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Codificada por: Lua ☾

Última Atualização: 28/02/24

Na cidade moderna, no meio de um subúrbio brasileiro, havia um pequeno bairro que parecia ter parado no tempo. Esse núcleo era por pequenos comerciantes, trabalhadores, ambulantes e estudantes, ou seja, pessoas normais, gente como a gente. As casas ainda tinham pisos de madeira e paredes com azulejos clássicos, onde as crianças ainda brincavam na rua e a vizinhança parecia ter saído de um núcleo de uma novela das nove. Havia casas com quintais e pátios simples, uma rua de flores e uma história em cada esquina.
Em uma dessas esquinas, habitava a história de um primeiro amor, o de Maria Luiza e Calebe.
Aos oito anos, Maria Luiza de Souza era uma menina que colecionava contradições. Era tímida e falante, educada, mas calada. Quieta, mas travessa. Com seu pai, mansidão. Com sua mãe, impaciência. Com Calebe, curiosidade e desconhecimento.
Aos dezoito anos, Maria Luiza agora era apenas Malu e estava aprendendo a equilibrar seu espírito de menina levada com a sempre aparente timidez e o sereno. Agora seu pai era saudade. Sua mãe, era distância. E Calebe, era sua hesitação.
Aos vinte e oito, ela não era mais Malu, nem Maria Luiza. Na verdade, ela não sabia muito bem quem era. Às vezes, era Maria, às vezes Luiza, às vezes, ela não queria ser ninguém.
Aos oito anos, Calebe era dela. Aos dezoito, Calebe ainda era dela. Aos vinte e oito, Calebe, mesmo de longe, ainda era dela.
Maria Luiza e Calebe eram namorados, todos sabiam disso até quando eles mesmo não sabiam. No começo, ninguém imaginava que aquilo não seria uma coisa passageira, ninguém imaginava que era algo forte e sincero. Entretanto, entre tantos acasos e tantas histórias, ali pelo meio da vida, todos começaram a compreender que aquele casal era “aquele” casal.
Entre tantas falhas, tantas esquinas, entre tanta incerteza, risada e cantadas. Entre tantos planos, acertos, ciúmes. Entre tanto colo, amizade, sacanagem, conquistas, vontade, sexo e perdoes. Entre tantos “entretantos”, Maria Luiza e Calebe caminhavam de mãos dadas pela sua história, lotada de virgulas, travessões, aspas, e nenhum ponto final.

“O amor pode surgir de repente, em qualquer etapa da vida, é o que todos os livros, filmes, novelas, crônicas e poemas nos fazem crer. É a pura verdade. O amor não marca hora, surge quando menos se espera. [...] alguns têm a sorte de encontrar seu grande amor no momento adequado.
Outros resistem às pressões sociais e não trocam seu grande amor por outros planos, vivem o que há pra ser vivido, não importa se cedo ou tarde demais. Mas grande parte da população dança conforme a música.
Um pequeno amor, surgido entre os 25 e 30 anos, tem tudo para virar um grande amor. Um grande amor, surgido em outras faixas etárias, tem tudo para virar uma fantasia”.


Martha Medeiros.

“Doce lugar que é eterno no meu coração, que aos poetas
traz inspiração pra cantar e escrever”.
Meu Lugar – Arlindo Cruz


Lá em um dos muitos subúrbios brasileiros, existia um bairro chamado Saudade. Não é poesia, é geografia. O nome do bairro surgiu logo após a invasão dos portugueses em território indígena e o bairro pequeno e charmoso logo começou a ter nome de sentimento.
Lá em alguma rua paralela do bairro da Saudade, existia uma rua de flores. A rua das flores. Não é poesia, e também não era florida do início ao fim. O nome se deu por conta do fato da rua abrigar uma pequena passagem completamente florida que havia na esquina. As paredes eram completamente cheias de flores, do início ao fim, de cima para baixo e todo mundo sempre quis saber se aquilo ali era invenção dos vizinhos ou da natureza.
Para ela, sempre parecia ser uma grande aventura caminhar entre os galhos espalhados pelo chão da pequena passagem das Flores para chegar na rua de cima. Olhando de longe, parecia até que o verde das folhas predominava, mas chegando perto, era possível ver que era o contrário. As flores estavam em maior número. Todos os tipos de rosa, todos os tamanhos e algumas até tinham cheiros diferentes. Sabia disso pois perdia tempo demais ali, analisando cada uma.
Nos finais de tarde, quando o sol tocava nas paredes, a junção de todas as cores deixava tudo em tons que não existiam em nenhuma paleta de cores. A garotinha, de cabelos cacheados e olhos tão negros quanto um céu sem estrelas, criava um caminho com o dedo indicador entre as flores e observava atentamente a mudança de cores.
Astuta e inteligente demais para seus oito anos de vida, curiosa o suficiente para deixar seus pais de cabelo em pé com tamanha sagacidade.
- Maria Luiza! – A voz estridente fez a menina pular no lugar tamanho o susto e olhar para trás, procurando a dona da voz, que ela conhecia muito bem. – Eu falei pra você ir direto pra casa da Ana!
- Eu tô’ no caminho, mãe! Sabia que é preciso passar por aqui pra chegar naquela casa ali? – Retrucou, cruzando os braços, ainda com a caixa de presente em mãos. As respostas atrevidas da menina faziam o sangue da mãe esquentar em suas veias.
- Você não me provoca, Maria Luiza! – A mulher gritou da janela de sua casa. As madeiras da pequena casa tremiam com os gritos diários de Maria Luiza e sua mãe. Não tinham uma relação ruim, mas a audácia da menor não combinava em nada com o pavio curto da mãe. – Eu jogo minha sandália direto nessa tua boca atrevida!
- Vai chegar nas Olimpíadas desse jeito, mamãe! – Gargalhou, travessa, imaginando a sandália da mãe criando asas no meio do caminho até chegar a ela.
Mas nem a irritação de Andréia resistia à risada graciosa e infantil da menina. Sem aguentar manter a pose de brava, a mulher não aguentou e acabou soltando uma risada meia contida. Detestava quando a menina a desafiava, mas quando aquela risada gostosa surgia, era difícil manter-se irritada.
- Será que dá pra vocês duas pararem de gritar? – O tom de voz risonho mostrava que o homem escutou a pequena discussão entre as duas. João, o pai de Maria Luiza, apareceu na janela também, colocando o braço sob os ombros da esposa. Mesmo sendo um homem calmo e manso, (às vezes até demais), João era o único que conseguia acalmar os nervos das duas. – A vizinhança inteira já escuta vocês gritarem o dia inteiro.
- A sua filha me dá nos nervos, João! – A mulher reclamou, mas sem conseguir esconder o sorriso. Era impossível não notar que as duas tinham gênios fortes, eram iguais e por isso, eram tantos os embates.
- Anda, Malu! Vai logo e avisa a Ana que não vamos demorar. – Informou o pai, apontando para o caminho atrás da menina. – Sua mãe só tá esperando a torta ficar pronta.
- E por que eu não posso ir com vocês? – Replicou, emburrada.
- As crianças já estão todas lá, Malu! – João explicou, pacientemente, segurando um sorriso ao vê-la bufar, cheia de atitude.
Apesar de ser muito comunicativa, esperta e extrovertida, Malu não tinha muitos amigos na rua e pelo que os professores contavam, também não tinha na escola. O pai desconfiava que a menina era avançada demais e a mãe apenas achava que ela era “enjoadinha” demais. Nada explicava o atraso nas amizades da menina. No fundo, eles se preocupavam. Sempre era meio triste ver a garotinha brincar sozinha.
- Malu, vai logo. O sol já tá baixo e você ainda tá aqui, resmungando igual uma velha. – Andréia vociferou. Aborrecida, estirou a língua em direção a mãe e antes que a sandália da sua mãe realmente chegasse até ela, correu pelo caminho florido. – Maria Luiza!
João gargalhou, observando os cachos da menina balançarem conforme ela corria pela rua. A risada de Maria Luiza era completamente espelhada no pai, talvez por isso Andréia nunca conseguia resistir quando a menina ria. Ela era apaixonada pelo sorriso de João.
- Essa sua filha é demais! – O homem riu, acariciando os cabelos da mulher.
- Só minha? Eu não fiz nada sozinha não, João! – Respondeu, acariciando as têmporas. – Essa menina ainda vai me deixar maluca...
A garota correu, gargalhando alto. Sentia uma adrenalina maravilhosa toda vez que enfrentava a mãe. Sabia que sempre acabaria encrencada, mas não perdia oportunidades. Seu riso foi morrendo quando se deu conta que a viela estava chegando ao fim.
A entrada de folhas e galhos costumava ser o point preferido das crianças do bairro da Saudade, a tal entrada pela passagem era o caminho mais rápido para chegar na rua de trás, onde acontecia o aniversário de oito anos de Calebe.
Ele era o filho de Ana, sua vizinha da rua de cima e grande amiga de seus pais. A única coisa que separava as ruas em que moravam era a tal da passagem. Ela sentia que conhecia o menino desde sempre, pois não lembrava de ter sido apresentada a ele. Eles brincaram juntos algumas vezes, mas ela nunca tinha trocado palavras com ele que não fossem “tá com você!” e a famigerada “passa a bola”.
O barulho de crianças gritando aumentava a cada passo que Malu dava e ela já se sentia estranha. Não tinha problemas em socializar, mesmo que não soubesse muito bem o que essa palavra significava. Saía-se muito bem na maioria das vezes que precisava lidar com outras crianças, mas as crianças que andavam com Calebe eram demais para ela.
Quando chegou em frente da casa de alvenaria azulada, pensou duas vezes. Olhou para o presente em suas mãos, pensando no que diabos falaria para um menino que ela nem conhecia. Se voltasse para casa, estaria encrencada. Se entrasse, estava perdida. Pulando em uma amarelinha imaginária, chegou em frente à porta de madeira e bateu três vezes. Como ninguém atendeu, resolveu entrar, ninguém iria expulsá-la mesmo.
A sala da casa era familiar a ela, estivera ali algumas vezes com seus pais. Estava lotada de balões verdes, o cheiro de churros contaminando tudo, alguns adultos sentados nos sofás e alguma música infantil saindo do toca-discos. Andou pelo lugar, tentando puxar pela memória em qual dos corredores ficava a cozinha e quando encontrou, viu Ana servindo refrigerante para algumas meninas e foi até ela. A ideia de ter que encontrar as crianças certas para brincar estava deixando-a ansiosa.
Ana, assim que reconheceu a cabeleira cacheada, abriu um sorriso e cumprimentou a filha do casal de amigos que ela mais tinha apreço.
- Malu! Cê tá a muito tempo aí? – Perguntou, carinhosamente, tocando em um dos cachinhos da menina.
- Acabei de chegar... – Malu olhou em volta, estranhando a calmaria na cozinha da mulher. – Cadê todo mundo, tia?
- Ah, a festa inteira está no quintal, todo mundo tá lá! – Explicou, limpando as mãos no avental. – E seus pais?
- Estão vindo, me obrigaram a vir logo. – O rolar de olhos da menina fez Ana rir com vontade. Tão pequena e cheia de atitude.
Seria ótimo se Malu e Calebe fossem mais próximos. Quer dizer, pensando bem, seria um pesadelo. Ele não era muito diferente de Maria Luiza quando o assunto era atitude.
- Então, aproveita que hoje você tá toda independente e vai brincar lá no quintal com todo mundo. – Guiou a menina pelos ombros até a parte de trás da casa. – Vamos atrás do Calebe.
Quando chegou ao quintal, Maria Luiza suspirou profundamente. Crianças, correndo que nem loucas. Ela enxergou Calebe, ele estava lá. Correndo com uma bola na mão, tão suado que a camisa já estava de outra cor de tão molhada. Ela fez uma careta. Ela queria brincar também, mas já estava se sentindo envergonhada de ter que invadir a “panelinha” de amiguinhos que brincavam todos os dias juntos.
Ana não anunciou, mas sentiu todas as crianças parando para observá-las. Seria uma longa noite.

જજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજ

Após longas horas de correria, brincadeiras e novidades, Calebe cansou de brincar com os carros novos que tinha ganhado de presente e os largou no meio da sala. Já não havia quase ninguém em sua casa, já passava das onze da noite e o menino, que sempre aproveitava seus aniversários intensamente, já estava com sono e cansado. Foi até o quintal, ver o que faltava para sua mãe ir checar o garoto, descobrir se ele já queria ir dormir.
Não foi surpresa quando chegou lá e encontrou sua mãe e os amigos João e Andréia sentados em volta de uma mesa enquanto riam juntos. Calebe gostava do casal, já tinha se acostumado com a amizade entre eles. Todo aniversário, comemoração ou festa na rua, os três amigos sempre ficavam juntos e sempre eram os últimos a sair.
Se envolviam em conversas nostálgicas da época de escola, entre piadas e brincadeiras, principalmente com o jeito mal-humorado de Andréia e o jeito leve e gentil que João e Ana dividiam. A visão dos três sentados na mesa de plástico, tomando uma cerveja e o toca discos do lado era comum. E não só para ele.
- Eu tô morrendo de sono e eles não param nunca! – A voz irritada veio por trás dele.
A menina estava sentada no balanço de pneu que o avô fizera para ele, parecendo estar entediada ao máximo. Balançava as pernas, olhando para seus próprios tênis, em uma tentativa de manter-se acordada.
- Quantas garrafas eles já beberam? – Questionou, virando-se para ela. Ele achou graça da posição largada da menina, combinava com a feição irritada.
- Já é a nona! – Respondeu, contando o número de garrafas de vidro que estavam debaixo da mesa novamente. Calebe fez uma careta. Também estava cansado e com sono, mas não queria ir dormir sozinho. Precisava do aconchego e do “boa noite” da mãe.
– No seu aniversário, eles beberam quinze garrafas. – Comentou, resmungando baixinho.
Maria Luiza fazia aniversário um dia depois dele e como foi citado, era uma cena recorrente. Os dois tinham que ficar esperando os pais acabarem suas cervejas para poderem ir para casa, finalmente. Era uma das únicas vezes no ano em que os dois eram obrigados a obter uma comunicação.
- Ah, que droga! – A menina reclamou. Calebe olhou em volta e não havia muito o que fazer.
Sentia-se tímido e acanhado ao lado de Maria Luiza. Ao longo da noite, ele a convidou para o pique esconde, para o pega-pega, ofereceu brigadeiros e ela ainda parecia fora de órbita. Parecia viver em outro mundo, não se encaixava em lugar nenhum. Os amiguinhos da escola importunaram ele a noite inteira, pois todo mundo ficou empolgado ao ver que a menina bonita da rua de baixo tinha ido ao aniversário de Calebe.
- Eu já abri meus presentes, ganhei tanta coisa legal! – Exclamou, empolgado. Até havia esquecido que estava com sono. – O que você me deu mesmo? – Decidiu perguntar algo que ele já sabia a resposta.
- Um livro!
- O Pequeno Príncipe. – Afirmou rápido demais. Malu estranhou, mas preferiu não falar nada. Se ele já sabia, por que havia perguntado? Era o mesmo presente de todos os anos. Ele percebeu a feição da menina e explicou. – Foi o único livro que eu ganhei.
Livros eram a terceira coisa que João – pai de Malu – mais amava no mundo, depois dela e da mãe, é claro. Calebe sabia disso, ganhava livros do homem desde o primeiro aniversário que tinha em sua memória. Não era uma reclamação, ele gostava dos livros. Desde cedo, foi influenciado pela mãe a ter grande apreço pela leitura, talvez o fato de a mulher não ter o ensino fundamental completo tenha impulsionado esse propósito.
Ficaram em silêncio, sem saber o que falar, sem conseguir se olhar. De longe, os mais velhos observavam os dois minuciosamente, sem conseguir conter o sorriso. Tudo no cenário era amável demais. Talvez fosse o álcool, mas eles até conseguiam ver as cores mais acentuadas e tudo mais brilhante. Malu balançava-se no pneu, olhando para o céu. Calebe estava ao seu lado, com os braços para trás, encarando os próprios pés. Olharam-se de soslaio e quando os olhos se encontraram, fugiram, acovardados.
A lua cheia no céu deixava tudo mais gracioso, parecendo uma adorável cena de filme.
Calebe não sabia o que falar para a menina. Não a conhecia, a via algumas vezes no ano, brincaram na rua, nas festinhas e só. Ela estudava na escola do bairro, ele estudava no colégio de um outro distrito. Não tinham nada em comum. Então, pensou que deveria tratá-la como lidava com todas as outras crianças de sua idade.
- Você quer brincar? – Ele perguntou, nervoso ao pensar na possibilidade de ser rejeitado.
Malu desviou o olhar do céu para encarar o menino. Então, ela sorriu e assentiu, saindo de dentro do pneu.
E foi assim, aos oito anos de idade, que Calebe prestou atenção no sorriso de alguém pela primeira vez.

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“Eu não sabia que doía tanto
uma mesa num canto, uma casa e um jardim
[...]
Naquela mesa ‘tá faltando ele
e a saudade dele ‘tá doendo em mim”.

Naquela Mesa – Nelson Gonçalves.

Maria Luiza não lembra do que tinha acontecido após receber a notícia, não lembra da missa de sétimo dia, mas sabia que tinha sido no dia do seu aniversário de dezoito anos. Também não lembra perfeitamente dos meses seguintes.
O seu mundo entrou no piloto automático a partir do momento que descobriu que seu pai, seu amoroso e perfeito pai, havia falecido após um trágico acidente de moto na estrada de uma cidade vizinha de Vitória.
João foi o pai dos sonhos de toda menina. Era companheiro, carinhoso e compreensivo. Amava livros, amava poesia e amava mais ainda suas parceiras de vida: Malu e sua mãe, Andréia. Ambas, apesar de não serem tão apegadas uma na outra, eram extremamente apegadas a João e a convivência só era fácil quando ele estava por perto.
Malu gostou da ideia de ir morar em outro lugar quando seu pai foi promovido no emprego para ser gerente de uma nova empresa metalúrgica. Até chegar em Vitória. Nada contra o Espírito Santo, o estado era incrível e a capital melhor ainda. A cidade era linda, o clima era ótimo, o problema... Era ela. Era sempre ela. Maria Luiza simplesmente não se encaixava em lugar nenhum. Se sentia uma estranha em todo lugar que passava, se sentia intrusa em sua própria casa.
Os dez anos morando lá foram uma grande confusão para a garota. Ela se esforçou e se esforçou para viver. Fez alguns amigos e tudo mais, mas sentia falta de sua casa, dos estalos na madeira, do seu quarto simples. Se pegou sentindo saudades até de brincar na rua, porém, já não sabia dizer se era saudades de casa ou saudades da infância, agora que já estava crescida.
Pesarosa, olhou em sua volta, tomando coragem para ir até as malas ainda fechadas. Já fazia dias que estava de volta, mas não conseguia se mover. Ela e a mãe resolveram voltar ao bairro da Saudade poucos meses após o acidente que desgraçou suas vidas.
Aquela casa era tudo que elas tinham e, apesar de Malu ter crescido ali, era em Vitória que as lembranças com seu pai borbulhavam. Andréia sentia-se da mesma forma, por isso preferiu voltar, pensando que ao menos teria mais conhecidos ao seu lado. Mas a teoria nunca chegou na prática e quase ninguém sabia que elas estavam de volta. Ela sentia que precisavam primeiro acostumar-se com a ideia da ausência de João, para depois pensar em receber visitas.
O toque estridente do celular tirou Malu de sua inércia. Ela teve que correr para atender, devia ser a ligação que ela esperava. Assim que desligou, virou-se, olhando em direção ao corpo largado no sofá. Não se arrependia nenhum pouco de ter se matriculado no cursinho em período integral. Não queria lidar com a própria mãe e sua provável decadência, não queria ter que ser o porto seguro da casa e principalmente, não sabia se iria suportar.
Após o acidente que findou a vida de seu marido, Andréia dormia. O dia inteiro. Acordava para o jantar e voltava a dormir. Assistia um filme e voltava a dormir. Malu não a culpava, queria fazer o mesmo, só não conseguia. Ela era o total contrário da mãe, virava noites e noites acordada. Às vezes, chorava, mas na maioria das vezes, apenas divagava.
Sonhava acordada com uma realidade alternativa, onde sua mãe tinha forças para brigar com ela, onde ela havia passado no vestibular e seu pai não estava morto.

જજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજ

- Calebe! Tira esses óculos, garoto! – A menina gritou, rindo. – Eu seguro pra ti!
É claro que o garoto já tinha percebido que exalava flertes e segundas intenções dos poros de Gabi, mas achava melhor não dar muitas esperanças, pois tinha mais interesse em Clara, a melhor amiga dela. Entretanto, ele também não destruiria o coração da menina. Não por gentileza, mas sim para ter uma segunda opção mesmo. Ele não era maldoso, só era um garoto de 18 anos e era assim que a vida funcionava para ele.
- Se eu tirar, não enxergo nada. – Justificou, piscando para Gabi, deixando-a cheia de sorrisos. – Vou acabar chutando essa bola na casa da vó do Tiagão! – Exclamou, ajeitando o objeto no rosto.
- Ué, tá liberado falar da vó? – O rapaz exclamou e correu até Calebe, soltando um soco em seu braço. – Otário, você é otário! – Reclamou, ocasionando risadas entre todos ali.
A pelada no final da tarde das segundas-feiras já era tradição entre os jovens adolescentes do bairro da Saudade. Todos se encontravam na Passagem das Flores assim que o sol começava a se pôr, pois era o horário em que todos já estavam livres de seus afazeres domésticos e estudantis.
Os jovens que foram vizinhos a vida toda – os que cresceram brincando de travinha na rua, os que moravam nas ruas que eram divididas apenas pela passagem – se reuniam e era a maior algazarra. Os meninos jogavam futebol e as meninas ficavam sentadas nas calçadas, esperando a sua vez de jogar também (apesar da “vez” quase nunca chegar). Enquanto isso, observavam, lançando seus melhores sorrisos e jogadas de cabelo.
Desde que entraram na adolescência, a pelada da tarde passou a ser o maior ponto de flerte. Sempre acabava surgindo um novo casal após o jogo, sempre rolavam uns beijinhos desprendidos que viravam comentário no outro dia. E não era errado dizer que Calebe era um dos assuntos preferidos das meninas. E dos meninos também.
O rapaz – mesmo sem querer – chamava atenção. Não só por ser inteligente e ter passado no vestibular, mas também por ser gentil, extrovertido e, bem... Era bonito. Após seus dez anos de idade, não demorou muito para que as menininhas começassem a vê-lo com olhos de cobiça. E os meninos, todos queriam ser amigos dele. Por que não? O cara sempre conseguia as melhores arenas para jogar futebol, sempre apresentava as meninas mais bonitas e era confiável, sendo conhecido por ser o fiel escudeiro de todos os seus amigos. Era engraçado, divertido e se dava bem com quase todo mundo. Calebe era popular e todos queriam tê-lo por perto.
Maria Luiza desceu no ponto de ônibus e andou calmamente pela calçada. Já estava assistindo aula no cursinho a duas semanas e ainda estava familiarizando-se com os caminhos novamente, mas passar por aquela passagem – que agora ela via que estava lotada de pessoas – estava fora de seus planos. Não sabia explicar muito bem o porquê de um lugar causar tantos sentimentos nela.
Sinceramente? Lembrava de seu pai. Tudo naquele lugar lembrava ele e aquela passagem não ficava de fora, pois ela lembrava com clareza de sentar-se nas calçadas e brincar com as flores caídas no chão enquanto seu pai lia alguma historinha infantil clássica para ela.
Suspirou e pensou quatro vezes antes de seguir caminho. Ela poderia ir direto para casa, mas estava morrendo de vontade de ir falar com a tia Ana. A viu no mercado pela manhã quando ia para a aula, mas não teve coragem de ir falar com ela. Malu passou o dia inteiro pensando na mulher baixinha e em como ela não tinha mudado nada em todos aqueles anos. Continuava jovem e sorridente.
Também sentiu uma saudade apertada no seu coração, nem sabia que gostava tanto daquela mulher. Assim como tudo no bairro da Saudade, talvez a tia Ana também despertasse nela a lembrança de seu pai.
Arrumou a bolsa no ombro e segurou com força a sacola com alguns cupcakes que havia comprado na padaria. (Não queria chegar na casa da tia de mãos vazias). Respirou fundo e foi. Seu temor aumentou à medida que se aproximou do aglomerado e notou que eram pessoas da sua idade, esperando pelo próximo alvo de comentários. Poderia dar a volta, apenas para não precisar passar ali, mas ela sabia que não iria. O outro caminho era muito mais longo e perigoso.
- Ué, tem gente nova aqui na rua? – Pablo comentou ao pé do ouvido de Calebe e Lucas, que discutiam acerca de alguma penalidade cometida no jogo.
Ambos franziram o rosto, confusos com a afirmação do amigo. O menino apenas apontou com o queixo, para algo atrás deles. De fato, Calebe não conhecia aquele corpo curvilíneo, mas conhecia aqueles cachos. E, estranhamente, conhecia aquele andar.
Calebe esqueceu da existência de Malu até aquele dado momento. A última vez que ouvi falar dela e de sua família foi há nove anos atrás. Lembrava da mãe comentando que a família iria se mudar para o Espírito Santo devido ao emprego de João e lembrava do dia que sua mãe contou a fatalidade que havia acontecido com o tio João, que mesmo morando em outro estado, ainda mandava livros de presente no seu aniversário.
Suas lembranças de infância não eram tão firmes em sua mente, mas não era difícil lembrar do homem formidável que João era. Ele sentiu sua boca se abrir disfarçadamente, não é possível que era ela! A saia jeans curta também não o ajudou muito no discernimento.
Calebe se sentiu desconfortável por ela quando os meninos começaram a incomodá-la, soltando assobios e risadas. Também ignorou os comentários das meninas, sendo a maioria maldosos. E ela estava extremamente irritada, pois assim como Calebe, também teve que ouvir dos elogios as críticas.
Ela também lembrava dele. Calebe era uma lembrança muito distante em sua memória, mas vendo-o de perto, ela recordava-se quase perfeitamente do filho de Ana. É claro que ela notou que o menino gordinho de sua infância agora era bonitinho o suficiente para arrancar uns suspiros por aí.
Eles não sabiam o que fazer. Tinham certeza de que um lembrava do outro, mas não sabiam como se cumprimentar, nem se deviam fazê-lo. Cada passo que ela dava, aproximando-se mais dele, causava um desconforto no estômago de cada um. Então, quando ela estava próxima demais, no desespero de não passar despercebido, ele falou:
- Maria Luiza. – Enunciou, simplesmente. Como se estivesse apenas constatando um fato.
“Ufa! Ainda bem”, pensou ela, mas ficou confusa e sem entender muito bem seu alívio ao ser cumprimentada por ele.
- Oi. – Ela não parou de andar para falar com ele, mas ela o respondeu e abriu um sorriso.
Ele podia não conhecer o novo corpo de Malu, nem seus cachos soltos, mas ele conhecia aquele sorriso.

જજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજજ

“Ela é igualzinha ao João!”, pensou Ana, enquanto observava a menina abrindo as portas da estante da cozinha.
De fato, Malu tinha o gênio forte e a desenvoltura da mãe, mas fisicamente, era o pai. A risada, os trejeitos e os olhos pequenos eram inteiramente de João e não demorou muito para Ana sentir-se fragilizada com a súbita saudade do amigo, que a abateu rapidamente.
- E você tá gostando do curso? Você costuma sair esse horário mesmo? – Ana perguntou, curiosa e mordiscando um pedaço do bolinho.
Já estava escuro lá fora, preocupava-se com a menina ficar andando por aí sozinha. Ela já era crescida e o bairro não era muito perigoso, havia lugares piores para se viver, mas ainda era uma mulher. E ser mulher nessa sociedade, nesse país, já é uma luta diária.
- Tô, sim! É integral, entro às oito da manhã e saio de noite todos os dias. – Explicou, pegando duas xícaras e colocando na mesa. Ela mesma resolveu fazer um chocolate quente para tomar com tia Ana. A mulher também havia acabado de chegar e parecia cansada. – É bem puxado, mas pelo menos, me mantém ocupada. – Pareceu amofinada, de repente. O que não passou despercebido pelos olhos maternos e atentos de Ana.
- Como estão as coisas, meu bem? – Perguntou, afavelmente. Malu sabia que ela não estava mais falando sobre o curso.
- Ah, estão... – Malu serviu as duas enquanto pensava em uma palavra para descrever sua situação. Nenhuma parecia servir. Sentou-se na cadeira da mesa de jantar ao lado da mulher.
Seus olhos encheram-se de lágrimas quando notou a expressão triste de Ana. Sabia que a mulher não estava olhando-a com pena, como todo mundo que ela conhecia. Sabia que Ana também estava sofrendo genuinamente.
- Ah, minha linda... – A mulher acariciou o rosto da menina, limpando algumas lágrimas fujonas.
- Ela dorme o dia inteiro, tia. – Contou a menina, tentando conter as lágrimas. Não tinha com quem conversar ou desabafar, fora um alívio poder finalmente falar sobre com alguém que realmente conhecia sua história. – Eu não sei o que fazer. Me assusta, às vezes.
- Malu, eu nunca conheci pessoas que se amassem tanto quanto seus pais. Eu não vou mentir para você e dizer que vai passar logo e tudo vai ficar bem. Mas o que eu puder fazer por você... Me avisa qualquer coisa, ok? – Pediu, tentando sorrir, mas um tanto desanimada.
- Ela falou com você? – Malu quis saber e não foi surpresa quando a mulher negou com a cabeça, tomando um gole de chocolate. – Ela não avisou ninguém que a gente tinha voltado.
- Eu entendo, sabe? Eu faria o mesmo. Não é como se eu quisesse ver ela também... – Confidenciou, parecendo envergonhada.
- Como assim?
- As lembranças, Malu. Lidar com as lembranças é a pior parte. – Explicou, olhando para as próprias mãos. – É difícil até olhar para você. – Ana olhou para a feição confusa da menina. – Você é tão parecida com ele, Malu!
Malu sorriu para a mais velha e pegou-se pensando que talvez a realidade fosse demais para a mãe e entendeu. Talvez quando a mulher acordava e via o rosto de João no rosto de Malu fosse demais para lidar. Ela entendia, também era difícil para se manter na própria realidade.
- Então, me conta! – A mulher limpou o rosto, tentando espantar as lágrimas e feição amuada. – Com quantos anos você tá?
- Dezoito anos. – Malu riu, admirando a vontade da tia de manter uma conversa.
- Ah, é! Você faz aniversário um dia depois do Calebe. – Recordou-se, pensando em todos os aniversários infantis que ela planejava com os amigos, que sempre eram bondosos e a deixavam utilizar as sobras de decoração das festinhas de Malu.
- Eu acabei de ver ele ali na passagem. – Ela comentou, observando as fotos do garoto presas na porta da geladeira e nas paredes da cozinha.
Era daquele Calebe ali que ela se lembrava, o menino rechonchudo que corria pela rua, sebento e emporcalhado. Ainda não reconhecia aquele com costas largas e bumbum redondinho que tinha visto a pouco.
- Tava jogando bola, né? – Malu confirmou, assentindo. – Ele passou no vestibular, sabia? Na federal! – Contou, sorrindo verdadeiramente pela primeira vez na conversa.
- Jura, tia? Que ótimo! – Malu exclamou, feliz. Não sabia muitos detalhes, mas sabia que a mulher teve uma vida sofrida. Era ótimo que ela estivesse calando a boca de várias pessoas que a julgaram por ser mãe solteira aos dezesseis anos. – Passou em que?
- Administração. – Sorriu, orgulhosa. – Queria que ele fizesse alguma área da saúde, mas ele disse que não “curte essas paradas de médico”. – Parafraseou o que o filho a explicou diversas vezes.
- Não combina em nada com ele mesmo, tia. – Concordou. – Fico feliz em ver que vocês estão bem. – Comentou, sorrindo.
Era isso que ela esperava, de alguma forma. Ver que Ana e Calebe estavam bem significava que o mundo estava bem, então.
- Estamos, querida, estamos bem. Calebe é um menino de ouro. – Sorriu, orgulhosa, lembrando das traquinagens do menino, que eram devidamente recompensadas por seu jeito gentil. – O único trabalho que me dá é com as meninas. Ô menino pra ter pretendente! Já deve ter quebrado o coração das meninas de todo o bairro...
Malu gargalhou, negando com a cabeça. No fundo, ela já conseguia entender muito bem o porquê de Calebe ser o mais admirado do bairro.
- O Calebe era um amor mesmo... – Malu comentou, usando a faca para cortar um pedaço do bolinho que repousava na mesa.
- Eu ainda sou! – A voz grave soou atrás das mulheres, fazendo-as pularem no mesmo lugar.
O pedaço de bolo quase ficou preso na garganta de Malu, fazendo-a engolir com um pouco de dificuldade. Não por conta do susto, mas por saber que o menino estava ali, dirigindo a palavra a ela. Malu se sentiu ridícula, já não era mais tão adolescente assim para se sentir tão nervosa só por estar perto de um cara bonito.
Calebe sorriu de lado e acenou quando a menina o olhou. Jogou as chaves da casa no armário e tirou a camisa do ombro, indo em direção a mãe e depositando um beijo na cabeça da mulher. Vendo aqueles cachos de perto, ele não se arrependia nenhum pouco de ter saído na metade do jogo e de ter sido imensamente zombado pois todo mundo tinha visto a garota bonita entrando na casa dele.
- Filho, você lembra da Malu? – A mulher questionou apontando para a menina ao seu lado. Calebe riu, é claro que ele lembrava.
- Lembro, sim. – Ele assentiu, ainda sorrindo para a menina. Ele quis suspirar de alívio ao ver que, agora olhando de perto, ela ainda estava bonita. – E aí?
- Oi. – Ela repetiu o que havia dito antes, mas sentiu-se muito estúpida, então, completou: - Eu trouxe cupcake.
Ele sentou-se na mesa junto às mulheres, comentando que estava morrendo de fome e aceitaria os bolinhos. Ana se levantou para pegar mais uma xícara e Malu empurrou o prato em direção a ele.
- Tua mãe me contou que você passou no vestibular, parabéns! – Malu contou e parabenizou.
Ele agradeceu e perguntou sobre ela, se já estava na faculdade. Ela contou que estava fazendo cursinho, mas ainda não tinha muita certeza sobre o que queria. Ela perguntou sobre as aulas dele, se já haviam iniciado e ele explicou que não por conta da última greve.
Calebe percebeu que a mãe observava os dois, com uma expressão estranha no rosto. Cutucou o ombro de Malu, apontando com a cabeça para mãe para que ela também visse a mulher.
- O que foi, tia? – Malu quis saber.
- Cara, tá dando um bug na minha cabeça, ver vocês dois assim. – Confessou, rindo e esfregando as têmporas.
- Assim como, mulher? – Calebe questionou, zombando.
- Assim, crescidos, falando sobre faculdades, e futuros. – Explicou, gesticulando, exasperada. – A última vez que vi vocês dois juntos, vocês eram menores que essa mesa!
- Não é como se a Maria Luiza tivesse crescido tanto assim, mãe! – Calebe provocou, sorrindo zombeteiro. A garota ergueu as sobrancelhas.
- Ei, tá proibido tirar onda só porque você não é mais gordo. – A garota instigou, apontando para ele com a faca.
- Ah, mas você ainda é bonita, pô. – Afirmou, despretensiosamente.
E o pior é nem fora com segundas intenções. Saiu tão naturalmente que ele quase se sentiu envergonhado.
- Ai, não! – Ana exclamou, cobrindo o rosto como se estivesse envergonhada. – Pelo amor de Deus, Calebe, se controla!
Ana sabia que não faltava muito para o filho exalar seu charme. O menino era um galanteador nato. Malu gargalhou ao ver a reação exagerada de Ana. Fazia tempo que ela não ria assim, tão tranquilamente.
- O que eu fiz agora? – Calebe questionou, confuso, mas risonho.
- Sua mãe já me alertou sobre você. – Malu estreitou os olhos para o garoto, mas também riu ao ver a expressão relaxada e risonha dele.
- Qual foi, mãe? – Indignou-se com Ana, questionando-a e entrando na brincadeira. Na verdade, ele desconfiava que não fosse tão brincadeira assim. – Atrapalhando meus esquemas? – Na verdade, ele não estava pensando em Maria Luiza como esquema, apenas não perdia a chance de provocar a mãe.
- Calebe, você... – A mulher pôs as mãos na cintura, encarando-o. – Eu tô de olho em você, garoto!
- Caramba, eu nem fiz nada... – Retrucou, piscando para Malu. Não flertando, apenas brincando com a menina e com a mãe. – Ainda!
- Ainda?! – Indagou, nervosa. Malu apenas balançava a cabeça, rindo do desespero da mulher, que agora batia no menino com um guardanapo. – Calebe!
Queria dizer para tia Ana que ela estava imune e fechada para negócios, que não precisava se preocupar, mas fala sério, quem ela queria enganar? Ela já tivera dificuldades em dizer “não” para o garoto antes, afinal.
Em meio às risadas com as brincadeiras dos dois, sentiu seu peito apertar um pouco ao observar as piadas e brincadeiras provocadoras entre Ana e Calebe e pensou na sua mãe. Antes, elas perdiam horas apenas discutindo e provocando uma à outra. Malu não perdia uma oportunidade de criar um tumulto com a mãe, sabia que no final, sempre acabaria recebendo um afago em seu ombro como sinal de trégua.
Atualmente, se provocasse a mulher, acabaria com o rosto marcado pela mão de Andréia. Já havia acontecido antes.

