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Revisada por vênus. 🛰️
Concluída em: 31.10.2024

Acordei com o solavanco do carro, meus olhos estavam turvos quando os abri e demorei a estabilizar minha visão. Senti um pano sujo em minha boca, separando minha arcada dentária superior da inferior, amarrado tão fortemente em minha nuca que machucava minhas bochechas. Minhas mãos estavam presas em minhas costas e meus pés estavam amarrados. Eu estava sendo transportada na caçamba de alguma caminhonete com a lona fechada em cima.
Tentei não pirar, sentindo meu coração disparado fazer meus olhos encherem de lágrimas.
Respirei fundo, tentando fazer meus olhos verem algo, estava escuro e eu só ouvia o motor do carro e os pneus andando em alguma estrada de chão.

Demorou um pouco para meus olhos se adaptarem ao escuro, mas consegui ver melhor em volta: uma caixa de ferramentas, o kit de emergência com macaco e sinalização, e quando virei meu tronco para olhar do outro lado, percebi que tinha um homem desacordado na mesma situação que eu: amordaçado, com os braços e pernas presos.
Vendo as feições desacordadas do homem, finalmente percebi que não era um trote: eu havia sido raptada e estava sendo levada a algum lugar.
Mais um solavanco e o homem acordou, batendo a cabeça no fundo do carro.
Seus olhos demoraram a se acostumar com a escuridão, assim como os meus. Ele entrou em desespero com facilidade, gemendo e se debatendo, tentando se desvencilhar das cordas que o amarravam.
Aquilo não ia adiantar de nada, apenas energia — que poderia ser imprescindível no futuro — sendo desperdiçada.
Quando seus olhos se acostumaram com o escuro, ele pareceu perceber que eu também estava ali. Apenas fiz que não com a cabeça e uni as sobrancelhas, tentando lhe dizer para não fazer barulho. Ele assentiu e tentou se acalmar.

Depois de alguns bons minutos andando em linha reta, o carro fez uma curva para a esquerda e estacionou.
Respirei fundo novamente tentando acalmar meu peito. Eu precisava focar em detalhes que pudessem me fazer fugir, me fazer lutar e o principal: me fazer sobreviver.
Apenas uma porta bateu. Ouvi o baque do motorista descendo da caminhonete mas não ouvi seus passos, sinal que o terreno era de areia, ou grama, talvez. A respiração descompassada de meu “companheiro de cela” não estava me ajudando em nada.
Ouvi vozes.
— Jack! Até que enfim! Quantos você trouxe? — Homem. Inglês americano, sotaque texano. Por Deus, quanto tempo fiquei desacordada?
— Consegui dois, um homem e uma mulher. Solteiros, sem filhos, família mora longe. — Jack respondeu, com o mesmo sotaque.
— Perfeito.
— Bruce e os outros...? — Jack perguntou. Outros? Quantos?
Eu tinha Jack, Bruce e o primeiro homem que falou. Vou chamá-lo de Texano.
Pelo fato de terem muitos envolvidos, removi a opção de serial killer que rondou minha mente. Removi também a parte de estupro coletivo por ter um homem envolvido e texanos serem conhecidos por serem homofóbicos. É claro que eu estava sendo preconceituosa, mas eu precisava pensar em todas as possibilidades plausíveis.
Minha mente estava um turbilhão de emoções. Uma lágrima teimosa escapou por meus olhos e pingou no fundo da caçamba. Respirei fundo, me recompus.
As aulas de relaxamento, concentração e foco estavam fazendo efeito.
— Estão chegando também, foram pegar as armas quando você enviou a mensagem.
Armas?!
Ouvi o homem ao meu lado fungar, com o nariz entupido de tanto chorar silenciosamente.
Ok, se tem armas, pode ser uma retaliação, uma vingança... Mas eu não estou envolvida com nada criminoso, não fumo nem maconha!
Talvez um sequestro para exigir uma recompensa... Mas minha família não é rica, e eu sou apenas uma escritora pouquíssimo conhecida.
Talvez tenham pego a pessoa errada.
Talvez só o chorão ao meu lado seja rico.
Ou...
Ou é aleatório, talvez uma caçada.

