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Desde o início dos tempos, a luz dominava. O mundo girava em torno do sol, e os dias eram a essência da vida. Todos se identificavam com a claridade, com o calor que guiava cada amanhecer, e a maioria se rendia à segurança que a luz proporcionava. Porém, havia aqueles que olhavam para a noite e encontravam algo mais. Algo que os outros temiam.
As pessoas noturnas eram diferentes. Para elas, o brilho da lua não era menos poderoso que o do sol. O céu escuro era um refúgio e as estrelas eram um lembrete de que, mesmo na escuridão, havia beleza. Inspiradas pela tranquilidade da noite e guiadas pela luz prateada da lua, essas pessoas viviam à sombra do dia, invisíveis para a maioria, mas sempre presentes.
Então aconteceu. O dia que mudou tudo.
Um eclipse cobriu o sol, mergulhando o mundo em uma escuridão incompreensível. O tempo passou, os minutos viraram horas, e o eclipse não se desfez. A escuridão permaneceu, como uma cortina que jamais seria erguida novamente. O sol nunca mais voltou a nascer.
O mundo que outrora girava em torno da luz entrou em colapso. Mas, na escuridão, algo despertou. As sombras, sempre relegadas ao fundo, emergiram com força. Criaturas que antes se escondiam, temendo o brilho do dia, agora andavam livres. E as pessoas noturnas, aquelas que sempre haviam sido ofuscadas pela luz, finalmente podiam ser elas mesmas. A lua, que antes era secundária, tornou-se o centro de tudo.
Com o tempo, a humanidade se dividiu.
De um lado, os Filhos da Luz — aqueles que ainda carregavam a memória do dia e lutavam para trazer o sol de volta. Suas habilidades solares eram como uma faísca do antigo mundo, um lembrete de que a luz não deveria ser esquecida. Eles acreditavam que o retorno do sol era a única salvação, o único caminho para restaurar a ordem.
Do outro lado, os Filhos da Noite — pessoas que abraçaram a escuridão como parte de si mesmas. A lua lhes concedeu habilidades sombrias, um reflexo do mundo em que viviam agora. Para eles, a escuridão não era algo a ser temido, mas sim aceito. Era a liberdade de serem quem realmente eram, sem as limitações da luz.
A tensão entre os dois grupos cresceu e o mundo mergulhou em um conflito constante. A escuridão era agora o palco onde luz e sombra se enfrentavam, e cada lado acreditava estar lutando pelo futuro.
Enquanto isso, as estrelas observavam, indiferentes, enquanto o destino do mundo era decidido entre os que ansiavam pelo retorno do dia… e aqueles que acreditavam que a noite havia finalmente encontrado seu verdadeiro lar.
Todavia, nessa história aqui, as estrelas não olham para aqueles que carregam a memória do dia, mas para dois filhos das sombras. Dois jovens que caminham entre as trevas, desejando algo mais: e . Ele, um homem marcado pelas sombras que o abraçam como parte de si, mas que carrega o peso de um passado solitário. Ela, uma mulher feita de fogo e escuridão, determinada a provar que ninguém a subestima sem consequências.
Ambos querem deixar suas marcas no mundo sombrio, mas, para isso, precisam provar seu valor. E, nesse lugar, o valor não é medido apenas pela força ou pelas habilidades. Ele é medido pela lealdade às sombras… e ao Crepúsculo.
No centro desse mundo está a gangue conhecida como os Filhos do Crepúsculo, um grupo poderoso e temido, liderado por uma figura envolta em mistério: Kaelen Umbros. Dizem que ele é mais sombra do que homem, alguém que carrega o segredo da escuridão em seus olhos prateados. Sua palavra é lei, e sua aprovação, uma marca de poder.
e são atraídos pela gangue, cada um com suas razões. Talvez pela promessa de poder, de pertencimento, ou pelo desafio de enfrentar algo que parece maior do que eles mesmos. Mas o caminho para o Crepúsculo não é fácil. Eles precisam enfrentar as sombras dentro e fora de si, superar os testes cruéis e, acima de tudo, conquistar o respeito de Umbros.
As estrelas os observam, não porque estão destinados a grandes feitos, mas porque são imprevisíveis. Dois filhos das sombras, guiados pela lua, pela ambição e pelo desejo de provar que, mesmo na escuridão, podem brilhar.
E, talvez, descobrir que as sombras não apenas os rodeiam… mas também os definem.





Tem muitos jeitos de se acordar em uma manhã escura, e eu odiava com todas as minhas forças o jeito que eu acordava.
Os gritos dos meus irmãos, misturados com as birras das minhas primas, eram de longe, um inferno pessoal em que eu vivia presa.
Ter nascido em uma família grande era meu pesadelo de vida, não que a essa altura eu realmente me importasse, porque na verdade, já deixei de me importar a anos. Talvez ser vista sempre ‘como a errada’ ou a ‘filha que deu errado’, tenha contribuído para que eu deixasse de me importar com todos. Meus pais têm quatro filhos, mas agem como se tivessem apenas três.
Patrick, o mais velho e braço direito do meu pai, sempre fazendo suas merdas e sendo protegido constantemente por ele. Peter, o filho do meio e que se achava sempre mais esperto que todos, mas que era mais burro do que Patrick e nunca conseguia vencer sozinho suas próprias batalhas. Então tem Perry, o outro filho do meio, que é egocêntrico e persuasivo, sempre conseguindo tudo o que queria sem precisar fazer o trabalho de verdade, tanto dos nossos pais, quanto dos nossos irmãos e tios, que moram na mansão . E por último, eu, a única filha mulher e a que veio de uma gravidez indesejada.
Era constante ouvir quando criança que não era para eu existir, ou que eu não sabia fazer nada, já que nem para nascer homem eu prestei. Meu pai sempre deixou claro que nunca quis uma filha mulher e que se eu vim, era porque de alguma forma, ele estava sendo castigado aqui na terra.
Aprendi a me virar sozinha muito cedo, descobri meu dom sozinha também, abracei as sombras como minha única família e percebi que me tornar invisível dentro dessa casa, era o melhor para mim. Não tinha certeza se eles sabiam que eu ainda morava na mesma casa que eles, ou se sabiam, ignoravam minha existência o tanto que eu ignorava a deles.
Não existia amor fraternal ou parental entre mim e eles ou deles para mim, no começo sim, quando eu era uma criança ingênua e inocente, sempre corria atrás do afeto dos meus pais e irmãos, demorou e foi doloroso quando comecei a entender tudo, mas sobrevivi. Chorei uma única vez por tudo aquilo, e hoje sou até agradecida por ser do jeito que é.
Me arrasto para fora da cama, pois tenho objetivos a cumprir e ficar debaixo do mesmo teto que todas essas pessoas, não fazia parte deles. Tracei objetivos, metas e as alcancei, sem a ajuda de ninguém e sozinha. E agora estava pronta para lutar e dar tudo de mim para chegar até onde eu queria e, talvez, ter a chance de saber o que é fazer parte de algo importante e real.
Um banho gelado e rápido, foi o suficiente para me animar e, de volta ao meu quarto, vesti as mesmas roupas de sempre, calça e jaqueta jeans pretas, uma baby look branca e meu costumeiro batom vermelho nos lábios. Deixei meus cabelos ruivos longos e ondulados soltos para secarem naturalmente e encarei o meu reflexo no espelho, vendo determinação em meus olhos castanhos claros e um sorriso vitorioso em meus lábios vermelhos.
Guardei a carta em meu bolso e antes de sair, coloquei meu coturno, trancando meu quarto em seguida. Ao passar pelo quarto das minhas primas gêmeas, Ágata e Aria, vi as duas discutindo com Perry e Duska, minha outra prima, e revirar meus olhos para aquela gritaria toda foi minha única reação.
Embora eu tenha crescido com elas e com Perry, que é apenas dois anos mais velho que eu, nunca nos demos bem. Sempre eram eles contra mim em qualquer brincadeira, em qualquer situação. Todos gostavam delas e o fato de serem mulheres nunca foi visto como um problema, na verdade, para todos, elas não tinham defeitos.
Desci as escadas e andei direto para a cozinha, evitando os mais velhos que estavam na sala. Peguei uma maçã e ignorei as reclamações da cozinheira da mansão por eu estar pegando comida fora de hora e saí pela porta dos fundo, desviando dos homens do meu pai que guardavam a mansão .
Os dias de escuridão, eram sem dúvida, a melhor coisa que poderia ter acontecido para nós, os sombras. Não precisávamos esperar escurecer para andar na rua, podendo andar livremente em qualquer horário e isso era muito bom. Não ter que correr para se esconder do sol nascente, era melhor ainda. Era como estar livre de uma prisão coletiva e tenho certeza que todos os sombras se sentem assim.
O doce da maçã era minha única companhia enquanto caminhava pela rua escura. Olhei mais uma vez aquela carta, conferindo o endereço que estava nela. Todos já haviam ouvido falar de Os Filhos do Crepúsculo, uma organização secreta e temida por todos, formada por aqueles que possuem habilidades únicas e eu estava ali, encarando aquela carta que continha as palavras: Kaelen Umbros, sua habilidade, e Queremos te ver.
Aquelas palavras foram as que ficaram gravadas em minha mente e todo o resto que compunha aquela carta, parecia não ser tão importante. Embora nunca ouvi falar de ninguém que tenha sido chamado para fazer parte da organização, estava fielmente acreditando que era real, e aquilo foi o bastante para acender uma chama em mim. Minha intuição me dizia que aquilo mudaria minha vida e eu sempre confiava nas minhas intuições. Ninguém sabia onde ela ficava ou se ela existia realmente, mas, mesmo assim, as histórias sobre ela eram famosas.
O endereço que marcava na carta, era um lugar conhecido como abandonado, destruído por várias lutas e conflitos entre as luzes e sombras. Os boatos que circulavam era que não havia sobrado nada daquele lugar, tudo era ruínas e destroços espalhados por todos os lados, mas também havia aqueles que juravam que eram apenas histórias para manter as pessoas fora daquela região e que os que moravam lá, saíram por conta própria e o lugar apenas ficou esquecido.
A cada passo que eu dava em direção aquele lugar, meu coração batia um pouco mais rápido, ansiando descobrir logo qual das histórias era real. Meus passos eram certeiros e firmes, sem medo de descobrir o que me aguardava, determinados a pular por qualquer obstáculo que aparecesse em minha frente.
Cada vez mais perto, comecei a sentir como o ar ao meu redor havia mudado. A luz da lua banhava as árvores e casas escuras à minha volta e assim que entrei na rua descrita na carta, comecei a caminhar mais lentamente. Observei as construções destruídas, as casas aos pedaços, as ruínas de um lugar que algum dia foi a morada de muita gente.
Um arrepio passou por meu corpo, como se alguém tivesse passado muito perto de mim e girei meu corpo, olhando para trás o caminho por onde eu vim. A movimentação entre os escombros, entre as árvores, me deixou em alerta e pronta para lutar, caso fosse necessário. Sentia a adrenalina percorrer meu corpo, me deixando até um pouco agitada para fazer algo. As sombras começaram a andar até a rua, e era um grupo grande. Se eu conseguisse encostar em algum deles, teria alguma vantagem, temporariamente, mas teria.
Comecei a caminhar de costas conforme eles vinham em minha direção, tudo era escuro e não sabia onde aquela rua me levaria de fato. Estava em desvantagem e em um lugar que eu não conhecia. Um movimento à minha direita chamou minha atenção e uma sombra passou por mim, com uma rapidez que não era normal e assim que ele sumiu na direção que eu deveria continuar andando, risadas preencheram o silêncio ao nosso redor.
Uma emboscada, foi a primeira coisa que passou pela minha cabeça e não duvidaria se minha família estivesse envolvida em algo para me prejudicar. Joguei meus cabelos para trás, pronta para chamar quem quer que fosse para aparecer e me enfrentar, quando ouvi uma voz alta e grossa ecoar, cessando imediatamente os risos.
— Qual o seu nome? — falou, direto e seco.
Me virei para onde vinha o som e vi um homem alto bem no meio da rua. Suas roupas eram todas pretas e não conseguia ver seu rosto, pois havia uma capa com capuz que impedia de ser visto. Suas mãos estavam para trás do seu corpo e sua postura era imponente. Mesmo sem conseguir ver, sentia seus olhos em mim, me analisando e aguardando por minha resposta.
— minha voz saiu firme e alta, e mesmo que meu coração estivesse acelerado, mantive minha postura de ataque.
O silêncio se estendeu a nossa volta e ele fez um sinal para que todos os outros se aproximassem e então fizeram um meio círculo em sua volta. Todos usavam as mesmas roupas e capas e a hipótese de que aquilo que eu vim buscar estava mesmo acontecendo, fez um pequeno sorriso surgir no canto dos meus lábios.
— Estávamos esperando você chegar — o homem falou, seu tom carregado de certeza.
Era mesmo verdade. A organização Os Filhos do Crepúsculo era real, e eu havia mesmo sido chamada para algo que os envolvesse.
Meu corpo relaxou momentaneamente ao ouvir aquelas palavras, mas mesmo assim, me mantive em alerta total. Um por um, foram sumindo de vista e o homem que estava na frente, se virou e seguiu pelo mesmo caminho. Tudo era feito em silêncio e segui eles, mantendo uma distância um tanto quanto segura entre mim e eles. Mesmo andando atrás deles, meus passos eram decididos, porque nada me faria desistir de fazer parte daquela organização. Não fazia nenhuma ideia de como seria, mas com toda certeza seria melhor do que continuar sozinha.
Mais a frente havia uma casa, não estava totalmente inteira, mas estava mais que as outras ao seu redor. A parte que deveria ser a lateral da varanda e provavelmente a sala da casa, estava destruída, com madeiras partidas ao meio e até galhos caídos sobre aquele pedaço, da grande árvore que tinha ali. Era visível que era uma casa abandonada a anos e até uni minhas sobrancelhas quando vi todos entrar pela passagem que deveria ter uma porta.
