ter sido bom em campos ou quadras como . Quase um mês depois e continuava se mostrando uma caixinha cheia de surpresas.
— Vamos voltar — ele chamou. — Estou sentindo o cheiro do frango.
ajudou com os pratos e arrumou a mesa. A comida era agradável e a conversa fluiu na mesa como sempre fazia sempre que estavam juntos. Falaram sobre Mozart, Caravaggio e, de alguma forma, tinham conseguido chegar ao tópico da Guerra de Secessão.
Para eles, qualquer assunto, por mais banal que fosse, era suficiente para se desenrolar como um novelo de lã por horas. Isto é, desde que não fossem questões pessoais. Nesse caso, quando não conseguiam evitar o tópico, tinha sempre um monólogo a fazer sobre o sofrimento inerente ao homem, as cobranças familiares e de uma sociedade capitalista indissociável da visão de lucro e comentários sobre como existiam formas mais naturais e saudáveis de tratar questões de saúde mental sem que fossem necessários todos esses remédios que a indústria farmacêutica insistia em querer enfiar goela abaixo. Ele não tinha ficado muito contente quando , brincando, decidiu intitulá-lo fã número um de meditação e amante de mantras.
Depois de terminarem a garrafa de vinho, a puxou de volta para o seu quarto, parando a cada poucos passos apenas para pressioná-la contra o corpo ou contra a parede — ou ambos — e lhe roubar beijos cheios de desejo.
Na cama, pernas e braços se embolavam com a velocidade de quem não aguentava mais esperar. O magnetismo que um mantinha sobre o outro era forte e incontestável. Às vezes, pensava que, se fosse possível fundir o seu corpo ao do outro, ela definitivamente escolheria unir o dela ao de para sempre. Esse encontro fazia sentido em níveis que ela sequer se arriscaria a tentar compreender.
Especialmente nesses momentos, ele era carinhoso, devotado e preocupado — uma sequência de coisas com as quais ela não estava tão bem acostumada. E talvez fosse apenas o seu histórico conturbado a perseguindo como um fantasma sabotador, mas aquilo era o mais próximo de felicidade plena que ela já conhecera.
Com os corpos ainda despidos e a cabeça dela repousando sobre o peito dele, os dois respiravam em sincronia, tentando inutilmente contar os cristais do lustre acima.
Os dedos de passeavam sobre as costas dela, desenhando estrelas, corações, pontos de interrogação. Qualquer coisa que fizesse a base dos pelos finos se arrepiar em resposta.
Após alguns minutos, se inclinou para a gaveta ao lado da cama, retirando de lá um pequeno saquinho. observava cada um de seus movimentos como se precisasse decorar seus trejeitos e manemos antes que ele evaporasse de sua vida por completo. Subconscientemente, estava sempre apavorada com a expectativa da chegada desse momento.
— O que é isso? — O conteúdo da pequena embalagem plástica era indecifrável.
— Quer provar?
virou a cabeça sobre o pescoço, tentando se livrar do desconforto repentino como se ele fosse um sintoma físico.
— , o que é isso?
— Cogumelos — ele explicou. — Nada de muito forte.
Ela não soube o que dizer. Tinha sido pega de surpresa. De todas as infinitas possibilidades que sua mente ansiosa tinha criado para aquele dia, essa definitivamente não constava na lista.
— É tranquilo. Mas, nossa, você não tem noção do quanto isso tem me feito bem. Em momentos mais complicados e estressantes, ajuda muito a clarear a mente. E me fez perceber tanta coisa importante que talvez eu nunca tivesse notado sem eles.
Ela achava bem difícil de acreditar.
— Hm, acho que não — ela respondeu incerta, como se estivesse contando seus passos sobre um tabuleiro de campo minado. — Acho melhor não misturar as coisas, eu já tomei bastante vinho. Não quero passar mal, ainda mais na sua cama.
Uma desculpa ridícula, mas que ela esperava que ele aceitasse. Não queria quebrar o encanto daquele momento.
