Revisada por: Júpiter
Última Atualização: 31/10/2024O eco de batidas ritmadas soava como o tique-taque de um relógio com defeito, já que os segundos pareciam se passar rápidos demais. Era, de certa forma, perturbador, e seu volume alto demais para os ouvidos sensíveis.
— Acorde, !
De repente, uma voz se fez ouvir em meio ao barulho, e este passou a se intensificar, fazendo com que a testa se franzisse, incômoda, bem como os músculos que começavam a se agitar, numa preparação para trabalhar em uma fuga do que tanto incomodava.
— Abra seus olhos, ! Por favor, minha menina! Não temos tempo a perder!
O timbre aos poucos foi se tornando familiar e possibilitou que sua dona pudesse, enfim, ser identificada.
Um suspiro foi interrompido.
Então, abriu os olhos bruscamente e se sentiu frustrada porque a escuridão ainda estava ali, ao mesmo tempo em que todo o fôlego voltou a tomar seus pulmões de uma vez só, o que a fez se questionar em que momento havia prendido sua respiração. Seus batimentos estavam absurdamente acelerados e, por milésimos de segundos, a garota percebeu que o barulho que antes lhe incomodava era o som das batidas de seu próprio coração. No entanto, não teve mais tanto tempo para refletir sobre aquilo.
Assim que sua consciência foi retomada, imediatamente, seu organismo iniciou uma busca desesperada por oxigênio. Era como se a garota tivesse permanecido por vários minutos submersa em água e apenas naquele momento retornasse à superfície, mas não era exatamente o que havia acontecido.
Seu corpo havia despencado por longos minutos, o vazio havia a engolfado e a sensação de sufocamento apertou sua garganta até o fatídico momento em que seu corpo finalmente bateu com violência contra o chão gelado e ela sentiu cada centímetro de seu corpo protestar contra aquilo, num latejar incômodo. Aquele tipo de aterrissagem lhe deu o sinal de que aquilo talvez não fosse um pesadelo e a menina precisava ficar alerta.
Uma dor lancinante irradiou de seu cotovelo direito. Sentiu algo escorrer por sua pele e tocou o local de leve, mesmo que não pudesse vê-lo. Um gritinho ecoou de seus lábios quando sentiu a região latejar, a sensação um tanto pegajosa do líquido trouxe uma suspeita de que se tratava de sangue, então as coisas se anuviavam ao seu redor, seu estômago se revirou e as pálpebras pesaram, tentando puxar sua consciência para, quem sabe, um sono profundo e indolor.
Porém não podia desfalecer, não naquele momento. A voz que a despertou havia sido clara e tinha razão. A garota não podia perder tempo sucumbindo às sensações humanas, por mais que ela não fosse nada além daquilo. não caiu por tanto tempo despropositadamente, precisava resgatar sua irmã mais velha.
E quem era a irmã de ?
Ninguém menos do que a dona da voz que a despertou em meio à queda.
Alice. Aquela Alice.
A jovem destemida que havia descoberto um novo mundo cheio de coisas incríveis que faziam saltitar de empolgação e desejar um dia compartilhar de todas aquelas experiências que a mais velha havia contado em suas histórias.
Mas alcançar aquele sonhos dependia inteiramente da mais nova.
Alice corria perigo, era o que a mensagem dizia, e precisava mergulhar no chamado País das Maravilhas para trazer a garota de volta.
Em um primeiro instante, poderia se pensar que tudo não bastava de uma grande loucura, porém sabia que não era. Não depois de aceitar todas as histórias da irmã como verdadeiras e tomar a iniciativa de comprovar a verdade com seus próprios olhos.
Foi por isso que a garota não hesitou em se lançar naquele buraco, que, à primeira vista, mais parecia uma toca de coelho, porém ela sabia que era muito mais do que isto.
Então ali estava , aterrissando no País das Maravilhas de forma nada encantadora, mesmo que isso realmente não importasse. E ela só sairia daquele lugar na companhia de Alice.