Como todos entraram, os segui também e entrei, cuidando para não encostar em nada e realmente tudo ali mostrava que era uma casa abandonada, até mesmo o cheiro de poeira e mofo estava impregnado no ar. No entanto, ao passar pelo corredor, aquele mesmo homem de postura imponente me aguardava em frente a uma parede com um retrato antigo e danificado, com uma parte da tela rasgada. Sem falar nada me aproximei e quando cheguei perto, uma porta se abriu naquela parede, bem no lugar em que o quadro ficava pendurado. Olhei para aquele homem, que mantinha seu rosto ainda coberto, e ele estendeu sua mão, indicando que eu deveria entrar.
Depois da porta tinha uma escada de metal, longa e em espiral, que me levou para uma grande construção subterrânea.
Algumas paredes eram de pedras gigantes, outras de concreto como o chão. Olhei tudo com atenção, seguindo aquele homem por um enorme corredor de má iluminação, portas de metais com números em preto apareciam por onde passávamos e me perguntei o que teria atrás delas, mas antes que fizesse a pergunta em voz alta, chegamos em um espaço amplo e aberto, com as paredes altas de pedras e muitas pessoas usando as mesmas roupas. Era como um mini exército, seguidores leais e obedientes.
Um longo corredor se abriu conforme íamos avançando mais, vi cabelos loiros e pretos caídos para fora daquele capuz enorme que cobria o rosto das pessoas, revelando que havia outras mulheres na organização. Meus olhos atentos foram para além de onde estávamos indo e vi seis cadeiras em um tipo de plataforma e uma cadeira na frente das outras com um homem que parecia ser maior e mais alto que este que me acompanhava. Cinco daquelas cadeiras estavam ocupadas e a primeira à esquerda estava vazia.
Quando chegamos em frente àquela plataforma, notei que tinha mais pessoas em pé ali, aguardando por algo. O silêncio estava se tornando um incômodo para mim. Não se ouvia um sussurro, um suspiro ou nem mesmo um cochicho entre todos ali presente. O homem que me trouxe até aqui, subiu e tomou o lugar que antes estava vazio na plataforma e eu fiquei parada no mesmo lugar. Naquela carta não havia instruções do que deveríamos fazer ou o que aconteceria quando chegássemos naquele endereço. Seguir o homem e confiar naquela carta era como aquele famoso dizer: “Um tiro no escuro”, mas para o azar deles, era que eu sabia atirar e a escuridão não era um problema para mim.
Passei meus olhos por aqueles que estavam parados ao meu lado, com roupas comuns como a minha, e notei que havia mais homens do que mulheres. Éramos em torno de seis mulheres e uns doze homens. Ia contar para ter certeza, quando um deles chamou minha atenção, e eu não podia acreditar que ele estava mesmo ali, no mesmo lugar que eu.
. O garoto que passou todos os anos que frequentei o colégio, querendo provar que era melhor que eu. Bom, em partes ele era mesmo melhor que eu, mas sempre me mantive a altura e nunca fugi de um desafio quando ele me chamava para provar que era melhor que eu. Eu tive minhas vitórias para cima dele e fiz questão de me vangloriar quando isso acontecia, além de que ver ele perder em qualquer coisa para mim, era a melhor coisa do mundo. Sempre tivemos uma rivalidade, um sempre estava competindo com o outro e nunca fomos amigos nem nada do tipo.
Encarei seus olhos quando vi que ele me olhava e arquei uma sobrancelha em deboche, deixando um sorriso surgir no canto dos meus lábios. Não sabia o que aconteceria a seguir, mas ter o ali, tornou tudo mais divertido e competitivo, porque, além de já estar determinada em ser a melhor, agora iria poder ser melhor que ele e ter como prêmio, seus olhos queimando de raiva.
Meu contato visual foi quebrado, quando vi pela minha visão periférica, a movimentação daqueles homens de capas em cima da plataforma.
As sombras pareciam vivas naquele lugar, pulsando como se tivessem vontade própria. O ar era denso, quase palpável, e meu coração batia acelerado enquanto todos olhavam para a figura encapuzada no centro do salão. Ele era o líder, o dono daquele domínio sombrio, e até mesmo o silêncio parecia obedecê-lo.
Então, com um movimento lento e calculado, ele retirou o capuz. Meu corpo gelou. O homem diante de nós era ao mesmo tempo belo e aterrorizante. Seus olhos prateados brilhavam como se refletissem um mundo que ninguém mais podia enxergar, e sua presença era esmagadora. Ele parecia carregar as sombras dentro de si.
Seu rosto era uma obra-prima de linhas austeras, com uma barba perfeitamente alinhada que realçava o maxilar afiado. Os cabelos dourados, curtos e bem cuidados, contrastavam com os olhos prateados, que brilhavam como lâminas refletindo a luz da lua. Havia algo de etéreo em sua presença, uma mistura de beleza quase divina e ameaça palpável, como um anjo caído que carregava a escuridão em cada célula do corpo. A postura ereta, o semblante severo e o pequeno sorriso que curvava seus lábios tornavam impossível desviar o olhar. Ele era um paradoxo vivo: encantador e assustador na mesma medida, irradiando autoridade e perigo em cada movimento.
Ele deu um passo à frente e falou. Sua voz era grave, como o trovão distante de uma tempestade prestes a atingir.
— Bem-vindos ao coração das sombras. Meu nome é Kaelen Umbros. Mas para vocês, isso pouco importa. O que importa é que eu sou o princípio e o fim para aqueles que pisam neste solo. Sou a escuridão que consome… ou eleva.
Ele começou a andar pelo salão, os passos ressoando como batidas de um tambor fúnebre. Cada palavra dele parecia envolver o espaço, como se o ambiente respondesse à sua presença.
— Vocês estão aqui porque carregam as sombras dentro de si. Elas os chamaram. Agora, cabe a vocês decidirem: abraçá-las ou serem consumidos por elas. Não há meio-termo. Aqui, só existem dois caminhos: ascender… ou desaparecer.
Senti o peso do olhar dele sobre mim. Meu corpo inteiro se arrepiou, como se ele pudesse ver cada pedaço de quem eu era, até mesmo as partes que eu queria esconder. Então, ele olhou para , com a mesma intensidade perturbadora, antes de continuar.
— Eu não prometo glória. Eu não prometo misericórdia. O que ofereço é simples: poder. Poder para se erguer acima de tudo e todos. Poder para moldar o mundo à sua imagem. Mas saibam de uma coisa… — ele parou, voltando a nos encarar com uma expressão dura. — As sombras não servem a ninguém. Elas consomem o fraco sem piedade.
Sua voz ficou ainda mais grave, cada palavra carregada de ameaça e promessa.
— Se vocês não forem dignos, não sairão vivos daqui. E se forem… talvez descubram o que significa, de verdade, fazer parte dos Filhos do Crepúsculo.
Ele ergueu o queixo, analisando-nos como um juiz prestes a dar seu veredito. Um silêncio pesado tomou conta do salão. Meu coração batia como um tambor descontrolado, mas, ao mesmo tempo, algo dentro de mim queria provar que eu era digna. Que eu pertencia àquele lugar.
Kaelen sorriu levemente, um sorriso que não tinha nada de gentil.
— Mostrem que merecem as sombras. Ou elas devorarão vocês.
Ele se afastou, mas o peso de suas palavras ficou queimando dentro de mim como uma marca.
Um dos membros da gangue, que até então estava encostado na parede, com os braços cruzados, se aproximou. Ele era alto e magro, mas havia algo de inquietante na maneira como se movia, como se as sombras ao redor respondessem a cada passo seu. Seus olhos eram escuros como breu, e um sorriso enviesado brincava em seus lábios.
— Bem, vocês ouviram o chefe. Agora, é comigo — sua voz era rouca, mas firme, carregada de uma casualidade quase insolente. — Vou mostrar onde ficarão. Seus aposentos. Não que eu ache que vão aproveitar muito… — ele riu de leve, mas o tom sarcástico fez a tensão no ar crescer.
Ele nos encarou, os olhos passando de mim para e, em seguida, para os outros ao nosso redor.
— A partir deste momento, considerem-se sob observação. Cada palavra, cada movimento, cada escolha. Tudo que fizerem será analisado. Aqui, não há segundas chances. Não há espaço para erros — ele deu um passo à frente, olhando diretamente para mim, como se já estivesse me julgando. — Vocês acham que passaram no teste só por estarem aqui? Errado. O verdadeiro teste começa agora, e, acreditem, ninguém passa sem provar que merece.
Ele virou as costas, começando a caminhar em direção à saída.
— Sigam-me. Ou fiquem para trás. Não que alguém vá sentir falta de vocês se desaparecerem.
e eu trocamos um olhar breve antes de o seguirmos. Era claro que, a partir daquele momento, cada passo que dávamos era uma escolha entre ascender ou cair.
Ninguém ousou falar nada, nem uma pergunta, e o silêncio era como uma parte importante de tudo ali.
Diminui um pouco meus passos, deixando que alguns passassem por mim, e assim eu poderia analisar um pouco das pessoas que estariam no mesmo grupo que eu. Era óbvio que isso era como uma competição e eu não deixaria ninguém tentar passar por mim. Enquanto todos seguiam o homem à nossa frente, olhando os detalhes à nossa volta, meus olhos estavam naquelas pessoas, analisando seus olhares curiosos e, de alguns, olhares assustados. Embora meu coração ainda batesse desenfreado em meu peito, não sentia medo, não disso pelo menos e talvez isso se remetesse ao fato de que estou disposta a tudo para ascender e a palavra ‘falhar’ nunca foi colocada em pauta para mim.
Chegamos em um corredor estreito e cheio de portas de metal, com números em preto pintada nelas. Era um corredor sem saída, diferente daquele em que passei antes, na última porta no final dele não havia nada para identificação. O homem à nossa frente parou e se virou para o grupo, e automaticamente, todos paramos. Meus olhos foram para , que estava a alguns passos à minha frente. Ele olhava para frente, focado e pensativo, não demonstrando o que se passava em sua mente, como se já tivesse traçado seus planos e não queria que ninguém soubesse disso. Esse pensamento fez um pequeno sorriso surgir em meus lábios vermelhos. Isso realmente será divertido.
Então, eu as notei. As asas. Sempre ali, sempre presentes, como uma extensão natural de quem ele era. Não eram sombras projetadas nem algo que ele invocava; eram reais, tão reais quanto ele, como se tivessem nascido com ele. Eram parte dele. As penas escuras, feitas de pura escuridão densa, absorviam qualquer vestígio de luz ao redor, deixando um rastro de penumbra onde quer que ele fosse. E agora, olhando para elas, percebi que estavam maiores do que da última vez. A envergadura era impressionante, quase majestosa, mas carregavam um peso que só alguém como poderia suportar.
Quando ele deu um leve passo para o lado, as asas também se moveram, fluindo como se respirassem junto com ele. Havia algo de visceral naquilo, algo que me fazia questionar se, de todas as coisas sombrias naquele lugar, elas não eram as mais perigosas. Eu me peguei pensando, por um breve momento, se ele sabia o quão imponente parecia. A resposta era óbvia: é claro que ele sabia.
— Aqui é o alojamento para os novatos — falou com sua voz rouca e firme, olhando para todos. — A última porta é o banheiro compartilhado, e em cada quarto ficaram quatro pessoas — explicou rapidamente, apontando para a última porta sem identificação.
A ideia de dividir o quarto com outras pessoas já é em si uma coisa ruim, nos deixando sem privacidade e ainda podendo ter a grande chance de dividir com pessoas babacas, mas o banheiro? Isso era horrível e desconfortável, no mínimo, e não fui a única a achar isso, porque todos do grupo se entreolharam, não acreditando que havíamos ouvido mesmo aquilo.
— Eu mesmo vou separar vocês nos quartos, as camas têm números que correspondem aos armários que tem em cada quarto — continuou, ignorando a reação que todos tiveram com as revelações. — Em cada armário, tem um kit de higiene e três mudas de roupas para começarem, após isso, terão liberdade para ter outros itens e outras peças para vestirem.
Pelo jeito a hipótese de voltar para a mansão eu já poderia descartar e se soubesse disso, teria trazido meu batom junto. Agora terei que esperar três dias para ter as coisas que gosto. Chato! Não que estivesse querendo voltar para aquela casa, ficar longe era um bônus extra dessa mudança.
Os nomes foram sendo chamados e o primeiro grupo de quatro pessoas entrou no quarto um. O próximo grupo no dois, e assim foram os grupos sendo formados e comecei a ficar ansiosa, olhando as pessoas que estavam sobrando e neguei com a cabeça quando pensei que poderia cair no mesmo quarto que o…
, Nora Evans, Charlie Rither e — prendi a respiração enquanto via aquele homem passar os olhos pelas pessoas que estavam sobrando, quase implorando para ele não falar… — — filho da puta! Tantas pessoas sobrando e tinha que ser ele?! — Vocês ficam com o quarto sete.
Como estava atrás, olhei a garota loira e o rapaz negro se encaminhar e suspirei vendo o seguir eles. Que outra saída eu teria além de seguir eles?
A ideia de me divertir parecia bem longe agora, porque não contava ter que dividir o quarto com ele e se só ter pouco contato com já era algo quase insuportável, dividir o quarto seria uma tortura eterna.
Segui eles, ouvindo meu coração bater em meus ouvidos, uma mistura de raiva e indignação percorria meu corpo e antes que eu pudesse ver o próximo grupo ser formado, entrei naquele quarto, que a partir de agora seria o pior lugar do mundo.