Eu já tinha ouvido falar nisso. Existem alguns filmes e até séries que já abordaram o assunto: pessoas que sequestram gente aleatória e levam para uma floresta para caçar. A adrenalina é muito maior do que matar um cervo; pessoas são mais inteligentes, se escondem melhor, tudo isso traz a emoção necessária para fazer a caçada ser excepcional. Sem contar que os humanos têm a chance de conseguir escapar, o que torna a caçada muito mais brutal e aventureira.
Céus, era uma caçada. Só podia ser.
Ouvi um carro se aproximar de longe.
— Eles estão vindo. — Jack disse. — Me ajuda a tirar os dois do carro, eles já devem ter acordado.
— E estão nesse silêncio todo? — o segundo homem resmungou como se o barulho fosse algo que o animasse.
A porta da caçamba se abriu e cada um dos homens puxou nós dois pelos pés. O homem ao meu lado revidou, chutando o rosto do que estava puxando-o e tentou correr, mas o texano o alcançou em dois passos e o jogou no chão com um empurrão de ombro. Meu companheiro de cela caiu com o rosto no chão. Por sorte estávamos em uma clareira, rodeados por uma floresta de mata densa, árvores altas, folhas largas e vegetação rasteira verdinha, então seu tombo foi amortecido pela grama baixa. Notei com o canto dos olhos que uma trilha de areia se formava por onde os pneus dos carros passavam, então era um caminho conhecido que daria para seguir pelo mesmo caminho que viemos.
O texano me deixou sentada na porta aberta da caçamba. Fiquei quietinha como uma boa moça enquanto tentava absorver tudo que podia.
Meu companheiro era um desesperado ansioso que, pelo visto, não tinha noção do que eram mordaças e cordas e achou que conseguiria fugir com os pés amarrados.
Os dois homens eram caucasianos, na faixa dos trinta ou quarenta anos, eram muito parecidos e provavelmente eram irmãos ou primos. Tinham o rosto avermelhados por rosáceas e o calor que fazia não ajudava em nada, eu mesma estava com a roupa úmida de calor, perdendo preciosas gotículas de água que poderiam ser úteis no futuro. Nenhum deles estava armado no momento, nada visível pelo menos.

Era noite. Eu não conseguia ter noção de que horas eram, o céu estava bonito naquele tom azul profundo com muitas estrelas e com algumas nuvens perdidas espalhadas.
— Essa daqui é quietinha, gostei dela.
— Prefiro quando eles são mais ariscos, igual esse babaca aqui. — O outro afirmou, cutucando meu companheiro com o pé.
O homem próximo de mim sorriu, mostrando seus dentes amarelados, alisando meu cabelo enquanto o outro juntava o homem amordaçado do chão e o sentava ao meu lado.
— Não tente fazer isto de novo, garoto. Se você se machucar, perde toda a graça.
Meu companheiro fungou mais uma vez. Notei que ele usava uma roupa de descanso: calça de moletom cinza, uma t-shirt branca com uma camisa de flanela por cima e nos pés, chinelos e meia.
Eu usava minha roupa de corrida matinal: calça legging preta, uma regata justa com o top por baixo e um tênis da Adidas sofisticado.

O carro que se aproximava estacionou ao lado da caminhonete que estávamos sentados. Mais três homens saíram de lá, um deles nem parecia ter dezoito ainda. Todos pareciam ser parentes, pois eram muito parecidos: cabelos e olhos claros, bochechas rosadas, o gene da barba ruiva e bonés surrados. Os sotaques eram todos iguais e eles tinham bastante intimidade juntos.
Bateram papo por alguns minutos, enquanto eu fiquei olhando em volta. A floresta tinha algumas entradas de trilhas, árvores altas que talvez dessem para escalar e a clareira tinha pelo menos uns duzentos metros de diâmetro. O silêncio reinava nos arredores, nenhum barulho de carros em uma rodovia, ou alguma fábrica, ou mugidos de vacas que pudessem nos dar esperança de civilização. Meu companheiro de cela seria um peso morto, já que estava de cabeça baixa pensativo.
Dei uma boa olhada nos homens, cinco ao total. Um deles parecia mais velho, e um respeito nítido era exalado pelo outros em sua direção. Devia ser o patriarca da família. Agora eles se reuniram no porta-malas do carro, e cada um pegou uma espingarda. Eu não entendia nada de armas, mas ver aquilo fez meu coração disparar e engoli seco, sentindo meus olhos marejarem de medo novamente — eu provavelmente fedia a medo e, se eles fossem predadores naturais de uma floresta, me encontrariam pelo faro em meio segundo. Eles se divertiram distraídos colocando munição, destravando as armas, testando a mira e eu só conseguia pensar em como eu escaparia daquilo.
Eu deveria tentar ajudar meu companheiro de cela, ou seria cada um por si?
Eu deveria me embrenhar na mata ou tentar seguir a trilha que me trouxe até aqui?

