Codificada por: Cleópatra
Última Atualização: 12/03/2025É claro que se irritava com a amiga, mas acabou andando dois quilômetros só para chegar ao mercado principal, que já estava quase fechando. As velas e lampiões já se acendiam, enquanto os últimos vestígios da claridade se escondiam atrás da escuridão da noite e das largas copas das árvores.
Teve que implorar ao vendedor que desempacotasse duas cebolas que já estavam guardadas para que ela pudesse levar. Agradeceu imensamente e ofereceu duas moedas a mais que o suficiente, o que fez com que a irritação do homem sumisse e ela se tornasse a cliente mais querida do mundo.
Os corvos da floresta a acompanharam na volta, piando e indicando seu caminho. As pessoas geralmente não gostavam do pássaro, o associavam a coisas sombrias e assustadoras, como cemitérios. Mas nem ao mesmo pensava em cemitérios como sombrios e assustadores.
Retornou à pequena casa que dividia com a melhor amiga, o silêncio da noite a embalando. Estava tudo silencioso até demais, percebeu ao ver que até os corvos haviam parado de grasnar. Aquele silêncio a deixou incomodada, e mexeu na fita azul que usava ao redor do pescoço, como um tique nervoso, antes de abrir a porta.
E congelou no batente assim que o fez.
O homem mais lindo que já havia visto em toda a sua vida estava diante dela. A pele de oliva brilhante parecia tocada pelo sol, mesmo sendo noite, os cabelos ondulados escuros e macios, pareciam perfeitos ao toque, e todos os traços eram tão perfeitos que pareciam surreais.
Especialmente os olhos verde esmeralda dele. Quando olhou naqueles olhos, o mundo parou de girar.
Eles pareciam sugá-la, e ela parecia implorar que eles continuassem a olhando para sempre, que o homem tão lindo se aproximasse, a beijasse, a devorasse.
Ele era tão lindo com aquele maxilar marcado e lábios cheios, manchados de sangue.
Seu coração errou uma batida e, com muita dificuldade, ela conseguiu desviar o olhar do que parecia um encantamento. Por que o belo estranho estaria coberto de sangue?
Olhou para baixo e percebeu em seu colo a origem do fluido. A garganta aberta de Maryon já não transbordava, pois o homem havia sugado cada última gota de vida do corpo de sua melhor amiga. Seus cabelos platinados estavam manchados com gotas carmins que não combinavam em nada com os olhos castanhos sem vida da amiga e nem com a pele mais pálida que o normal.
deu um passo para trás, tropeçando no batente e caindo, assim como todo o seu mundo caía. Desabava sem parar. Maryon estava balançando a colher de pau ameaçadoramente há uma hora atrás. Tinham reclamado das contas naquela mesma manhã. O riso da amiga ainda ecoava em seu ouvido. Aquela cena só poderia ser um pesadelo.
Mas não era. O cheiro de sangue invadia suas narinas como se implorasse que ela não o ignorasse, que notasse como era real. Como se fosse possível fingir o contrário.
O olhar da garota continuou fixo na cena, a visão tingida pelo vermelho do sangue e da raiva que sentia. queria matar aquele homem. Queria chorar por Maryon. Queria trazê-la de volta à vida. E queria muito mesmo matá-lo.
Mas, no fim, tudo o que conseguiu fazer foi gritar.
Ela sempre adorou correr quando criança, mas geralmente porque depois a avó lhe dava um doce. Aquele não era o caso.
Adorava as faixas que amarrava em laço ao redor do pescoço, mas agora se sentia sufocada. A visão estava se apagando nas laterais, e o som dos corvos parecia algo distante, de outra vida, que seus ouvidos abafados não captavam bem.
Dizer que corria era muito otimismo. Quando avistou o cemitério, já estava se arrastando, a mão direita a impulsionando enquanto a esquerda apertava sua barriga e segurava a faca no lugar.
Chegou a conclusão que era melhor mantê-la ali do que retirá-la, por mais que doesse como se já estivesse nas chamas do inferno.
Lutava firmemente para manter os olhos abertos. Só mais um pouco…
Se já não estivesse chorando, teria começado no momento em que avistou a porta pesada de descrição inconfundível. Um suspiro sôfrego saiu de sua boca.
Não tinha forças para chamar ninguém, mas, por sorte (quem diria), estava cheirando como a melhor refeição sangrenta do mundo. O vampiro que abriu a porta a olhou com os olhos arregalados e as presas já crescendo na boca.
— Chame… Caos — ela disse, usando cada último respirar que tinha. — Aquele maldito… me deve.
E antes que pudesse xingar o homem de várias outras formas, ela não conseguiu mais lutar e sucumbiu para a escuridão.
Ela abriu os olhos e o mundo explodiu em cores. O quarto em que estava era do azul mais vivo que ela já havia visto, a cortina balançava suavemente e um cheiro delicioso vinha do corredor.
Sangue.
Os caninos cresceram apenas com o pensamento e marcaram o lábio inferior. Pelos Arcanos, como precisava de sangue.
Mas, apesar de estar em um quarto, não sentia a maciez de uma cama. Estava presa em uma jaula, suspensa acima do colchão.
Antes que pudesse pensar, suas mãos voaram para a grade e seguraram com tanta força que elas entortaram de leve.
— Eu não recomendaria isso.
Ela virou a cabeça velozmente em direção a voz masculina. Sua voz era tão bonita quanto seu rosto, assim como era igualmente perigosa.
Os caninos de se firmaram mais nos lábios e ela rosnou. Sua raiva parecia causar dor física.
— Caos.
O Senhor dos Vampiros se levantou da pequena poltrona azul clara em que estava. As memórias retornaram para ela, queimando sua mente como se a morte de Maryon houvesse acontecido há minutos, e não há um ano.