O quarto era simples, com duas beliches de cada lado do quarto, com número pintado igual aos armários metálicos que estavam na outra parede. As paredes eram reforçadas e em uma delas tinha como decoração grafites com símbolos da gangue. Sobre as camas havia lençol, travesseiro e um cobertor.
A tal Nora se virou para mim e seus olhos desceram por meu corpo, como se me analisasse e não gostei do que vi em seus olhos quando eles voltaram a me encarar. Ela era loira e tinha a mesma altura que eu, magra e bonita. Seus olhos eram verdes e frios, com ar de superioridade. Revirei meu olhos para ela, e fui em direção às camas da esquerda, me sentando na beliche de baixo.
— Vou ficar com essa — falei alto para que todos ouvissem. A cama era de número 2 e peguei as coisas dela, começando a arrumar.
Não ergui meus olhos e talvez se eu usasse a mesma tática que usava na mansão e ignorasse todos, ficar naquele quarto se tornaria mais fácil.
— Acho que a parte de baixo fica melhor para você, cara — o tal Charlie comentou com .
— Tanto faz. As asas sempre ficam atentas mesmo quando eu durmo — respondeu com seu tom grave e rouco. — Posso ficar na cama de cima da , ela adora quando eu fico por cima mesmo — provocou, e dessa vez o olhei, vendo aquele sorrisinho estúpido no canto de seus lábios.
Me levantei e cruzei meus braços, sorrindo de um jeito provocativo, pois ele sabia que eu não iria ficar calada.
— Você ainda faz essas piadinhas sem graça?! — falei com deboche, aumentando meu sorriso. — Já falei para você parar de alimentar esses seus sonhos comigo, — pisquei meus olhos, não desviando dos tons escuros dele e passei minha língua por meus lábios em provocação.
Ele me olhou com aquele mesmo sorrisinho presunçoso, deixando o peso das palavras no ar por um momento antes de responder.
— Sonhos? — perguntou, arqueando uma sobrancelha, o tom grave de sua voz carregado de sarcasmo. — , se eu sonhasse com você, seria um pesadelo. Mas, já que insiste em se tornar o centro das atenções, quem sou eu para não dar o que você quer? — ele inclinou levemente a cabeça, os olhos escuros brilhando de pura provocação. — Só espero que consiga lidar com o que está pedindo.
As asas dele se moveram suavemente, como se respondessem ao seu humor. Era quase irritante o quanto ele conseguia ser confiante e ao mesmo tempo insuportável.
— Uau quanta tensão! — Charlie zombou, ou pareceu tentar amenizar o clima.
— Ou tesão — Nora comentou maldosamente.
acabou rindo do comentário dela, mais como uma lufada de ar do que uma risada de fato.
Acabei revirando meus olhos, tanto para a fala do quanto para os comentários daqueles dois.
— Da minha parte não esperem nenhum desses dois — olhei para a loira e depois para o Charlie. — Pesadelo é você estar aqui — apontei o óbvio para o . — E se eu fosse você, dormiria bem longe de mim. Nunca se sabe quando um acidente pode acontecer.
Me virei de costas e tirei minha jaqueta, jogando ela sobre a cama, não aguentando mais olhar aquele sorriso pretensioso que ele sempre tinha.
— E não estou pedindo nada de você, . Não quero nada que venha de você, só a distância — me sentei novamente na cama, fingindo que as provocações dele não me irritaram.
soltou uma risada baixa, grave, que parecia vibrar no ar ao nosso redor. Ele cruzou os braços, se inclinando casualmente contra a parede, como se cada palavra minha fosse um entretenimento pessoal.
— Distância? — ele repetiu, como se saboreasse a palavra. — Ah, … — Seu tom era tão insuportavelmente provocador quanto aquele sorriso que eu já odiava. — Você fala como se eu fosse uma sombra que pode evitar. Mas adivinha só? — Ele inclinou a cabeça levemente, as asas se mexendo de forma sutil, como se fossem uma extensão de sua própria arrogância. — Eu sempre estarei aqui. Perto o suficiente para garantir que você nunca esqueça meu nome.
Ele deu um passo à frente, os olhos sombrios fixos nos meus por um breve instante, antes de se virar e caminhar até a cama de cima com uma calma irritantemente confiante.
— E quanto aos acidentes… — completou, já subindo. — Se forem acontecer, , tenta fazer direito. Seria uma pena se você falhasse em me acertar… de novo.
Suas palavras me deixaram mais irritada, e isso me fez levantar novamente e encarar ele na beliche de cima. Sabia que meus olhos estavam queimando e não me importei em tentar esconder.
— Você é tipo uma praga, daquelas que grudam e a gente faz de tudo para se livrar e elas nunca vão embora — falei, fingindo uma calmaria que não refletia em meu interior. — Só cuida para não chegar tão perto, e ser drenado — lancei meu olhar provocador para ele, acompanhado do meu sorriso confiante.
Ele poderia me irritar, mas eu não ficaria quieta e muito menos deixaria ele ou qualquer outro pensar que poderia me vencer.
— Não conte sempre com a sorte, — intensifiquei meu olhar nele, aumentando meu sorriso provocador. — Porque foi isso que você teve, sorte.
me encarou de cima, aquele sorriso pretensioso ainda curvando os cantos de seus lábios. Ele se deitou de lado na beliche, apoiando o rosto na mão, como se minha irritação fosse um espetáculo que ele fazia questão de apreciar.
— Sorte, ? — ele repetiu, o tom rouco e arrastado carregado de ironia. — Ah, como você é adorável quando tenta diminuir o óbvio. Sorte não tem nada a ver com isso. É habilidade, algo que você insiste em ignorar porque, bem… deve doer admitir que nunca vai me superar.
As asas dele se mexeram levemente, quase como se reagissem ao que ele dizia, e ele inclinou a cabeça, os olhos escuros fixos nos meus, desafiadores.
— Mas, por favor, continue. Eu adoro quando tenta me assustar com essas ameaças vazias — ele sorriu ainda mais, o brilho irritante de confiança voltando. — Quem sabe, algum dia, você realmente consiga chegar perto.
Ele então se virou de costas, como se eu não fosse mais do que uma distração menor, mas antes de se acomodar completamente, ele lançou mais uma provocação por cima do ombro.
— Até lá, , tente não se afogar no seu próprio veneno. É divertido demais te assistir lutar para acompanhar.
A única habilidade visível que ele tinha era de me irritar. Meu sangue borbulhava em minhas veias e a vontade de tirar aquele sorriso dos lábios dele gritava em mim.
Eu não era menos que ele, não era menos que ninguém. Passei minha vida toda ouvindo isso de pessoas que deveriam ser importantes para mim e não iria ouvir isso vindo dele.
— Não serão ameaças tão vazias quando eu… — minha única vontade era encostar nele e só soltar quando sentisse ter drenado tudo dele, e eu ia fazer isso, mas a risada de Nora fez eu recuar o passo que havia dado na direção dele.
Me virei com chamas nos olhos e encarei a loira deitada na beliche de baixo, mexendo em suas unhas com desinteresse.
— Qual a graça, querida? — perguntei com sarcasmo na voz, tentando controlar a tempestade que provocou em mim.
Ela não respondeu, continuou a mexer nas unhas como se eu não tivesse falado com ela. Não havia passado nem um dia e eu já odiava meus 'colegas’ de quarto. Charlie estava olhando para o teto do quarto, mas podia ver o sorriso em seus lábios e revirei, mais uma vez, os meus olhos para aqueles três. Talvez se eu falasse com alguém, conseguiria mudar de quarto.
Ignorei todos e fui até meu armário, abri e tirei de lá uma muda de roupa. Era uma calça cargo preta e uma camiseta com um símbolo nas costas. Linhas geométricas intrincadas, formando um tipo de labirinto que parecia representar a complexidade e os segredos protegidos pela organização. Suas cores eram preto e dourado, como se para simbolizar o mistério e o poder, com um leve toque de vermelho para representar o perigo.
Achei a camiseta muito comprida, então rasguei ela e fiz um cropped. Sem me importar com eles, porque eles não eram nada para mim, tirei minha camisa branca e a guardei no armário, vestindo o cropped preto, em seguida tirei meus coturnos e meu jeans preto, para vestir aquela calça mais larga. Não eram as roupas que costumava usar, mas por enquanto serviria. Não olhei para nenhum deles, mas sentia seus olhares em mim, queimando em minhas costas.
Guardei tudo e fechei meu armário, caminhando para a porta sem olhar para trás, mas antes de fechar a porta, olhei uma última vez para , vendo que seus olhos acompanhavam cada movimento meu e para provocar, mandei um beijo para ele, batendo a porta em seguida.
Primeiro dia no inferno e eu quase deixei ele vencer, precisava me controlar e não cair nas provocações dele. A distância entre eu e ele, minha determinação em não falhar para fazer parte de algo maior, era minha maior aliada.





As sombras sempre foram meu lar, mas estar aqui, entre os Filhos do Crepúsculo, era diferente. Este lugar pulsava com uma energia perigosa, imprevisível, e talvez fosse exatamente isso que me atraía. Eu não buscava glória nem aprovação; eu buscava algo que quebrasse o vazio que me consumia, algo que me fizesse sentir parte de algo maior do que eu mesmo.
Deitei-me na cama de cima, as asas se ajustando como sempre faziam, ocupando o espaço ao meu redor como uma extensão natural de quem eu era. Fechei os olhos por um momento, tentando apagar a agitação do salão e as provocações de , mas, em vez disso, as memórias voltaram como um turbilhão.
A primeira vez que ouvi o nome Filhos do Crepúsculo foi de um mercador que cruzava terras esquecidas, suas palavras carregadas de mistério e temor. Ele falou sobre uma gangue que não apenas vivia nas sombras, mas as dominava, as moldava, as transformava em armas. “Eles não são como você,” ele disse. “São algo… além.”
A ideia me incomodou, mas também plantou uma semente. Porque, no fundo, eu sabia que ele estava certo. Eu podia conjurar as sombras, dobrá-las à minha vontade, mas o que isso significava quando ninguém estava por perto para ver? O que significava ter poder se eu estava sempre sozinho?
Foi esse pensamento que me perseguiu durante semanas, até que finalmente decidi. Não por curiosidade ou por desejo de poder, mas porque o silêncio do meu mundo era insuportável. Se eles fossem tão perigosos quanto diziam, talvez… talvez fosse isso que eu precisava.
Abri os olhos de volta à realidade, encarando o teto acima de mim. A verdade era que eu não sabia o que buscava aqui, não realmente. Mas era melhor estar cercado de perigo e caos do que encarar a monotonia do vazio. Pelo menos aqui, o silêncio não me acompanhava. Pelo menos aqui, cada escolha importava.
Deitei-me na cama de cima, as asas se ajustando ao espaço estreito. Fechei os olhos por um momento, mas os sons no quarto me puxaram de volta. havia se trocado ali mesmo, na frente de todo mundo, sem o menor pudor. E, claro, eu assisti. Seria mentira dizer que não. Ela era gostosa, e sabia disso, o que só tornava tudo ainda mais irritante.
Porém, eu também sabia que ela era encrenca. Sempre foi. Desde que éramos mais jovens. Nós basicamente crescemos juntos, sempre no mesmo círculo, mas nunca no mesmo lado. Eu não a odiava, nunca odiei, porque odiar seria forte demais. O lance entre nós era implicância, pura e simples. Como se irritar um ao outro fosse a única constante que tínhamos.
Ainda assim, era insuportável, do tipo que me fazia questionar por que eu ainda dava corda para as provocações dela. Talvez porque fosse fácil, talvez porque fosse familiar. Mas também sabia que jamais rolaria nada entre nós. Ela não era do tipo que alguém “tinha”. era caos puro, e qualquer um que se aproximasse demais acabaria queimado.
De qualquer forma, não era nisso que eu deveria estar pensando. Eu estava aqui por um motivo maior. A gangue, os testes, o perigo… isso era o que importava agora. podia ser o caos, mas este lugar era um abismo. E eu estava pronto para mergulhar.
O sono veio mais rápido do que eu esperava. Apesar do desconforto das novas paredes ao meu redor e da constante agitação do quarto, meu corpo cedeu ao cansaço. As sombras sempre me mantinham seguro, mesmo no meio do caos. Mas a tranquilidade não durou muito.
Fui arrancado do sono por um barulho ensurdecedor, um estrondo que fez meu coração disparar e minhas asas se ajustarem automaticamente, como se fossem responder a uma ameaça iminente. Me sentei rápido, os olhos ainda pesados enquanto o som se repetia, ecoando pelo ambiente como um trovão contínuo. Pelo canto do olho, vi se levantar, já praguejando, enquanto os outros no quarto pareciam tão confusos quanto eu.
A porta foi aberta com violência, e figuras encapuzadas, cobertas por mantos negros e com olhos brilhando em um tom profundo de âmbar, entraram no quarto. A energia deles parecia preencher o espaço, pressionando cada centímetro do ar ao nosso redor.
— Todos para o grande salão. Agora! — a voz de um deles soou, grave e inquestionável, como se viesse das próprias profundezas.
Não havia espaço para perguntas ou hesitação. Pulei da beliche, aterrissando suavemente, minhas asas se ajustando em resposta ao movimento. Não perdi tempo; enfiei os coturnos de guerra e passei uma mão pelos cabelos, jogando-os para trás. Ainda meio sonolento, forcei meu corpo a se preparar para o que estava por vir. A adrenalina começava a correr, mas a sensação de perigo iminente já estava presente, tão real quanto o chão sob meus pés.
Quando levantei o olhar, lá estava ela: , parada em frente à cama dela, ajeitando a jaqueta e me encarando com aqueles olhos de tons esverdeados que nunca consegui decifrar por completo. Eu retribuí o olhar, intenso e cheio de palavras não ditas. Era o mesmo tipo de troca que tínhamos desde sempre — desafio, irritação, e algo mais que nenhum de nós parecia disposto a admitir.
