Revisada por vênus. 🛰️
Concluída em: 31.10.2024
Em um estilo solitário
E derrube os portões do cemitério
Com o vestido que seu marido odeia
— My Chemical Romance, “Cemetery Drive”
Confusa e perdida, eu derramava lágrimas no túmulo de William Ortiz. O epitáfio dizia “amado filho”, mas nada de marido. Por que eu não teria batido o pé e feito a mãe dele colocar algo sobre isso também? Minhas lágrimas incansáveis deixavam tudo ainda mais caótico dentro da minha cabeça. Eu não deveria me sentir estranha e errada ao chorar pela morte do meu marido, deveria? Meu pensamento seguia tão desordenado que eu nem sequer me lembrava do que tinha acontecido. Como será que ele havia me deixado?
Parei para pensar pelo que parecia ser a primeira vez em dias ou semanas. O único vislumbre que passava diante de meus olhos era a nossa última discussão. Nada fora do comum, fazíamos isso o tempo todo. E aquela discussãozinha tinha virado uma briga tremendamente feia. Ainda assim, eu não me recordava da briga completa. Para falar a verdade, não me lembrava de nada além daquilo. A próxima coisa da qual eu tinha memória era de mim, arruinada, perturbada e desnorteada, vagando por entre os túmulos, irremediavelmente solitária diante dessa noite escura e sombria. Solitária, sim, porém não sozinha. Uma estranha sensação percorria cada célula do meu ser e era como se eu soubesse de um único fato: os mortos me faziam companhia e me assistiam aonde quer que eu fosse. O mais assustador de tudo aquilo era que essa certeza nem me fazia tremer.
Ajoelhei-me na frente do túmulo do meu falecido marido e segui com o meu pranto. Como eu era capaz de produzir tantas lágrimas? Isso não deveria ser possível. E pior: por que estava chorando? Por ele? Por mim? Pelo mínimo de lembrança que eu tinha do que acontecera? Eu não conseguia encontrar a resposta por mais que me esforçasse. A última opção era a que parecia mais plausível, afinal nunca desejamos guardar uma última memória tão ruim a respeito de uma pessoa que um dia nos fora querida.
Uma briga tão horrenda e, em seguida, o cemitério. A lacuna era gigantesca. Suspirei alto, para apenas os mortos ouvirem. Minha vida com William não fora nem de perto encantadora, mas eu o amava. Ou ao menos era isso que eu costumava pensar. Agora, porém, um peso devastador sobre mim me fazia afundar entre os outros cadáveres do cemitério.
Levantei-me e tentei deixar aquele lugar. Não podia passar o resto dos meus dias presa em um cemitério, sem nenhuma perspectiva. Tinha que retornar à minha casa, ao meu lar, ou então construir um novo. Vaguei entre os túmulos até a saída, mas estanquei no lugar, bem próximo ao portão de ferro, tão antigo quanto aquela cidade. Não era a primeira vez que eu tentava fazer isso esta noite. Era como se algo me impedisse, me mantivesse presa ali. Um sentimento bizarro e macabro que sempre me fazia voltar até o túmulo de William de novo e de novo outra vez.
E essa era só mais uma das coisas incompreensíveis daquela noite tenebrosa que parecia não ter fim.
Eu também não conseguia entender, de jeito nenhum, por que eu usava aquele vestido preto em uma noite como esta e, ainda por cima, caminhava descalça no meio de um cemitério. Ficava ainda mais difícil compreender quando eu me recordava que, apesar de eu amar aquele vestido, William o odiava com todas as forças. Que merda eu tinha na cabeça para visitar o túmulo dele vestindo a peça de roupa que ele mais odiava?
Por que, afinal, eu continuava a me sentir sob o controle de William mesmo agora que ele estava ali, dentro de um caixão de madeira, a sete palmos debaixo da terra, apodrecendo como ele merecia? William sempre exercera um tremendo controle sobre mim e, ainda que me sentisse mal por pensar coisas ruins sobre ele agora que falecera, eu sempre odiara isso. Mas eu o amava, não amava? Levei minha mão sobre o peito e respirei fundo.
Talvez o uso do vestido fosse porque eu sentia, no âmago do meu ser, como se devesse desafiá-lo.
Um barulho alto cruzou o cemitério, alertando meus ouvidos. Olhei por sobre o ombro enquanto um carro escuro atravessava os portões antigos, agora abertos, do cemitério. Isso não era nem um pouco comum. As pessoas costumavam deixar o carro do lado de fora para então entrar. Não, isso não era verdade, era? Não me lembrava muito bem de pessoas vagando por aqui além de mim.