— Aí eu cuidaria de você — disse, deixando um beijo no topo de sua cabeça após cada uma de suas palavras. — Mas tudo bem, eu entendo. Um outro dia, então.
sorriu para ele, ignorando o fato de que esse dia nunca chegaria. Se essa fosse mesmo se tornar uma discussão entre eles, ao menos que fosse adiada para outro momento.
Os dedos dele se emaranhavam em seus cabelos, em um carinho gostoso, mas que depois deixaria nós dolorosos de se pentear. Era quase uma metáfora cômica do que ela sempre fazia ao tolerar os pequenos espinhos das situações espetando os seus dedos, apenas para colher as deslumbrantes rosas que desabrochavam. Era como um pequeno preço a se pagar.
Ao menos, era pequeno até que os machucados infeccionassem e se tornassem um problema muito maior. Mas não havia porque pensar nisso. Naquele momento, só existia um pequeno furo na ponta de seu indicador, sangrando pouco. Ela superaria. Ela cicatrizaria. Como sempre fez.
— Acho que eu nunca disse isso para ninguém antes — ele voltou a falar.
agradeceu por ter sido retirada de uma vez do turbilhão que tentava tomar conta de sua mente. Não queria afundar. Precisava que ele a puxasse de volta para a margem.
— Mas acho que você me salvou. , eu estava tão perdido antes de te encontrar. Eu juro por Deus. Eu tentei de tudo: meditação, retiros espirituais no meio da droga do deserto, viagens… Tudo isso ajuda, é claro, mas foi só quando você apareceu que eu finalmente senti como se pudesse respirar de novo.
Ela respondeu deixando um beijo demorado na curva de seu pescoço.
— , acho que graças a você eu finalmente entendi o que é amor.
Ela o abraçou com um pouco mais de força, sentindo o sorriso bobo se alargar e o coração se aquecer como uma lareira no inverno. Teve de engolir o súbito reflexo de responder com um: “eu também te amo”, impedindo-se ao perceber que não fora isso que ele dissera.
“you’re so sad there’s no communication but, baby, you put us in this situation
you’re running so fast from the hearts that you’re breaking
save all your breath for your floor meditation”
estava nas nuvens. Tinha se saído bem em todas as provas da semana e finalmente poderia voltar a dormir como um anjo. Tinha resgatado uma paixão antiga ao encontrar um kit de aquarela perdido em meio à sua bagunça. Tinha ganhado lindos brincos que pendiam de forma brilhante — literalmente — de suas orelhas como presente de .
Aquele já estava sendo o seu melhor aniversário dos últimos anos com uma enorme margem de vantagem. Até sentir a brisa suave no rosto, sentada no banco em frente a confeitaria, estava lhe trazendo uma alegria inexplicável.
Estava usando seu vestido de verão favorito, ajeitando a barra com uma das mãos, enquanto a outra apoiava a caixa com o bolo de aniversário que havia encomendado para eles.
Desbloqueou mais uma vez a tela do celular, relendo as mensagens que tinha trocado com três horas atrás:
:“Mal posso esperar para te ver de novo hoje à noite”
“Maratona de filmes + você + bolo de aniversário = minha ideia de paraíso”
:“Te pego às 18h na frente da confeitaria para começarmos a nossa noite de aventura ;)”
sorriu mais uma vez para a tela. Estava tão apaixonada que chegava a doer.
Checou o horário, vendo 18h02 no visor, mas sequer se importou. Por dois minutos? só estava um pouco atrasado. Do jeito que ele era, talvez tivesse parado em alguma banca de flores no meio do caminho para lhe fazer mais uma surpresa. Era a cara dele.
Abriu um joguinho qualquer e tentou se entreter enquanto o tempo passava. Acreditou que não esperaria mais de dez minutos, mas se passaram vinte. E, então, trinta.
Foi quando sentiu o gosto de bile na boca e começou a ligar para . Na quinta tentativa sendo direcionada para a caixa postal, viu um carro esportivo preto estacionando bem na sua frente.