Sem dizer uma palavra, ambos sabíamos que a noite estava só começando, e seja lá o que nos esperava no salão, não seria simples. Ela saiu na frente, me deixando para trás, mas eu segui logo depois.
Enquanto caminhávamos pelo corredor mal iluminado, as sombras ao nosso redor pareciam vivas, como se tivessem uma vontade própria. A tensão era palpável, e algo dentro de mim sabia que este momento, esta convocação, era o verdadeiro motivo de eu estar aqui.
Eu queria o perigo. Eu queria o desafio. E ele acabava de chegar.
O salão principal estava envolto em sombras, tão densas que pareciam vivas, pulsando a cada palavra não dita no ambiente. A sala estava cheia, mas o silêncio era absoluto, exceto pelo som de passos firmes que ecoaram quando Kaelen Umbros apareceu. Ele estava encapuzado novamente, a figura imponente dominando o espaço. Todos os olhares se voltaram para ele.
— Bem-vindos ao que realmente importa — começou ele, sua voz grave ressoando como um trovão contido. — Estar aqui não é o suficiente. Sobrevivência neste lugar exige mais do que vontade. Exige força, sacrifício e, acima de tudo, lealdade.
Os encapuzados ao redor de nós não se moviam, mas suas presenças faziam o ar parecer mais pesado. Kaelen continuou:
— Os Filhos do Crepúsculo não aceitam fraquezas. Esta noite, cada um de vocês será testado. Não há garantias de sucesso, e não haverá misericórdia para os fracos.
Ele fez uma pausa, deixando suas palavras ecoarem pelo salão antes de continuar.
— Vocês serão colocados em duplas. Sobrevivam juntos… ou pereçam juntos.
Ouvi murmúrios baixos ao meu redor enquanto alguns olhavam nervosos uns para os outros. Eu, no entanto, não desviei o olhar de Kaelen, mantendo a expressão neutra. Até que ele começou a chamar os nomes.
.
Minha mandíbula apertou. Claro que seria ela. Olhei para , que já estava cruzando os braços com um sorriso irônico, como se tivesse certeza de que isso era obra do destino apenas para nos irritar.
Kaelen não deu tempo para protestos.
— Sigam-nos.
Fomos levados por corredores estreitos e sombrios, as paredes parecendo pulsar com uma energia viva, até uma abertura onde uma arena subterrânea se revelava. A escuridão parecia mais espessa ali, quase sólida.
— Bem-vindos à Arena das Sombras — anunciou Kaelen, de pé acima de todos nós. — Sobrevivam. Vejam através das ilusões. E provem que merecem estar aqui.
Um som baixo, gutural, começou a ecoar das paredes, como se algo estivesse se movendo. Criaturas começaram a emergir das sombras, híbridos grotescos com formas distorcidas, olhos brilhantes e movimentos erráticos. Cada uma parecia mais mortal que a anterior, e eu sabia que não seriam apenas ataques diretos; eles mexeriam com a nossa percepção, com a nossa mente.
Olhei para rapidamente.
— Espero que você consiga acompanhar — provoquei, ajeitando as asas e preparando minha postura.
Ela estava atenta a tudo à nossa volta, em sua posição de ataque. Seus olhos, puro fogo, queimaram nos meus e aquele pequeno sorriso irritante surgiu no canto dos seus lábios.
— Faça as honras, … — debochou, apontando as feras a nossa frente. — E então descobrirá.
Em um movimento rápido, a ruiva prendeu seus cabelos em um rabo de cavalo alto e se adiantou à minha frente, piscando um olho para mim.
Mas ela voltou a ficar séria no segundo seguinte, girando seu corpo e escapando do ataque daquele híbrido. Ela parecia saber o que fazer, e vi quando ela chutou um deles e o segurou, drenando a energia vital dele, e deixando a marca de suas mãos no lugar tocado. O híbrido, sem força caiu no chão e pulou por cima dele, indo de encontro com outro que vinha rápido na sua direção.
Observei enquanto se movia com a graça de quem parecia feita para aquilo, como se cada passo e golpe fossem parte de uma dança cuidadosamente ensaiada. Mas, claro, ela não perderia a oportunidade de jogar suas farpas.
— “Faça as honras, ” — repeti, com uma leve ironia na voz, enquanto minhas asas se agitavam, prontas para o combate. — Eu adoraria, mas parece que você está se divertindo demais para dividir.
Meus olhos captaram o movimento de outra criatura se aproximando pelas laterais. Suspirei, ajustando minha postura, e avancei antes que ela pudesse me alcançar. Convoquei as sombras ao meu redor, moldando-as em algo quase tangível. Com um movimento rápido, as lancei em direção ao híbrido, envolvendo-o antes que ele sequer tivesse a chance de reagir.
Outro veio na direção dela, e ela já estava pronta, ágil, quase antecipando o ataque antes mesmo que ele acontecesse.
Desviei o olhar para me concentrar no meu próprio alvo. Um híbrido grotesco avançava, seus membros distorcidos pulsando com uma energia sombria. Suspirei, deixando as sombras ao meu redor se tornarem mais densas. Elas fluíram como uma extensão do meu corpo, moldando-se em lâminas afiadas que cravei direto no peito da criatura. Ela tentou reagir, mas as trevas não perdoavam.
Enquanto o híbrido caía aos meus pés, meus olhos voltaram para . Minhas asas se abriram levemente enquanto eu me preparava para o próximo ataque. Não havia tempo para admirar a luta dela, por mais fascinante que fosse. As sombras estavam vivas, o perigo real, e se eu hesitasse, essa arena iria nos consumir sem piedade.
A batalha se desenrolava em um caos absoluto, cada híbrido grotesco parecendo mais determinado que o anterior a nos despedaçar. Eu mantinha minha distância, usando as asas para ganhar altura enquanto lançava rajadas de sombras contra os inimigos. As trevas respondiam ao meu comando, moldando-se em lâminas e correntes que cortavam o ar, prendendo e destruindo os híbridos que se aproximavam.
, como sempre, fazia questão de chamar atenção. Lá embaixo, ela enfrentava os híbridos de frente, chutando, desviando e drenando suas forças vitais com toques precisos. Cada golpe seu era brutal e calculado, mas eu percebia a tensão em seus movimentos, como se a força dos inimigos estivesse começando a se acumular contra ela.
Por um momento, nossos olhares se cruzaram. Eu sabia que ela não pediria ajuda - nunca pediria. Mas enquanto mais híbridos surgiam das sombras, a realidade ficou clara. Estávamos cercados. Eu estava tentando controlar o cenário de cima, enquanto ela lidava com tudo sozinha no chão, e não estávamos indo a lugar nenhum assim.
Desci rapidamente, aterrissando próximo a ela, as asas batendo uma última vez antes de recolherem parcialmente.
— Você vai continuar brincando de heroína ou vamos acabar com isso juntos? — perguntei, o tom seco, mas os olhos avaliando rapidamente nossa posição.
— Se você parasse de ficar voando como uma borboleta e me ajudasse de verdade, já teríamos acabado com eles — esbravejou, chutando outro híbrido que veio na direção dela.
Aquele híbrido não desistiu e avançou novamente pra cima dela, e como seus olhos estavam em mim, ele conseguiu puxá-la pela camisa, prendendo suas garras naquele tecido e os arrebentando, deixando ela apenas com um pedaço da camisa e seu sutiã à mostra. esbravejou palavras que não consegui entender e suas mãos seguraram com força na cabeça do híbrido, pegando para si toda a energia vital dele, sem piedade, até que a criatura caísse no chão, diante de seus pés.
— Inferno! — falou entredentes, me olhando com irritação. — Odeio dizer isso, mas qual seu plano? — perguntou, atenta à nossa volta, vendo mais híbridos surgirem na arena.
Observei a cena com uma mistura de irritação e fascínio, minhas asas se movendo levemente em resposta à adrenalina crescente. , como sempre, era um espetáculo por si só — feroz, implacável e, naquele momento, claramente furiosa comigo. A camisa rasgada e o brilho em seus olhos só tornavam tudo mais caótico.
Respirei fundo, tentando ignorar o impulso de provocá-la, algo que parecia tão natural quanto respirar. Mas ela tinha razão, infelizmente. Agir de forma independente estava nos atrasando, e esses híbridos só continuavam a surgir.
— O plano? — respondi, ajustando minha postura enquanto avaliava rapidamente a arena. As sombras ao nosso redor pulsavam como se fossem vivas, e as criaturas se moviam como predadores implacáveis.
Me concentrei nas sombras ao nosso redor, sentindo-as, moldando-as na minha mente. Precisávamos limpar o campo e ganhar algum controle antes que fosse tarde demais.
— Eu seguro eles aqui — falei com firmeza, reunindo as trevas em torno de nós, formando uma barreira densa. Era temporária, mas daria tempo para nos reagruparmos. — Você foca nos que ultrapassarem isso. E, … tenta não rasgar o resto das suas roupas.
Não esperei pela resposta dela. As sombras responderam ao meu comando, se espalhando rapidamente para formar uma espécie de jaula que mantinha os híbridos afastados por alguns segundos. Usei o tempo para avançar em um dos pontos mais fracos do grupo, cortando através das criaturas com lâminas de trevas, minhas asas batendo forte enquanto ganhava impulso para golpes precisos.
Mesmo com a tensão crescente, não pude deixar de notar como ela agia rápido, cobrindo as lacunas que eu deixava. Por mais que não quiséssemos admitir, estávamos começando a trabalhar juntos. Não era perfeito, mas era eficaz. E, naquele momento, eficácia era tudo o que importava.
Enquanto conjurava mais sombras à minha volta, notei em uma luta com dois deles que passaram por mim. Por instantes acreditei que ela gritaria por ajuda, mas em um girar do seu corpo, a ruiva correu rapidamente, pegando impulso e apoiando seus braços nos ombros da criatura, caindo com graça e leveza atrás do corpo dele, deixando ele caído no chão, pois com seu toque rápido e certeiro, ela havia drenado ele e em segundos estava lutando com determinação contra o outro híbrido que vinha logo atrás do que ela havia derrubado.
A ruiva rolou no chão e chutou uma das pernas da fera, fazendo ele se desequilibrar, então se levantou e se lançou contra ele, o acertando novamente e parecia que cada vez que ela drenava uma daquelas criaturas, sua força aumentava, mas ao mesmo tempo, conseguia ver o quanto isso a cansava. E por segundos, quando ela terminou a drenagem do outro híbrido, ela me olhou e um vislumbre de vulnerabilidade surgiu em suas íris, junto com um sorriso fraco. Mas tudo sumiu quando ela correu e passou por mim, indo de encontro a mais feras que estavam vindo e parecia ser esse o objetivo deles, nos cansar e desistir e ter nossos fins pelas garras dessas criaturas.
E mesmo estando perto do seu limite, lutava como uma força desenfreada da natureza.
Uma das criaturas, mais rápida do que as outras, avançou enquanto ela estava distraída com outra. Seu corpo já não era tão ágil quanto no início, e dessa vez ela não conseguiu desviar. A fera a derrubou no chão, cravando suas garras próximas demais de sua garganta. lutava, mas eu podia ver que estava perdendo terreno.
Parei por um momento, observando a cena. Eu poderia deixá-la morrer ali.
Bastava um instante de hesitação, uma escolha, e tudo acabaria. A irritação constante, as farpas que trocávamos, o fardo de ter que lidar com alguém como ela. Bastava não fazer nada.
Meus olhos se fixaram nos dela, que ainda queimavam com aquele fogo teimoso, mesmo quando estava à beira de ser esmagada. E por um momento, pensei: "Seria tão simples..." Mas algo dentro de mim não deixou. Porque, por mais que fosse encrenca, caos, e tudo o que eu fingia desprezar, ela era . E eu não estava pronto para ver aquele fogo apagar.
Com um movimento rápido, deixei as sombras me envolverem e as asas se abriram, lançando-me em um impulso direto para a criatura. As trevas se moldaram em lâminas afiadas enquanto eu caía sobre o híbrido, atravessando-o antes que pudesse dar o golpe final. Ele gritou e se dissipou em fumaça antes de colapsar completamente.
A ruiva ofegava no chão, claramente exausta, mas o fogo ainda estava lá. Me abaixei levemente, os olhos fixos nos dela, e deixei que o peso da minha presença falasse por mim. Não precisei dizer nada, mas ela sabia. Sabia que eu poderia ter escolhido outro caminho.
Sabia o que eu tinha acabado de decidir.
Me levantei sem desviar o olhar, a sombra de um sorriso curvando meus lábios.
— Não se acostume — falei baixo, mais para mim mesmo do que para ela.
Porque, no fundo, eu sabia que isso não era sobre ela. Era sobre mim. Sobre o que eu estava disposto a fazer — ou a não fazer — nesse lugar onde tudo era consumido pelas trevas.
— Idiota! — rosnou, orgulhosa demais para agradecer o que eu havia acabado de fazer por ela.
Ela se levantou do chão e segurou em seu ombro esquerdo, onde no ataque, o híbrido havia conseguido ferir ela. Não parecia ser nada profundo, mas mesmo assim, sangue escorreu por seu braço.
Um rugido veio do lado direito da arena e quando ambos nós viramos para aquele lado, assim como haviam aparecido, os híbridos também haviam sumido e no lugar deles, tinha uma fera ainda maior que os outros, parecendo mais forte e muito mais rápido, como se eu e ela tivéssemos passado de nível e agora teríamos que enfrentar algo mais desafiador do que os outros anteriores.