Decidida, levantou seu tronco para que pudesse se sentar e olhar em volta, a fim de identificar em que lugar do reino exatamente estava, mesmo já tendo uma ideia de onde se tratava, mas sentiu o alto de sua cabeça se chocar contra algo duro e tão gelado quanto o chão.
Praguejou baixinho, massageou seu cocuruto, o esfregando rapidamente, e mordeu os lábios em seguida para conter um gemido choroso.
Como conseguia ser tão desastrada?
Foi quando ouviu uma risada debochada ecoar a poucos metros de onde estava, então se moveu num gesto indignado, enquanto permanecia deitada no chão e começava a se sentir realmente agoniada por não poder se levantar.
odiava lugares fechados, assim como odiava mergulhar. Sentia-se aflita de uma forma que não conseguia explicar, como se a qualquer instante o oxigênio fosse desaparecer totalmente e ela iria sufocar buscando por ele.
Percebeu, então, o ambiente fracamente se iluminar, o que ainda não lhe ajudava a identificar se algo ou alguém estava ali com ela, embora achasse pouco provável, porque tudo o que ouvira até então se resumia às suas próprias reações.
Surpreendeu-se quando encontrou grandes olhos amarelos e maliciosos que se direcionavam fixamente para a garota, então um enorme arrepio percorreu sua espinha. Não era um olhar agradável, era como se estivesse prestes a devorá-la a qualquer momento. Sentiu pânico e, por mais egoísta que aquilo soasse, desejou que não tivesse entrado naquela toca atrás de sua irmã.
Como se lesse seus pensamentos, uma fileira enorme e reluzente de dentes se formou diante de , e o sorriso em sua direção lhe mostrou que, por mais que ela não quisesse, aquela era, de fato, a coisa mais egoísta que havia pensado.
Alice precisava dela.
Engoliu em seco, como se assim ingerisse mais uma dose de determinação.
— O que... o que é você? — Ouviu sua voz questionar, atormentada.
— A questão aqui não é o que eu sou, mas, sim, quem é você, jovem bonita. — A voz era masculina, o que fez se retesar ainda mais, assustada e intrigada ao notar o tom sugestivo na voz.
— Não vou perguntar novamente — ela insistiu e colocou mais determinação na voz do que sentia. Precisava demonstrar ser corajosa. Se fosse morrer, morreria com dignidade.
— Você me lembra alguém — prosseguiu, sem também responder à garota, que, ao notar isso, sentiu uma onda enorme de irritação tomar conta de si subitamente.
— Quem eu sou também não importa, enxerido. Se não vai me ajudar, me deixe em paz! — disse, com grosseria, e ouviu mais uma vez a risada debochada ecoar, o que a fez perceber que havia soado como uma criança mimada.
— Quanta insolência, mas isso já responde minha pergunta. Você deve ser . — Então a menina arregalou seus olhos em surpresa, porém aquela reação deu lugar a uma de horror quando a forma de um gato extremamente magro e com um semblante macabro se materializou onde antes havia apenas os dentes. Visivelmente, era só eles que reluziam de uma forma saudável, um contraste gritante com o restante da aparência do bichano.
— C-como... — balbuciou, ao decidir focar no choque por ele saber seu nome, mas foi interrompida pelo animal.
— Ouvi dizer que sua irmã está em apuros, jovem , e só você pode ajudá-la. Só você pode ajudar a todos nós. — Ela franziu o cenho e sentiu seu estômago afundar porque ainda não fazia ideia de como faria aquilo.
Nem de longe era destemida e forte como Alice, mas havia atirado no escuro e não podia recuar por covardia. A mais velha sempre esteve ali para quando precisou, e seria ainda mais egoísta de sua parte voltar atrás.
— Estão mesmo depositando sua fé em uma desconhecida? — De repente, não conseguiu evitar a pergunta que lhe ocorreu, seguida de um erguer de sobrancelha um tanto desconfiado.
— E quem disse que você é uma desconhecida? — a voz do gato soou esperta, o que deixou ainda mais confusa.