— Sinto que estou em desvantagem. Você sabe o meu nome, mas eu não sei o seu. — Ele virou a cabeça, a avaliando com uma postura nobre que quase a fez se esquecer que estava diante de um monstro. — E mesmo assim, você afirma que eu te devo algo.
Era claro que ele não se lembrava. Para ele, Maryon havia sido só um lanchinho, e , uma oportunidade desperdiçada. Para ela, porém, era toda a sua vida.
Ela continuou em silêncio, apertando as barras de metal com mais força. Elas entortaram um pouco mais. Tinha certeza que exibia os dentes como se estivesse prestes a dar o bote. precisava matá-lo, ele quem havia lhe tirado tudo.
— Você não parava de repetir um nome. — Ele ignorou a falta de resposta e continuou falando. Caos apoiou os cotovelos nas coxas e colocou a cabeça nas mãos, se inclinando para ela. — Quem é Maryon? A pessoa que te esfaqueou?
— Não — ela respondeu, ríspida, mas sua mente tomou outro rumo.
De fato, só procurara aquele lugar pelo desespero de estar morrendo. Todos no Magnífico Norte conheciam as lendas dos vampiros e seu veneno capaz de curar: desde que a vítima não se alimentasse até o amanhecer, tornando-se assim um vampiro definitivo.
E, de fato, sua ferida havia sumido. Até suas roupas: usava uma camisola um pouco transparente demais, ao invés do vestido manchado de sangue.
Lembrar do sangue em suas roupas fez mais um rugido escapar de sua boca.
— Por favor, me tire daqui — ela suplicou para o homem (se é que podia ser chamado assim) que jurou para sempre odiar. O desespero para consumir sangue nublava sua razão.
— Não. Se eu tirar, você vai se tornar uma vampira. E você não parece do tipo que quer isso.
— Você não sabe o que eu quero — ela praticamente rosnou. era a única que sabia o que queria: sangue fresco. O calor do seu corpo subia exponencialmente, clamando pelo líquido.
— Posso não te conhecer, mas vejo como você me olha. Não quer se tornar um monstro como eu.
A menção da palavra monstro pareceu despertá-la minimamente. Não, ela não podia se tornar como ele. Não podia matar pessoas que outras pessoas amavam.
O homem a olhou e seu olhar desceu para o pescoço, brilhando. Ela percebeu que ele olhava sua fita, agora em tom rosa bebê.
— Por que eu te devo alguma coisa? — ele voltou a questionar.
A raiva borbulhou dentro dela. Ele falava calmamente, com curiosidade sobre o pior dia da vida dela. Ela queria que ele sentisse algo.
— Porque você assassinou minha melhor amiga na minha frente. Maryon. — Ela cuspiu.
Caos arregalou os olhos e teve a decência de parecer constrangido enquanto coçava o queixo.
— Mesmo? Er… Sinto muito. — Ele desviou o olhar. — Pode não parecer verdade, mas eu não fico exatamente feliz por, você sabe, matar as pessoas.
— Bom pra você — ela disse, rosnando.
Ela queria muito morder alguma coisa. Na verdade, parecia muito interessante morder aquele vampiro. Mas sabia que sentiria a decepção de não haver nenhum sangue para absorver e nem possibilidade de matá-lo. Mas poderia fazê-lo sofrer.
— Não, não, você não vai morder ninguém — ele falou como se estivesse se dirigindo a uma criança. — É uma coisa muito ruim.
— Você é uma coisa muito ruim — ela devolveu, de forma infantil. Seu corpo fervia de raiva e de fome.
— Ah, obrigado. — Ele sorriu, mas o sorriso não chegou aos olhos.
Olhos estes que não estavam mais do tom de verde vibrante que ela se lembrava. Na verdade, estavam escuros, enevoados, como se estivesse olhando nos olhos da própria morte.
Sem mal pensar, havia lançado seu corpo para o fundo da jaula, fugindo dele. Soltou um gemido com o impacto, não estava acostumada com tanta força e velocidade.
— É difícil controlar todas as habilidades no início — ele explicou com tranquilidade.
Os olhos dele ainda estavam queimando por trás da retina dela, marcados para sempre na mente dela. Aqueles olhos pareciam reter cada alma que ele já tinha levado, compensando cada morte que ele causara. Aqueles sim eram os olhos de um monstro. retomou a coragem e se reaproximou dele.
— Você se lembra? Se lembra de quando matou Maryon?
Ela pensou ter visto o vampiro se encolher, mas, quando voltou a olhá-lo, ele estava normal. Ele então baixou os olhos para as mãos.
— Você… precisa ser mais específica.
O sangue de ferveu. Quantas mortes haviam acontecido naquele período de um ano?
— Uma menina loira de olhos castanhos, muito bonita. Alta, magra, com a risada mais doce do mundo, os olhos pidões e um sorriso zombeteiro. — perdeu o fôlego enquanto descrevia sua melhor amiga. — Foi há um ano. Morávamos no novo Arvoredo da Alegria.
A cara dele se torceu em uma careta.
— Ah. Essa Maryon.
Ela voou nas grades novamente, as presas à mostra para ele.
— Por que falou assim?! Por que você a odiava?!
— Não, não, você me entendeu mal. — Ele levantou as mãos em redenção. — Tenho certeza que Maryon era uma jovem adorável. Foi apenas… um período complicado da minha vida. Eu não estava dentro de meu controle.
Lembranças de notícias de assassinatos na mesma época em que Maryon havia morrido voltaram com força à cabeça de .
— Foi você quem matou todas aquelas pessoas, não foi? Você é um monstro!