Seus olhos eram de pura fúria, flamejantes em determinação a nos destruir. O ar a nossa volta parecia conspirar a favor da criatura horrenda que nos encarava e senti a presença de ao meu lado, seu braço quase tocando o meu. Ela tinha seus olhos voltados para a fera, mas então seu rosto se virou para mim, deixando seus olhos de um tom claro, preso nos meus.
— Só mais um? — perguntou em um murmúrio, como se fosse um pedido de lutarmos juntos, só mais uma vez.
Ela não iria desistir, sabia disso, pois seus passos sempre eram determinados e isso refletia visivelmente em seus olhos.
— Me acompanhe… — falou, e voltou a olhar a fera.
Antes dela sair do meu lado, sua mão esbarrou na minha, foi rápido, intenso e quente, e no segundo seguinte, ela estava correndo na direção daquele híbrido, se lançando no chão e deslizando entre as pernas dele, e em um golpe, puxou uma das pernas, deixando ele desequilibrado e distraído para que eu pudesse lhe atacar de surpresa, enquanto ela chamava a atenção dele para si.
Observei enquanto a ruiva avançava com uma coragem que beirava a loucura, como sempre. Ela deslizava com precisão entre as pernas da criatura, forçando-a a se desequilibrar.
O movimento dela era ágil, calculado, mas também suicida. Ela sabia exatamente o que estava fazendo: arriscando a própria vida para criar uma abertura para mim.
Minha mente trabalhava rápido, avaliando o momento perfeito para atacar. As sombras ao meu redor se agitavam, respondendo ao meu comando silencioso enquanto eu moldava uma lâmina delas em minhas mãos. A fera rugiu, suas garras tentando alcançar , mas ela continuava chamando sua atenção, provocando-a como se isso fosse algo natural para ela.
As asas se abriram atrás de mim, batendo uma vez e me lançando no ar. Eu não podia hesitar. Um ataque rápido e certeiro era a única chance que tínhamos. A fera estava distraída, exatamente como planejou.
Subi mais alto, sentindo o peso das sombras se acumularem na lâmina que eu havia criado. O mundo pareceu desacelerar por um momento quando vi a criatura girar na direção dela, os olhos flamejantes fixos em sua figura.
Com um impulso final, mergulhei em direção à fera. Minhas asas cortaram o ar, e a lâmina sombria brilhou antes de atingir o pescoço da criatura. O impacto foi brutal, e a fera rugiu de dor enquanto tentava me alcançar. Mas eu não dei chance. Girei no ar, reforçando o ataque com um segundo golpe, atravessando sua pele espessa e atingindo algo vital.
A criatura cambaleou, mas ainda lutava, mesmo enquanto o sangue escuro escorria de seus ferimentos. não perdeu tempo. Ela se levantou, drenando energia vital da fera enquanto ela ainda estava viva, suas mãos deixando marcas profundas que pareciam queimar.
Finalmente, a criatura caiu de joelhos, e eu recuei, deixando-a aos cuidados dela. finalizou o trabalho, e a arena ficou em silêncio. As sombras ao redor pareciam se acalmar, mas o ar ainda estava pesado. Ambos estávamos ofegantes, feridos, mas inteiros.
Suspirei, limpando o suor da testa com o dorso da mão e me aproximando dela.
Não que fosse preocupação — claro que não —, mas ela parecia estar a um passo de desmoronar, e alguém precisava garantir que ela não morresse antes que pudesse pagar pelas provocações de sempre.
Cheguei perto, parando a poucos centímetros dela, perto o suficiente para ouvir sua respiração ofegante.
Olhei para o ferimento em seu ombro, o sangue manchando o tecido rasgado que ainda restava.
— Vai sobreviver ou quer que eu te carregue até lá fora? — perguntei, o tom carregado de sarcasmo, mas meus olhos ainda fixos no corte.
Inclinei-me ligeiramente, avaliando o ferimento mais de perto, ignorando o fato de que ela provavelmente estava se segurando para não me afastar com uma provocação.
— Não vai morrer — murmurei, o tom seco enquanto me afastava um pouco, deixando meus olhos caírem de volta nos dela. — Mas se desabar, eu te deixo aqui. Só pra deixar claro.
Dei um passo para trás, deixando um sorriso de canto surgir no rosto. Mas por mais que minhas palavras fossem carregadas de ironia, algo dentro de mim sabia que, se ela realmente caísse, eu seria o primeiro a segurá-la. E era exatamente isso que me irritava.
Ela arrumou sua postura, tentando demonstrar que não estava tão mal quanto parecia e balançou seus ombros como se nada tivesse acontecido, tirando em seguida o resto daquela camisa rasgada e ficando de fato, apenas com sua peça íntima.
— Se encostar em mim, se prepare para ter as marcas das minhas mãos em você — sorriu como se tivesse me contado algo legal, mas deixou claro que não tinha problema em usar seu poder em mim.
A porta da arena se abriu, e piscou um de seus olhos para mim e saiu andando na minha frente, balançando seu corpo provocativamente de propósito, como se não estivesse acabado de lutar e muito menos estivesse ferida.
— Já percebeu como você gosta de ficar para trás?! — falou debochada, aumentando seu tom para que ouvisse. — Pode se acostumar a ver minhas costas, , porque você sempre ficará para trás — ela riu e me olhou por cima de seu ombro bom, voltando seu olhar para a frente logo depois.
Sorri de lado com a visão, descendo meus olhos por ela toda e lambi meu lábio superior, sem pudor algum.
— E quem te disse que eu não goste de ficar atrás mesmo? — ergui as sobrancelhas, rindo nasalado enquanto a seguia. — Até prefiro, pelo menos não preciso ficar olhando para sua cara — rebati, dando de ombros e quando a alcancei, sussurrei no seu ouvido: — E você tem uma bunda gostosinha até.
Pisquei um olho para ela e saí, agora na sua frente. Mas tive que parar quando demos de cara com o líder Umbros, ele sorriu satisfeito para nós dois e bateu palmas.
— Vocês tem grande potencial — comentou, olhando para mim e para . — Mas isso foi só o começo. O maior teste ainda está por vir — avisou, transformando o sorriso em algo sombrio.
Ele fez um sinal para os outros nos acompanharem de volta para os dormitórios. Charlie e a loirinha não tinham voltado ainda. Meus olhos foram até a ruiva, e sabia pelo olhar dela que ela também estava pensando nas palavras de Umbros para nós.

O que será que estava por vir?



Acho que eu nunca precisei usar tanto o meu poder seguidamente, quanto usei hoje. A adrenalina ainda estava correndo junto ao meu sangue, e por esse motivo, não sentia dor em meu ombro. A energia extra roubada dos híbridos ainda estava em mim, mas sabia que em pouco tempo meu corpo não aguentaria mais. Era sempre assim. Eu sentia um misto de amor e ódio por ele, e quando ficava vulnerável e fraca, era quando o ódio gritava em meus ouvidos por ter nascido com esse dom.
Desde que recebi aquela carta, estava me preparando, mentalmente e fisicamente, para qualquer coisa, mas nem de longe imaginei que teríamos que lutar contra tantas feras ao mesmo tempo, e sendo apenas em dois. Mas não tive medo, sabia o que fazer e como fazer, e fiquei grata pela ajuda que me deu, embora nunca direi isso a ele e ter que aguentar dias de provocações sobre isso.
Medo é uma coisa que não costumo ter, igual pensar demais sobre as coisas, eu simplesmente me jogo e dou o meu melhor, lutando para não cair e falhar e uso isso em qualquer área da minha vida, vivendo o hoje e o agora, sem medo, sem pensar muito.
Quando nós permitimos ter medo, ficamos vulneráveis e frágeis e isso era uma coisa que não poderia jamais deixar visível para outras pessoas. Como também pensar demais evitava viver novas experiências, novas aventuras e descobrir coisas novas. E por isso eu me jogava de cara em tudo, independente do que fosse.
Não fazia ideia de como estavam sendo os testes dos outros, mas o nosso foi intenso e até prazeroso, porque pude extravasar um pouco da irritação que o causava em mim.
Nora e Charlie ainda estavam nos seus testes e quando e eu fomos liberados para voltar ao nosso quarto, tudo o que eu queria era me jogar embaixo da minha coberta e dar o descanso que eu sabia que meu corpo queria, mas me recusava a fazer isso sem antes tomar um banho.
Andei em silêncio um pouco atrás dele, deixando o resto das minhas forças para o meu banho, mesmo que sua fala sobre a minha bunda ainda estivesse bem fresca em minha cabeça. Ele era um abusado, e eu, uma provocadora com orgulho, e como não pude responder ele por termos sido interrompidos, iria lhe dar a resposta com atos.
Ele parecia andar sem fazer nenhum esforço, com suas asas em sua retaguarda, parecendo ter vida própria conforme seu corpo balançava com o andar. Ele era irritante, mas fez um bom trabalho lutando hoje.
Assim que passei pela porta do quarto, fui direto ao meu armário, não olhando para ele para ver o que ele fazia. Estava, na verdade, com um pouco de pressa e não queria ficar frágil na frente dele. Abri meu armário e peguei aquele kit de higiene, vendo que tinha shampoo e sabonete nele e agradeci por ter outra troca de roupa, já que perdi uma, e suspirei em alívio ao ver embaixo do kit peças íntimas. Peguei apenas uma calcinha preta e uma daquelas camisas enormes, que a barra batia na minha coxa, e a toalha de banho.
Tirei meu coturno e deixei embaixo da minha cama, tirando em seguida minha calça e ficando só de calcinha e sutiã. Não olhei para , mas senti algo estranho passar pelo meu corpo, sendo obrigada a olhar para ele. Meus olhos se prenderam nos dele e minha pele pareceu queimar com o olhar que recebia dele. Peguei minhas coisas para o banho e andei até a porta, me virando mais uma vez para ele.
— Sobre seu comentário sobre minha bunda… — Lhe dei um sorriso provocador. — Pode ficar à vontade para olhar, porque é só isso que você fará…
Passei pela porta e a fechei, indo em direção ao banheiro e não esperando para ouvir as baboseiras que ele sempre falava.
O corredor estava vazio e andei a passos rápidos até a última porta, entrando em seguida. O banheiro era amplo, feito para acomodar várias pessoas ao mesmo tempo. As paredes todas brancas com um piso branco também, deixavam o lugar até um pouco iluminado demais, se fosse comparado aos outros ambientes, onde não existia quase nada de luz. Em uma parede, seis cabines individuais fechadas com vaso sanitário, em frente a elas, uma bancada com seis pias, acompanhadas com um longo espelho e atrás da parede do espelho, seis repartições com chuveiros sem portas.
Suspirei com aquilo, mas deixei minhas roupas em cima do banco de cimento que tinha em frente aos chuveiros, pendurei minha toalha no gancho que tinha ali dentro e entrei na cabine, ligando o chuveiro na água gelada. Como estava sozinha, lavei rápido meus cabelos e aquele sangue seco do meu braço e daquela ferida, tirando minha calcinha e sutiã, ficando nua. Me lavei o mais rápido que consegui, deixando as peças ali para depois lavar. Desliguei o chuveiro e peguei rápido a toalha, antes que alguém aparecesse.
Já havia me secado e estava secando meus cabelos, quando ouvi a porta bater, indicando que alguém havia entrado. Me enrolei rapidamente na toalha e juntei minhas coisas, indo até o banco e me sentando para guardar o que eu havia usado. Passos se aproximaram e quando ergui meus olhos, era ele.
estava com a sua toalha pendurada em seu ombro, sem camisa e com o botão da sua calça aberta, mostrando a barra da sua cueca box preta. Seu peitoral largo e definido o deixava tão… nada! Deixavam ele ainda mais insuportável do que já era com camisetas.
Arrumei minha postura, puxando todo o meu cabelo para um lado só, sabendo que ele viria com alguma provocação para cima de mim, e olhei em seus tons escuros, apenas esperando sua gracinha.
— O que foi? — perguntou, erguendo suas sobrancelhas. — Se for ficar assistindo, eu vou cobrar — provocou, abaixando sua calça e começando a se despir sem ver problema nenhum em fazer aquilo na minha frente.
— Só se eu quiser queimar meus olhos. — Sorri debochada para ele, passando meus olhos por ele e os revirando, ainda sorrindo. — Já estou de saída, de repente o ar ficou tóxico demais. — Fiz uma careta e voltei a arrumar minhas coisas.
— Então aprenda a respirar toxicidade, ruivinha, porque vamos conviver muito juntos — respondeu com aquele tom insuportavelmente arrogante e ouvi ele ligar o chuveiro.
O jeito que me chamou fez minha cara se fechar e respirei profundamente ao me dar conta que ele estava certo.
— Então vou torcer para você cair logo, , porque me recuso a me acostumar a respirar esse ar. — Meu tom não saiu muito alto, mas sabia que ele ouviria.
Me levantei e vesti aquela camisa enorme por cima da toalha de banho, tirando ela quando tive certeza que a barra da camisa ia mesmo até minhas coxas, e então vesti minha calcinha, voltando a terminar de secar meus cabelos.
Os efeitos após o uso das drenagem estavam aparecendo e estava começando a me sentir fraca, e isso veio junto com uma dor forte em meu ombro. Grunhi e me abaixei para juntar minhas coisas e sair rápido dali, mas senti uma tontura ao fazer o movimento.
— Merda! — resmunguei para mim mesma, e me apoiei no banco para ficar em pé novamente.
— Ora, ora… acabou de desejar que eu caísse e o feitiço tá voltando para a feiticeira. — Ouvi seu deboche, logo seguido de uma risada. — Sabe, , apesar de não gostar de você e não ir nem um pouco com a sua cara, eu não desejo o seu mal. Ao contrário de você, é claro. Aí está uma enorme diferença entre nós.
apareceu ao meu lado, a toalha enrolada em sua cintura e seu corpo todo molhado. Então ele estendeu a mão para mim.