Como ele poderia conhecê-la? Ela nunca havia visto nada daquilo. Todo o seu conhecimento do lugar onde estava vinha das histórias que sua irmã lhe contava e, até receber o estranho pedido de ajuda, às vezes questionava se tudo aquilo era mesmo de verdade.
De fato, sua realidade era cruel demais para que acreditasse cegamente que existia um País das Maravilhas, e perdeu as contas de quantas vezes caçoou de Alice por tentar convencê-la, em seus lapsos de consciência.
Lembrar daquilo fez uma pontada incômoda surgir em seu peito, e engoliu em seco, a ignorou e se voltou mais uma vez para o animal magricela.
— Escute aqui. Eu não tenho tempo para seus enigmas. Meus minutos são preciosos demais para perdê-los conversando com um... com um gato. Então, se você não for me ajudar, ou dar uma pista de como eu irei salvar esse lugar, sugiro que me deixe em paz! — Frisou a última frase, porém o bicho não demonstrou reação alguma que não fosse manter aquele sorriso diabólico, o que, por instantes, a fez acreditar que estava completamente maluca.
estava prestes a fechar os olhos e apertá-los com força, como se o gesto fosse eliminar o gato à sua frente, mas então ele se pronunciou.
— Você precisa chegar até a Rainha Vermelha, é ela que aprisiona sua irmã. Foi ela que aprisionou a todos nós, e, na hora certa, você saberá o que fazer. No momento, aconselho que levante a bunda daí e siga em frente, sempre em frente. Cada segundo que perde deitada, conversando com um gato, é um segundo da vida de Alice que se perde. — Seu tom era mandão e, ao mesmo tempo em que a encorajava, parecia duvidar dela. E odiava que o fizessem.
Então, de repente, decidiu que odiava também aquele gato.
Mais uma risada com uma nota de sarcasmo a fez questionar se o bichano podia ler seus pensamentos.
— Ler não é exatamente a palavra mais adequada, garotinha insolente. Afinal, sua cabeça cheia de caraminholas não é um livro, é? — Se aproximou dela, o que a fez se encolher ao sentir outro arrepio, mas também questionar como havia tanto espaço para aquele animal, já que para ela não havia.
— Sim, eu posso ouvir os ecos de seus pensamentos. Você é completamente biruta. Agora pare de confabular e levante logo a bunda daí! — A voz se tornou mais volumosa, assustou por breves segundos e a deixou indignada ao mesmo tempo.
Abriu a boca para protestar, xingar o gato com pelo menos cinco palavrões diferentes e então lembrá-lo de que ela não podia levantar, estava espremida em um lugar úmido e minúsculo demais para seu próprio bem, porém se deu conta de que as coisas já não pareciam mais tão claustrofóbicas.
Com um franzir de cenho, notou que não estava mais deitada sobre algo duro e gelado, e, sim, sobre uma superfície fofa e umedecida.
Num susto, se colocou sentada e olhou ao redor em completa surpresa quando não esbarrou a cabeça novamente. Ela avistou algumas árvores ao seu redor e percebeu que, embora ainda estivesse na penumbra, agora definitivamente estava em uma floresta.
A sensação, no entanto, não era nada reconfortante. As plantas ao seu redor não eram simpáticas, como Alice a havia contado, e pareciam querer sugar toda a sua energia, espreitando e esperando que desse algum passo em falso.
Sentiu que seu próprio queixo batia. Estremeceu com o frio e o medo que a abraçavam.
Tratou de se colocar de pé, então começou a caminhar para frente, numa luta contra uma tontura súbita. Avistou o gato deitado confortavelmente em cima de um galho, enquanto a observava com os grandes e assustadores olhos. Ele também não era como a irmã havia descrito tão detalhadamente em suas histórias. Nelas, ele era gordo, seus pelos reluziam e ele a fazia rir bobamente, era seu segundo personagem favorito.
Aquele gato que via parecia ter saído de um filme de terror, tão magro que seus ossos eram evidentes sob a pele, seus pelos eram opacos e dava para ver algumas falhas onde tufos haviam sido arrancados, além do olhar sinistro e faminto, como se ela fosse um atum gigante que ele cobiçava.