— Eu sei que sim — ele respondeu simplesmente, como se estivesse respondendo que o céu era azul.
Ele não parecia contente por ser um monstro, na verdade, suas feições pareciam tomadas de arrependimento e dor, deixando-o não só lindo como desolado. quase sentiu pena dele. Quase. Mas sua mente a lembrou de quando ele matou Maryon e toda a raiva voltou. Todo o sangue de sua melhor amiga espalhado por seus cabelos e sua garganta…
Ao pensar em sangue novamente, quebrou as barras da jaula.
Caos olhou para ela, surpreso, e ela mesma ficaria surpresa com a própria força, se não tivesse um objetivo.
A porta.
Ela saiu correndo mais rápido do que jamais se movera na vida, mas mal chegou ao batente e teve o corpo atirado em cima da cama.
— Me deixe sair! — ela berrou.
— Me desculpe, é pelo seu bem — Caos respondeu, segurando as mãos dela com firmeza e usando as próprias pernas para segurar as dela.
O veneno de vampiro havia deixado a garota extremamente forte, mas não se comparava à força de Caos. Logo, ele já havia a algemado na cama.
Não que tenha durado muito. Ela destruiu as algemas depois de uma hora berrando e correu para a porta, sedenta.
Caos a atirou novamente na cama.
— Eu te odeio! Me deixe sair! Você matou Maryon!
Mas nada disso adiantou, ela continuou presa na cama pelo corpo quente dele.
E assim eles passaram a noite toda, com ela berrando, se debatendo, chorando, implorando, xingando-o. E ele ficou ali, recebendo todos os chutes e palavras ruins, segurando-a de forma firme até que o corpo dela amolecesse no mesmo instante que os primeiros raios de sol surgiram, em algum lugar bem mais acima da terra.
Sua força toda tinha ido embora, assim como sua sede de sangue. Seus caninos pareciam normais. O calor havia diminuído significantemente, mas ainda permanecia, embora pudesse ser pelo vampiro de pele quente que a prendia na cama, com apenas uma camisola fina que havia se embolado e subido de forma escandalosa.
As bochechas dela coraram com todas as percepções, mesmo um monstro parecia envergonhá-la.
— Não fique assim. Essas bochechas cheias de sangue me deixam louco — ele sussurrou.
Ela tentou em vão se debater, mas o corpo estava exausto. Muito mais do que depois de receber a facada.
— Me… Me solte… — ela pediu, sendo interrompida por um bocejo.
O sorriso dele foi a última coisa que viu antes de apagar. O que foi preocupante, porque ela tinha achado aquele sorriso extremamente bonito.
Caos entrou no quarto com naturalidade, como se fosse o dono do lugar. E era, ela se lembrou.
— Ouvi seu coração acelerar — ele disse simplesmente.
A visão de ficou nublada de raiva, mas seu pulso acelerou de medo. Queria matá-lo, mas ainda o temia. E, infelizmente, uma boa parte de si se sentia atraída para ele. Mas não se culpava, sabia que era parte da maldição do vampiro este se tornar mais bonito e interessante até os humanos se deixarem morder.
Ela não olhou nos olhos dele.
— Vá embora.
— Nem mesmo um "obrigada” por eu ter te ajudado? — Ele sacudiu a cabeça.
— Você já cumpriu o que devia, agora me deixe ir — ela reclamou e ele levantou as mãos, como que rendido. — E me devolva minhas roupas.
— Sinto dizer que seu vestido está destruído pelos rasgos da faca e as manchas do sangue.
— Então me dê novas roupas.
— Que exigente. — Caos estalou os dedos e um vampiro praticamente se materializou ao seu lado. — Traga novas roupas para a moça.
— Quero minhas antigas roupas também.
— Mas estão destruídas — ele repetiu, impaciente.
— Quero minhas antigas roupas — ela exigiu, nervosa.
— Ok, ok. Você ouviu, Adrian.
O vampiro desapareceu tão rápido quanto surgiu. Caos olhou para e ela se forçou ao máximo para não encará-lo.
— Você já pode ir — ela reclamou.
— É raro eu ser expulso da minha própria casa, sabia? Você é de fato uma jovem curiosa.
— Você entendeu — ela reclamou, fechando as mãos em punhos. — Obrigada por me ajudar, mas eu ainda te odeio. Então, é melhor que cada um siga seu caminho.
Ele ergueu os olhos, mas antes de replicar, Adrian retornou, com uma pilha de roupas na mão.
— Obrigado, Adrian — Caos agradeceu. — Vou deixar você se trocar — disse, se dirigindo à .
Os dois vampiros saíram, deixando sozinha. Ela correu para a porta e a trancou, sentindo sua respiração acelerar. Não se sentia segura naquele lugar, mas era conflitante. Caos a tratava como se fosse um cavalheiro, não o monstro que matou Maryon. Ele era uma caixinha de surpresas.
se aproximou da pilha de roupas e pegou o vestido azul novo que haviam trazido para ela. Era simples e um pouco curto, batendo no meio de suas canelas. Prendeu as fitas e tocou seu pescoço, percebendo que a fita rosa bebê ainda estava ali.
Teria preferido se olhar no espelho, para ter noção de como estava, mas não havia nenhum no recinto. E não sabia se realmente queria olhar seu rosto, que provavelmente deveria estar todo amassado pelo sono.
Agora, não se sentia mais tão vulnerável, com roupas que tinham verdadeira consistência, então correu para revirar os trapos ensanguentados que haviam sido antes um lindo vestido amarelo com flores rosas. Enfiou a mão no que ela achava ser os restos dos bolsos e soltou um suspiro aliviado enquanto removia o singelo pote de vidro de lá, junto com o pincel.