— Você vai desmaiar aí, para de ser uma escrota — disse, mais sério.
— Me deixa em paz — falei baixo, buscando por forças para sair daquele banheiro. — Eu estou bem e não preciso de você… de ninguém…
Não olhei para ele, me recusava a ver qualquer coisa em seus olhos, apenas deixei minhas coisas para trás e saí dando passos incertos para fora do banheiro, precisando me apoiar na parede do corredor quando minha visão escureceu por alguns segundos. Eu só precisava chegar na minha cama e descansar e depois voltaria para pegar minhas coisas.
Puxei o ar quando minha visão voltou e busquei pelo número do meu quarto nas portas, dei mais alguns passos e passei pela porta sete, deixando meus olhos focados na minha cama. Ouvi passos atrás de mim, e uma fraqueza dominou meu corpo, me fazendo cair sobre a cama.
Senti minha camisa subir com o jeito que meu corpo caiu, mas não consegui me arrumar, nem mesmo puxar minha coberta. Minha visão escureceu novamente e a dor em meu ombro se espalhou por todos os lados me fazendo choramingar baixinho. Os passos se aproximaram mais, mas eu já estava longe e não sabia identificar quem era.
A última coisa que registrei antes de apagar, foi as mãos de alguém erguendo minhas pernas na cama.

***

Vozes chatas e irritantes ecoavam em minha cabeça, se juntando com a dor que irradiava do meu ombro. Não ousei me mexer e nem revelar que eu havia acordado ao perceber que as vozes eram da Nora, Charlie e .
Meu corpo estava quente, sentia minha camisa enrolada até minha cintura e o peso da coberta sobre mim. Forcei minha mente para lembrar em qual momento eu havia puxado ela, mas não conseguia porque eu não havia me cobrido e nem me deitado corretamente sobre a cama. Se eu não tivesse perdido tempo com o no banheiro, teria conseguido chegar a tempo na minha cama antes de ficar esgotada.
A risada chata da Nora chamou minha atenção e prestei atenção na conversa deles, onde Charlie estava contando como havia sido seu teste e que a sua dupla foi um rapaz do quarto dois. Eu não sabia nada sobre nenhum deles, quais eram suas habilidades, seus dons, suas fraquezas, nada. Mas como presenciou a minha fraqueza, apostava que todos já sabiam o que acontecia comigo quando usava meu poder e isso me deixava em desvantagens com eles.
Era nessas horas que o ódio que sentia por meu dom se sobressaia, porque eu não conhecia ninguém que ficava fraca e frágil após usar seu poder. As palavras do meu pai, ainda gravadas em minha mente, como estacas fundas, dizendo que eles sempre estiveram certos e que eu não prestava para nada.
Um gosto amargo desceu pela minha garganta, e me mexi desconfortável na cama, mas ninguém percebeu, pois na mesma hora alguém os chamou para o jantar no refeitório principal. Esperei, de olhos fechados, eles saírem. E quando o quarto ficou em silêncio, abri meus olhos e me sentei na cama, vendo meus pertences no canto dela.
Uni minhas sobrancelhas, não entendendo como elas vieram parar ali, ou quem as trouxe, mas então a lembrança que ele estava comigo no banheiro ocupou espaço em meus pensamentos. Me neguei a acreditar que ele havia trazido para mim, e o toque em minhas pernas se tornou vivo também. Ele havia me arrumado na cama e puxado a coberta para me cobrir? Por quê? Provavelmente para jogar na minha cara o quanto eu era fraca e não conseguia fazer nada sozinha.
Ainda me sentia cansada, como se não tivesse recuperado toda a minha energia, mas empurrei a coberta para longe e arrastei minhas pernas para fora, me levantando e sentindo a camisa cair por meu corpo como um vestido. Olhei para meu ombro, vendo que a camiseta tinha grudado na ferida por estar sem curativo algum. Teria que ir até o banheiro e molhar o tecido para desgrudar ele com cuidado, para não fazer sangrar.
Quando ergui meus olhos, para ir até meu armário, ele estava parado,encostado na parede ao lado dos armários, me olhando de um jeito que não conseguia ler o que se passava em sua mente.
Meu coração disparou, e fiquei em alerta, me preparando para qualquer coisa que viesse dele. Eu poderia estar mais fraca que o normal, mas mesmo assim não abaixaria a cabeça para ele.
— Você vai precisar de alguns pontos nessa ferida — comentou, sério, apontando meu ombro com o queixo. — Poucos, mas vai, ou irá infeccionar.
Olhei séria para ele, processando o que ele havia falado. Não tinha deboche em seu tom, nem um pingo de provocação, nada.
— Por quê? — perguntei encarando ele, usando o mesmo tom de antes. — Foi você? — fiz outra pergunta, apontando com meu queixo para as coisas na cama.
— Por quê o quê? — Franziu o cenho e deu de ombros para minha outra pergunta, não respondendo.
— Por que se preocupar com meu ombro? — Revirei meu olhos, não entendendo nada desse monólogo.
— Não estou preocupado, estou te alertando. Não sabemos o que está por vir, e se isso infecciona, esse braço seu já era para uma próxima luta — respondeu, abaixando o tom de voz.
— Que fofo. — Sorri como se tivesse agradecida, até coloquei minha mão no peito teatralmente. Mas depois voltei a ficar séria. — Não preciso que você me alerte de nada, . Sei me virar sozinha e sei quando devo ir atrás de algo ou não — falei, cruzando meus braços e engolindo a dor que o movimento causou no meu ombro.
— Ok então — foi o que respondeu, passando por mim e pegando seu casaco na beliche de cima, saindo do quarto em seguida.
Soltei meu ar e fui até o armário, vestindo uma calça e me sentei na cama para colocar meu coturno. Tentei tirar a camiseta, mas ela estava mesmo colada na minha ferida e bufei por ter que concordar com ele e ter que ir atrás pelo menos de um curativo.
Saí do quarto e fui em direção ao refeitório, encontrando mais pessoas pelo caminho. Entrei naquele espaço amplo, cheio de mesas compridas e bancos que as acompanhava e passei meus olhos pelo lugar, vendo de cara onde havia sentado e indo para o lado contrário ao dele.
Passei entre as mesas, ouvindo as conversas que tinham ali, e parei atrás de uma garota morena quando ouvi ela e seus companheiros rindo dos novatos que haviam caído no primeiro teste. Seu ar de superioridade era até mesmo sufocante e esbarrei nela, propositalmente, quando ela ergueu seu garfo para levar a sua boca, fazendo ele arranhar sua bochecha.
Continuei meus passos ignorando a voz estridente dela, chegando até os pratos e me servindo, indo para o outro lado e me sentando em um canto onde só havia homens. Ali estavam todos quietos e agradeci a isso, podendo comer em silêncio e sem precisar falar com ninguém.
Estava quase acabando e pronta para levantar, quando a morena e mais outras duas garotas pararam atrás de mim.
— Por que não me respondeu quando te chamei, ruiva? — falou, com aquela voz irritante.
Não respondi ela e segurei com força a faca que usava, pronta para qualquer coisa.
Naquele canto da mesa havia sobrado apenas eu e mais dois homens, que não deram bola para a morena, assim como eu.
— Você é surda, caralho? — Seu tom saiu mais alto, e ela apertou meu ombro, bem em cima da minha ferida.
Meu movimento foi rápido em segurar seu braço e torcer para trás, puxando seu corpo contra o meu, deixando minha mão, que segurava seu braço, entre nós duas.
— Nunca mais encoste em mim — rosnei contra seu ouvido, apertando com força minha mão.
A morena tentou se soltar e me acertar, mas na minha outra mão ainda estava aquela faca e a levei até sua barriga.
— Você não pode…
— Quer ver se eu posso ou não? — desafiei, e nessa hora as amigas dela se manifestaram.
Uma garota mais baixa que eu moveu as mãos em círculo, provavelmente iria usar seu poder contra mim.
— Fala para ela parar, ou vou drenar você — avisei, apertando mais minha mão no braço dela, e a faca na sua barriga.
— Lexie, não — falou para a amiga, e ela a olhou indignada. — Resolvemos isso outra hora, nem sempre ela vai ser tão rápida assim — falou mais para mim do que para a amiga dela.
— Você não sabe o que acabou de provocar, lindinha. — Sorri com escárnio, olhando para todas elas. — Eu adoro um desafio, e adoro mais ainda provar que as pessoas estão erradas.
A empurrei para cima das amigas dela, que foram rápidas em segurar a morena para não cair. Deixei a faca na mesa e saí desviando das pessoas que tinham se juntado à nossa volta para ver o que aconteceria.
Busquei entre os corredores alguma sinalização de onde ficava a enfermaria, e depois quando achei que estava perdida, avistei um porta com um cruz vermelha. Por sorte, a senhora que cuidava daquela ala era gentil e conseguiu tirar o tecido colado da minha ferida. Não me importei em ficar sem camisa para ela dar uns pontos, mesmo que estivesse sem sutiã. E quando ela terminou, fez um curativo e pude me vestir novamente.
Antes de sair, a enfermeira pediu para que eu voltasse depois de quatro dias para ela ver se já dava para tirar os pontos e me deu curativos para trocar sozinha. Sorri em agradecimento para ela e voltei para o dormitório. Precisava descansar mais para a próxima prova.
Quando estava perto da porta sete, Nora e Charlie estavam saindo dela e os parei no corredor.
— Aonde vão? — perguntei para eles, interessada se havia mais coisas para fazer naquele lugar além das provas.
— Conhecer o lugar — Charlie falou, simples. — Quer ir junto? Depois do que rolou hoje, merecíamos um lugar para relaxar.
Concordei com ele e olhei para Nora, que tinha seus olhos verdes e frios em mim.
— Hoje vou passar, mas se acharem algo, vou da próxima vez — falei e passei por eles, ouvindo uma risada do Charlie.
— Só não vão se matar — falou mais alto, quando eu estava entrando no quarto, e quando vi na cama dele, entendi sua fala.
Entrei e fechei a porta, notando que ele estava sem camisa e fui até meu armário, tirar meu coturno, minha calça e aquela camisa que estava suja do meu machucado. Me virei de costas para as beliches e troquei a camisa primeiro e depois que ela caiu sobre minhas coxas, tirei o coturno e a calça.
Andei até minha cama e antes de me abaixar, olhei para ele mais uma vez e então me deitei. O silêncio era quebrado apenas pelo som da nossa respiração e pelos movimentos que suas asas faziam às vezes. Não me lembrava quando eu e ele começamos com essa implicância e, embora conhecesse ele há anos, não sabia nada sobre ele.
— Por que aceitou vir para cá? — perguntei em um murmúrio, minha voz soou estranhamente calma e olhei para cima, encarando a grade da cama dele, esperando para ver se ele me responderia.
ficou em silêncio por um momento, e quando finalmente respondeu, sua voz veio baixa e carregada de desdém.
— Isso importa? — disse, ríspido. — Não é da sua conta.
— Eu sei que não é da minha conta — respondi com outro murmúrio, com o mesmo tom de antes. — Eu só… deixa para lá — sussurrei, me virando de barriga para baixo, buscando um jeito melhor para não doer tanto meu ombro. — Só espero que eu tenha vindo pelos motivos certos — completei meu pensamento, sussurrando para mim mesma.
— Não tem motivo certo para estar aqui. Você sabe disso — murmurou. — Nossas vidas são uma bosta e não temos nada a perder. Por isso estamos aqui.
Ele estava certo, mas eu esperava ter mais aqui do que tinha na minha antiga vida.
— É, eu sei, mas isso não muda o que de fato estou buscando aqui — falei de olhos fechados, ouvindo as asas dele se moverem na cama de cima. — E não é o poder que eles tanto falam…
— Cuidado com o que deseja, — sussurrou, com a voz mais rouca e grave.
— Não tenho medo do que vou encontrar. — Mesmo minha voz estando baixa, eu estava sendo sincera. — Vou falar só uma vez, , e depois você nunca mais ouvirá nada assim vindo de mim — completei, mantendo minha voz baixa e meus olhos fechados. — Obrigada por ter me ajudado.
— Eu te falei, eu não desejo o seu mal — repetiu, no mesmo tom.
— Isso é novidade para mim — murmurei. — De onde eu venho, todos sempre querem meu mal, meu fracasso e o que tiver de pior…
— Eu não sou de onde você é e nem sou como todo mundo — respondeu, e suas asas se movimentaram sutilmente.
— Você tem um dom extra, sabia?! — murmurei e sorri de olhos fechados. — Estar irritantemente certo — revelei, baixinho. — Mas só dessa vez, .
— Você pode repetir essa frase mais uma vez? Acho que não ouvi direito… — pediu, com o tom de provocação agora.
— Uma pena você não ter ouvido de primeira, porque eu não repito minhas falas — falei baixo, mas ainda sorria.
— Qual é, ruivinha. Fala aí! — rebateu, e sua voz estava mais leve em um tom zombeteiro.
— Não me faça levantar para jogar meu sapato em você. — Minha voz saiu mais séria. — Porque se me chamar assim de novo, é o que vai acontecer. — Mesmo de olhos fechados, sabia que ele estava com aquele sorriso odioso nos lábios.
— Podia te provocar e realmente fazer você se levantar só pra isso — brincou, rindo nasalado. — Mas estou cansado e com uma preguiça da porra — resmungou, se mexendo na cama. — Deu um jeito nesse ombro, ? — Pareceu lembrar daquilo.
Sorri com sua fala e ele era bem capaz de fazer aquilo mesmo e agradeci mentalmente por ele desistir da provocação, porque eu estava cansada ainda.
— Sim, está com pontos e curativos — falei a verdade. — Pode ficar tranquilo e não precisa se preocupar — provoquei um pouquinho, fazendo uma voz doce e falsa.