Definitivamente, aquele gato havia saído de algum filme de terror.
Na verdade, parecia mergulhada no filme em questão.
Suas mãos tremeram, então ela as cerrou em punho e seguiu sem saber exatamente para onde. Nisso, vieram mais incontáveis e longos minutos.
Observou que, quanto mais caminhava, mais escuro tudo voltava a se tornar, e quando achou que não sentiria mais o olhar do gato a acompanhar, tomou outro susto ao vê-lo se materializar sobre seus ombros, sem pesar absolutamente nada.
— — ele a chamou, risonho por tê-la assustado.
— O quê? — questionou, com a voz fraquinha e apavorada.
— Quando encontrar encruzilhadas, não importa o que veja na outra direção, siga sempre à direita, entendido?
— Mas o que pode estar do outro lado, gato sabichão? — disse, com petulância, ao sentir vontade de contrariá-lo só para arrancar aquele sorriso presunçoso de sua cara.
— Entendido? — Ele a ignorou, com a voz séria e insistente, ao tratá-la mais uma vez como se fosse uma criancinha birrenta.
— Certo. — Se obrigou a concordar.
Como se nunca estivesse por ali, o gato desapareceu, fazendo com que subitamente quisesse não ter desejado que o animal a deixasse sozinha.
Droga, seus pensamentos estavam confusos demais.
Era o medo, com certeza era o medo. Não se surpreenderia se descobrisse que molhou as calças ali mesmo. Suas pernas lutavam para tocar o chão de tanto que tremiam, mas ainda assim insistia.
A cada passo que a garota dava, era menor a distância da escuridão completa e ela não fazia ideia do que faria quando essa lhe envolvesse de vez. Quer dizer, como enxergaria as tais encruzilhadas se não pudesse... ver?
Seu cenho se franziu com aquele pensamento.
Por que ela havia entrado naquela maldita toca escondida em meio às árvores de seu jardim? Ah, sim, porque Alice corria perigo.
Alice, a tão destemida Alice.
Não podia sossegar o rabo em casa? Tinha que estar sempre correndo atrás do maldito coelho branco?
E onde estava aquele coelho afinal? Onde estava o gato magricela?
Onde estava ?
Agora tudo estava escuro e os calafrios a cutucavam como se rissem dela a cada vez que a menina se encolhia, abraçava os próprios braços e sentia tudo tão frio, tão... mórbido.
Algo passou ao lado dela, tinha certeza daquilo. Então parou bruscamente, olhou ao seu redor e procurou o que era, com cuidado para não acabar desviando do caminho que seguia. Cada pelinho de seu braço se arrepiava de pavor.
Sempre em frente, não foi isso que o gato disse?
Não passou nada, , continue!
Sua consciência, de repente, parecia ter a voz do gato e de Alice ao mesmo tempo, e isso fez com que ela estreitasse os olhos e questionasse internamente como aquilo seria possível. Sua irmã não era o gato, e o gato não podia ser sua irmã.
Balançou a cabeça em negação, aquilo era loucura até mesmo para ela.
Engoliu em seco, então voltou a caminhar, enquanto sentia suas pernas ainda mais trêmulas, e parecia que vários minutos ou horas haviam se passado quando a sensação voltou.
No entanto, dessa vez, não sentiu apenas algo passar ao seu lado, havia encostado nela, tentado puxar seu braço em uma pressão incômoda e dolorosa.
Um gemido agoniado ecoou dos lábios de . Sem pensar direito, ela começou a correr desesperada, na intenção de se livrar daquela escuridão que nunca terminava.
Parecia que quanto mais corria, mais quilômetros de floresta surgiam em seu caminho.
Então sentiu uma baforada bem perto de seu ouvido e algo se enroscar em seus cabelos.
O que diabos era aquilo?
— Não esqueça das encruzilhadas, querida. — Se assustou com a voz e virou o rosto bruscamente para a direita, esperando encontrar o gato risonho, porém, em vez disso, bateu o rosto em cheio em um tronco de árvore.