Ela os abraçou apertado perto do peito, então colocou-os no bolso do novo vestido. E foi o tempo exato para ouvir uma batida na porta.
Seu coração acelerou, entrando em alerta.
— Quem é?
— Sou eu. — A voz demonstrava diversão.
Ela queria fingir que não tinha o reconhecido, mas só ia perder tempo. Então alcançou também as últimas 3 moedas que tinha guardadas na roupa e jogou nos bolsos novos, antes de pigarrear.
— Pode entrar.
O vampiro abriu a porta e seus olhos desceram por todo o vestido, antes de subirem novamente e pararem no laço no pescoço. A sombra de um sorriso passou em seu rosto.
resistiu à tentação de olhar naqueles olhos verdes magnéticos. Não tinha a intenção de ser mordida de novo.
— Já estou pronta para ir — ela disse, antes que ele pudesse comentar qualquer coisa.
— Entendo. — Caos assentiu. — Antes de ir, no entanto, gostaria de falar com você, .
O corpo da garota congelou, então leve tremores passaram por ela. Aquela voz macia dizendo seu nome parecia o paraíso, mas ela se sentia atraída para uma armadilha no inferno.
— Como… como sabe meu nome?
— Mandei alguns de meus espiões trabalharem enquanto se recuperava da cura do veneno — ele respondeu, olhando para o quarto como se não fosse nada demais. — Você deixou rastros impossíveis de serem ignorados por um vampiro.
Ela se sentiu tonta só de imaginar a trilha sangrenta que havia deixado pela floresta.
— Certo. Você sabe meu nome agora. Então já posso me retirar.
deu um passo na direção da porta, mas Caos se colocou na frente dela, bloqueando sua passagem.
— Me deixe ir! — ela gritou, sentindo o pânico tomá-la. Se ele a estava prendendo, significava que nunca mais sairia dali. E só havia um destino quando se tratava de vampiros e presas.
— Espere. Gostaria de conversar com você antes — ele respondeu com tranquilidade. — Por que seu irmão te esfaqueou?
Ela arregalou os olhos, surpresa.
— Meio irmão — ela corrigiu, sem pensar, por forças do hábito. Então, refletiu sobre o que o vampiro disse. — E… Ele não… Ele não queria…
— Te esfaquear? Difícil fazer isso por acidente. Mas não se preocupe, meus espiões irão atacá-lo ao anoitecer.
— Não! — ela gritou. — Você não pode matar Jeremy!
Ele suspirou, passando a mão na testa como se estivesse cansado.
— Ele te esfaqueou e você ainda quer poupá-lo?
— Ainda preciso dele para viver.
— Acho que é mais o contrário — ele pontuou. — Precisa dele para morrer.
— Por que está se metendo na minha vida?
— Só quero lhe fazer um favor, é tão difícil aceitar? — ele disse, começando a parecer mais irritado.
— Eu não tenho casa — ela deixou escapar. — Meus pais se foram e Maryon também! Por sua culpa, eu preciso viver com ele, então não mate a última pessoa que eu tenho em minha vida!
O vampiro a encarou, mas ela desviou os olhos, não só por medo da maldição, mas também porque não queria que ele visse suas lágrimas. Odiava morar com Jeremy, mas havia odiado muito mais implorar estadia em hospedarias de beira de estrada.
Na verdade, não havia pensado muito no que fazer depois de se recuperar da facada. Estava mais focada em não sangrar até a morte.
— Srta. , pense. Se seu meio irmão tentou te matar uma vez, o que o impede de tentar de novo?
Ela não tinha resposta para aquilo. Mas ainda sabia estar certa.
— E o que você quer que eu faça então? Durma nas ruas? — ela disse, irônica.
— Você pode ficar aqui.
Ela quase encarou o vampiro com o susto que levou com aquelas palavras. Então, começou a rir. Quem diria que ela, , estaria rindo do assassino de sua Maryon.
— Você não pode estar falando sério!
— Mas eu estou.
— Você matou minha melhor amiga e agora quer que eu more aqui? Pra quê? Finalizar o serviço?
Ele revirou os olhos.
— Eu poderia ter te matado antes, sabe? E eu já disse que sinto muito sobre Maryon.
— Sentir muito não vai trazê-la de volta! — ela berrou, e não deixou de esconder as lágrimas dessa vez.
Um silêncio incômodo se formou no quarto. precisava fugir dali e nunca mais ver aquele homem que tanto a confundia.
— Por favor, me deixe ir.
Dessa vez, ele deixou-a passar. Ela suspirou, trêmula e aliviada, ao dar as costas para ele. Mas travou seus passos quando escutou a voz grossa e estranhamente gentil dele.
— Se mudar de ideia, minha proposta continua de pé. Eu posso prometer que, enquanto estiver aqui, nenhum vampiro te atacaria. Todos estão sob minhas ordens e meu controle. E você teria toda a liberdade de ir e vir o quanto precisasse.
Ela respirou fundo. Por que estava sequer o escutando?
— E o que você ganharia com isso? — ela questionou, ainda de costas.
Mesmo sem vê-lo, ela conseguiu ouvir sua risada baixa.
— É tão difícil te fazer acreditar que estou querendo ser gentil do fundo do meu coração?
— Monstros não têm coração — ela respondeu.
De fato, Caos a havia ajudado ao lhe dar o veneno de vampiro, salvar sua vida e não permitir que ela se transformasse, mas era algo que ele fazia apenas por fazer com qualquer um. Não por bondade, com certeza, e sim pelo alimento gratuito.
sabia que nunca mais pisaria ali
— Diga para Caos que está aqui. — Foi tudo o que ela disse, mexendo na fita rosa bebê em volta do pescoço, que agora estava mais para um marrom claro.