Minhas pernas bambeavam quando o quinteto terminou de se distrair e finalmente deu atenção a nós.
— Nós vamos soltar vocês. E, dentro de quinze minutos, vamos caçar vocês. Não desistam de tentar se esconder, é a parte mais divertida do jogo. — O mais velho disse. — Não, nós não vamos deixar vocês irem, sim, nós já fizemos isto antes, não, nós não conhecemos vocês, foi aleatório, vocês estavam no lugar errado e na hora errada. E nada vai nos fazer mudar de ideia, nós temos dinheiro, temos família, temos tudo que vocês podem nos oferecer, esse é o nosso momento de descontração. Então pulem essa parte de querer entender o motivo de fazermos isso, nós gostamos e ponto.
Era uma porra de uma caçada. Olhei para o céu desesperada, vendo o resquício de luz solar ir embora e o crepúsculo tomar conta do ambiente.
O homem que fez carinho no meu cabelo pegou uma faca grande de caça e se aproximou de mim, enquanto eu sentia meu coração pulsar fortemente em minha garganta, o barulho da pulsação latejando em meus ouvidos. Seu cheiro azedo de suor entrou em minhas narinas quando ele cortou a corda em meu pulso e a corda em meus pés.
Fui intrépida o suficiente para pular da caçamba e esperar ele fazer o mesmo com meu companheiro. Ele fez o mesmo, e olhamos para os caçadores uma última vez antes de corrermos para a floresta enquanto um deles gritava “quinze minutos”.

Quando estávamos longe o bastante da clareira, a ponto de eu perceber que eles não nos ouviriam mais, parei de correr e esperei o homem me alcançar. Eu era uma corredora, corria todos os dias, então não me surpreendi quando meu companheiro de cela chegou ao meu lado completamente ofegante.
— Tire as meias. — Ordenei, esticando a mão em sua direção. Eu já tinha tirado o pano da minha boca enquanto corria, mas o homem em minha frente nem tinha pensado nisso. Enquanto ele tirava as meias desajeitado, fui atrás dele e desatei o nó. — Sou .
. Por que quer as meias?
Peguei as meias que ele oferecia e joguei uma para cada lado da trilha.
— Se eles tiverem cães farejadores, pode confundi-los. Eu não vi nenhum, mas não custa arriscar.
Ele assentiu.
, você já assistiu O Iluminado? — Já deviam ter passado uns dois minutos desde que entramos na floresta. Ele assentiu, ainda esbaforido. Eu não podia fazê-lo correr muito, ou a sua respiração iria denunciar o seu local de esconderijo. — Lembra do final, onde o Danny engana o pai dele no labirinto?
— Ele pisa nas mesmas pegadas e faz o caminho de volta. — Ele disse sem ar, apoiando as mãos nos joelhos. era um cara bonito, devia ter seus trinta anos, tinha olhos castanhos e um cabelo cor de palha.
— Você entendeu aonde quero chegar? — Perguntei e ele assentiu com a cabeça. — Vamos seguir em frente mais um pouco na trilha principal e sair, fazendo caminhos falsos e voltar para a trilha. Se eles forem caçadores mesmo, talvez percam alguns minutos nisso, talvez se separem... Assim a gente pode ter uma chance.