Por pouco, o impacto não a lançou ao chão, mas a dor a atingiu com força. A pancada a deixou zonza, e se afastou um pouco, quase tropeçou nos próprios pés e piscou os olhos para tentar enxergar alguma coisa.
Sua consciência, porém, berrava que ela tinha que seguir para a direita, sem pestanejar, sem parar para processar a dor.
ouviu sussurros virem da direita. Sussurros macabros que pareciam desejar sua carne, dilacerar cada parte da garota, e ela sentiu um medo absurdo de seguir naquela direção.
Convinha muito mais seguir para a esquerda.
E se o gato estivesse mentindo para ela? E se o certo era mesmo seguir para a esquerda em vez da direita?
Mas e se ele estivesse dizendo a verdade?
Por que tanta indecisão, ?
Por que ser tão libriana nos momentos mais inoportunos?
Sua consciência quase a fez gargalhar se não estivesse tão apavorada. Às vezes lhe surgiam pensamentos totalmente incoerentes com os acontecimentos diante de si.
Indo contra todos os seus instintos, que gritavam para a garota não escutar o maldito animal, ela seguiu para a direita, apertou seus olhos e já esperava que o pior acontecesse. De repente, daria de cara com um daqueles monstros horríveis que se escondiam embaixo de sua cama.
Os sussurros cessaram assim que a encruzilhada já não estava tão próxima, então suspirou, aliviada, porém não conseguia evitar também a surpresa.
A sensação de ser seguida ainda estava ali. Talvez nunca lhe abandonasse. Provavelmente, era o gato se esgueirando na escuridão e zombando dela.
Costumava amar gatinhos fofos, no entanto, ele não era fofo, de qualquer maneira, e não dizia isso por ser magricela, mas, sim, pelo olhar macabro de quem ia devorá-la assim que tivesse a chance.
Outro par de olhos, também amarelos, a observando, provou que estava redondamente enganada minutos depois.
abriu a boca para questionar o gato, ele deveria saber quem tanto a seguia, porém, quando ouviu uma música ser cantarolada em tom infantil, ela desistiu de tudo o que pretendia fazer. Desistiu até mesmo de respirar.
You can't hold it in your hand
You can't feel it with your heart
And I won't believe it
But if it's true
You can see it with your eyes
Oh, even in the dark...
Ela conhecia aquele trecho, era a música que Alice sempre cantarolava para embalar seu sono, e por que a voz parecia tanto com a de sua irmã?
Aquilo só poderia ser alguma espécie de truque.
— PAREM COM ISSO! — Ouviu sua própria voz gritar, em meio ao pânico, desesperada para que aquela loucura parasse. Por que não conseguia chegar logo ao fim daquela estrada, ou sabe-se lá o que percorria? Por que Alice a havia metido naquilo?
Claramente, a garota não era nada comparada à sua irmã mais velha. Como poderia ser capaz de salvá-la?
— A jovem é medrosa. Não é forte e destemida como a irmã — a voz da loucura continuou a cantarolar, e a cabeça do gato magricela surgiu no ar, abriu mais um sorriso cheio de dentes e voltou a desaparecer.
— CALA A BOCA! — Colocou as mãos nos ouvidos e voltou a correr. Temeu tropeçar em algum galho e causar ainda mais risos.
— A jovem não irá salvar ninguém. Ela não consegue nem salvar a si mesma. Pobrezinha! A jovem veio morrer. — Então esbarrou em algo e, pela segunda vez, foi de encontro ao chão.
Talvez seu corpo estivesse tão acostumado com a dor àquela altura que ela nem ao menos sentiu o impacto.
Ou talvez fosse a adrenalina estimulada pelo medo.
Subitamente, como se nunca tivesse caminhado, estava de novo diante de uma encruzilhada que seria exatamente igual à primeira, se não fosse pela figura parada no meio dela.
Era um homem, com roupas largas demais para um corpo tão magro quanto o do gato. Ele vestia um chapéu tão alto que parecia tocar o céu e reluzia diante da escuridão. De que outra forma ela teria o enxergado?
não conseguiu sentir nada além de desespero ao encará-lo. Algo em seu interior sussurrava que aquele era o dono da loucura.