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- Eu sempre te chamava pra brincar, Maria Luiza! – Calebe contestou, já meio irritado com a insistência de Malu em dizer que ele não ligava muito para a existência dela na infância.
- Nos teus aniversários, apenas! – Retrucou. – E só por que a gente sempre acabava ficando pra trás...
- Verdade! – Ele riu, as lembranças ficando cada vez mais vividas em sua mente a cada passo que davam. – A gente passava horas esperando eles secarem as garrafas de cerveja e contando tudo no final.
Calebe se arrependeu de abrir a boca no momento em que concluiu a frase. Notou a postura de Malu mudar, ficou mais rígida e o sorriso leve em seu rosto quase sumiu. A lembrança do seu pai era dolorosa e as lembranças felizes, que deveriam acalentar o coração de Malu, deixavam tudo pior. Seu pai era um homem tão bom, ele merecia muito mais lembranças e histórias felizes.
- Desculpa. – Murmurou, arrependido. Ela negou com a cabeça, fazendo um gesto com a mão como se não se importasse, mas Calebe viu nos olhos dela que era o contrário. Decidiu continuar falando, visto que ainda não tinha dado suas condolências. – O tio João era um cara incrível, Malu. Eu sinto muito por tudo o que aconteceu.
Ela suspirou, agradeceu por ele ter sido sensível o suficiente para respeitá-la e não falar mais nada depois.
Já passava das nove da noite quando Malu decidiu parar de abusar da hospitalidade e gentileza da família Martins e ir para a própria casa. Passou a noite sentada no sofá da casa de Ana, conversando, atualizando-se e matando a saudade. Jantou com os dois e quando percebeu que o Jornal Nacional já estava no fim, achou melhor ir para casa.
Não negou quando Ana ofereceu uma marmita, com o resto do que eles tinham comido, para levar para Andréia. Malu sabia que quando chegasse em casa, a mãe estaria acordando. Porém, recusou várias vezes a companhia de Calebe até sua casa, não era necessário. Mas Ana insistiu várias vezes, já era muito tarde para a garota atravessar a Passagem sozinha.
- Ei, o Pedrinho ainda mora aqui? – Malu apontou para a casa azul à esquerda deles. Lembrava bem do garotinho cabeludo que jogava bola com Calebe e era uma das dezenas de crianças da rua em que eles tinham ido no aniversário.
- Não, foi pra Brasília. Passou em Direito na UNB, acredita? Aquele filho da puta. – Resmungou.
O moleque foi amigo de Calebe até os quinze anos, até que ele roubou sua namorada e tornou-se um babaca. Calebe ainda sentia o sangue ferver quando passava por Priscila, mas não a culpava. Culpava Pedro Paulo, ele era um puta menino mimado. Matava aula o dia inteiro, nunca tirava nota boa nas provas e ainda passou no vestibular com uma alta pontuação.
Para Calebe, só existia uma explicação para o fenômeno Pedro: Ele fraudou o Enem.
- Caramba! – Ela exclamou, surpresa. Aparentemente todo mundo estava em uma universidade, muito bem encaminhado, enquanto ela se sentia estagnada. – Eu lembro de um aniversário, acho que foi dele, que você quebrou o dedo.
- Foi mesmo! – Calebe riu, olhando para o dedo mindinho e procurando a cicatriz. Elevou a mão para mostrar a ela. – Foi no mesmo dia que você roubou meu brinde.
- Eu? – Perguntou, confusa.
- Você tá me devendo um saquinho de brinde do Batman, Maria Luiza. – Avisou-a, falando seriamente.
- Caraca, que rancoroso! – Ela gargalhou, achando engraçado a feição magoada dele.
Eles entraram na passagem das flores e Malu quase soltou um muxoxo de frustração. Geralmente quando chegavam na passagem significava que a casa dela já estava perto. Queria passar um tempo lá fora. Não por estar curtindo desesperadamente a companhia de Calebe, mas sim porque não queria entrar em casa. Tudo era triste lá dentro.
- Só porque eu lembro que você roubou meu saquinho, que tinha uma pipoca, um apito, três pirulitos, dois bombons de iogurte e uma língua-de-sogra, quer dizer que eu sou rancoroso?
- Porra! – Malu, inesperadamente, explodiu em gargalhadas. Sabia que ele não lembrava, mas só de ter inventado tudo aquilo rapidamente e ter falado tudo tão sério, já deixava-a em risadas. Calebe nunca tinha escutado a risada de Maria Luiza, mas não é ridículo dizer que agora ele queria fazê-la rir o tempo inteiro. – Isso faz mal pro coração, hein!
- Meu coração tá muito bem, obrigado. – Enunciou, sarcástico. – Quer dizer, sempre pode melhorar, não é?
Ela rolou os olhos. Calebe era aquele tipo de cara, que mesmo que não quisesse nada, ele daria em cima de você. Mesmo que ele não estivesse, sempre iria parecer que ele estava lançando uma cantada.
- Você é inacreditável. – Malu proferiu, subindo as escadinhas da porta da sua casa e virando para olhá-lo e pegar a marmita das mãos dele. Não sabia o porquê de estar quase fugindo. – Valeu por ter vindo até aqui comigo.
- Um elogio e um agradecimento, estamos evoluindo! – Ele aproximou-se em um passo e ela, por reflexo, subiu mais um degrau. Ele sorriu ladino ao perceber a preocupação da garota em se manter distante dele.
- Calebe. – Ela chamou, não que precisasse já que ele não tirou os olhos dela desde que saíram da casa dele. Ela precisava deixar as coisas em claro. Mas para ela, do que para ele. – Não vai rolar.
- Mas que coisa, eu não fiz nada! – Exclamou, espirituoso. Levantou os braços como se estivesse sendo atacado e sorrindo travesso. Calebe era o famoso cara “vai que cola”. Se der, deu. Se não, que pena, pula para a próxima.
- Não fez nada... ainda? – Perguntou, em um flerte velado.
Não conseguia evitar. Malu gostava de flertar, sentia falta disso.
Quando morava em Vitória, ficou com mais caras do que a sociedade achava aceitável, mas não se importava. Ela era muito bem resolvida com suas concepções sociais. Gostava de paquerar, gostava da adrenalina de conhecer alguém e sabia que não havia nada de errado nisso.
- Talvez. – Deu de ombros, respondendo como se não se importasse. – É bem capaz de você fazer antes.
- Fazer o quê? – Replicou, confusa.
- Boa noite, Maria Luiza. – Afastou-se dela, com um sorriso de lado, transbordando malícia. Ela o observou dar as costas a ela e afastar-se, voltando a ir em direção a passagem.
- Calebe! – Chamou, alto. Ele virou para ele, olhando-a suavemente. A maldita camisa ainda pendurada no ombro. – Não vai rolar!
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E não rolou mesmo.
Durante um ano inteiro, a relação de Maria Luiza e Calebe não passava de olhares e sorrisos enviesados. De vez em quando, trocavam uma palavra ou duas. Calebe não sabia dizer se ela não estava interessada ou só estava sendo orgulhosa. Porém, não poupavam nas provocações.
Aqueles flertes juvenis, sabe? Alguns velados, como quando ela passava por ele na rua, olhando-o intensamente até que não fosse mais possível virar a cabeça. Outros nem tanto, como quando Calebe fazia todo o time parar o jogo de futebol na rua e abrir caminho só porque Malu estava passando, deixando-a envergonhada e seu coração balançado com a ousadia provocativa do rapaz.
Para o desespero de Calebe, Maria Luiza retomou com fervor o seu antigo posto de “mais bonita da rua”. Ouvia os planos de seus amigos para “chegar” na garota e não podia fazer nada, não iria proibir as pessoas de se aproximarem dela. Primeiro porque era errado, segundo que ninguém lhe obedeceria.
Queria brigar com todos, mas poxa, o que ele poderia fazer? Ela matava a todos quando aparecia na rua usando seus vestidinhos apertados no busto e balançava seus quadris por aí com suas saias soltinhas demais ou apertadas demais. E a pior parte é que ela já tinha feito amizade com várias meninas da rua.
Por que isso seria ruim? Na visão de Calebe, uma mulher sozinha é corajosa. Uma mulher com amigas é invencível.
Ele quase se engasgou com a própria saliva quando viu Malu descendo a rua acompanhada de Clara e Gabi, meninas cuja amizade quase chegou ao fim por culpa dele. Temeu muito que elas tivessem compartilhado com Malu as histórias de safadeza dele.
Não era um cafajeste, mas era homem, jovem e solteiro. E apesar de sempre ser extremamente claro e sincero com suas conquistas, nem todas entendiam o seu jeito livre. Foram muitos meses que Calebe passou falando “Ela não é disso”, “ela deve ter namorado”, “cara, desencana!” e muitas outras desculpas que ele conseguia arranjar para os amigos não chegarem nela.
Ele nunca escutou um relato sobre ela com alguém e aquilo, de certa forma, o tranquilizava. Porém, sua calmaria chegou ao fim junto com o ano.
Todo final de ano, a vizinhança – que era muito unida – organizava a festa de réveillon na passagem das Flores. Tudo ficava muito bonito, eles quase não enfeitavam nada, pois as paredes floridas já deixavam tudo bonito. As mesas compridas lotadas de comidas, as crianças corriam pelas ruas sem preocupações, a música alta que saia do carro de um dos vizinhos que possuía um ótimo som.
A expectativa para o ano que estava quase chegando deixava tudo muito festivo e alegre. Exceto...
- O que é isso no forno, Maria Luiza? – Andréia questionou ao entrar na cozinha e notar que o forno estava aceso e exalava um cheiro doce pela casa.
- Pudim. Eu vou levar pra dar na coleta da comida. – Respondeu, sem desviar o olhar do espelhinho apoiado em um vaso de flores em cima da mesa de jantar. Decidiu se maquiar na cozinha enquanto esperava o doce ficar pronto. Ela sempre perdia o ponto certo de tirar o pudim do forno. Não queria correr esse risco dessa vez. Ao notar o silêncio, ergueu o olhar, encontrando a feição confusa de sua mãe. – A festa de ano novo é hoje, mãe.
- Ah, sim. Não sabia que você ia participar... – Comentou, amargurada.
Foi em direção a geladeira e notou que a mesma também estava mais cheia, lotada de comidas e bebidas. Não lembrava de ter feito compras. Logo, um sentimento ruim lhe abateu.
É óbvio que a menina devia ter feito as compras. Olhou ao redor e também notou a casa arrumada, a cozinha bem limpinha, a louça toda lavada. Andréia sentiu-se inútil, quis pedir desculpas à filha, mas a vergonha era tanta, que não conseguiria. Claro que se sentia culpada por suas ações com a filha, mas o orgulho e a vergonha eram grandes demais para que ela voltasse atrás agora.
- Tem problema? – A menina perguntou, insegura ao notar o estranhamento da mulher. – A tia Ana me convidou, então eu pensei...
- Faz o que você quiser, Malu! – Respondeu atravessado, abrindo uma garrafinha de cerveja e dando um gole. Em seguida, olhou para o objeto, estranhando o nome em inglês no vidro verde. – É assim que você gasta o dinheiro da sua pensão? Com essa cerveja cara?
- Não foi caro. – Assegurou, levantando da cadeira e indo tirar o pudim do forno, passando pela mulher. Retirou a fôrma e jogou sobre a pia, tirando a luva e indo recolher seu estojo de maquiagem da mesa. – Além do mais, é ano novo, mãe. E eu não sei você, mas eu cansei de ficar triste. – Foi para o quarto sem olhar para trás. Maria Luiza foi sincera, estava realmente cansada.
Passaram-se dez meses desde o falecimento de João e ela ainda tinha que fazer as compras da casa todo mês, pagar as contas, entre outras coisas. Durante aquele ano inteiro, Malu tentava conciliar tudo isso com seus estudos, mas ainda assim, era difícil.
Antes de tudo ocorrer, Maria Luiza nunca tinha feito feijão sozinha, nem sabia como lidar com contracheques. Mas desde que sua mãe se recusou a voltar à vida, ela teve que aprender da forma mais trabalhosa, e tudo isso, sozinha.