Ergui os olhos para o céu, mas não consegui ver a lua. Seguimos nosso plano, fizemos alguns caminhos falsos e, durante um desses percursos, encontrei um pé de babosa. Com certeza não estávamos no Texas. Arranquei algumas folhas da pequena árvore e corri até .
— Passe nos braços, no rosto e até no cabelo. — Expliquei enquanto ele me olhava com as sobrancelhas unidas em dúvida. — Apenas faça!
Olhei para os lados. Já estávamos bem afastados da clareira. Avistei mais à frente uma árvore alta e grossa que seria um bom esconderijo, tinha bastante galhos, que poderia ajudar na subida e na hora de disfarçar nossa silhueta e cores.
já estava com o aloe vera todo espalhado pelos braços e cabelos.
— Tente subir nessa árvore, veja se consegue.
Eu podia ter deixado ele para trás, mas algo me fazia querer protegê-lo. tinha olhos gentis e mostrou uma vulnerabilidade durante todo o nosso percurso até aqui — eu não podia abandoná-lo agora, principalmente vendo que ele não era a pessoa mais atenta e cuidadosa do mundo.
Saber que ele estava seguindo minhas ordens sem reclamar me deixava estranhamente satisfeita, já que aquilo significava que ele confiava (minimamente) em mim.
Ele concordou sem pestanejar, e já havia me adotado como sua cuidadora também, fazendo tudo sem questionar meus métodos. Ele subiu com facilidade, o que não era muito bom, já que se ele conseguia, outras pessoas também conseguiriam, mas se conseguíssemos esperar até o dia clarear, talvez pudéssemos ver ou ouvir algo que estivesse a nosso favor.
Tirei meus tênis de corrida, pois eles eram verde-limão e escondi-os embaixo de algumas folhagens. Subi atrás dele e sentamos em galhos grossos enquanto eu ficava de ouvidos atentos; já sabia que, pelo menos, dez minutos de vantagem já haviam passado e logo conseguiríamos ouvir o som deles se aproximando.
— O que você faz? — Sua voz era um sussurro baixo.
— Sou escritora, e você?
— Sou ator.
— Famoso? A ponto da polícia se interessar em procurá-lo?
Ele concordou com a cabeça, e eu o olhei de cima a baixo. Os cabelos lambuzados ainda estavam bonitos, os olhos meigos. Ainda não tinha visto seu sorriso, mas ele podia ser sim um rosto conhecido em Hollywood, eu só não era boa com fisionomias mesmo.
— Como consegue se manter tão calma? — Outro sussurro.
— Eu faço terapia. — Mal terminei de falar e ouvi alguns estalos, como o de pés pisando em galhos, distantes porém perto o suficiente para que eu ouvisse. Levantei a cabeça atenta e percebi que se encolheu com medo.
— Você não vai passar babosa? — Perguntou ele, só agora percebendo que eu não havia passado.
Levei meu dedo até minha boca, indicando o silêncio e senti algo.
Minha pulsação acelerou, forte e rápida o suficiente para me deixar sem ar, fechei os olhos com força sentindo meu peito doer.
, você está bem?!
Meu peito ardia em chamas, minha pele fervia.
, não saia daqui em hipótese alguma. Nem. Um. Pio. — Consegui dizer antes de soltar um grito alto de dor. Minha coluna repuxou em um estalo seco que fez eu me contorcer e um novo estalo me fez cair do galho em que eu estava apoiada.
Meu corpo foi de encontro ao chão em um baque surdo.
Rolando no chão, sentindo o sangue borbulhar em minhas veias, cada músculo do meu corpo se contorcia em uma dor lancinante. Meus ossos se moviam, quebrando, juntando, esmagando.
Minhas unhas caíram, e minha pele rasgou, como se uma faca invisível estivesse me cortando inteira, o gosto de sangue invadiu minha boca enquanto eu sentia meus dentes amolecendo, os estalos de ossos continuavam e minhas roupas começaram a rasgar. Perdi a noção do barulho que estava fazendo enquanto, por baixo da minha pele, os pelos do meu alter ego surgiam, terminando de rasgar os resquícios de pele humana que ainda restavam. Abri meus olhos uma última vez, vendo que os olhos amáveis de me olhavam lá de cima, arregalados, desesperados e lacrimejantes. Acima de seus olhos, vi por entre as árvores a lua cheia brilhando belíssima.

Nunca fui fã da lua cheia, mas hoje... Hoje eu era amiga dela.

Senti minha consciência indo embora, se afastando de mim, quando a dor passou e minhas garras negras cresceram.