A SUV foi estacionada não tão longe do lugar em que me encontrava. Um homem alto e bem-vestido desceu, vindo em minha direção. Em um piscar de olhos, o reconheci, permitindo que a calma me banhasse como água morna. . O único homem que amei antes de ter minha vida ligada de maneira absoluta a William Ortiz para todo o sempre. sempre me amara de volta, e isso me reconfortava mais do que qualquer coisa nesta noite sombria.
— . — Sua voz foi um suspiro de surpresa carregado de dor. — É mesmo você?
— Do que está falando? — Franzi o cenho. — É claro que sou eu. Não mudei tanto assim.
— Eu não… Ah, meu Deus! — Ele passou a mão sobre seus cabelos, como costumava fazer quando estava nervoso. — Não consegui acreditar quando me falaram que haviam avistado uma mulher com as suas características físicas andando pelo cemitério com o vestido preto que eu tanto amava vê-la usar. — Fitou-me, embasbacado. — E agora você está aqui, bem na minha frente. Pensei que nunca mais fosse te ver, .
— Sabe que eu jamais me afastaria de você, — falei, atordoada. — Não fui capaz de fazer isso nem quando William ainda estava aqui. Imagina agora, então.
— Ah, pobre … — Encarou-me com pena. — Eu sinto muito mesmo, muitíssimo.
— , do que você…? — Tentei tocá-lo como eu amava fazer, mas algo repeliu o meu toque.
— Deixa isso para lá — pediu, perante minha plausível confusão. — Vou pensar em algo para te ajudar.
— E por que eu precisaria de ajuda, meu bem? — perguntei. — Só estou tentando lidar com o luto.
— Eu sei, e você nem imagina o quanto está tentando. — Ele mudou seu modo de falar, mas uma enxurrada de confusão ainda me inundava. — Eu só quero te fazer lembrar, querida. Escuta só…
Ele passou a mão na região da lateral do meu rosto e, apesar de não sentir seu toque, fechei os olhos por alguns segundos, relembrando como era estar com ele, ser acolhida por ele.
— … — suspirei seu nome.
— Você precisa deixar o William para trás, . Manter-se agarrada a isso não é bom. — Ele respirou fundo, trazendo um pouco de vida àquele palco de finados. — Por mais que eu queira te ter por perto, querida, você precisa entender o que aconteceu e seguir em frente.
Assenti. Eu concordava com aquilo. Sabia que precisava me desprender de alguém que, sim, eu amava, mas que só me fazia mal. Ainda mais agora que ele tinha se ido. Mesmo assim, não entendia por inteiro o que as palavras de significavam. Por que eu não estaria perto dele se seguisse em frente?
— Ainda está angustiada e confusa, não é? — Ele abriu um sorriso triste. — Vem comigo.
— Para onde? — indaguei, temendo deixar o terreno do cemitério.
Ele apenas fez sinal para que o seguisse e, em um instante, eu já descia o pequeno aclive ao seu encalço. abriu a porta de sua SUV e colocou uma playlist de músicas tristes para tocar. De algum modo estranho, aquilo aqueceu o meu coração de um jeito que não acontecia há muito tempo.
— Era isso o que costumava fazer em suas últimas semanas — contou-me. — Escutar essa seleção de músicas e cantar bem alto.
— Será que eu deveria…? — Deixei a pergunta no ar.
— Os mortos não vão se importar — disse ele. — Ao menos eu acho que não. O que me diz, querida?
— Você sabe mesmo como me convencer, não é?
Sorri para ele e cantei a música da vez. Primeiro com a voz mais baixa, que foi se normalizando aos poucos, e então subi meu tom o máximo que pude. Cantei bem alto aquela e as próximas músicas enquanto girava por perto, nunca me afastando demais de e de seu sorriso magnífico.
Então começou a tocar um rock clássico de 1975 e eu acompanhei a voz de Dan McCafferty, cantando “Love Hurts” da banda Nazareth.
“O amor machuca, o amor deixa cicatrizes, o amor fere”. Quando dizia respeito ao amor que eu sentira por William Ortiz, tudo isso era a mais pura verdade. Com , no entanto, nosso amor jamais fora como uma nuvem que continha muita chuva. Com , o amor jamais me machucara. Com William Ortiz, porém… Sacudi a cabeça. Eu não gostava nem de pensar a respeito. Ainda assim, aquela música me despertava emoções que jamais conseguiria explicar. E, me observando cantá-la a plenos pulmões, demonstrava-se contente com o resultado.