O vampiro deu uma última olhada especial para o pescoço dela antes de se retirar. A lua cheia iluminava os túmulos desgastados e tomados pelo tempo. Achava curioso os vampiros imortais morarem justamente no lugar que representava o fim natural de tudo.
— Olá, senhorita .
Ela se assustou com a súbita aparição dele, mas então respirou fundo antes de se virar. Não olhe nos olhos dele, pensou.
E, ao vê-lo na luz do luar, foi ainda mais difícil de resistir.
— Você me disse que eu poderia ficar aqui. Que estaria segura e teria total liberdade para ir e vir.
— É verdade.
— E eu não te pagaria nada?
— Nada.
— E não te deveria nada? — ela confirmou, ainda sem entender aquela proposta que parecia boa demais para não ser uma armadilha.
— Nada além de uma boa conversa de vez em quando — ele falou, sorrindo de lado. Ela não conseguiu deixar de observar que as presas dele estavam contraídas, quase parecendo normais.
— Até quando esse acordo seria válido? — ela perguntou, investigando cada brecha.
— Até quando você quisesse.
Ela baixou os olhos para as mãos dele, o corpo cansado e o estômago roncando tornando aquilo tudo muito atraente.
— Você tem que entender que isso é tudo muito estranho — ela pontuou. — Você tem que me prometer que ninguém vai tentar me morder.
— O que posso te garantir é que ninguém vai conseguir te morder.
A escolha de palavras fez engolir em seco, mas ela não tinha muitas opções.
— Vocês teriam comida? — O sorriso dele aumentou. — E por favor, sem ser sangue.
— Levarei uma sopa quente para você. Mas talvez seja melhor você tomar um banho primeiro. Não preciso ter um olfato apurado para entender que você não vê uma banheira há dias.
O rosto de ficou vermelho de raiva e vergonha, mas sabia que não podia reclamar, afinal, estaria recebendo abrigo e comida de graça. Por isso, seguiu Caos para dentro daquele local sem janelas e nem saídas, mesmo sabendo que poderia estar caminhando para uma verdadeira armadilha.
Reconheceu a porta do quarto de paredes azuis e percebeu que estava de volta ao mesmo local, que agora constava com uma banheira e uma pilha de vestidos novos. Ela se sentiu fraca por perceber que ele já esperava que ela voltasse.
— A banheira está com água morna e a chave está na porta. Encarregarei Delilah de vigiar sua porta e não permitir a entrada de ninguém. — Caos indicou uma mulher de cabelos vermelhos com a cabeça, e esta assentiu de forma séria. — Quando terminar, pedirei que sirvam a sopa.
Ele saiu andando, sem esperar nenhuma palavra dela. Mesmo assim, ela sussurrou:
— Obrigada.
Ela achou que ele não teria escutado, mas então percebeu que ele a olhou por cima do ombro rapidamente, oferecendo um sorriso breve. se trancou no quarto quase que imediatamente.
O alívio de retirar suas roupas e entrar na banheira foi instantâneo. A água morna abraçava seus músculos doloridos de dormir no alto das árvores e tirava a lama de seus dedos.
Ela havia voltado para casa, de verdade. Mas quando chegou, pela janela, conseguiu distinguir a imagem de Jeremy segurando uma faca, que ele usava para cortar alguns legumes. Imediatamente, seu corpo gelou e, quando percebeu, tinha corrido para dentro da floresta.
escondeu o rosto nos joelhos molhados. Ela era uma covarde. Não havia conseguido pensar em nenhuma solução além de retornar para o assassino de sua melhor amiga. A culpa a corroía por dentro. O que Maryon pensaria de tudo aquilo?
“O que é isso? Um novo livro de algum conto distorcido do Norte?”, ela quase podia ouvir a amiga falar, de forma debochada. “Na pior das hipóteses, nós viveremos um cliché e seremos lanchinhos de vampiros juntas.”
soltou uma risada dolorida. Sentia tanta saudade do senso de humor de Maryon e a forma que ela sempre conseguia transformar tudo em uma piada de mau gosto.
— Me perdoa, me perdoa, me perdoa… — murmurava, quase que em um mantra.
Depois de um bom tempo dentro da banheira, o estômago roncando a despertou. Ela saiu e se secou, colocando uma camisola não tão mais substanciosa que a que fora colocada em seu corpo quando recebeu o veneno do vampiro. Por algum motivo, as roupas de dormir tinham tecido de menos por ali.
Sua fita marrom ganhou um pouco de salvação quando esfregada na água já não tão limpa da banheira, voltando a ser um pouco mais rosada. amarrou novamente a fita em seu pescoço, e foi o tempo de ouvir uma batida.
Destrancou a porta com os dedos não muito firmes e foi recebida com a imagem de Delilah com um prato de sopa fumegante. Tinha quase certeza que estava babando.
— Obrigada — agradeceu, sem muita resposta, mas não importava. A única coisa que precisava era daquele caldo mágico.
Poderia ser veneno, era verdade, mas acreditava que os vampiros teriam maneiras muito mais interessantes de matá-la, então não se importou muito. E, se fosse de fato venenoso, pelo menos estava delicioso.
Com a barriga cheia, ela se deitou na cama. A jaula pendurada no teto, acima do móvel, deveria ser um sinal muito negativo, um indicativo de que ela não deveria dormir e sim manter os olhos abertos.
Mas, vergonhosamente, cinco minutos depois, já babava no travesseiro
Hora de testar sua liberdade.