O uivo alto ressonou, assustando os caçadores que estavam próximos dali.
Nenhum deles esperava que tivesse um lobo naquela floresta. Já haviam feito aquela caçada vezes o suficiente para saber que ali não haviam lobos e mesmo assim, foi aquilo que eles ouviram: um uivo tão alto e claro que não restavam qualquer tipo de dúvidas.
Eles estavam separados, não muito longe um do outro, porém distantes o suficiente para que não conseguissem conversar entre si sem atraírem a atenção do que quer que tivesse lá fora.
E então, ouviram rosnados, altos e guturais, daqueles que arrepiam os pelos da nuca.
John, o patriarca, ergueu a cabeça, tentando chamar a atenção do filho mais velho, Dixon.
— Psss. — Fez o som com a boca, e conseguiu ver o boné do filho a uns dez metros de distância.
Dixon saiu de onde estava, tentando chegar até o pai o mais rápido possível em silêncio.
— O que você acha que é? Um lobo? Aqui?! — Dixon perguntou tão baixo que seu pai quase não ouviu.
— Deve estar perdido, pode ter sido banido de alguma alcateia, talvez tenha vindo de Albuquerque. — John falava um pouco mais alto, provavelmente por ser um pouco mais velho. A audição já não era o seu ponto forte, e o filho relevou o fato. De qualquer maneira, era tudo especulação.
— Acho melhor nos juntarmos até matarmos esse lobo, até porque ele pode pegar os dois antes que nós.
— Concordo.
Dixon olhou em volta e conseguiu encontrar o mais novo. Estava do outro lado da trilha principal, parado feito uma estátua. Fez sinal para o sobrinho, que se moveu entre as folhas sem tanta precaução quanto ele, fazendo barulhos durante o percurso, quebrando galhos e esbarrando em folhagens.
— Mais cuidado na próxima vez. — O tio o alertou quando ele chegou perto o suficiente. O jovem apenas concordou com a cabeça, os olhos estavam tão arregalados que ele chegava a tremer.
— I-isso foi um lobo? — Sussurrou com a voz trêmula.
O tio e o avô concordaram em silêncio; não estavam tão preocupados assim, estavam em cinco para caçar um lobo e dois humanos desarmados. O que poderia dar errado?
— Você viu seu pai e o Jack?
— Sim, estão alguns metros mais à frente, estão do lado de lá. — O mais novo respondeu baixinho.
— Ok, vamos para a trilha principal, temos menos chances de fazer tanto barulho.
Os três seguiram até a trilha principal, cada um com sua espingarda na mira, prontos para qualquer problema.
De repente, cerca de dois minutos na trilha, os caçadores ouviram um grito alto, um grito humano, um grito tão desesperado que fez todos eles correrem na mesma direção desesperados.
Saíram da trilha principal, ainda ouvindo o terror vindo daquela direção. Um barulho de rosnado se misturava com os berros praticamente animalescos que aquela pessoa dava. Todos estavam em silêncio, correndo desesperados.
— Pai?! — O mais novo berrou quando eles estavam se aproximando do local de onde vinha o barulho.
— Filho, sai daqui! — A voz era sufocada e molhada, como se ele estivesse se afogando com o próprio sangue.
Não deu tempo de darem meia volta, não quando conseguiram ver os pelos negros no animal à sua frente.
Definitivamente não era um lobo; o animal estava suspenso nas patas traseiras. De pé, ele devia ter dois metros de altura, talvez mais. A cabeça era de lobo, só que muito maior, o tronco era forte e esguio, as mãos tinham garras afiadíssimas e os pés eram de lobo. O corpo inteiro era coberto de um pelo negro tão brilhante que resplandecia a luz do luar.
O homem ao chão tinha um arranhão no peito, as marcas das quatro garras do animal saíam do ombro e desciam até a cintura, eram tão profundas que em alguns pontos podia-se ver o branco dos ossos. O animal se aproximou do homem lentamente, segurou os ombros com as mãos erguendo o tronco do homem e abocanhou seu pescoço, o líquido viscoso escorrendo pelo seu corpo e a vida esvaindo-se de seus olhos.

O barulho de um tiro fez o animal largar o corpo sem vida da sua primeira vítima. Virou-se para os três recém-chegados, soltou um rosnado alto e furioso na direção de Bruce, o mais novo, que estava com sua espingarda empunhada, a fumaça saindo do cano com lentidão.
Seu rosto estava coberto de lágrimas silenciosas; até seu nariz escorria.
O animal olhou o local onde a bala acertou, sacudiu os ombros como se aquilo fosse uma picada de mosquito e avançou sobre o jovem garoto. Os olhos azuis esbugalhados foram a última coisa que o tio e o avô viram antes do lobisomem avançar suas garras no pescoço dele com tanta força que o sangue jorrou alto. Não deu tempo de gritar, não deu tempo de correr e não deu tempo dos outros dois atirarem. Quando o animal se levantou do corpo sem vida do garoto, foi que os sobreviventes viram o que havia acontecido: o corte na garganta foi tão profundo e agressivo que a cabeça do garoto foi decepada, ficando alguns centímetros longe do corpo. O sangue quente ainda jorrava da jugular enquanto seu coração terminava de bater.
Os dois sobreviventes estavam tão estarrecidos que nem conseguiram empunhar as armas para tentar se defender, simplesmente se viraram e correram.

Cada um foi para um lado. John foi para a trilha principal, na direção dos carros. E Dixon foi para dentro da mata fechada.
O animal observou os dois e farejou. O velho fedia a medo, um fedor tão pungente que fazia o animal querer segui-lo primeiro, todavia o fato de ele estar na trilha principal parecia muito fácil e, assim como aqueles caçadores, ele também era um caçador, dos bons. O animal adentrou a mata atrás do homem mais novo. Conseguiria pegar aquele velho caduco depois.
Correu sob as quatro patas, o vento empurrando seus pelos. O cheiro do homem era menos forte do que o do velho mas ainda deixava um rastro tão claro na mata que podia segui-lo de olhos fechados. A saliva escorria por sua boca, tamanha era a excitação de encontrá-lo logo.
Ouviu galhos se partindo, o cheiro estava tão forte que não precisava mais dilatar suas narinas para saber que o homem estava escondido atrás de um tronco grosso de árvore que estava deitado no chão.
Rosnou apenas para avisar que havia chegado. Adorava ver suas vítimas desesperadas, matar era a sua maior paixão, não eram comida, quem comia era o alter ego da garota, ele estava ali para matar ou transformar, e como gostava de ser solitário não precisava de uma matilha, então matar... Ah, matar era a sua sina.