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Calebe, ao contrário do resto da rua, não estava se sentindo nada festivo e alegre. Sentado na sarjeta do outro lado da rua, rodeado por seus amigos, encarava fixamente a porta da casa à sua frente, sem se importar se estava parecendo um maníaco ou não.
Já ficou irritado quando descobriu que o babaca do Pedro Paulo – aquele que roubou sua namorada e sua vaga na UNB – iria passar o recesso de final do ano em casa. Quis quebrar o garoto inteiro quando olhou no relógio e percebeu que já fazia vinte minutos que ele e Malu conversavam na porta da casa dela.
Vinte minutos. Quem tem tanto assunto para compartilhar assim?
- Calebe! – Alguém chamou sua atenção, mas ele não ligou, apenas respondeu com um resmungo baixo. – Cê tá afim da Maria Luiza, não é?
- O que? – Saiu do transe quando ouviu o nome de Malu ser citado.
- Tá encarando eles, cara! Seja discreto, pelo menos. – Tiago sugeriu, levantando-se e ficando em frente dele, cobrindo sua visão.
- Meu problema é com ele, Tiago! Malu não tem nada a ver com isso. – Tentou assegurar, mas nem ele mesmo acreditou em suas palavras.
- Tá bom, acredito. – Bufou, totalmente desacreditado. – Então, cê vai ficar tranquilo se eu disser que vi o Luís, aquele cara da academia lá de cima, sabe? Parecendo muito íntimo da Malu.
Calebe levantou, com os olhos semicerrados, encarando a expressão desafiadora de Tiago. Foda-se, ia morder a isca.
- Quão íntimo? – Mordeu os lábios, espiando por trás da cabeça do garoto.
Malu e Pedro Paulo tinham – finalmente – se afastado e agora o garoto estava com a família na mesa e Malu estava sentada em uma cadeira de plástico na rua, conversando com alguma mulher mais velha que morava ao lado.
- Íntimos tipo, ele pegando ela em casa pra sair no sábado passado. – Tiago murmurou, como se estivesse contando um segredo. Parecia uma velha fofoqueira.
- Tá bem-informado, hein, moleque! – Calebe brincou, bagunçando os cabelos enrolados do rapaz. – Parece que é você que tá afim dela, não eu.
- Então, cê tá afim mesmo? – Tiago perguntou, gargalhando com o fora que Calebe tinha dado. – Cara, eu tava só te zoando! – Calebe bufou, irritado. Não com Tiago, e sim, com a situação.
Fala sério, nunca tinha trocado mais de algumas palavras com a menina desde a sua volta, não podia estar tão afim dela assim.
- Vou beber alguma coisa! – Avisou, ignorando os deboches de Tiago, que ria sem parar da expressão irritada do amigo.
Foi até a mesa de bebidas, procurando por algo não alcoólico. Sua mãe estava andando por ali e se ela o visse bebendo, reclamaria até o ano seguinte. Não que ela fosse contra, mas não gostava que ele bebesse na frente da vizinhança. Já era um pouco traumatizada com comentários de vizinhos por conta da gravidez precoce, com isso, não gostava de dar assunto para os outros comentarem.
Assim que tocou na garrafa de refrigerante, logo uma fila surgiu ao seu lado. Parecia ser tradição. Se servir um copo a uma pessoa, logo terá que servir todo mundo.
Quando achou que tinha terminado de servir todos, sentiu uma mão na sua cintura de um lado e um copo surgindo do outro. Olhou para trás para descobrir quem era o corpo que aquecia suas costas rapidamente.
- Ué, parou de servir? – Malu brincou, balançando o copo na mão. Saiu de trás do rapaz, parando ao seu lado.
- Não, só parei de servir você. – Resmungou, fazendo uma careta. Mesmo negando, pegou o copo da mão dela, enchendo-o com refrigerante. Ela abriu a boca, fingindo estar em choque.
- O que eu te fiz? – Reclamou, pegando o copo já cheio da mão dele.
- Vinte minutos, Maria Luiza! Eu contei exatos vinte minutos que você ficou de papinho com o Pedro Paulo! – Queixou-se, inconformado.
Malu não aguentou a sinceridade do garoto e gargalhou, chamando a atenção de algumas pessoas.
Ela havia notado o olhar raivoso que ele estava enquanto encarava a conversa entre ela e o antigo coleguinha. Por isso, quando o viu, finalmente sozinho na mesa de bebidas, não pensou duas vezes em ir até lá. Queria saber se ele daria alguma desculpa ou agiria estranho, mas Calebe era um garoto perspicaz e ela nem precisou trazer o assunto à tona.
- E daí? Fazia tempo que a gente não se via. – Deu de ombros, tentando controlar as risadas. – Eu não sabia que ele estava tão bonito. – Provocou, mordendo a ponta do copo de plástico e esperando a reação de Calebe.
- Ah, Maria Luiza! Só nasceu uma barba nele, e daí? Ele nem é tudo isso. – Protestou, jogando a cabeça para trás e bagunçando os cabelos.
- Só tá falando isso porque você sabe que é incapaz de deixar a barba crescer. Você e seu rostinho de bebê. – Provocou.
- Bebês são lindos mesmo, obrigada! – Gracejou, fazendo uma reverência. – Sério, ele é um babaca.
- De onde surgiu essa raiva? Você e o Pedrinho eram super chegados um no outro! – Indagou, curiosa. Já tinha notado uma certa rivalidade entre os dois. E as meninas já haviam comentado com ela sobre a intolerância entre eles, mas ela não sabia o motivo exato.
- A gente era mesmo. – Confirmou. Seguia andando pela rua e reprimiu um sorriso quando ela entrelaçou o braço no dele para se apoiar e fugir dos empurrões das crianças, que corriam entre as pernas de todos. – Até ele roubar minha primeira namorada.
- É claro que tem mulher envolvida na história! – Revirou os olhos.
- Sim, como em todas as grandes rivalidades. É por isso que você tem que ficar longe dele. Tô falando sério, Malu. Se eu ver vocês dois conversando, vou te tirar da frente dele nem que seja carregada! – Comunicou, divertido, puxando a ponta do cabelo dela. Os cachos de Malu estavam incríveis naquela noite.
- Quem diabos você pensa que é? – Debochou da ameaça sem fundamentos do garoto. – Você não tá fazendo o menor sentido, Calebe!
- Imagina se eu vou deixar ele roubar outra mulher minha, Maria Luiza! – Declarou, despretensiosamente. Malu arregalou os olhos e encarou-o, surpresa com a frase dele. Calebe, realmente, não tinha papas na língua.
- Mulher sua?! – Quase gritou, exasperada.
- Oi, mãe! – Chamou a atenção da mulher que estava distante deles, mas foi a única que achou para fugir da conversa e dos prováveis gritos de Malu. A garota beliscou o braço dele ao entender sua estratégia de fuga.
- Malu, você tá linda! – Ana veio abraçar a garota e tirá-la do lado do filho.
- Valeu, tia! Ainda não tinha te visto por aqui. – Comentou com a mulher, ainda olhando raivosa para Calebe.
- Eu tava na casa da Maria, só que já está quase na hora da virada, aí vim procurar esse garoto aqui. – Ana passou o braço na cintura do menino, que a abraçou de volta e deu um beijo na sua testa. – Você trouxe o pudim? Eu só achei a receit....
Malu já não escutou mais nada. Ao ver o carinho de Calebe com sua mãe, pensou em Andréia. Nunca fora de ter muitos momentos amorosos com mãe, mas em momentos como aquele, queria-a do seu lado, nem que fosse para brigar. Inconscientemente, olhou em direção a sua casa.
Tamanha foi sua surpresa ao encontrar a figura da mãe, sentada na escadinha que havia na porta da sua casa, observando a rua com uma expressão neutra. Pediu licença rapidamente, não notando as expressões confusas de Calebe e Ana, que logo entenderam a saída repentina ao verem a direção que a menina seguia.
- Mãe? – Chamou, sem acreditar que a mulher realmente estava ali. Ela estava usando pijama com um casaco preto por cima, mas Malu não ligava. Aquela era apenas a terceira vez que a mulher aparecia na rua desde que vieram de Vitória.
- Não deu pra ficar lá dentro. – Ela afagou o próprio peito, sorrindo de leve. O alívio que foi para Malu notar um esboço de sorriso na mulher após tanto tempo, também foi a dor que sentiu ao constatar o sofrimento na frase da mulher.
Sentadas nos degraus da porta da própria casa, dividindo uma garrafa de cerveja pela primeira vez, elas assistiram a vizinhança em contagem regressiva, os fogos de artifícios estourarem no céu, os champanhes sendo estourados por todos os lados. Os gritos, os risos. E a alegria.
Malu tentou segurar as lágrimas de todas as formas possíveis, mas tudo era triste demais. A saudade gritou em seu peito. Ela não queria chorar na frente da mãe, tinha certeza que seria extremamente doloroso para Andréia ver sua filha única chorando. Sabia que tinha que se fingir de forte na frente da mãe, mas antes que pudesse notar, lágrimas espessas já desciam por seu rosto.
“Ah, meu pai! Que saudades de você!”, pensou. Se ele estivesse ali, estaria abraçando as duas mulheres, recitando Carlos Drummond de Andrade.
- Maria Luiza... – Andréia sentiu seu coração dilacerado ao ver a filha com o rosto contorcido, tentando forçar as lágrimas de volta. Seus olhinhos estavam tão vermelhos que pareciam que estavam chorando a dias. Talvez ela estivesse, talvez toda aquela dor e mágoa estivesse ali a um tempo, mas ela não saberia dizer. Não tinha prestado atenção. – Malu?
Puxou a menina para seus braços, acolhendo-a como uma criança. Maria Luiza chorou ainda mais ao receber o colo que, há tempos, não tinha. Andréia se sentiu extremamente mal ao cobrir com seus braços o corpo trêmulo da menina. Estava tão imersa na própria dor que não notou que a filha estava destruída.
Só naquele momento que notou, que sim, era horrível perder o seu grande amor. Entretanto, também era terrível perder o pai. Maria Luiza tinha dezoito anos e havia perdido seu pai.
- Malu, eu sei que dói... – Andréia tentou confortá-la, mas os soluços contidos da menina não a deixaram completar a frase. Doía demais e ninguém, além delas, entenderia. Ela levantou o rosto de Malu, acariciando suas bochechas, tentando afastar as lágrimas pesadas. Era doloroso olhá-la. Ela era a cópia menor e feminina de João. – É um novo ano, minha linda. – Murmurou, entre lágrimas.
- Desculpa, mãe. Eu juro que vou parar! – Ela pressionou as próprias bochechas com as mãos, como se aquilo fosse interromper a avalanche de lágrimas que desciam pelo seu rosto juvenil.
Andréia deu uma risadinha ao notar a tentativa falha da filha. Antes que pudesse falar algo mais, alguém gritou seu nome. Ela respirou fundo, sabia que no momento que pisasse fora de casa, seria reconhecida. E os bons costumes teriam que falar mais alto e ela teria que cumprimentar as pessoas. Levantou a cabeça, procurando por quem a chamava.
Não conseguiu segurar as lágrimas que segurou por tanto tempo quando viu Ana, sua parceira de vida, sua grande amiga, ir até ela. Era um sacrifício, mas também era um alívio. Ela e Malu compartilhavam do mesmo pensamento, sem saber. Ter Ana por perto, significava que o mundo ainda estava lá, do mesmo jeito que antes. Levantou-se da cadeira, não pensando duas vezes em aceitar o abraço apertado da mulher.
Malu continuou ali, porém, não se levantou, apenas abaixou a cabeça. Não queria que ninguém a visse chorando. Limpou o rosto várias vezes, jogou os cachos para um lado, tentou olhar para a luz, apenas para se distrair das teimosas lágrimas. Quando sentiu alguém se agachar em sua frente, não precisou levantar a cabeça para saber quem era.
- Feliz ano novo, Maria Luiza. – Calebe murmurou, envolvendo-a em um aperto quente e confortável. Ele não tentou vê-la de frente, pois sabia que ela estava chorando. Sabia que era orgulhosa o suficiente para que ele não quisesse ver suas lágrimas. Ela tocou os braços dele, agraciada com o carinho do garoto. Surpresa por achar nele o abraço que precisava.
- Feliz ano novo, Calebe. – Virou o rosto, elevando-o e tocando a face do rapaz com os lábios, levemente.
Calebe achou perigoso quando seu corpo inteiro se arrepiou com um toque tão simples e escasso. Foi quando admitiu para si mesmo, pela primeira vez, que estava vergonhosamente afim de Maria Luiza.

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A Passagem das Flores estava lotada. Já passava das três horas da manhã, mas o subúrbio permanecia animado e agitado. Algum forró antigo estourava nas caixas de som. Não havia reclamação dos vizinhos por conta do barulho já que quase todos estavam presentes na festa. Era uma vizinhança unida, que adorava uma boa festança.
Malu observou como várias pessoas dançavam nos espaços livres. Riu alto ao notar que Tiago tentava passar entre dois casais enquanto equilibrava três copos de cerveja na mão. Aos poucos seu sorriso foi diminuindo ao notar que um dos casais, na verdade, era um trio.
Calebe dançava com Gabi e outra garota, simultaneamente. Malu já tinha ido a uma festa universitária com o pessoal da rua e sabia que Calebe era aquele que passava a festa inteira ocupado, sendo importunado por garotas sedentas por seus bons passos de dança. Ela mesma sentira vontade de dançar com ele. Mas fala sério, duas ao mesmo tempo? Ele precisava mesmo esfregar na cara de todo mundo o quão bom ele era?
Desviou o olhar para a frente da sua casa e ficou alegre ao ver que a mãe ainda estava por ali, sentada na escadinha da porta, ao lado de Ana. Dividiam uma garrafa de cerveja e conversavam intensamente. Ela queria sentar-se ao lado delas, ignorar Calebe e aquele sentimento chato que ela estava criando, mas achou melhor procurar outra companhia. Sabia que a mãe e a amiga tinham muito para pôr em dia.
Olhou para o lado e encontrou Pedrinho conversando com alguns amigos de Calebe. Resolveu se aproximar, não queria ficar isolada enquanto Calebe estava aproveitando a festa de ano novo plenamente. Recriminou-se pelo pensamento. Desde quando ela fazia qualquer coisa, visando e se comparando com Calebe? Nem amigos eram. Não tinham justificativas para seu comportamento.
- Ai, tô afim de dançar! – Alanne reclamou, balançando seu corpo no ritmo da música e usando o braço de Malu para girar a si mesma. Tinham se tornado amigas após notarem que sempre desciam na mesma parada de ônibus. Dias depois, descobriram que frequentavam a mesma escola preparatória para o vestibular. – Será que Calebe aguenta mais uma? – Brincou, apontando com a cabeça para o rapaz.
- Ele não dá conta nem de uma! – Pedro Paulo debochou, rolando os olhos. Malu logo detectou a provocação do rapaz, lembrando que Calebe contou que ele havia roubado uma namorada sua.
- Vocês ainda não pararam com essa palhaçada? – Alanne resmungou, jogando seus longos cabelos loiros para trás. Bebeu um pouco da vodca e entregou o resto para Malu, que fez careta, mas bebeu também. – Superem, a garota já tá até namorando outro cara.
- Quem foi a culpada dessa briga entre vocês? – Malu indagou, curiosa. Ambos se importavam demais com a menina para sustentarem aquilo até os dias atuais.
- A Priscila Souza, aquela que tem a moto roxa. – Alanne contou, rolando os olhos. Não era muito fã da garota. Assim como a maioria dos amigos da rua, ela era amiga de Calebe e Pedro Paulo desde sempre. O fato de Priscila ter usado os dois deixava-a irritada.
- Sério? Tanta implicância por aquilo? – Malu riu, em tom de chacota e virou o resto da cerveja na boca. Fez careta ao sentir o gosto da cerveja e da vodca se misturando e ao pensar em Priscila. A menina era bem bonita, mas também sem graça demais.
- Peitos grandes. – Pedro deu de ombros.
- Isso é ridículo! Peitos pequenos e lindos bem aqui, pra provar que isso não existe! – Alanne estufou o peito e puxou Malu para seu lado, entrelaçando o braço na cintura da amiga. Apontou para o decote das duas com a mesma mão, objetificando seu exemplo.
Malu gargalhou, jogando a cabeça para trás. Por isso haviam-se tornado amigas. Amava que a garota, como ela, não tinha medo ou reservas. Amava ser mulher, amava paquerar e flertar tanto quanto ela. As outras garotas julgavam-nas, mas Alanne sempre dizia que elas só queriam ser como elas. Livres e desimpedidas, confortáveis em serem mulheres jovens e solteiras.
- Isso definitivamente é uma bela prova! – Pedrinho riu, engolindo com o olhar o decote generoso das duas. O vestido branco e curto de Malu contrastava com a blusinha tomara que caia amarela de Alanne. E juntas, elas se tornavam uma visão e tanto.
Continuaram conversando, os três jovens jogando charme um para o outro, sem se importar realmente com a paquera. Mas olhando de longe, Calebe tinha certeza que Pedro Paulo estava dando em cima de Malu descaradamente. Com a desculpa de que precisava tomar uma água, Calebe se afastou de suas parceiras de dança. Não sabe o que lhe deu na cabeça de ir na direção de Malu, Alanne e Pedro, porém, ele costumava ser muito impulsivo mesmo.
Entre uma risada e outra, Malu notou que Calebe se aproximava. Estava com o olhar fixo nela, mas estava tranquilo. O sorriso brincalhão aumentava a cada passo que ele dava. Ela franziu a testa, não entendendo muito bem por que ele parecia segurar o riso de alguma forma. Então, lembrou da conversa de algumas horas atrás.
“Se eu ver vocês dois conversando, vou te tirar da frente dele nem que seja carregada!”.
- Não. – Malu avisou, apontando o dedo para Calebe, que riu alto. Ela já havia entendido sua intenção.
- Sim. – Balançou a cabeça em contrapartida. Alanne e Pedro encararam os dois com estranhamento. Eles não sabiam que Malu e Calebe se falavam, nem sequer que eram amigos.
- Calebe! – Deu passos para trás, mordendo os lábios para comprimir uma risada.
- Maria Luiza. – Quando estavam quase próximos, Calebe deu um pequeno impulso, que causou um gritinho em Malu, que saiu correndo em disparada.
Então, eles se transformaram em Calebe e Malu de sete anos de idade de novo. Correram entre as mesas tal qual duas crianças, desviando dos adultos, derrubando cadeiras...
Calebe ria, encantado com a risada graciosa de Maria Luiza. Seus cabelos esvoaçavam e seu vestido subia enquanto ela corria. Estava tão bonita que era dolorido e triste para as outras garotas ali presentes, pois para Calebe, ela era a mais bonita dali em disparada.
- Pelo visto, vou ter que furar o olho do Calebe de novo. – Pedro brincou, observando os amigos correrem pelo local, causando confusão e risadas na maioria das pessoas.
- Pelo visto, eu não vou ganhar meu primeiro beijo do ano hoje! – Alanne insinuou, atrevida, cruzando os braços. Pedrinho desviou o olhar para a garota, mordendo os lábios levemente. Malu era linda, mas Alanne Moreira definitivamente era algo mais.
- Você é um perigo, Alanne... – Murmurou, virando a garota de costas e a guiou para um local mais reservado. Não dava para fazer o que ele queria ali, na frente de todo mundo.