Vestiu um vestido verde, do mesmo comprimento do azul anterior, ajeitou o laço da fita em seu pescoço e passou seu pincel e o pote de vidro para seus novos bolsos. Infelizmente, não havia sobrado uma única moeda para contar a história.
respirou fundo antes de destrancar a porta. Como prometido, Delilah estava ali, vigiando. sentiu um leve tremor passar por seu corpo.
— Bom dia, Delilah.
Não houve resposta. Então, caminhou (com os passos levemente apressados) até a porta por onde havia entrado no dia anterior. Quando a empurrou, no entanto, esta não abriu.
— Está trancada.
— É claro, é dia — Delilah respondeu e se sobressaltou. Nem percebeu que a vampira a seguia.
— Mas Caos me prometeu total liberdade de ir e vir.
— As portas ficam trancadas, são as ordens.
— Ele me prometeu — insistiu, talvez testando sua segurança e seus limites.
Delilah, no entanto, ao invés de se irritar e avançar no pescoço de (uma possibilidade que passou pela cabeça da humana depois, arrependida), apenas soltou um suspiro impaciente, fechou os olhos e esfregou o indicador na testa, como se desfizesse linhas de expressão inexistentes.
— Não vou lidar com isso. Você que se decida com o nosso senhor.
não esperava começar sua manhã com Delilah batendo na porta do escritório de Caos.
— O que é? — A voz dele soava raivosa, e ela se encolheu de leve.
— A senhorita quer debater um assunto com você.
Silêncio. Segundos depois, a porta foi destrancada e Caos abriu a porta.
O cabelo dele estava levemente bagunçado, como se estivesse levantando agora.
— O que foi, senhorita ?
Ela teve a decência de se sentir constrangida.
— Ah… o senhor me disse que eu teria total liberdade de ir e vir.
— Sim. — Ele a encarou, esperando mais.
— Mas… o portão está trancado.
— É dia — ele disse, simplesmente, como se explicasse tudo.
— Sim, sim. Mas entende… eu não consigo ir e vir se o portão estiver trancado. — Ela mexeu na fita em seu pescoço, nervosa. — E você me garantiu que eu poderia ir e vir.
O olhar dele desceu para o pescoço dela e ali ficou por um tempo. Ela engoliu em seco. Era isso. Era tudo mentira e ela ia morrer ali mesmo. E a culpa era inteira dela por confiar em um vampiro assassino e lhe exigir novas chaves. Maryon com certeza falaria algo como “sério, ? Cobrar promessas de um assassino?”.
No entanto, ele apenas soltou um longo suspiro.
— Delilah, dê à senhorita uma cópia da chave do portão.
Tanto quanto Delilah se assustaram com o que ele disse. A vampira fechou as mãos com força.
— Mas senhor…!
— Delilah — ele falou, e sentiu um arrepio subir por seu corpo. O ambiente ficou mais denso e a voz dele parecia irradiar de todos os lados. — A chave.
A vampira se encolheu e, pouco depois, já estava com a chave encaixada na fechadura. Quando sentiu o ar fresco do cemitério, o silêncio quebrado apenas pelo grasnar dos corvos, praticamente saiu correndo.
Não demorou para que alcançasse a cidade e avançasse para o mercado. Naquele dia, as crianças acompanhavam seus pais e o local estava lotado de doces tostados por dragões, balões no formato de flores e balanços que alcançavam giros completos. Era um bom sinal, poderia conseguir novos clientes.
Encontrou uma placa de madeira vazia jogada em um canto e sorriu. Perfeitamente o que precisava.
Tirou dos bolsos o pincel e o pote de vidro. Longe da multidão, e com muito cuidado, ela tirou a tampa do recipiente, mergulhando o pincel no líquido transparente. Em seguida, pintou uma placa com lindas letras douradas.
Antes que pudesse evitar, fez alguns traços de um pássaro na borda. Maryon sempre adorava quando ela pintava pássaros.
então colheu algumas folhas de árvores invernais, que eram maiores que a palma de sua mão e tão pálidas quanto a neve, sendo o perfeito material a ser pintado.
Antes do sol do meio dia, havia conseguido chamar a atenção de três crianças e uma esposa recém casada. Todos saíam surpresos com o resultado obtido, e suspirava aliviada por seu pai ter mantido as aulas de desenho que a mãe sempre quis que ela fizesse.
Fez uma pausa e comprou um pão de maçã quentinho no mercado, a melhor comida que tinha em semanas. Custara 3 de suas moedas, era fato, mas ela precisava se sentir um pouco menos pior depois de quase ser assassinada, quase virar uma vampira, dormir na floresta e receber abrigo do assassino de Maryon. É, ela merecia um doce.
Até o anoitecer, havia conseguido doze moedas douradas, uma nova fita roxa para seu pescoço e uma pilha de folhas de árvores invernais. Sabia que precisava guardar aquelas moedas com preciosidade, pois o mercado não estaria movimentado assim sempre. Na verdade, o que realmente precisava era um emprego fixo. E sair daquele covil.
Mesmo assim, ela se viu andando pelo cemitério enquanto a lua brilhava no alto, rumando até a porta que agora tinha a chave.
Mal entrou pelo portão pesado e Delilah já apareceu do seu lado, silenciosa como sempre.
Até que não sentia tanto medo de Delilah, ou ao menos o mínimo de medo possível que um humano poderia sentir por um vampiro, por isso se viu perguntando:
— Sabe onde posso encontrar a cozinha?
— Não temos cozinha — a vampira de cabelos flamejantes respondeu.
— Mas… ontem, Caos…
— Comprou sopa de uma estalagem aqui perto.
— Mas estava quente! — exclamou, sem conseguir acreditar. Sabia que vampiros não se alimentavam, mas achou que a sopa era uma comida geral para todos os humanos presentes (havia outros, ela sabia, só que esses estavam em situações… mais complicadas).