O homem levantou-se em um ato de coragem e atirou no animal, acertando o centro de seu peito, o impacto dos dois cartuchos disparados ao mesmo tempo fez com que ele cambaleasse dando um passo para trás, mas nada mais do que isso. Agora era a sua vez.
Mostrou todos os dentes, franzindo o focinho e se aproximou do homem, retirando sua arma das mãos e jogando longe, sentiu um cheiro quente e azedo, e notou que ele urinava nas calças.
Malditos humanos nojentos, criaturas desprezíveis que não conseguiam manter a postura quando o jogo virava. Eram os machos alfa na hora de sequestrar pessoas para caçar, eram machos alfa na hora de fazê-los correr pela mata se escondendo sem nenhuma defesa, mas na hora de enfrentar alguém... Urinavam nas calças. Até o garoto foi mais forte.
Segurou o pescoço frágil do mijão, apertando com força o suficiente para ele sufocar e com força a menos para não quebrar seus ossos delicados e, com a mão livre, fez um rasgo horizontal em sua barriga, um corte lento e profundo que fez suas tripas caírem para fora. Cheiro de sangue, bosta e mijo se misturaram enquanto a boca dele se abria e um som engasgado saía.
Era delicioso ver a vida indo embora do corpo e apenas a casca vazia ficava.
O animal segurou o pescoço do homem até ele parar de respirar de vez, o sangue fresco pingando em suas patas traseiras junto com os restos que estavam em seu estômago e intestinos. Aquilo era tão nojento e delicioso ao mesmo tempo e mostrava tanto poder que fazia o peito do animal inflar em triunfo. Antes de jogar o corpo sem vida no chão, sentiu mais um tiro em suas costas.

Mas que caralhos?!
Tinha mais um?
O rosnado saiu furioso, do fundo da garganta.
Era óbvio que o tiro não machucou, o que irritou o animal foi o fato de ter sido pelas costas, de novo. Malditos humanos traiçoeiros.
O homem avançou para cima do lobisomem, dando uma coronhada no focinho do animal antes mesmo que ele conseguisse se virar de frente.
Sentiu o gosto do próprio sangue em sua boca e aquilo fez a besta se empolgar. Finalmente um humano que revidava! Antes que pudesse fazer algo, outra coronhada e, quando a terceira estava a caminho do seu rosto, agarrou a arma com força, empurrando-a de volta ao seu dono, fazendo o cano bater em seu nariz.
O sangue do homem começou a escorrer pelas narinas.
Criaturas tão frágeis...
Puxou a arma, jogando-a longe exatamente como havia feito com o mijão, porém, diferente do parceiro, este homem tentou fugir — a coragem de avançar sobre o animal não duraria muito sem sua arma de apoio. Mas, em uma guinada rápida, a besta alcançou seu ombro, segurando-o com força.
Não satisfeito em conseguir fazer o animal sentir o próprio sangue em sua boca, o homem retirou uma faca de caça do cinto e fincou nas costelas do lobisomem.
O ganido saiu alto.
Soltou o ombro do homem, que não perdeu tempo em voltar a correr com toda a sua capacidade.
Arrancou a faca, largando-a no chão. Que humaninho desgraçado e desprezível. Aquilo estava divertido, não podia negar.
Correu nas quatro patas atrás do filho da puta e não demorou a alcançá-lo. Agarrou suas pernas em um salto baixo e os dois rolaram na relva baixa antes do animal fincar suas garras no peitoral do homem, que soltou um berro alto. O humano tentou revidar, dando socos e chutes no animal que estava acima dele com a saliva escorrendo pela boca e pingando em seu rosto. O lobisomem perdeu o restinho de paciência que lhe sobrava e fincou a mão inteira no peito do homem, arrancando seu coração em uma única puxada, o homem perdeu a vida na hora e seu coração quente escorria sangue até seu cotovelo.