Em outra ocasião, diria ser besteira temê-lo, porém os olhos dele não expressavam uma loucura “boa”, eram doentios e estudavam a garota como se o prato principal de seu jantar houvesse acabado de chegar.
— Gostaria de uma xícara de chá, jovem ? — Sorriu abertamente e revelou dentes pontiagudos e preenchidos por algo em tonalidade rubra.
Sangue.
Uma pontada incômoda e dolorosa em seu peito a fez reconhecer quem estava à sua frente. Seus sonhos foram destruídos mais uma vez quando seu personagem favorito das histórias de Alice parecia ser, na verdade, alguma espécie de canibal lunático.
Por que via tudo daquela forma e Alice havia visto maravilhas?
Seria daquele tipo de ajuda que eles precisavam?
Ela não via ainda como tornar todas aquelas coisas macabras em algo incrível novamente.
— Vai realmente fazer essa desfeita comigo? O chá vai esfriar, e eu tenho o acompanhamento perfeito!
A voz do Chapeleiro fez a garota se sobressaltar. Precisava continuar aquela jornada sem fim.
correu novamente.
Seguiu pela direita, voltou a ouvir a música ecoar da figura lunática e ainda sentia que o gato a espionava e zombava dela.
Ela não era nada como a grande Alice, era apenas uma garota comum, com sonhos destruídos demais e uma irmã perdida no País das Maravilhas.
Onde estava aquela maldita Rainha Vermelha?
Onde estava Alice?
Aquilo era mesmo real?
Se não fosse, por que ela não acordava daquele pesadelo?
— ! , estou aqui, venha! — Não era possível que a garota estivesse em outra encruzilhada novamente.
O que era aquilo? Uma droga de labirinto?
O gato maldito a havia feito andar em círculos?
— Maldito! Me tire daqui! — praguejou alto e lágrimas frias escorreram por suas bochechas. Frias porque sentia suas esperanças começarem a se esvair.
De repente, a escuridão sumiu, e tudo clareou como se fosse dia.
Ela levou as mãos aos olhos quando estes doeram por estarem acostumados com a ausência de luz, então as tirou lentamente para encarar o ambiente ao seu redor.
Seu coração gelou, tudo dentro dela gelou.
Com horror, olhou em volta e viu que tudo estava morto.
As árvores, as flores, o Chapeleiro.
E o gato risonho.
Pobre gato, dizer que ela o havia odiado era uma grande mentira.
Comparado ao Chapeleiro, ele até era uma criatura adorável.
ignorou a voz da irmã, que vinha da esquerda e ecoava sem parar, voltou a correr para a direita e se desesperou novamente por não encontrar logo o final daquele martírio.
O animal provavelmente a havia enganado, mas ela não iria arriscar algo pior e que poderia lhe distanciar de seu destino. Na próxima encruzilhada, escolheu o caminho da direita outra vez.
Então, viu sua mãe parada mais à frente, com uma camisola branca suja de sangue no meio das pernas e um sorriso diabólico enquanto segurava uma faca.
O mais bizarro não era ver aquilo, e, sim, o fato de que e Alice nunca tiveram mãe de verdade, muito menos pai, haviam sido abandonadas quando muito novas e tudo o que possuíam dos dois era o registro de seus rostos jovens em uma fotografia.
Talvez, por aquele motivo, a visão não a chocou tanto, assim como o corpo de seu suposto pai pendurado por uma corda, enforcado em uma das árvores mortas, não a chocou, só a deixou mais apavorada, temerosa pelo que viria a seguir. Não podia encontrar Alice daquele jeito. Sua irmã não.
— Sai do meu caminho! — berrou e correu novamente, sentindo que seu corpo se chocaria a qualquer momento com o da mulher parada e ensanguentada, porém a colisão nunca aconteceu. a atravessou e, segundos depois, a imagem se dissolveu em névoa.
Então, a última encruzilhada surgiu e na estrada da esquerda estava sua irmã com um buraco imenso na barriga.