— Se quiser comida, é só esperar no quarto. Tenho certeza que nosso senhor conseguirá algo.
se calou, constrangida, se sentindo como uma criança que não entendia as dinâmicas do mundo. Tomou seu banho ainda em silêncio e já estava vestindo sua camisola com a nova fita roxa no pescoço quando ouviu batidas.
Ela foi até a porta, esperando novamente encontrar Delilah, e seu coração saltou no peito com a imagem de Caos segurando um prato com frango e batatas. Ela tentou esconder parte de seu corpo atrás da porta, mas, ao olhar a comida, sua boca salivou.
— Ah… obrigada.
— Não há de quê — ele respondeu, com um sorriso sem dentes.
O olhar de Caos então desceu para o pescoço de e se fixou ali. Com cuidado, ele se aproximou e tocou a fita roxa, os dedos roçando o pescoço de , fazendo-a se arrepiar. Seu olhar escureceu.
— Você não deveria usar isso por aqui.
— Por que não? — ela perguntou, e sentiu vergonha ao perceber que sua voz estava levemente falha.
— Porque não deveria.
— Isso não é resposta — ela replicou, e viu um brilho divertido passar pelos olhos dele. Quase os encarou. Ela pegou o prato de comida, um pouco desnorteada ainda. — Você pegou isso numa estalagem?
— Sim — ele respondeu simplesmente. Ela engoliu em seco, olhando o dourado das batatas. Ainda soltavam fumaça.
— Só para mim?
— Sinto te informar que não somos exatamente os maiores fãs de comida — ele disse, sorrindo, e ela estremeceu de leve.
Depois de um segundo, ela pigarreou.
— Não precisava.
— Quando te ofereci abrigo, disse que você teria tudo, e isso inclui comida — ele respondeu, dando de ombros.
— Por quê? — ela questionou. — Por que fazer tudo isso?
Caos abriu um sorriso misterioso e deu as costas. Logo, Delilah estava de volta ao seu posto.
— Boa noite, .
Oras, se soubesse maldições, não precisaria estar vendendo desenhos, certo? Poderia estar vendendo finais felizes ou vinganças em uma barraca mais arrumada. Certamente, não estaria vivendo com vampiros.
Nem mesmo esperou escurecer para ir embora daquela vez. Quando retornou ao cemitério, o céu ainda estava alaranjado, com nuvens rosadas e traços dourados e lilases. Aquelas cores formavam um contraste interessante com o cinza das estátuas de anjos tristes e o preto dos corvos parados nas lápides antes pálidas e agora escurecidas pelo tempo.
Não resistiu ao tirar uma folha de invernal do bolso junto com o frasco de vidro e o pincel. Mergulhou-o no líquido transparente e começou a traçar os contornos delicados e alaranjados das nuvens.
Aquele frasco era seu presente mais precioso, e também a última coisa que recebera de seu pai antes deste falecer. No seu aniversário de dezenove anos, há cinco anos atrás, ele o escondeu no quintal, no mesmo local onde sempre escondia todos os presentes, e ela logo o encontrou, vendo Jeremy revirar os olhos com a risada de felicidade que escapou dos lábios da garota.
— Ela é uma adulta, por que você incentiva isso? — o meio irmão reclamou.
— Porque as brincadeiras e a felicidade não devem ser exclusivas das crianças — o pai respondeu, sorrindo.
E de fato ficou feliz, porque aquele frasco era melhor do que qualquer sonho seu. Ao invés de gastar pilhas de moedas com paletas e mais paletas de cores, ela apenas precisava pensar na cor que desejava e o líquido transparente se transformava no papel, acompanhando o formato de seus traços. Ela sorriu e chorou naquele dia, emocionada com o presente. Brigou com o pai, dizendo que ele não deveria gastar dinheiro com ela.
— Mas eu não gastei nada. Uma bruxa me devia um favor.
Ela tinha quase certeza de que era mentira, mas deu risada mesmo assim, contente. Ele sempre a fazia rir.
adicionou o lilás e o rosado no canto esquerdo do desenho, esperando um pouco a tinta secar para começar a traçar o cemitério. O desenho sempre a mantinha perto dos pais, e ela sentia saudades deles diariamente. Por algum motivo, os arcanos sempre se esforçavam para tirar de sua vida as pessoas que tanto amava.
O cemitério já estava completamente escuro quando a tinta secou e finalmente pôde avaliar a pintura. Sentia algo vibrar dentro de si toda vez que conseguia fazer uma arte exatamente como tinha imaginado, ou até melhor.
Entrou pelo portão e o local já estava mais movimentado do que gostaria de ver: humanos infectados pelo veneno se contorciam em gaiolas quando a farejavam passando, outros estavam hipnotizados esperando para serem a próxima refeição de um vampiro. Cada cômodo era mais assustador que o outro, e se sentiu estranhamente reconfortada pela presença de Delilah, que surgiu do seu lado no segundo em que cruzou o portal de entrada.
se virou para a garota de cabelos cor de fogo, pensativa.
— Você não preferia estar junto com os outros? Deve ser cansativo ter que ser minha babá.
Delilah abriu um sorriso enviesado, mas continuou olhando para a frente.
— Foi o pedido do meu senhor.
— Mas não seria melhor revezar com alguém? Ter algumas noites livres para, não sei… isso?
— Eu fui a primeira vampira transformada por ele, e os séculos de vida me trouxeram experiência e controle. Não verá nenhum outro vampiro tão controlado perto de sangue fresco — ela disse, sem expressão, e se encolheu um pouco, por mais fascinada que estivesse com a resposta. Quantos anos Delilah tinha? Quantos anos Caos tinha?
se distraiu olhando a vampira e não percebeu um par de algemas jogado pelo caminho, fazendo-a tropeçar e deixar o chão de madeira coberto das folhas alvas das árvores invernais.