A besta ergueu o coração para cima como um troféu, uivou alto se deliciando com o triunfo de mais uma morte em sua lista.
Ainda faltava um. O velho.
Seguiu para a trilha principal e no meio do caminho sentiu um cheiro diferente. Parou, dilatou as narinas e aguçou a audição.
Entrou em uma trilha secundária farejando atenciosamente, foi até o local do cheiro estranho, farejou a árvore grande ainda estranhando aquele cheiro. Era de alguma planta misturado com um cheiro humano diferente de todos os humanos que estiveram ali. Outro cheiro chamou a atenção dele; farejou pelo chão e sentiu o cheiro da sua própria humana, o alter ego, em um tênis escondido por folhagens secas.
Não era o mesmo cheiro que ele estava sentindo... O cheiro que ele sentia era um homem.
Subitamente, ele foi distraído pelo barulho de um carro sendo ligado a uma certa distância.
O velho!

Correu pela trilha principal como se sua vida dependesse daquilo. Correu nas quatro patas para manter a estabilidade, a mata ao seu lado era apenas um borrão verde. Havia apenas um carro na clareira quando ele chegou lá, mas o cheiro da gasolina queimada era forte o suficiente para ele saber que o carro não tinha ido muito longe, o som do ronco do motor também era vívido o bastante. Seguiu o cheiro pela estrada de chão e notou o carro há poucos quilômetros de distância, apertou o passo, correndo em uma velocidade que quase ultrapassava a do carro e o alcançou com uma facilidade que o motorista do carro acharia, no mínimo, impossível.
Pulou sobre a caçamba travando as garras na lona, escalou o carro subindo sobre o capô e o velho freou, fazendo seu corpo ser jogado para frente pela inércia. Mesmo com o dia já quase amanhecendo, o farol estava ligado e as luzes atrapalhavam um pouco a visão do animal.
O velho acelero com o pé na embreagem apenas para mostrar o poder que a caminhonete tinha, mas a besta não pareceu muito preocupada. Ao contrário disso, ficou animada e partiu para cima do para brisas, onde seus braços fortes quebraram o vidro em um só golpe, puxou o homem pelos ombros e bateu seu rosto no volante três vezes antes de soltá-lo. O vidro fez algumas feridas superficiais em seus bíceps, mas nada que pudesse realmente doer.
Desceu do capô e puxou o senhor para fora, jogando-o no chão arenoso. O sangue escorria pelo nariz com pouco entusiasmo e o supercilio também escorria um pouco, mas nada que ele esperasse de verdade de um velho.
Porém aquilo ia mudar agora mesmo, o animal estava ficando exausto de correr, matar e lutar, estava pronto para terminar com aquilo e descansar até o sol nascer.
— Por favor, por favor não! Eu tenho família. — O velho suplicou ainda no chão, olhava a besta com os olhos azuis marejados, unindo as mãos como se pedisse misericórdia.
“Eu tenho família”, o ápice do desespero de um completo ínfimo que não ligava para nada.
O animal rosnou, e usando sua marca registrada, agarrou o velho pelo pescoço, erguendo-o de modo que seus pés ficassem balançando no ar.
Pôs sua mão livre na nuca dele, tateando até encontrar o osso perfeito e com suas garras afiadas, mergulhou os dedos no pescoço dele circundando sua vértebra cervical. O velho não gritou quando a besta puxou sua coluna cervical inteira, rasgando suas costas no meio, deixando sua cabeça mole cair para frente feito um joão bobo, tudo que era interligado dentro dele caiu para trás em uma cachoeira de sangue, tendões, tripas e carne e o animal, ainda segurando a coluna em uma mão e o corpo sem vida no outro, levou a cabeça para trás e soltou um uivo alto que foi aos poucos se transformando em um grito bestial de uma humana voltando a sua forma original.