— Vou até dormir tranquilo depois dessa, totalmente relaxado! Estava até ficando com as penas das asas brancas de tanta preocupação — debochou.
— Você é um idiota. — Apontei o óbvio para mim. — Falando em penas, você troca elas também, tipo igual as galinhas? — perguntei rindo, provocando ele.
— Cuido delas igual você cuida do seu cabelo, ruivinha — implicou, rebatendo logo em seguida.
Meu riso parou quando ouvi como me chamou e revirei meus olhos mentalmente.
— Precisa cuidar mais, , elas andam bem caidinhas e sem brilho — rebati para implicar. — Elas teriam sorte se você conseguisse cuidar igual eu cuido do meu cabelo. Me deu até dó delas. — Meu tom falso de preocupação com as penas dele era para provocar mesmo.
— Se eu fosse você, parava de falar delas, porque elas são parte de mim, mas elas têm vida própria e quase sempre tem opiniões próprias. Depois não fala que não avisei… — alertou agora, e eu vi suas asas ficando mais agitadas mesmo.
— Nossa, como você e elas são sem graças — falei, baixo, virando meu rosto para a parede. — Não vou mais falar delas, mas vê se cuida melhor então.
— E em qual momento eu pedi sua opinião sobre minhas asas? — retrucou, bufando em seguida. — Garota insuportável — ouvi ele resmungar.
— Credo, a gente não pode nem tentar ser amiga de ninguém aqui dentro, pelo jeito. — Me fiz de inocente, com um falso tom de indignação, mas minha voz ainda era baixa. — Não se pode jantar em paz e nem falar amigavelmente com ninguém. — Suspirei como se estivesse chateada, mas sorri de lado depois.
— Está tentando fazer amizades no lugar errado. Logo, logo vão nos colocar para um matar o outro naquela arena — comentou, só que agora mais sério.
— Jurava que conseguiria ter amigos que levaria para sempre em meu coração — falei fingindo tristeza, zombando novamente. — Não sou burra, , sei o que vai acontecer e sei que ninguém é amigo de ninguém aqui dentro — falei séria agora, mas minha voz continuava em tom baixo.
— Que bom que sabe, — disse por fim, ficando quieto.
Não queria amizades ou nada do tipo, mas não podia negar que uma parte minha desejava fazer parte de algo real, concreto e forte. Eu me virava bem sozinha e falava para mim mesma que não me importava em ser sozinha, mas até quando eu conseguiria acreditar em minhas próprias palavras?
A determinação de provar que eu era capaz e forte como qualquer outro ser das sombras ainda reinava em meu peito e isso não mudaria por nada, mas mesmo que eu tentasse negar, tudo o que fez por mim hoje mudou algo lá no fundo. Eu tinha ciência de que ele fez por talvez achar que era o certo, e não porque de fato se preocupava, mas mesmo assim, ele havia feito muito mais do que qualquer um da minha família já havia feito por mim.
Um dia e a minha cabeça já estava bagunçada. Suspirei cansada, bloqueando esses pensamentos da minha mente, porque pensar demais não me ajudaria em nada, pelo contrário, só iria me atrapalhar.



As sombras eram diferentes aqui. Elas não eram só escuridão; tinham peso, intenção. Mesmo quando não havia ninguém no corredor, eu podia sentir algo me observando. Não com olhos, mas com uma presença palpável, como se o próprio ar conspirasse para me lembrar que eu não estava sozinho, nunca.
Enquanto caminhava pelos corredores do quartel, meus passos ecoavam, mas o som parecia ser engolido pela escuridão antes de se espalhar. As paredes pulsavam suavemente, como se fossem parte de algo vivo, algo que respirava junto comigo. Às vezes, eu jurava ouvir sussurros, baixos demais para entender, mas altos o suficiente para me manter alerta. Talvez fosse o cansaço, ou talvez fosse isso que eles queriam.
Passei por uma curva e, por um instante, vi algo no limite da minha visão. Uma sombra, mais densa e mais rápida do que deveria ser, desaparecendo no canto do corredor. Parei, o corpo tenso, as asas se ajustando em resposta ao perigo que parecia tão próximo. Meu instinto dizia para seguir, investigar, mas a lógica me dizia para continuar em frente. As coisas aqui não seguiam regras normais, e as sombras… bem, elas não eram confiáveis, nem mesmo para mim.
Continuei andando, mas cada passo parecia mais pesado, como se o próprio chão quisesse me prender. A luz fraca, se é que podia ser chamada de luz, parecia vacilar, lançando sombras que se esticavam e se dobravam em ângulos impossíveis. Eram só sombras, eu dizia a mim mesmo. Apenas minha mente pregando peças depois do dia que tivemos. Mas o arrepio que percorreu minha espinha dizia o contrário.
Então ouvi. Um som baixo, quase imperceptível, como algo arrastando no chão, vindo de algum lugar atrás de mim. Parei novamente, virando lentamente, mas o corredor estava vazio. Ou, pelo menos, parecia estar. A presença estava lá, mesmo que eu não pudesse vê-la.
Respirei fundo, reunindo as sombras ao meu redor como um reflexo automático e continuei andando. Este lugar não queria que ninguém se sentisse seguro. Talvez fosse parte do teste, talvez fosse simplesmente o jeito das trevas lembrarem quem realmente estava no controle. De qualquer forma, eu não podia me dar ao luxo de vacilar. Aqui, hesitar significava morrer.
Eu me perguntei, por um breve momento, se também sentia isso. Se ela percebia como este lugar parecia vivo, faminto, sempre esperando pela menor fraqueza. Mas sacudi o pensamento. Eu tinha que me preocupar comigo mesmo. E as sombras que me rodeavam estavam sempre atentas. Assim como eu.
Enquanto caminhava por aquele corredor sufocante, as sombras pareciam mais próximas, mais insistentes. Era como se elas sussurrassem ao meu redor, invocando memórias que eu preferia esquecer. E, como sempre, elas ganharam. O passado voltou com força, me puxando para um tempo que eu tinha enterrado fundo demais.
Eu era só uma criança quando tudo começou. Devia ter uns oito anos, talvez menos. Lembro da dor. Como poderia esquecer? Foi como se algo estivesse tentando rasgar minha pele por dentro. Meus ossos pareciam se partir, e eu gritava, mas ninguém entendia. Não era algo que os outros podiam ver, não no início. Apenas sentiam o desconforto, o estranho, a diferença.
As asas começaram a crescer semanas depois. Primeiras sombras fracas que pareciam flutuar ao meu redor, sem forma. Eu não entendia, ninguém entendia. As crianças da vila riam de mim, sussurravam às minhas costas, mas com o tempo, começaram a ter medo. As sombras começaram a se solidificar, se tornaram algo tangível, algo que eu não conseguia esconder.
A dor nunca parou completamente, mesmo quando elas finalmente cresceram por completo. Eram parte de mim, mas o preço que paguei foi alto demais. Eu era o “monstro”, “o garoto da escuridão”. Não importava o quanto tentasse me misturar, eu sempre era diferente, sempre uma ameaça. O medo nos olhos deles queimava mais do que qualquer provocação.
Minha própria família não demorou para ceder ao peso desse medo. Lembro do rosto do meu pai, endurecido, sem emoção, quando ele disse que eu não podia mais ficar ali. Não houve gritos, nem despedidas. Apenas um silêncio cortante enquanto ele fechava a porta atrás de mim. Eu nunca mais voltei. Nem quis.
De lá para cá, a vida foi uma série de portas fechadas. Sempre sozinho, sempre procurando um lugar onde eu pudesse existir sem ser uma aberração. Mas, no fundo, eu sabia que nunca encontraria. Não havia espaço para algo como eu.
Voltei ao presente com o som de algo se movendo no corredor à frente. As sombras ainda estavam lá, me envolvendo como sempre. Elas nunca me abandonaram, mesmo quando todo o resto fez. Mas eu sabia o que elas queriam. Elas não eram amigas, nunca foram. Apenas lembranças constantes de quem eu realmente era.
Passei a mão pelos cabelos, tentando afastar as memórias, mas elas nunca desapareciam completamente. E talvez fosse melhor assim. O passado era uma ferida que nunca cicatrizava. Uma que eu carregaria para sempre.
As sombras no corredor estavam mais densas do que o normal, e os sussurros que vinham delas me deixavam inquieto. O ambiente aqui era sempre carregado, mas havia algo diferente naquela noite. Era como se a tensão pairasse no ar, uma brisa fria antes de uma tempestade.
Enquanto seguia pelo corredor, ouvi vozes. Baixas, no início, mas rapidamente ficando mais altas, carregadas de escárnio e provocação. Parei por um momento, me ajustando às sombras e observando. Foi então que vi .
Ela estava cercada por um grupo. Reconheci a garota no centro, a mesma que havia provocado no jantar na outra noite. Pelo jeito, ela não esqueceu, e agora tinha juntado reforços para acertar as contas.
, como sempre, mantinha a postura desafiadora. O que quer que eles dissessem, ela apenas respondia com aquele sorriso irritante que ela sempre usava quando queria provocar alguém. Mas eu podia ver no jeito que ela se posicionava, no modo como seus punhos estavam cerrados, que ela sabia o que viria.
Por mais que eu soubesse que era perfeitamente capaz de lidar com eles, isso era covardia. Um grupo contra uma só? Isso não era um combate; era um massacre esperando para acontecer.
Suspirei, passando a mão pelos cabelos enquanto avançava na direção deles.
— Vocês estão realmente precisando de tantos assim para lidar com uma só? — Minha voz cortou o ar, baixa, mas o suficiente para fazê-los virar na minha direção.
Os olhos de encontraram os meus, mas ela não disse nada. Talvez estivesse surpresa, talvez apenas irritada. Eu não me importei. Dei mais alguns passos até ficar ao lado dela, deixando que as sombras ao meu redor se agitassem levemente, como uma advertência.
— Sei que ela é insuportável — continuei, olhando diretamente para a garota que liderava o grupo —, mas vocês estão começando a parecer desesperados.
A tensão no ar era palpável. Alguns deles trocaram olhares, inseguros, mas a garota no centro estreitou os olhos para mim, claramente não gostando da minha interferência. continuava em silêncio, mas pelo canto do olho vi seu sorriso aumentar, aquele tipo de sorriso que dizia “você sabe que eu vou provocar depois.”
A garota deu um passo à frente, desafiando.
— E você vai fazer o quê?
Deixei que minhas asas se abrirem levemente, só o suficiente para que a sombra delas cobrisse o grupo.
— Vocês podem descobrir — falei, o tom baixo, mas carregado de ameaça.
Os murmúrios cessaram, e por um momento, o grupo pareceu reconsiderar suas opções. Então, um por um, começaram a recuar, até que a garota também desistiu, lançando um último olhar de desprezo antes de se virar e sumir no corredor com os outros.
riu com deboche e sustentou o olhar da morena, até ela sumir, mas quando se virou para mim, ela estava séria e seu olhar passou por todo meu corpo até que me encarasse com um mistura de irritação e escárnio.
— Eu já sabia que você era irritante, um chato, arrogante, metido que se acha um todo poderoso, — ela foi falando e erguendo seus dedos finos de unhas compridas, como se enumerasse qualidades minhas. Sua voz era baixa e com um falso tom de calmaria — e até aquelas pragas que ninguém consegue se livrar, mas estraga prazeres, ?! Nossa, fiquei decepcionada agora. — Bateu seus longos cílios para mim, com aquela carinha falsa de decepção.
Então sua postura mudou e ela deu um passo para trás, me encarando séria, como se buscasse algo em meus olhos.
— Quantas vezes vou ter que te falar que eu não preciso da sua ajuda para nada? Se eu me meti nisso é porque sei que consigo sair sozinha. — Seu tom era baixo e seus olhos refletiam suas palavras com clareza.
Ela falava e reafirmava sempre as mesmas palavras, mas agora tinha algo diferente brilhando no fundo dos seus olhos que antes não tinham.
— Você não pode chegar e fazer o que quer e deixar tudo uma bagunça — resmungou, irritada, se afastando, começando a andar.
Observei enquanto ela falava, seu tom carregado de provocação e aquela postura exagerada que ela adorava usar para me irritar. Cada palavra dela parecia calculada para testar minha paciência e eu senti o canto dos meus lábios ameaçar um sorriso enquanto ela enumerava “minhas qualidades”. Não dei a ela a satisfação de reagir.
Quando ela finalmente mudou de postura, se afastando, mais séria, e jogando suas palavras irritadas na minha direção, eu apenas a observei. sempre fazia isso: criava um espetáculo, jogava sua teimosia como uma arma, mas havia algo diferente dessa vez. Algo no olhar dela, naquela intensidade que ela tentava esconder atrás da irritação.
Deixei o silêncio pesar por um momento antes de falar, minha voz baixa, carregada de ironia.
— Não pedi permissão para nada, . E não vou.
Ela podia odiar minha interferência, mas, no fundo, eu sabia que ela não precisava gostar para saber que eu tinha razão.
Esperei até que ela estivesse a alguns passos de distância antes de responder, minha voz baixa e carregada de ironia.
— Bagunça? Achei que fosse especialista nisso, .
Ela parou de caminhar e se virou, voltando seus passos e parando na minha frente, empinando seu nariz fino e arrebitado e olhando para cima, encontrando meus olhos.
— Eu sei bem disso, você sempre se metendo onde não é chamado — falou, com seus tons claros presos nos meus escuros. — Sendo tão irritante. Não se cansa de ser assim?
Deu mais um passo, ficando mais perto ainda, deixando quase inexistente o espaço entre nós.
— Você chegando e se metendo, fez eu parecer fraca, , e eu não sou. — Seu tom estava firme e baixo. Seus lábios grossos, afastados, soltaram seu ar em um tipo de suspiro. — Agora vão achar que preciso de ajuda para resolver minhas coisas.