As pernas de Malu queimavam, mas ela poderia continuar correndo a noite inteira. Entretanto, as risadas tiravam todo o seu fôlego. Correu até a frente da sua casa, ficando atrás de Ana, usando a mulher como escudo.
- Tia! – Clamou por ajuda, abraçando a mulher por trás. Calebe gargalhou, diminuindo na corrida e indo para o outro lado, puxando Malu pelo braço.
- Ei! Vocês querem me partir no meio? – Ana ralhou, brincalhona, tentando distanciar-se dos dois, que ainda se estapeavam. Calebe tentando segurá-la e Malu tentando fugir.
- Parece que não cresceram! – Andréia reclamou, balançando a cabeça. Mas no fundo, até que estava feliz em ver o sorriso no rosto da filha de novo.
- Aproveitem que já estão correndo e vão pegar aquelas caixas de cerveja que estão lá em casa. – Ana apontou, empurrando os dois para longe. – As daqui estão acabando.
Num deslize, Malu conseguiu desviar dos braços de Calebe, correndo para longe. O menino fez um sinal positivo para a mãe e deu um novo impulso para a corrida. Malu gargalhou ao notar que Calebe estava em uma distância considerável, mas não o suficiente para que ela se entregasse.
- Esses dois... – Andréia comentou, observando os sorrisos abertos dos jovens cansados da correria.
- Não tem mais jeito, ela tá ferrada! – Ana riu com sua própria constatação.
Conhecia o filho e sabia muito bem quando ele se interessava por alguém. Também sabia que era muito difícil ele não conseguir o que queria. Elas observaram os dois correndo entre as pessoas na festa. Logo, desapareceram da passagem, ficando claro que tinham ido para a rua de cima, provavelmente em direção a casa de Ana.
- Há! Você não sabe o que fala. – Andréia gargalhou, erguendo o copo de vidro para a amiga, sugerindo um brinde. Deveriam beber devagar, pois ambas sabiam que as caixas de cerveja iam demorar para chegar. – Quem tá ferrado é ele...

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- Calebe, minha calcinha tá aparecendo! – Reclamou, se remexendo no ombro do rapaz. Assim que dobraram a esquina, Malu reduziu os passou. Se arrependeu quando sentiu Calebe carregando-a por trás, pendurando-a sob seu ombro, como se ela fosse uma boneca de pano.
- Não tem ninguém pra ver. – Assegurou, virando um pouco o rosto para encarar as pernas da garota.
Malu levantou a cabeça, olhando em volta. Ainda dava para ouvir a música alta que vinha do outro lado, mas aquela rua estava tão vazia que nem parecia que era noite de ano novo. Todos os moradores deveriam estar do outro lado, visto que por lá ainda estava lotado.
- Tem você! – Ela tentou descer, mas quando percebeu que se tentasse fazer isso, iria cair de cara no chão. Então, abraçou o torso do rapaz, apenas tentando se manter inteira. – Minha cabeça vai explodir, Calebe!
- Ninguém mandou você sair correndo. – Abriu a porta da casa, estava escuro demais e ele estava cansado, então tomou um cuidado extra quando andou com Malu até chegar próximo do sofá.
- Você ia me carregar na frente de todo mundo! Imagina só se... – Quando seus pés tocaram no chão, tudo pareceu virar de cabeça para baixo de novo e ela não conseguiu se firmar no lugar, cambaleou no lugar, segurando-se nos braços dele. Calebe segurou na cintura da garota fortemente, tentando mantê-la em pé. – Calebe, seu idiota! Eu tava bebendo!
- Ótimo, agora tenho que te carregar porque tá bêbada! – Calebe gargalhou, achando hilário ela estar muito concentrada em se manter de pé. Ela fechou os olhos e começou a desferir tapas em seu braço. Sentia todo o álcool em seu cérebro, provocando uma lentidão em todo seu sistema. Ele ergueu o corpo dela, deixando-a apoiada no braço do sofá. – Fica quietinha, vou pegar uma água pra você.
Um axé antigo começou a tocar. Causou uma grande nostalgia em todo mundo, logo todos estavam cantando tão alto que ela escutava com clareza, mesmo a metros de distância. Era sua preferida!
Lá fora, todos dançavam, com os braços pra cima, cantando alto, inebriados pela boa música e dominados pela nostalgia. Lá dentro, Malu tentava controlar seus quadris, mas o álcool presente em seu corpo e a inusual alegria eram mais fortes. Nem percebeu quando seus olhos se fecharam e ela remexia o corpo no som da percussão marcante da música.
- Eu fui embora, meu amor chorou... – Cantou, baixinho, sem controlar o leve sorriso.
Calebe sentiu o chão embaixo dele estremecer, mas ele duvidava que fosse por culpa da vibração do som e da quantidade de pessoas cantando. Ela não saia do lugar, mas se movia de um jeito incrivelmente suave. Seus ombros balançavam, seus cachos se moviam de um lado para o outro, perfeitamente uniformes. Como estava de costas, não teve como ele não notar seu traseiro se movendo provocante, sem sequer ter noção disso.
Calebe teve a certeza de que Malu veio para ficar, ela seria a culpada de seus próximos suspiros e vontades.
- Yo quero te namorar, amor… – Ela continuava cantando baixo, mas agora batia as mãos contra o sofá no ritmo da música e sorria enquanto cantava.
Ele pigarrou, aproximando-se com o copo de água. Assustada e envergonhada de ter sido pega dançando, virou-se tão rápido que a ponta de seus cabelos bateu em seu rosto. Ele notou que alguns fios ficaram presos em seus lábios, que provavelmente tinham sido umedecidos pela língua da mesma enquanto ela cantava.
- Valeu. – Pegou o copo da mão dele, virando o conteúdo dele rapidamente. Ela estava nervosa. Ele estava próximo, as luzes estavam apagadas, tudo sendo iluminado apenas pela luz do pátio da casa. E bom, estavam sozinhos, pela primeira vez. – Se eu vomitar, você vai limpar.
- A culpa não é minha, eu avisei sobre o Pedro Paulo. – Resmungou, sentando-se no braço do sofá, ao lado dela.
- Eu descobri. – Contou, apoiando o copo ao seu lado. Ele ergueu uma sobrancelha, confuso. Ela resolveu explicar. – A treta entre vocês. E estou decepcionada, fique sabendo.
- Ué, por quê? – Questionou.
- Priscila Souza? Sério? – Julgou, com desprezo. Ele riu, balançando a cabeça. – Eu acho que você pode fazer melhor.
- É? – Agindo rápido e impulsivamente, virou o corpo, ficando em sua frente e apoiando seus braços no sofá, ao lado dela.
- Se foi por causa dos peitos, saiba que os pequenos também têm seu charme. – Afirmou, sorrindo enviesada.
- Se Pedro falou dos peitos, ele é realmente um idiota. – Balançou a cabeça negativamente.
Estava tão próximo de Malu que podia sentir seu perfume adocicado, o cheiro do seu cabelo, podia ver a pele de seu busto cintilando com uma fina camada de suor devido a breve corrida deles. Ela nunca esteve tão próxima dele assim e já sentia suas pernas bambearem.
Calebe não era extremamente musculoso, mas seu corpo definido comprovava que todo o futebol e corridas pela manhã funcionavam bem para ele. E ele tinha aquele aspecto grande de quem já havia sido gordinho, então mesmo que ele estivesse muito magro, ele ainda conseguia manter as pernas grossas e as costas largas.
- Ele não falou nada disso. Na verdade... – Ela mordeu os lábios, provocativa, notando o olhar dele seguir naquela direção. – Ele apenas disse que você não deu conta.
- Mas que grande filho da puta! – Resmungou, mas não se moveu um centímetro. Ele sentiu seu corpo rígido só por estar tão próximo assim de Malu.
- Você precisa me contar o seu lado da história. – Comentou, descendo do braço do sofá.
O corpo dela ficou ainda mais próximo do dele. Toda aquela conversa, o jeito que eles estavam se movendo, os olhares. Eles já sabiam o que aconteceria a seguir. Calebe não estava mais com paciência para manter uma conversa que só tinha um final.
- Malu? – Chamou. Levou sua mão até a nuca da garota e ao invés de puxá-la para perto, ele pressionou o corpo contra o dela, fazendo seu decote se espremer no peitoral dele, causando um suspiro em Malu. – Eu vou te beijar. – Avisou, levemente, como se não quisesse assustá-la.
Ele esperou por tapas e pontapés, esperou pelo orgulho, esperou pela negação, mas Maria Luiza era um poço de imprevisibilidade.
- Beija. – Sussurrou tão fraco, que se não estivessem colados, ele não teria escutado.
- O quê? – Piscou várias vezes, mas não respondeu nada. Continuou olhando fixamente para os lábios dele. – Repete que eu faço.
- Repetir o que? – Retrucou.
- Não se faça de boba.
- Talvez eu seja. – Comunicou, com uma sobrancelha arqueada. Os lábios estavam entreabertos. Passou a língua sob eles, umedecendo-os.
Com a mão invadindo o vestido da garota, ele pousou a mão na pele quente de sua cintura. Ele deslizou os lábios pela bochecha macia, sentindo toda a maciez de sua pele juvenil. Ela suspirou fortemente, em um sinal de impaciência. Sorriu contra a pele dela quando sentiu as mãos dela puxando-o pela camisa, para mais perto.
- Me beija logo, porra! – Esbravejou com os olhos fechados e o cenho franzido.
Em um ato rápido, ele capturou os lábios dela, causando uma explosão de sentimentos em ambos. Estavam tão grudados que sentiam a pulsação forte um do outro. Ergueu-a pela cintura, a sentou no braço do sofá novamente. Inconsciente, ele ficou entre as pernas dela, porém, pensando melhor, ele preferia que não o tivesse feito. A fricção que o tecido da sua bermuda estava causando no fino tecido da calcinha de Malu não estava enlouquecendo apenas a ele.
Quando a mão dele percorreu o caminho para o seio esquerdo dela, ele pôde sentir os batimentos acelerados da garota se confundirem com os batimentos dele. E os corações de ambos se confundiram com as batidas do axé que tocava do outro lado da rua.
A música agora tinha o gosto dos lábios de Calebe, tinha a sensação da pele de Malu. A música do Timbalada nunca mais seria a mesma para os dois.
Após passarem uns bons minutos se beijando de forma voraz no sofá da casa de Calebe, Malu saiu dali quase correndo. Quando sentiu uma vontade extrema de subir seu próprio vestido para que as mãos de Calebe tocassem sua pele, ela achou melhor fugir. Pois se sentiu tão entregue, que achava que acabaria fazendo tudo o que ele propusesse.
Enquanto caminhava de volta para a festa animada do outro lado da rua – onde tocava a batida animada e conhecida de axé –, ela tentou controlar as próprias mãos trêmulas para não tocar em seus lábios inchados e tentou muito não arrumar as alças baixas de seu vestido. Malu olhou em volta e quando achou que ninguém estava muito interessado nela, ela encontrou o olhar curioso de Vinicius, um dos meninos que andava com Calebe.
Ela engoliu em seco quando percebeu o olhar sarcástico que ele deu quando olhou para trás da garota e viu Calebe andando em direção a festa novamente, com a caixa de cerveja na mão. Ele não demorou muito a ligar os pontos e riu desacreditado, balançando a cabeça. Sentindo-se envergonhada, ela correu para a mesa de sua mãe e Andréia, que agora riam aliviadas.
- Já? – Andréia questionou quando a garota se sentou ao seu lado. – Achei que demorariam mais.
- Já tínhamos até apostado. – Ana compartilhou, rindo.
- Apostado o quê? – Malu perguntou, ainda se sentindo afetada.
- Quanto tempo vocês demorariam pra voltar de lá. – Andreia contou, rindo também.
- Achei que uma hora dessas você já teria entrado na lista dos corações partidos do Calebe. – Ana revelou.
Malu sabia que a mulher não tinha intenção alguma de magoá-la, mas aquela frase, aquela palavra, despertavam um enorme gatilho nela.
Lá em Vitória, logo quando Malu começou a se interessar por garotos e eles passaram a se interessar por ela também, Malu foi vítima de uma dessas tão ditas listas. Malu não esperava que sua primeira paixonite de adolescência gostasse dela também.
E esperava menos ainda quando descobriu que os amiguinhos de escola haviam feito uma lista de meninas bonitas que o garoto em questão deveria ficar. Malu era a quinta da lista.
Foi um baque nela, em sua autoestima e confiança. Foi aos quinze anos que Malu percebeu que nem todos seriam bondosos com ela da forma que ela pensava que eram. Ainda lembrava do jeito que seu pai a consolou enquanto ela chorava frustrada por ter sido enganada por um bando de moleques da escola. Só voltou a se relacionar com alguém novamente aos dezessete anos. E novamente, foi um grande erro.
Malu decidiu que não iria fazer parte de mais nenhuma lista. E naquela noite de ano novo, ela decidiu que não faria parte da lista de corações partidos de Calebe.