Voltei pelo caminho de areia com calma. Estava tão cansada que minha cabeça pendia sob meu pescoço, sentia que poderia desmaiar a qualquer momento, mas eu precisava avisar que ele estava bem.
Cheguei ao carro dos caçadores, enfiei minha cabeça pela janela e encontrei uma camisa de flanela xadrez, puxei-a e a chave do carro caiu sobre o banco. Sorri sozinha. Uma sensação de trabalho cumprido bateu em mim como uma brisa quente e gostosa.
O sol já dava as caras e o céu tinha aquele tom rosado belíssimo com algumas nuvens perdidas em tons azuis.
Vesti a camisa, abotoei e segui para a trilha principal, murmurando alguma música que estava em minha cabeça.
? — Perguntei alto, minha voz se perdendo na mata como se eu estivesse sozinha lá.
Por Deus, eu não havia pego , certo?
Fiz o que pude para despistar seu cheiro! Normalmente, a besta perde noção do que é certo ou errado, mas eu sempre lembro de tudo que ela fez... Não lembro de ela ter pego .
! — Chamei-o novamente. — Está tudo bem, eles estão mortos e... Já é dia. Você está a salvo.
Ouvi alguns galhos se partindo na direção em que havíamos montado acampamento, eu estava cansada o suficiente para não conseguir ir até lá. Suspirei aliviada quando vi saindo da trilha secundária e vindo até mim. No começo, ele veio temeroso, lento, preocupado como um gatinho filhote que ainda não sabe se confia no seu novo tutor. Dei meu melhor sorriso nas circunstâncias em que eu me encontrava e ele se animou em correr até mim.
Me abraçou com força.
Seu cheiro era gostoso, mesmo com toda aquela babosa melecando seu rosto. Pus minha mão em sua nuca encaixando o abraço, enquanto ele rodeava seus dois braços em minha cintura.
— Obrigado, obrigado. Caralho, o que eu acabei de testemunhar? — Perguntou ele me soltando, e finalmente notando que eu estava basicamente pelada. — Merda!
Ele soltou o meu par de tênis verde-limão que trazia nas mãos e baixou sua calça de moletom com toda a naturalidade do mundo, revelando uma cueca box preta básica.
— Por favor. — Estendeu a calça para mim. Vestia-a sem pestanejar. Aproveitei e calcei meus tênis também.
— Você está bem? — Perguntei a ele, enquanto voltávamos pela trilha principal em direção à clareira.
— Sim, quase morri do coração umas oito vezes, mas nada que terapia não resolva. — Ele finalmente sorriu, revelando o homem bonito que eu esperava que ele fosse.
— Terapia é o canal. — Falei suspirando cansada, tentando sorrir.
— Você... está bem?
— Sim, só preciso dormir. Você sabe dirigir? — Perguntei, confiando demais no homem que estava ao meu lado, porém supondo que ele seria o cavalheiro que tinha sido até o momento.
— Sei. — Ele disse quando chegamos no carro. — O que você quer fazer?
— Eu quero ir embora daqui.
— Sim, mas... Você quer ir à polícia?
— Bom, em algum momento isso vai virar uma notícia. Você é o famoso aqui, quer estar envolvido nisso?
— Eu não sei. — Seus olhos de cachorrinho assustados brotaram em minha direção, por cima do capô.
— Decida durante o caminho. Mas lembre-se de que ninguém vai acreditar que eu ou você fizemos isso, e muito menos que um lobisomem o fez. Então pense em uma história convincente e me conte antes de irmos para a polícia. Não sou atriz, mas sou escritora, sou boa com saídas de emergência.
— Ok. — Ele disse, entrando no carro. Entrei no banco do carona, baixei-o imediatamente para conseguir tirar um cochilo enquanto nos tirava dali.
, não quero perguntar nada sobre o que aconteceu hoje à noite, só quero saber que você salvou a minha vida. — Ele disse quando ligou o motor. Olhou profundamente em meus olhos, me fazendo tremer na base por um segundo. — Então, muito obrigado por salvar a minha vida, sei o que você fez ali, disfarçando meu cheiro com babosa, matando os caçadores, espalhando meu odor pela floresta... Vou ser eternamente grato.
— De nada, .
E depois disso, senti minha cabeça pesar. Caí em um sono profundo, sentindo o balançar tranquilo do carro dos nossos sequestradores que fedia a fumo e pólvora.
Nunca me senti tão tranquila na vida.




FIM.


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Nota da autora: Eu finalmente consegui escrever algo do que eu realmente gosto de assistir! Adoro um bom sangue, um bom gore com bastante desgraça e quando isso está relacionado à uma final girl... EU AMO. A fic foi baseada no videoclipe da música Lemon to a knife fight do The Wombats e vale a pena conferir, viu? Gostaria de agradecer a Bruna Freire que sempre me acompanha e dessa vez leu a história antes de ser publicada para me dar um feedback, obrigada meu amor, você é incrível!
Para quem teve coragem de chegar até aqui, meu muito obrigada! E deixa aquele comentário gostoso.

❯ beth's note: cara, mas eu AMEI essa fic! confesso que quando eu comecei, eu não tinha me tocado que o plot era sobre lobisomem (?), geralmente deixo essa parte da tabela pra depois pra poder ter um gostinho de surpresa, e me surpreendi MUITO! quando ela começa a se transformar, eu pulei da cadeira. me bateu um frio no estômago no final pensando que ela podia ter matado ele também, foi quase terror psicológico rsrsrss. mas o karma dessa gente veio e foi muito bom de ver! parabéns, Naya!

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