Fiquei onde estava, observando-a com aquele típico ar de desafio. Ela estava tão perto que eu podia sentir a tensão entre nós, mas não me movi. Mantive minha expressão firme, deixando que o peso do silêncio caísse por um momento antes de falar, minha voz baixa e cortante.
— Fraca? — perguntei, inclinando levemente a cabeça enquanto deixava um sorriso frio surgir. — Eu sei que você dava conta deles, . Isso não tem nada a ver com você.
Dei um passo para o lado, criando um pouco de espaço entre nós, mas sem desviar os olhos.
— Isso foi sobre eles. Um grupo inteiro contra uma só pessoa? Covardia. Só isso. Mas é claro que você transformou em algo sobre você, como sempre.
Deixei a provocação pairar por um instante antes de continuar, o tom ficando ainda mais direto.
— Sabe o que é realmente fraco? Isso. — Fiz um gesto vago com a mão. — Implicando com os outros, provocando, como se ainda fosse uma adolescente tentando chamar atenção. Você não percebe que está perdendo tempo?
Cruzei os braços, inclinando-me levemente para frente, deixando minhas palavras atingirem o ponto que eu sabia que ela não queria ouvir.
— Você não é mais uma garotinha, . Então para de agir como uma.
O silêncio nos cercou e vi seus olhos se suavizar enquanto ela parecia absorver minhas palavras. Ela negou com a cabeça, como se espantasse algum pensamento que não deveria ter surgido.
— Entendi… — Sua voz era baixa, e ela desviou seu olhar do meu. — Pode deixar, vou só ouvir a provocação dos outros, ver eles sendo uns babacas comigo e não vou devolver a provocação, porque os outros podem…
Ela se afastou mais, não ergueu seu olhar para me encarar e sabia que ela ainda estava pensando nas minhas palavras. Seu tom de voz também não alterou, não teve deboche, ironia, irritação, nada.
— Por que você sempre fala que quero chamar atenção para mim, ? — perguntou, voltando a me olhar.
Observei enquanto ela falava, a voz baixa, sem as usual provocações ou sarcasmo. Isso era raro. sem deboche era quase… desconfortável. Seu olhar encontrou o meu novamente, mas dessa vez havia algo diferente. Uma vulnerabilidade que eu nunca tinha visto antes e isso me incomodou mais do que eu gostaria de admitir.
Cruzei os braços, mantendo minha postura firme. Respirei fundo antes de responder, tentando escolher as palavras certas, mas meu tom saiu seco, como sempre.
— Porque é o que parece, . Sempre. — Olhei para ela, deixando meu olhar pesar sobre o dela. — Toda vez que você provoca alguém, toda vez que se mete em confusão, parece que está gritando: “Olhem para mim”.
Dei um passo para o lado, criando espaço entre nós, mas continuei.
— Talvez você não perceba, ou talvez não queira admitir, mas às vezes, parece que você precisa disso. Como se não conseguisse ficar em silêncio por tempo suficiente pra provar que é mais do que isso.
Fiquei em silêncio por um momento, observando sua reação. Ela parecia absorver minhas palavras de novo, mas havia algo nos olhos dela que eu não conseguia decifrar. Suspirei, passando a mão pelos cabelos e quebrando o contato visual.
— Mas, quer saber? Talvez eu esteja errado. Talvez você só goste do caos. Se for isso, pelo menos seja honesta consigo mesma.
Deixei o silêncio voltar, dando a ela tempo para processar, mas também para evitar que eu dissesse mais do que deveria. tinha esse jeito de me fazer falar coisas que eu nem sabia que estavam na minha cabeça e isso me irritava mais do que qualquer provocação dela.
— Não vou mudar o jeito como você e os outros me veem, e nem quero — falou, depois de um tempo, aquele mesmo tom, sem as provocações de sempre, e seu olhar era outro, como se essa fosse ela de verdade. — É melhor sempre acharem que quero atenção, que ajo como uma adolescente e adoro um caos. Mantém as coisas como devem ser, . — Meu nome soou como algo diferente entre suas palavras, mas vi diante dos meus olhos ela vestir aquele escudo e o olhar zombeteiro surgir em suas íris claras.
Ela chegou mais perto e sorriu de lado, daquele jeito provocativo, típico dela, e sussurrou com deboche.
— Você fica um gato quando fala essas coisas para mim, sabia? — Seus olhos passaram por todo meu rosto e seu sorriso aumentou. — Uma pena você ser tão irritante, .
Então se afastou e passou por mim, dando alguns passos para o lado contrário de que iria antes.
— É, e você é um encanto — falei, o sarcasmo pingando em cada palavra. — Pena que estraga tudo quando abre a boca.
Eu deveria deixar isso pra lá, deveria simplesmente ignorar. Mas, por algum motivo, era impossível. tinha essa habilidade irritante de ficar na minha cabeça e isso me incomodava mais do que qualquer coisa que ela pudesse dizer.
Depois que se afastou, deixei o corredor para trás e me dirigi para a área de treinos. O silêncio e as sombras que me cercavam ali eram mais bem-vindos do que a irritação que ela sempre conseguia despertar em mim. Ainda assim, as palavras dela ecoavam na minha mente, mais do que eu gostaria de admitir.
O espaço era amplo e vazio, com luzes fracas que não chegavam a iluminar por completo, deixando cantos imersos em trevas. Era perfeito. Fechei a porta atrás de mim e o som do clique ressoou no ambiente, cortando o silêncio por um breve instante. Respirei fundo, sentindo as sombras ao meu redor pulsarem, sempre presentes, sempre esperando.
— Vamos começar — murmurei para ninguém além de mim mesmo, mas as sombras pareceram responder, se movendo suavemente como fumaça viva.
Comecei pelo básico. As sombras eram uma extensão do meu corpo, mas não respondiam por conta própria. Eu precisava controlá-las, moldá-las. Estendi a mão e elas se concentraram ao redor de meus dedos, formando pequenas lâminas escuras que pairavam no ar. Com um movimento rápido, lancei-as contra alvos imaginários na parede, vendo as trevas se espalharem em impacto antes de se recolherem para mim.
— Mais rápido — ordenei, a voz firme. Repeti o movimento, desta vez ampliando o alcance das lâminas e testando minha precisão. Cada golpe precisava ser perfeito. Cada ataque, letal.
As sombras vibraram, como se testassem meus limites, desafiando-me. Isso sempre acontecia. Elas não eram apenas uma ferramenta; eram parte de mim, mas também uma força imprevisível, sempre testando quem estava no controle. Era um jogo constante, uma batalha silenciosa.
Depois de alguns minutos, mudei o foco. Minhas asas se abriram lentamente, preenchendo o espaço ao meu redor. O som do movimento delas cortava o ar e eu senti o peso familiar delas em minhas costas. Voo nunca foi só sobre força; era sobre agilidade, sobre equilíbrio. E eu precisava ser mais rápido.
Com um impulso, deixei o chão, as asas batendo com força enquanto me lançava no ar. O espaço limitado tornava o treino mais difícil, mas era exatamente isso que eu precisava. Me movi de um lado para o outro, girando no ar, desviando de obstáculos imaginários enquanto tentava aumentar minha velocidade. A cada batida, as sombras ao meu redor pareciam seguir meus movimentos, como um reflexo.
— Mais uma vez — sussurrei, o esforço começando a pesar em meus músculos. Subi até o teto, dobrando meu corpo em um mergulho rápido. As asas se fecharam parcialmente, aumentando minha velocidade enquanto o chão se aproximava. No último segundo, as abri novamente, girando e pousando suavemente.
O impacto do pouso ecoou no espaço vazio e minha respiração estava pesada. Mas não parei. As sombras ao meu redor se agitaram novamente, e desta vez, deixei que elas me envolvessem completamente, criando uma armadura de trevas que se moldava ao meu corpo. Era como vestir o próprio vazio, sentir o peso e a liberdade das sombras ao mesmo tempo.
Movi-me pelo espaço, alternando entre ataques com as lâminas sombrias e movimentos de voo curtos, testando a combinação entre velocidade e precisão. Cada golpe precisava ser perfeito, cada defesa impenetrável. Porque aqui, nesse lugar, qualquer erro custaria caro.
Depois de um tempo, parei, deixando as sombras recuarem lentamente para o chão, como fumaça dissolvendo-se no ar. Minha respiração estava pesada e o suor escorria pela minha testa. Olhei para minhas mãos, sentindo o leve tremor que vinha após o esforço.
— Ainda não é suficiente — murmurei, minha voz ecoando no silêncio.
Não importava o quanto eu treinasse, o quanto eu aprimorasse minhas habilidades, parecia que nunca seria o bastante. O que quer que estivesse lá fora, além dessas paredes, seria mais rápido, mais forte, mais mortal. E eu tinha que estar preparado. Porque se não estivesse… ninguém estaria.
Fechei os olhos por um momento, sentindo as sombras ainda pulsando ao meu redor, como se esperassem por mais. Mas por agora, bastava. Soltei um suspiro, recolhi minhas asas e me virei para sair, sentindo o peso do treino em cada passo.
As sombras me acompanhavam, como sempre, silenciosas, mas nunca ausentes. E por mais exaustivo que fosse, eu sabia que amanhã começaria tudo de novo. Porque, no final, era isso que eu tinha. As trevas. Sempre elas. E, de alguma forma, isso era o bastante.
Enquanto me virava para sair, o som de passos ecoou pela sala. Era lento, quase imperceptível, mas distinto o suficiente para me fazer parar. Não deveria haver mais ninguém aqui. As sombras ao meu redor se agitaram novamente, alertas, enquanto meu corpo inteiro se preparava para uma ameaça.
— Impressionante… — disse uma voz baixa, carregada de uma calma que parecia ameaçadora por si só.
Me virei lentamente e lá estava ele. Kaelen Umbros. Sempre envolto naquela aura de autoridade esmagadora, com os olhos prateados que pareciam atravessar qualquer fachada. Ele estava encostado em uma das paredes, como se estivesse ali o tempo todo, observando.
— Treinando tarde, ? — Sua voz era quase casual, mas havia algo nela que me mantinha alerta.
Mantive minha expressão firme, mas minha mente já trabalhava. Ele não estava aqui por acaso. Kaelen nunca fazia nada por acaso.
— Não há hora certa para estar preparado — respondi, a voz mais calma do que eu esperava.
Ele deu alguns passos em minha direção, o som de suas botas contra o chão reverberando pelo espaço vazio. As sombras ao redor pareciam responder a presença dele, como se o reconhecessem. Como se o obedecessem.
— Preparado para quê? — perguntou, inclinando levemente a cabeça. — Para lutar? Sobreviver? Ou para provar algo?
As palavras dele carregavam peso, cada uma atingindo como um golpe bem calculado. Mas eu não recuei.
— Para qualquer coisa — respondi, meu tom mais firme desta vez.
Kaelen parou a poucos passos de mim, seus olhos prateados avaliando cada detalhe, cada movimento. Ele ficou em silêncio por um momento e o espaço ao nosso redor pareceu ficar ainda mais denso.
— Suas sombras são fortes, , mas elas ainda não te obedecem completamente — ele disse, quase como se estivesse dando uma lição. — Elas te seguem, mas há hesitação. Como se elas sentissem que você ainda não está completamente… entregue a elas.
Minha mandíbula apertou levemente. Ele estava errado. Ou talvez estivesse certo, e isso me irritava mais do que qualquer provocação.
— Eu as controlo — retruquei.
Kaelen soltou um riso baixo, quase inaudível, mas que carregava algo desafiador.
— Controlar, sim. Mas dominar? Não. — Ele deu mais um passo à frente e sua presença parecia preencher o espaço entre nós. — Você acha que estar aqui, treinando sozinho, vai te preparar para o que está por vir? Acha que pode lutar contra o que se aproxima com metade de sua força?
Fiquei em silêncio, mas meus olhos nunca deixaram os dele.
— Este lugar… — ele continuou, gesticulando vagamente para as sombras ao redor. — Ele não é para sobreviventes. Ele é para os que se rendem, que aceitam o que são e vão além disso. E você, , está preso. Ainda se agarra a algo que não deveria mais existir.
Minha voz saiu baixa, mas carregada de firmeza.
— Não estou preso a nada.
Kaelen sorriu, mas não havia nada de caloroso naquele gesto.
— Não minta para mim. Você ainda olha para o passado como se ele tivesse algo a te oferecer. Família? Amigos? Propósito? — Ele inclinou a cabeça, os olhos prateados brilhando. — Nada disso importa mais. As sombras sabem disso. Por que você não?
Dei um passo à frente, reduzindo a distância entre nós.
— O que você quer, Umbros?
Ele permaneceu onde estava, inabalável.
— Eu quero ver o que você realmente é. — Sua voz era baixa, quase um sussurro. — Não o garoto que foi expulso, nem o jovem perdido. Quero ver o que as sombras vão fazer de você. Porque, , se você não se tornar algo maior, elas vão consumir você.
O silêncio voltou a nos cercar, pesado e impenetrável. Por um instante, parecia que as sombras ao redor pulsavam, respondendo a cada palavra dele. Eu não sabia o que dizer, mas, antes que pudesse responder, Kaelen deu meia-volta, caminhando lentamente para fora da sala.
— Continue treinando — disse, por cima do ombro, sem olhar para trás. — Vamos ver quanto tempo você aguenta antes que elas exijam tudo.
E então ele desapareceu nas sombras, deixando para trás apenas o eco de suas palavras e a sensação desconfortável de que, no fundo, ele estava certo.




Continua...


Nota da autora: Espero que vocês curtam tanto quanto amamos criar essa fic! Comentem, compartilhem e embarquem conosco nessa jornada. Bem-vindos ao mundo das sombras!
Com carinho,

Bruna & Sereia 💖

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