Quando desceu do carro, vindo em sua direção, ela sentiu como se a própria pulsação fosse romper sua garganta. Era uma clássica cena de filmes e seriados. Era esse o momento em que ela recebia a pior notícia que poderia imaginar.
— Foi um acidente, né? Me diz que ele está bem, por favor.
O irmão mais velho franziu o cenho.
— O que foi um acidente?
— vinha me buscar e não apareceu. No meio do caminho, alguma coisa aconteceu… — Ela não conseguia terminar sua própria frase. Não tinha estômago para isso.
O rosto de se suavizou, oferecendo-lhe um olhar de pena.
— Ah, , não. Não foi nada assim. Desculpa por não ter esclarecido logo de cara.
Ela engoliu as lágrimas que já tinham começado a escorrer. Sua voz mais grave que de costume.
— , o que houve?
— Eu não sei o quanto você sabe sobre isso, mas o usa algumas… — parecia pensar em que palavras escolher. — …substâncias recreativas.
engoliu em seco.
— Ele falou dos cogumelos.
O rapaz assentiu.
— Eu não sei com quem ele consegue essas coisas, mas aparentemente venderam algo bem mais forte. Ele está péssimo. Não acho que corra algum risco, mas não estava em condições de vir. Não sei se ele consegue sequer sair de cama.
Ela sentiu um buraco surgir embaixo dos seus pés. Já não tinha se sentido confortável com toda essa história da primeira vez, mas decidira ignorar para o bem da relação deles. Enquanto não a afetasse diretamente, ela faria vista grossa e fingiria que não era um problema.
E essa postura omissa tinha servido de quê? Bem no seu dia, em um momento que deveria ser especial para ela, ele tinha destruído tudo. Tinha escolhido se entorpecer em vez de cumprir suas promessas.
— Bom, obrigada por avisar.
— Eu sei que ele combinou de te buscar — disse. — Por isso vim te avisar. E te oferecer uma carona também.
nem precisou pensar muito sobre aquilo. Já tinha se ferrado o suficiente para ainda ter que esperar um uber com um bolo na mão.
conectou o celular no carregador e entregou para ela. ficou sem entender.
— Pode escolher a música. Considere como o meu presente de aniversário.
Ela deu um sorrisinho leve, aceitando a oferta. Escolheu uma playlist de pop animado para tentar superar a tristeza que ainda estava sentindo.
— Sinto muito por ter estragado os seus planos.
— Eu fui te buscar porque quis. Ninguém merece passar por isso, ainda mais no próprio aniversário.
— É, definitivamente não estava na minha agenda.
bufou.
— Eu amo o meu irmão, de verdade. Mas é complicado. Sempre tem um problema, sempre tem uma válvula de escape duvidosa. E de, alguma forma, sempre faz você se sentir como se a culpa fosse sua.
não queria concordar abertamente, mas foi obrigada a reconhecer que era isso o que sentia. Todas as vezes que se manteve em silêncio, todas as vezes que ouviu suas reclamações, todas as vezes que engoliu suas desculpas.
— Foi mal, eu não deveria estar falando assim dele. é um bom garoto, só é irresponsável com os sentimentos de quem se importa com ele. E se recusa a reconhecer que tem um problema e procurar ajuda de verdade.
Prosseguiram em silêncio por alguns minutos, até reconhecer e decidir cantar ‘Die With a Smile’, arrancando gargalhadas altas de .
— Que bom que você não seguiu carreira na música. Você é péssimo!
O rapaz riu, aumentando um nível do volume.
— Só está péssimo porque deveria ser um dueto. Anda, , canta comigo.
— Acho que não, hein.
— If the world was ending — ele começou a cantar mais alto, até conseguir convencê-la a acompanhá-lo no que deveria ser o mais horrível e mais divertido dueto de todos os tempos.
Antes que pudesse descer do carro, fez questão de abrir a porta para ela e segurar a caixa do bolo enquanto ela descia.
— Obrigada pela carona.
— Não precisa agradecer. E feliz aniversário.
concordou, sorrindo de forma sincera. Com a caixa em mãos, seguiu até a sua porta. No último passo que precisava dar, contudo, interrompeu-se, virando para encontrá-lo prestes a voltar para o carro.