A canção me fizera recordar os momentos em que eu bebia para esconder o quanto estava desolada, afundada em tristeza por meu casamento com William não funcionar como deveria… Por minha vida inteira estar sendo sugada ralo abaixo. E então eu corria para o carro e colocava as melhores músicas lentas para cantar em alto e bom som, como se aquilo fosse resolver todos os problemas do meu casamento.
No entanto, eu chegava em casa e tudo acabava da mesma forma. E aquela vez tinha sido ainda pior. O amor de William Ortiz era mesmo apenas uma mentira criada para me deixar triste. Parecia que aquela música fora escrita para mim.
— Ah, , querida. Você ainda não consegue se lembrar de tudo, não é? — me olhava com tanto pesar que eu sentia um aperto doloroso no fundo de minha alma. Eu só queria abraçá-lo e ouvi-lo dizer que tudo ficaria bem mesmo quando sabíamos que não iria. — Eles te encontraram no chão do banheiro.
E então, com aquelas simples palavras, tudo se iluminou ao meu redor. Era como se eu estivesse cega por longas e longas noites e, de repente, com um baque dolorido, toda a visão voltasse para mim. Dei alguns passos para trás, como se aquele gesto fosse me afastar das memórias há tanto evitadas. Mas tudo vinha como um turbilhão de imagens passando pela minha cabeça.
Eu lá, bebendo, mergulhando em tristeza enquanto tudo afundava ao meu redor. Eu gritando aquelas músicas no meu carro como um último pedido de socorro que poderia fazer na curta vida que ainda me restava pela frente. William extremamente violento quando passei pela porta de entrada da nossa casa usando aquele vestido preto que ele tanto detestava. Suas agressões psicológicas, verbais e físicas contra mim. Os novos hematomas tomando cor em minha pele como se o meu sangue gritasse por ajuda para fugir daquele caos. A dor que me consumia por ter que sofrer daquele jeito nas mãos da pessoa que deveria me amar e respeitar. E como não fora nada divertido ter uma arma carregada apontada para o meu rosto enquanto eu caía e me arrastava pelo chão do banheiro, tentando fugir de William. Tudo em vão.
Eu me lembrei, então, do meu último suspiro. E mais do que isso, o alívio no instante em que percebi que William nunca mais poderia encostar um dedo em mim.
Agora eu finalmente podia entender o que queria dizer com seguir em frente. E por que não poderia estar perto dele se fizesse isso. Ainda assim, era o que eu deveria fazer.
— Muito obrigada, . — Sorri para ele. — Queria que tivéssemos tido uma outra chance.
— Eu também, minha querida. — Sorriu de volta. — Mas pelo menos o nosso amor foi bom enquanto durou.
— E durará para sempre — garanti, levando minha mão ao coração. — Agora preciso ir, meu bem.
Dei-lhe as costas e me afastei um pouco mais. Avistei o túmulo de William Ortiz. Parecia que ele havia falecido logo depois, então. Não pude deixar de me perguntar se tinha recebido o que merecia. De qualquer modo, não me importava mais o suficiente. Eu nem mesmo desejava saber como havia acontecido. Não dizia respeito a mim.
Olhei para mais uma vez.
— Foi você, não foi? — Não pude evitar a curiosidade. Ele assentiu com um aceno, já sabendo ao que eu me referia. — Obrigada de novo, então.
— Adeus, — murmurou.
— Até mais, — disse apenas.
Era bom saber que William Ortiz havia partido e que não poderia causar a nenhuma outra mulher o mal que um dia causara a mim.
Nunca mais.
Abri os braços e olhei para o céu escuro e estrelado acima de minha cabeça com um sorriso libertador em meu rosto. Enfim livre para seguir em frente.
FIM.
Nota da autora: AI QUE DOOOOOR. Eu amo esse continho, juro, mas ele tbm me deixa triste. Espero que tenham gostado da história. E culpem o My Chemical Romance pela dor, afinal, me inspirei na música deles hahahah Tia Fran ama vcs <3
❯ beth's note: sou suspeita, mas AMO fics de fantasmas! ainda mais uma fanfic que mostra o estado mental deles, a confusão e a ficha caindo de "caramba, tô morto(a)". que delícia sem igual foi essa short, muito boa mesmo, deixou um mistério incrível no ar mesmo em poucas páginas. parabéns, Fran!
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