— Ah, idiota… — sussurrou para si mesma, e se abaixou para juntar os desenhos, sentindo as bochechas corarem de vergonha quando viu Delilah se abaixar ao seu lado, ajudando-a a coletar as folhas. — Não precisa, Delilah, não precisa mesmo, a culpa foi minha, eu me distraí com… er… algumas coisas. — A garota começou a vomitar frases. — Meu pai sempre dizia que você só aproveita a vista do alto depois de um tropeço, mas acho que ele não quis dizer tropeço literal, e nem derrubar as coisas no caminho…
— O que é isso? — Delilah perguntou, e o tom um pouco mais agudo e caloroso que o normal fez com que a olhasse.
A vampira segurava em suas mãos a pintura do cemitério que ela havia feito mais cedo. Pronto, estava quase considerando bater no escritório de Caos e pedir que ele acabasse com sua vergonha.
— Bom, é… é o cemitério. Achei que o dia hoje estava bonito, então eu quis pintar…
Mas Delilah não parecia escutar muita coisa. Seus olhos estavam fixos na folha invernal pintada, e seu dedo indicador acompanhava os traços da luz dourada da pintura.
— Eu não vejo um pôr do sol há séculos…
Ela não parecia um ser sobrenatural naquele momento. Na verdade, pela primeira vez, enxergava os traços de humanidade na vampira, não mais carregada por sua fala mecânica. Ali, ela não parecia um monstro, só parecia… uma pessoa.
terminou de se levantar com sua pilha de folhas, mas Delilah nem ao menos percebeu.
— Pode ficar com ele, sabe. O desenho.
Aquilo pareceu despertar a vampira. Ela se levantou rapidamente e tentou disfarçar as emoções no seu rosto.
— Isso não é necessário.
— Não mesmo — concordou. — Mas eu gostaria de te dar esse desenho, ainda mais por você precisar ficar me seguindo para todo lado.
Delilah abriu um sorriso que pegou de surpresa, então desviou o olhar. A garota demorou para entender que a vampira parecia envergonhada.
— … eu… posso te pedir um favor?
— Ahn… acho que sim.
Os olhos de Delilah brilharam e teve que se esforçar bravamente para não os encarar.
— Você poderia… me pintar?
quase deixou os papéis caírem novamente de tanta surpresa. Então pensou na ausência de espelhos no seu quarto e em toda a casa.
Se Delilah sentia falta do sol, devia sentir mais falta ainda de seu próprio rosto.
sentiu suas batidas se acalmarem e seu rosto relaxar.
— Claro. Será uma honra.
Então, depois de tomar seu banho e comer seu pato assado (servido por Adrian dessa vez), abriu a porta do próprio quarto.
— Pronta? — perguntou para a garota de cabelo de fogos, que assentiu com um sorriso de leve.
A vampira se sentou na cama e começou a trabalhar. Apesar de estar claramente intrigada com a tinta mágica, Delilah olhava para a folha de invernal com muita intensidade, esperando a qualquer segundo para ver o que apareceria ali. se sentia levemente pressionada, mas também empolgada para acertar cada traço. Talvez fosse a obra de maior importância que pintaria.
Captou os cabelos vermelhos com contrastes acobreados e laranja, os olhos azuis tão intensos quanto um céu de verão sem nuvens, o nariz fino e as sardas marrom claras que enfeitavam o rosto bonito. Talvez, se fosse outro vampiro, ela já estivesse morta. Quando dava atenção aos traços, sentia seu corpo inteiro clamar para olhar para a mulher, para se entregar. Mas Delilah continuava sentada tranquilamente, o foco inteiro no papel.
Quando terminou o arco do cupido dos lábios da vampira, a artista suspirou. Gostava de usar traços mais livres para paisagens, mas sabia o quanto as pessoas gostavam de retratos fiéis. Naquele momento, ficou contente por ter treinado tanto o realismo, pois Delilah precisava de um reflexo, e ela lhe proporcionaria aquilo.
Com receio, estendeu a folha para Delilah.
— Cuidado, ajnda está secando — disse.
A vampira se aproximou com mãos trêmulas para buscar a folha, então virou a imagem na própria direção e virou.
Delilah prendeu a respiração. Então soltou, acompanhada de um gemido choroso.
— Sou eu. — Ela sorriu, e uma única lágrima escorreu de seu rosto. — Eu quase tinha me esquecido de como eu sou.
O coração de se partiu um pouco com aquilo, mas ela foi surpreendida com um abraço. Seu primeiro instinto foi se afastar, mas conseguiu controlar o impulso e, depois do choque, passar um braço pelo ombro de Delilah.
— Se continuar agindo assim, vou começar a achar que você é minha amiga — zombou, uma forma de disfarçar sua própria emoção.
— Pois eu não ficaria tão irritada com isso — Delilah replicou, se afastando com um sorriso.
O coração de pesou com culpa. Sua última amiga tinha sido morta por um ser como Delilah, mas como poderia chamá-la de monstro? Sabia que a própria Maryon teria gostado de Delilah e teria insistido que ela experimentasse batons vermelhos da tonalidade de seus cabelos. E Delilah provavelmente não conseguiria se manter séria diante de todas as piadas que Maryon faria sobre sugadores de sangue, porque tinha certeza que ela faria.
Ter Delilah sendo simpática a fazia se sentir melhor naquele ambiente, a fazia se sentir mais em casa. Porém, isso também despertava uma culpa em . Ela merecia se sentir em casa sob o mesmo teto do vampiro que matou Maryon?