— — ela chamou, retomando a sua atenção. — Quer entrar e ver um filme comigo? E comer bolo também. Tem coisa demais para uma pessoa só.
E terminar esse aniversário sozinha, afundando as mágoas após o ocorrido era literalmente a forma mais deprimente de terminar o dia. Mas ela não precisava verbalizar essa parte.
O rapaz fez uma careta, como se estivesse pensando. Sinceramente, precisaria de pouco para se permitir ser convencido.
— Esse bolo aí é de chocolate?
Ela assentiu.
— Com duas camadas de recheio.
Ela ouviu o som do carro, assinalando que este havia sido trancado. Um sorriso borbulhou involuntariamente em seu rosto.
— Nesse caso, eu adoraria.
“you’re so empathetic, you’d make a great wife
and i promise the mushrooms aren’t changing your life
well, you crashed the car and abandoned the wreckage
fuck with my head like it’s some kind of fetish”
Quando todo o caos do dia anterior aconteceu, teve medo dos caminhos pelos quais sua mente vagaria, pensando no que tinha feito para merecer ser abandonada. De novo.
No fundo, não importava o quanto soubesse que algumas coisas simplesmente estavam fora de seu controle e não eram culpa sua. Ela sempre se perguntaria ‘e se?’. Sempre duvidaria que alguém realmente fosse ficar um dia.
Mas mal teve tempo de se perder por esse labirinto de autodestruição. tinha ficado para um filme, que eventualmente se tornou toda a saga dos Jogos Vorazes acompanhada de um bolo para seis pessoas. Tinham jogado baralho e conversa fora durante as partes mais entediantes do terceiro filme, até decidirem comer qualquer coisa que não fosse bolo.
fez queijo quente para eles e os dois continuaram conversando e rindo como se o tempo não existisse. Até o primeiro longo bocejo de .
Foi nessa hora que ele deu o braço a torcer e deixá-la descansar. Mas não sem antes segurá-la no abraço mais longo e acolhedor que havia recebido em toda a sua vida.
Quando foi para a cama, com um pequeno sorriso, viu o relógio da cabeceira acusando que o dia amanheceria em breve. Tinha conseguido terminar o seu aniversário sem tempo para sofrer.
Apenas ao acordar no dia seguinte, bem mais tarde do que de costume, viu as mensagens de nas últimas horas.
:“, cadê você?”
“, por favor, me responde.”
“Meu bem, por favor, deixa eu me explicar.”
“, desculpa, vamos conversar. Eu estou preocupado.”
O celular vibrou em sua mão, pipocando com mais uma mensagem que acabara de chegar.
:“, eu estou vendo que você está online. Me responde.”
Como o humor dele mudava rápido. Ela se limitou a responder:
“Se quiser conversar, sabe onde me encontrar. Eu não vou fazer isso pelo celular.”
Levou seu tempo lavando o cabelo com calma, tentando esfriar a cabeça e deixar que a água levasse junto aquele receio. Por que tinha medo dele?
Estava terminando de se pentear quando ouviu as batidas em sua porta.
respirou profundamente algumas vezes antes de tomar coragem para abrir a porta. Seu coração parecia prestes a escapulir pela boca e sair em disparada para bater um recorde mundial dos cem metros livres.
— Oi.
— Oi — ela respondeu.
— Posso entrar?
fez um gesto exagerado com a mão esquerda, abrindo espaço para que ele passasse.
— Olha, me desculpa por não ter aparecido. Eu tive uns problemas.
— Aham, eu sei bem o tipo de problema que você teve. Chapado demais para sequer me mandar a droga de uma mensagem.
esfregou os olhos sem cuidado algum.
— Olha, eu não sei o que aquele idiota do te falou…
— Pelo menos o idiota se preocupou comigo — ela murmurou.
— … Mas não foi bem assim.
— Ah, não? Você não ficou chapado demais para cumprir com o que tínhamos combinado? Logo na merda do meu aniversário.
— Fiquei.