Alice agonizava no chão, o sangue era ainda mais genuíno que o da suposta mãe, e ela se debatia, enquanto tentava implorar pela ajuda da irmã.
hesitou, mas não podia seguir pela esquerda.
Sempre pela direita.
E quando ela atravessou o último obstáculo, ouviu a risada diabólica que achava que era do gato, depois do Chapeleiro, porém, no fundo, sempre soube a quem realmente pertencia.
Encontrou a Rainha Vermelha.
E a Rainha Vermelha tinha as feições de sua irmã.
— Alice? — murmurou, em tom de incredulidade. Seu estômago afundou com a ideia de que tivesse seguido as pistas erradas e caído em alguma armadilha.
— Quem mais seria, irmãzinha? Você esperava que eu morresse em minha própria história? — O tom de voz da irmã era sarcástico, e a garota gargalhou quando notou o jeito que a mais nova a encarava.
— Você... Eu não estou entendendo! — balbuciou, enquanto o chão parecia sumir sob seus pés.
— Acorde, . Isso não é real. Você adormeceu, enquanto se debatia no escuro do seu quarto. Mas nós conseguimos um enfermeiro bonzinho, lembra? E, se você se apressar, há uma chance de fugirmos. Não é liberdade que você quer? — Alice se aproximou da irmã e alisou o rosto da menina, que fez uma careta e a afastou.
— Não. Não pode, você... Eu odeio você! — gritou, a plenos pulmões, e Alice voltou a se aproximar, beijou a irmã na bochecha e sussurrou contra sua pele.
— Não seja tão teimosa. É nossa chance, e você não me odeia, eu sou parte de você, esqueceu? — Sorriu de forma presunçosa, e os olhos de se iluminaram. As palavras de Alice aos poucos foram fazendo sentido em sua cabeça. Estava claro que aquilo tudo não passava de um pesadelo, porém algo saltou aos seus ouvidos.
— Eu vou fugir? Não precisarei mais passar por aqueles experimentos horríveis? Não aguento mais aqueles malditos médicos invadindo minha cabeça. — Segurou os cabelos, embasbacada.
— Não vai precisar, . Nós vamos embora da terra de monstros.
Como aquela em que havia um gato magricela e um chapeleiro lunático.
— E você vai comigo? — perguntou e a encarou como uma garotinha indefesa.
— O que seria de você sem mim? — Alice piscou e sorriu, convencida. — Agora abra seus olhos, ! Por favor, minha menina! Não temos tempo a perder!
Então ela acordou.
Bem a tempo de ver o enfermeiro se aproximar de sua cama com um sorriso gentil e extremamente familiar, porém tão bonito que demorou a reconhecê-lo.
— Hora do chá, jovem .
O Chapeleiro.
— É você o príncipe que veio me salvar? — soltou, encantada com o quanto ele era lindo. Completamente diferente de seu pesadelo.
— Prazer em conhecê-la, senhorita . Meu nome é . — Ele sorriu e estendeu algo em sua direção.
— Você é lindo. Eu nem sei como agradecer — as palavras ecoaram sem controle de seus lábios.
soltou uma risada breve.
— Não precisa, vê-la livre já é o bastante. — Piscou para a garota, que não conseguiu esconder o sorriso radiante que surgiu em seus lábios.
Levantou-se, afobada, aceitou a muda de roupas que viu que ele oferecia e seguiu sem hesitar rumo à sua liberdade. Daquela vez, o caminho não havia sido tão longo e tortuoso.
encarou os portões daquele Instituto e suspirou ao ver a distância se encurtar enquanto ela passava por todos aqueles que não poderiam nunca mais a aprisionar novamente.
Estamos livres, . Comporte-se! A voz de Alice ecoou em sua cabeça.
abriu um largo sorriso e sentiu o sol esquentar sua pele fria e pálida.
Era mais um dia comum, porém um novo mundo se abria para ela e Alice.
Não haveria mais remédios, não haveria mais experimentos e nem torturas.
As coisas iriam mudar.