“Um amor assim delicado
Você pega e despreza Não devia ter despertado”.
Caetano Veloso – Queixa.


Nada parecia funcionar muito bem naqueles dias. Malu tentou resistir ao charme atrevido de Calebe. Ele, por sua vez, tentou resistir aos olhares convidativos da garota. Durante o dia, era como se eles fossem dois estranhos, aqueles mesmos coleguinhas de infância que tinham esquecido da existência um do outro. E durante a noite – quase sempre de madrugada – era como se fossem um casal.
Aquele casal que descobriram o sossego nos lábios um do outro na noite de ano novo.
Ele tinha um plano e, inicialmente, era não deixar ela o dominar. Tolice, pois ela sempre o dominava, mesmo que ela não tivesse muita noção do que fazia com ele. Maria Luiza frustrava todas as expectativas que ele já tivera em relação a alguém. Ele achava que após os amassos no ano novo, nada aconteceria. Porém, já estava quase chegando o carnaval e ele ainda se via tentado a mandar mensagem para ela toda noite.
E tentou muito se prender a outras, chegando ao ponto de sair beijando geral, mas tudo ia por água abaixo quando seu celular vibrava e na tela surgia uma nova mensagem dela dizendo: Oi, tá por onde?
Malu tinha como plano não se envolver com ninguém, principalmente com Calebe. No momento, seus únicos planos envolviam estudos e o maldito vestibular. E sem falar que ficar com Calebe significava estar em um relacionamento com direito a plateia e interação de todo mundo que se achava no direito de se meter na vida do garoto simplesmente por ele ser... Bom, por ser o Calebe.
Porém, a carne de Maria Luiza era fraca e o coração de Calebe era vagabundo. Então, em uma terça-feira qualquer, se encontraram na parada de ônibus e ele a acompanhou até sua casa. E mesmo que sem querer muito, acabaram se beijando.
E naquela quinta, após o futebol da rua, se encontraram na barraca de hot dog e quando a noite caiu, Malu pediu que ele a acompanhasse até a parada de ônibus. E se beijaram de novo.
E aconteceu de novo na quarta, na sexta de manhã, no domingo de tarde, na segunda de noite.
Ninguém sabia o que acontecia entre eles, seus amigos achavam que eles eram colegas de rua ou, até mesmo, apenas vizinhos. No fundo, nem eles sabiam muito bem o que estava acontecendo. Não tinha como negar que eles estavam lotados de sentimentos e ignoravam por motivos diferentes. Ela fugindo “da lista” e ele simplesmente aderiu a forma dela de “ficar”. Era melhor do que não ficar, certo?
– Na moral, Alanne, só você pra me fazer sair de casa hoje. – Malu reclamou ao entrar no local da festa, arrumando seu macaquinho vermelho, curto e de alcinhas, do jeito que ela amava usar.
Um galpão abandonado, que fora transformado em salão de festas, promovia toda sexta-feira, o famoso forró universitário. Maria Luiza não ia muito a essas festas. Mesmo após o momento emocionante e fragilizado protagonizado pelas duas na virada do ano, sua relação com Andréia – sua mãe – não havia mudado muita coisa, só que agora Malu sabia o quão triste e sofrida sua mãe estava, por isso se tornava mais difícil ainda ter uma juventude badalada. Sentia-se culpada e preocupada por deixar a mãe sozinha em casa nos finais de semana.
– Amiga, você só sai daquela casa uma vez por mês. – Reclamou, guardando a carteira de identidade na bolsa e puxando Malu pelo braço até chegar ao bar. – Não custa nada se divertir um pouco! Eu vou até pagar tua cerveja, olha! – Brincou, mostrando algumas notas de dinheiro a amiga.
– Dinheiro não é exatamente o problema...
– Sua mãe tá bem, Malu! Ela disse pra você sair, não foi? – Interrompeu, indagando-a e vendo a amiga assentir levemente. Quando perguntou timidamente para a mãe se estava tudo bem se ela saísse naquele dia, Andréia apenas deu de ombros e a mandou levar a chave de casa, pois não queria acordar de madrugada para abrir a porta para a menina. – Hoje é sexta, amiga. Eu tenho certeza de que você vai passar as próximas semanas enfiada em casa, estudando, e só vai sair de novo talvez quando chegar o carnaval. Então, aproveita!
Maria Luiza suspirou e sorriu após ouvir o pequeno discurso de uma Alanne bem convincente. Sentia-se agraciada por ter conquistado essa amizade. Alanne era uma garota muito especial e conhecia Malu o suficiente para saber a hora de insistir e a hora de parar. Ela pegou o copo da mão do vendedor e entregou a Malu. Olhando em volta, com a boa música, o ambiente agradável, animado e um luar invejável, ela pensou: “por que não?”
A garota olhou em volta, balançando o corpo no ritmo da música e foi quando seus olhos encontraram um foco que fez sua garganta secar tanto que ela precisou dar uma boa golada no líquido gelado em seu copo.
Precisava ele estar bonito, sorridente e com aquela maldita covinha que quase explodia quando ele ria?
Diferente de Malu, que quase não saia de casa, Calebe era um participante ativo das festas da cidade. Ia quase todas as sextas, sendo aquele o local onde encontrava a maioria das suas “distrações do problema principal”, que era como ele tinha nomeado as garotas que se envolvia para diminuir o peso de Maria Luiza em sua vida. Afinal, tinham ficado poucas vezes e ele já sentia menos vontade em ficar com outras pessoas.
Imagine sua decepção e surpresa ao encontrar Maria Luiza encostada em um pilar do local ao lado de Alanne. Ela dançava lentamente ao som de algum novo sertanejo que ele desconhecia, parecendo perdida em pensamentos.
– Sua gata tá aqui. – Vinícius comentou discretamente assim que encontrou Calebe, mas ele já estava sabendo da notícia, tinha visto com seus próprios olhos.
– E quem é minha gata? – Questionou, rindo, tentando disfarçar. A pouca relação dele com Malu ainda era desconhecida por todos, exceto para Vinicius, seu vizinho e um de seus melhores amigos, que tinha visto Malu e Calebe saindo da casa dele no ano novo. Não foi difícil a mente do menino criar toda a história em sua cabeça, partindo direto para a malícia.
– Ah, Calebe! Vai fingir pra mim, cara? Seu parceiro de vida, pô. Não vou te explanar, não! – O rapaz passou o braço pelo pescoço do amigo, rindo, já deixando evidente os traços do álcool em seu sangue.
– E você já tá alterado demais pra quem bebeu apenas quatro cervejas... – Segurou o amigo cambaleante no lugar, rindo da feição abobalhada dele.
– Eu vou no banheiro! – Exclamou, falando alto demais e sem necessidade.
– Quer ajuda? – Ofereceu, mas Vinicius negou.
– Não, tô tranquilo. – Balançou a cabeça e depois, em tom de alerta, murmurou no ouvido de Calebe: – Fica de olho na tua mina porque tá cheio de gente aqui que também tá de olho!
E foi trôpego aos fundos do local, onde se localizavam os banheiros, deixando Calebe rindo desacreditado e com uma breve dor de cabeça. Ele sabia muito bem que Malu despertava a curiosidade de alguns caras que ele conhecia e, às vezes, quando ouvia algum comentário, ele tinha vontade de gritar aos quatro ventos que já tinha tocado aqueles lábios.
Entretanto, ele não era mais um menino de 15 anos, não tinha por que se expor e expor Malu daquela forma apenas para descarregar seu ciúme e acariciar seu ego.
– Finalmente, eu pensei que ele nunca ia sair daqui. – Calebe não passou nem quatro minutos sozinho quando ouviu uma voz falando por cima de seu ombro. Virou a cabeça, vendo que uma garota ruiva o olhava, sorrindo maliciosa e o encarando. – Ele é teu namorado?
– Não, bem que ele queria. – Brincou, ficando de frente para ela, para ter uma visão melhor da garota.
– Que bom, posso te atacar sem me sentir culpada mais tarde. – Sorriu de lado com a ousadia da menina.
– Quer dançar? – Perguntou, esticando a mão para ele.
– Ah eu... Eu não danço, eu não sei. – Ela respondeu, negando com a cabeça.
– Vem, eu te ensino. Sou bom nisso e em muitas outras coisas, caso você se interesse. – Sorriu, flertando. Ele teria que se esforçar muito para se distrair da presença de Malu com ela estando tão próxima dele. – É só você me acompanhar.
O azar de Calebe naquela noite foi quando ele girou no local e acabou ficando de frente para Malu, que no outro lado do salão, encarava a cena. Sem expressão, apenas olhava os dois dançando com extrema curiosidade. Calebe engoliu em seco, forçando-se a virar de costas apenas para não ter que lidar com aquele olhar.
No meio da festa, Malu se sentia como uma verdadeira fracassada, bebendo e assistindo Calebe trocar de parceira como ela trocava de copo. Já sentia a cabeça pesada e sua visão começava a ficar turva. Ela até aceitou uns convites para dançar, mas preferia mil vezes encostar no balcão, com sua bebida em mãos e dançava apenas quando curtia realmente a música.
Olhou para o lado vendo Alanne dançar agarrada em um cara alto. Ela rolou os olhos, gostava de dançar, mas estava especialmente chata naquela noite. Se isso tinha algo a ver com Calebe, não sabia dizer.
– Amiga! – Chamou, cutucando o ombro da garota.
– Tô ocupada, Malu! – Alanne gritou de volta, tentando manter-se concentrada na conversa com o rapaz a sua frente.
– Eu quero ir embora! – Reclamou, fazendo bico e puxando Alanne, que respirou fundo para não brigar com a amiga ao ver que ela já estava bêbada. Pediu desculpa ao homem que tentava falar com ela e se afastou com Malu.
– Tá muito cedo, Malu. – Puxou o celular, procurando saber da hora.
– Tô entediada. – Resmungou, batendo o pé.
– Vai dançar! – Sugeriu, percorrendo o local com o olhar e avistando os garotos da rua de cima, principalmente seu grande amigo, que ria de alguma palhaçada de Vinicius. – Olha os meninos ali! Vamos lá, o Calebe tá ali também.
– Não! – Malu cobriu os ouvidos e fechou os olhos, como uma criança com medo do escuro. – Não fala o nome desse garoto!
– Do Calebe? – Questionou, obrigando Malu a fazer outra careta e Alanne rir. – Por que? Achei que vocês eram amigos, aquele dia no ano novo...
– Que você sumiu com o Pedro Paulo, sua ridícula? – Exclamou.
– Quando eu voltei, você que tinha sumido! – Retrucou, puxando Malu pela mão em direção aos rapazes em roda.
– Fui dormir, você deu chá de sumiço! – Deu de ombros, envergonhada com a própria cara de pau.
Era mentira, ela não tinha ido dormir. Enquanto Alanne e Pedro Paulo se esgueiravam pelos becos adjacentes, tentando passarem despercebidos até chegarem na casa dele, Maria Luiza ainda estava no sofá de Ana, sentindo as mãos de Calebe passeando por debaixo do seu vestido enquanto trocavam beijos cálidos.
– Oi, lindos! – Alanne cumprimentou, empolgada, jogando-se nos braços de Calebe, abraçando-o fortemente. Malu rolou os olhos, indo cumprimentar os outros rapazes. – Vocês nem pra avisar que iam aparecer aqui, né? – Tiago reclamou, dando um beijo no rosto de Malu.
– Eu também não sabia que viria. – Resmungou, trocando um abraço rápido com Vinicius. Paralisou quando percebeu que Alanne havia liberado Calebe, o que significava que ela teria que falar com ele.
– Caraca, Alanne! Que poder é esse, hein?! – Vinicius não se conteve e, impulsionado pela coragem do álcool, elogiou toda a beleza de Alanne, que gargalhou com a sinceridade e embriaguez do rapaz.
Malu também riu e disfarçando, resolveu agir espontaneamente, cumprimentou Calebe da mesma forma que falou com os outros rapazes. Ela apenas se esticou, apoiando-se nos ombros dele e beijando seu rosto rapidamente, mas Calebe a desestabilizou quando encaixou as mãos em sua cintura e murmurou em seu ouvido “cê tá linda hoje” e a afastou com a expressão neutra, como se nada tivesse acontecido. Ela rolou os olhos, beliscando a bochecha dele levemente e cortou o contato com ele, afastando-se.
– Amiga, é o nosso momento!
Alanne puxou a amiga pela mão ao ouvir as tradicionais batidas de funk que animaram a festa de vez, deixando todos mais do que empolgados. Malu gargalhou, jogou seus cachos para trás dos ombros, colocou as mãos no joelho e se preparou para dançar e rebolar da melhor forma que sabia.
Após algumas rodadas intensas de dança e muitas risadas patrocinadas por Vinicius – que fez todo o grupo gargalhar ao revelar seus passos de dança divertidos, sendo na maioria das vezes apenas uma imitação zoada do jeito que as meninas dançavam –, a sede bateu e a maioria dos copos estavam vazios.
Calebe e Tiago se responsabilizaram por irem ao bar e logo se afastaram. Malu e Alanne se sentaram no guarda corpo de madeira que tomava o local, finalmente descansando após muito tempo dançando e rindo exageradamente.
– A melhor coisa que aconteceu foi a gente ter encontrado esses meninos aqui. Olha isso! – Alanne comemorou e apontou rindo para Vinícius, que conversava com uma garota. Ela ficaria surpresa se a menina caísse no papo dele.
– Sim! Nossa, como são divertidos... – Malu comentou, prendendo os cabelos no alto e abanando o próprio pescoço com as mãos.
– Ei, você percebeu? – Perguntou, chamando a atenção de Malu, que negou com a cabeça. – Eu tenho certeza que o Calebe tá afim de você!
– C-como... Por que cê acha isso? – Malu abriu e fechou a boca várias vezes sem achar o modo certo de perguntar, ficando nervosa sem motivo, já que ela não tinha problemas em contar para Alanne. Sabia que talvez ele não quisesse explanação, mas era sua amiga e iria contar. Ela tinha certeza de que algum amigo dele também devia saber que eles andavam se encontrando por aí.
– Amiga, você não viu o jeito que ele tava te olhando. – Contou, mexendo nos longos cabelos loiros.
– Tá, eu preciso contar ou eu vou explodir. – Coçou a testa, incomodada.
– O que foi? – Questionou, confusa. Malu ergueu uma sobrancelha e fez um gesto explicativo com as mãos. – Não tô enten... Você tá pegando o Calebe?!
– Fala baixo, garota! – Reclamou, disparando um tapa no braço da amiga, que abriu a boca em choque com a revelação da amiga. Já tinha visto os dois sendo amigáveis um com o outro, mas pouquíssimas vezes. Ela nunca nem tinha visto eles se falando em dias normais. – Não é pegando, pegando. A gente tá... Ai, não sei explicar.
– Como assim? Desde quando? Como eu só soube disso agora, Maria Luiza? – Indignou-se, cruzando os braços.
– É porque eu não sei se tô ficando mesmo, a gente se beijou uma... – Parou para pensar e continuou. – Duas... Na verdade, três... Bom, talvez, quatro porque teve o dia em que ele foi lá na porta de casa e...
– Amiga, vocês estão ficando real! – Riu, embasbacada com a novidade. – E vocês já...? – Malu negou com a cabeça, mordendo os lábios. – Você e o Calebe, caraca! Como eu não vi isso acontecendo?!
– Eu não sei, Alanne! Eu não entendo nada quando o assunto é o Calebe. – Suspirou, quase frustrada.
– Amiga, cê tá gostando dele? – Indagou, curiosa.
– Eu não sei, Alanne, que saco! – Reclamou e bateu o pé no chão de forma infantil, fazendo a amiga rir. – Não quero e nem posso pensar nisso agora, vou no banheiro. – Alanne gargalhou, vendo sua amiga balançando seu corpo em direção ao banheiro.
Malu e Calebe, quem diria?!
Alanne sentiu seu celular vibrar na bolsa e o sacou, sorrindo e mordendo os lábios ao ver o destinatário da direct no Instagram: @pedropaulo29. Na mensagem, ele havia enviado um print de um stories de Vinicius, onde ela aparecia dançando de costas ao lado dos dois rapazes e questionava aquela amizade. Ela gargalhou, preparando-se para respondê-lo.
Pedrinho, lá de Brasília, mexia com o coração da bela Alanne.