— Então, acho que foi bem assim mesmo.
— Não foi o que eu quis dizer. Eu fiz, eu errei, mas eu tive um motivo. Eu estava na merda, mas é óbvio que ele ignorou essa parte e só me pintou como se eu fosse um monstro.
— Ah, é? Que motivo alguém teria para demonstrar tão pouca consideração com alguém, em um dia especial, só para se drogar como poderia ter feito em outro dia qualquer?
— Pelo amor de Deus, , você não entende? Não é sobre se drogar. Eu te falei que eu só consigo pensar assim e eu realmente precisava pensar.
— No quê? O que raios era tão importante? — Tão mais importante do que eu.
expirou com força. sabia que aquilo não poderia acabar bem.
— Minha ex me mandou uma mensagem dizendo que vem para a cidade no final do mês.
Não, isso não estava acontecendo. Devia ser alguma pegadinha daqueles programas sensacionalistas e tendenciosos. Tinha que ter alguma câmera escondida. Não era possível que ela realmente estivesse ouvindo aquilo a não ser que fosse uma brincadeira de péssimo gosto.
Não sabia de onde tinha encontrado as forças para dizer:
— , acho que você deveria ir embora.
— Não. Não é o que você está pensando.
— Claro que não é…
— Quando eu te disse que você tinha me salvado, é porque foi ela quem me destruiu.
queria que o mundo acabasse naquele exato segundo.
— É sério. Eu fiquei completamente dependente. Minha vida se resumia a ela. Eu só fazia o que ela fazia, só ia aonde ela fosse.
“Daí, um belo dia, ela me disse que estava se sentindo confusa e foi embora. Mudou para outro estado e me deixou sem saber como seguir com a minha vida. Eu nunca consegui ter o meu encerramento dessa relação.”
— E agora ela vai voltar.
— É. Acho que ela só quer conversar, mas enfim… Bagunçou completamente a minha cabeça.
apenas assentiu vagarosamente. Não sabia o que fazer além de simplesmente existir.
— Fala alguma coisa.
— Eu não sei, . Eu só queria que você tivesse me contado isso antes.
Ele soltou uma risada irônica.
— Qual a graça?
— A graça é você ter a coragem de me cobrar uma coisa dessas quando não me conta absolutamente nada.
— Como é que é?
— Qual é, ? Eu sempre te falo tudo, desabafo, reclamo… Você não me fala nada. Acha que eu não vejo todas as vezes que você fica preocupada ou desconfortável e não quer me falar o porquê?
— Isso não é justo.
— Pois é, eu também não acho que seja.
Ela respirou fundo. Estava se sentindo uma pessoa terrível. Não era mentira que ela não se abria. Também não era mentira que ela tinha os seus motivos. Mas isso não justificava. Ela deveria ter sido mais honesta. De repente, sentia toda a culpa do mundo pesando sobre os ombros.
Foi aí que as palavras começaram a sair em um fluxo impossível de interromper.
— Meu pai nos abandonou um pouco antes do meu aniversário de quatro anos. Por algum motivo, eu tinha certeza de que ele voltaria antes do parabéns. Na minha cabeça, não fazia sentido nenhum o meu pai perder a minha festa. Mesmo que a minha festa fosse só para os meus ursinhos de pelúcia, com um bolo de massa de caixinha.
— …
— Então é por isso, . É por isso que, quando você some no dia do meu aniversário, eu me sinto a pior bosta de toda a desgraça do universo.
— Eu não sabia.
— Claro que não. — Ela deu uma risada dolorida. — Eu nunca falei isso para ninguém. É humilhante demais.
a abraçou, esmagando-a em seus braços. não entendeu porque tinha parado de respirar.
— Não é culpa sua. Ele é um idiota e não te merece.
E você merece? — Ela não ousou perguntar.
— Me desculpa. Eu não queria ter te feito reviver esse momento.
— Tudo bem. Você não sabia — ela repetia. Só não sabia qual dos dois ela estava tentando convencer com isso.
— O que eu posso fazer para compensar?
se afastou, encarando-o de volta. Um pequeno sorriso se formou em seus lábios.
— Na verdade, eu acho que eu tenho uma ideia.
— O que está se passando nessa mente travessa?
— Infelizmente, aquele safado faz aniversário no fim do mês. Era um dia em que eu e minha mãe íamos até o lago, alimentávamos os patos, fazíamos um piquenique e tentávamos nos lembrar de que a vida era melhor sem ele.
sorriu, roubando um beijo de seus lábios.
— Estarei lá.
Ela retribuiu o beijo sem saber se acreditava nisso.
“don’t think you understand
just ‘cause you act like one, doesn’t make you a man”
tinha os braços apoiados sobre o pequeno cercado que recentemente havia sido levantado em volta do pequeno lago — o único em um raio de algumas dezenas de quilômetros.
A última semana tinha sido péssima.
Em algum momento, desde a última discussão, as coisas degringolaram. não parecia se importar mais. Seu tempo de interação durava pouco, até que se entediava ou procurava outra coisa para fazer.
Amarrada em meio às situações que ela mesma insistia em criar, percebeu que era ela a culpada. Era ela quem estava insistindo em alguém que não queria estar ali. Persistindo com alguém que ela não conhecia. Alguém que lhe contara uma bela história de amor, mas nunca lhe pertencera.
Quando decidiu dar uma última olhada para o relógio, ela percebeu uma movimentação distinta atrás de si. Sabia quem era antes mesmo de vê-lo.
Virou-se para trás, encontrando um homem mais alto e um tanto mais consciente.
— Ele não vem, não é?
meneou a cabeça devagar.
sabia o que aquilo significava. A famosa ex voltava na última semana do mês. Ela tinha decidido precisar dele bem no momento em que a dura verdade vinha à tona. Suas prioridades estavam seguindo em altíssima velocidade rumo a caminhos opostos.
— Mas eu trouxe duas baguetes para os patos.
Ela era completamente incapaz de evitar o largo sorriso que se pintou em sua face.
O que não sabia era que tinha sido crucial em sua trajetória ao lhe ensinar a lição mais importante de todas: ela tinha aprendido com ele que também podia ir embora.
sorriu, estendendo a mão para ele.
— Então, podemos ir.
“don’t think you understand
just ‘cause you leave like one, doesn’t make you a man”
FIM!
Nota da autora: MEU DEUS! Acho que tinha uns setecentos e oitenta anos que eu não escrevia uma shortfic! E, por mais que este esteja bem longe de ser um dos meus melhores trabalhos, estou feliz de ter conseguido finalizar uma fic depois de tanto tempo afastada.
Não foi fácil. Não escrever um romance melado é quase uma afronta pessoal ao meu ser. Mas eu tentei.
Espero que, ainda sim, tenham gostado um pouquinho que seja!
E que tenham notado as noventa mil referências às músicas da nossa loirinhainha (tem de outras desse álbum, do e-mails i can't send e até do fruitcake!)
Qualquer crítica, ofensa, sugestão, comentário, deixem aí ou me procurem nas redes sociais/grupo do ficsverse!
OBRIGADA A QUEM ESTÁ LENDO E APOIANDO ESSA COMPLETA INSANIDADE!
É ISTO. Enquanto não nos vemos na próxima, espero vê-los por aqui nos comentários!
Um beijo e um queijo,
Mi
Não foi fácil. Não escrever um romance melado é quase uma afronta pessoal ao meu ser. Mas eu tentei.
Espero que, ainda sim, tenham gostado um pouquinho que seja!
E que tenham notado as noventa mil referências às músicas da nossa loirinhainha (tem de outras desse álbum, do e-mails i can't send e até do fruitcake!)
Qualquer crítica, ofensa, sugestão, comentário, deixem aí ou me procurem nas redes sociais/grupo do ficsverse!
OBRIGADA A QUEM ESTÁ LENDO E APOIANDO ESSA COMPLETA INSANIDADE!
É ISTO. Enquanto não nos vemos na próxima, espero vê-los por aqui nos comentários!
Um beijo e um queijo,
Mi