જજજજજજજજજજજજજ

Calebe fora (novamente) interceptado pela ruiva – que ele descobriu que se chamava Bianca – assim que voltou para deixar as bebidas com as meninas. Estranhou encontrar Alanne sozinha, mas teve sua atenção desviada quando Bianca apareceu novamente ao seu lado.
E tudo bem que estava loucamente afim de Malu e estava completamente hipnotizado pelo balançar de seus quadris durante a noite inteira, mas isso não o impediria de dançar e trocar uns beijos com a ruivinha bonita.
Batendo os pés no chão, impaciente, Alanne olhava em volta sem receber nenhuma aproximação de Malu. O banheiro não era tão longe assim, a garota já devia ter voltado. Quando Alanne fez menção de se afastar a procura da amiga, ela notou Calebe abraçando uma garota pela cintura e fez uma careta.
Calebe era solteiro e a menina tinha anos de amizade com ele o suficiente para saber que Calebe amava garotas e dar em cima, conhecer em festa e ficar distribuindo beijos por aí, como um bom galanteador que era. Mas agora que ela tinha sentido um “quê” de hesitação em Malu, sua melhor amiga, ao responder se gostava ou não do menino, ela teria que invocar seus poderes como amiga do novo casal.
– Calebe! – Alanne chamou, sem se importar de estar atrapalhando o suposto caso dele.
Ele não pegaria outra enquanto estivesse ficando com sua melhor amiga, não em sua frente.
– Fala! – Suspirou, torcendo a boca, vendo Bianca também estranhar a forma abusada que a menina invadiu o espaço deles.
– Cê viu a Malu? – Todos os instintos dele se acenderam quando ouviu a proferida frase. Se Alanne estava perguntando, é porque não sabia onde ela estava. – Ela disse que tinha ido ao banheiro, mas até agora não voltou.
– Vou lá ver. – Falou, quase interrompendo a fala de Alanne e deixando a ruiva só, sem pensar duas vezes.
Alanne quase riu com a feição chocada da mulher, mas sentiu pena por ela ter sido facilmente trocada e disse: – É a irmã dele.
– Ah, fala pra ele me encontrar no bar. – A garota sugeriu.
– Claro que sim.
Claro que não falaria. Malu e Calebe eram seu novo casal preferido e se fosse possível, deixaria qualquer garota festeira longe deles.
Calebe foi em direção ao banheiro feminino e não precisou andar muito para encontrar Malu. A morena estava encostada atrás de um pilar, mexendo no celular. Quase não era possível reconhecê-la, mas Calebe havia passado tempo suficiente estudando a garota para reconhecer apenas parte da perna esticada da garota. Malu estava com os cabelos presos em um coque, estava com os olhos demonstrando uma leve embriaguez e mexia na ponta da roupa que vestia incessantemente, mexendo com os pensamentos impuros do garoto de dezoito anos.
– Alanne está louca atrás de você. – Chegou por trás, murmurando em seu ouvido e causando um leve pulo de susto em Malu, que não havia notado sua presença até aquele momento. – Você tá bem?
– Só tô tentando chamar um Uber. – Respondeu, suspirando.
– Não vai embora só, não é? – Questionou, balançando a cabeça negativamente.
– Acho que sim. Alanne quer ficar, mas eu tô bem cansada. – Bufou, irritada com o próprio celular que não cooperava em ajudá-la na missão de ir para casa e deixá-la bem longe de Calebe. – Minha internet tá horrível!
– Eu peço pra você. – Avisou, puxando o celular do bolso. – Quero acompanhar a corrida. – Calebe olhou as horas e suspirou, preocupado. Não queria deixá-la sozinha. – É melhor você chamar a Alanne, já tá muito tarde pra você ir só.
– Eu sei me cuidar, Calebe. – Respondeu, desaforada.
Estava envergonhada por tratá-lo assim e não sabia o porquê. Ele não havia feito nada de errado. Pelo contrário, Calebe nunca a tratou mal ou lhe faltou com respeito. Ele desviou a atenção do celular, olhando-a quando reconheceu o tom de voz irritado.
– O que eu fiz? – Perguntou, assustado.
– Nada, desculpa. – Sorriu sem graça e esticou a mão, tocando em seu braço, afagando suavemente. – Eu tô meio estranha hoje.
– Só hoje? – Brincou, desviando de uma tapa da menina. – Você é um caso sério de loucura, isso sim.
– Sou, é? – Ele levantou a cabeça, suspirou ao ver o sorriso ladino e provocante dela. Guardou o celular no bolso e pôs as mãos em seu quadril.
– É, sim. Você é um caso sério de loucura, de beleza... – Levantou o dedo indicador e disse cada palavra contornando os lábios dela. Refletiu por um segundo e parou subitamente no seu lábio superior. – Você é um caso sério, Maria Luiza.
Ousava dizer que nunca tinha acontecido de ela ficar completamente hipnotizada e presa no olhar de alguém. Tudo nele a atraia e ela não queria mais se negar a isso.
– Me leva em casa? – Pediu, impulsivamente. Calebe suspirou, quase sentindo-se derrotado, mas assentiu, concordando.
Havia passado a noite inteira com outras, mas, de alguma forma, lá no fundo, ele sabia que iria acabar na casa de número 200. Novamente.

───────◇───────

“Você disse que não sabe se não,
mas também não tem certeza que sim.
Quer saber?
quando é assim, deixa vir do coração”.
Se – Djavan

Buraco de minhoca é um conceito da física cuja definição científica eram “túneis” que uniam pontos distantes no espaço, um atalho entre o espaço-tempo do universo. Naquela madrugada de sábado, o quarto de Maria Luiza tornou-se um buraco de minhoca.
Sua cama havia se tornado uma galáxia só deles. Malu era o sol e Calebe era simplesmente um planeta que precisava dela para se aquecer. Era dois corpos celestes, tentando compreender a atração monumental que os unia. A química, a física, a biologia não faziam sentido naquele momento.
Chegaram na frente da casa dela e Calebe se viu como um servo quando, sem ao menos questionar, se deixou levar pela mão da menina pelo caminho já conhecido até o seu quarto. E desde que chegaram, estavam presos em sua própria galáxia. Apesar de a menina estar mais quieta daquela vez, ela estava mais receptiva aos carinhos de Calebe.
Aceitou todos os seus beijos, riu de suas investidas divertidas e teve diversas iniciativas ao beijá-lo (costumava ser o contrário).
– Meu celular... – Ela avisou ao ouvir o som familiar de mensagem de texto chegando, empurrando o rosto dele para longe dela. Ele expirou, saindo de cima da garota e se deitando ao seu lado, impaciente.

alanne ✨
onde c táaaa
vc me deixou, otária??? 😡😡😡
tá com o calebe? ele sumiu, os garotos estão procurando por ele


– O que foi? – Perguntou ao notar a apreensão da garota encarando a tela do celular.
– Alanne querendo saber onde eu me meti. – Contou, mordendo os lábios, planejando esconder o resto da mensagem.
– E...? – Ergueu a alça do vestido caída no ombro dela.
– Perguntou de você. – Contou, bloqueando o celular e voltando a deitar-se na cama. Ele avaliou o rosto dela, retirando um fio de cabelo teimoso de sua testa e sorriu de lado. – O que eu respondo?
– Você que sabe. – Deu de ombros, abrindo um sorriso relaxado, acariciando o ombro dela.
Esconder ou não, não era necessariamente uma questão para ele. Só queria ficar com ela mais um pouco, curtir o que quer que eles estivessem tendo. Ela mordeu os lábios, pensativa, pegando o celular novamente e abrindo na conversa de Alanne.

malu: ele já foi pra casa
alanne ✨
eu SEI que não foi a maria luiza hahahahahahaha
mas td bem, vou assumir essa por vc
cuidado vocês dois aí hein 😏

– Ela sabe. – Malu gargalhou, jogando o celular no peito de Calebe, que também riu ao ler a mensagem descrente de Alanne.
– Claro que sabe. Alanne é minha amiga, sabe que eu não ia resistir a uma morena dessas... – Brincou, puxando Malu pelas pernas até conseguir posicioná-la em seu colo.
– Ah, é? – Desdenhou, puxando-o pela gola da camisa e fazendo-o sentar-se.
Ele beijou cada centímetro do rosto de Malu, tentando mapear cada pedaço da pele morena com seus lábios. Beijou seu pescoço do jeito que ele já sabia que ela gostava: lento e molhado. Se viu em um impasse, pois como das outras vezes, quando ele chegava próximo aos seus seios, ela o parava. Até aquele momento.
Ela o parou, parecendo apreensiva, o olhava fixamente. Ele sentiu o coração querer fugir do seu peito, pois nunca sabia o que vinha depois de ela o olhar daquele jeito. Malu passou a mão entre os cabelos, parecendo nervosa, porém, decidida. Sem desviar o olhar dele, ela levou as mãos até as costas, procurando o zíper de seu vestido.
– Malu, tá tudo bem se você não quiser... – Tentou intervir ao notar o nervosismo da garota.
– Não é isso. – Respondeu, segurando o vestido já solto no corpo. – Eu acho que nunca fiquei insegura com ninguém antes.
– Eu te deixo insegura? – Questionou, preocupado. Não era o sentimento que queria causar na garota e nem acreditava que tivesse feito algo para tal.
– Não é você... – Ponderou. Pensou antes de continuar, pois o garoto merecia uma explicação do porquê ela sempre o parava antes de aprofundarem as coisas. Respirou fundo antes de pensar em continuar e fechando os olhos para esconder que tinha ficado com vontade de chorar.
– Malu. – Pediu, quase suplicante. Passou a mão pela testa, sentindo seus nervos se alterarem em poucos segundos.
– Pode parecer idiotice, mas...
– Não é idiotice, se você estiver desconfortável, a gente não precisa fazer nada. – Assegurou, suavemente.
– Não, Calebe. Eu quero. – Ela afirmou, passando a mão pelos cabelos da nuca dele. – Posso pedir uma coisa? – Ele assentiu. – Tem problema se eu ficar de blusa?
Calebe estranhou o motivo de tamanha insegurança. Se ela se visse da forma como ele a via, não se sentiria desconfortável ou algo relacionado. Decidiu respeitá-la e não questionou seus motivos.
O tempo inteiro, Calebe fez questão de deixar Malu ciente de que eles poderiam parar a qualquer momento, também não tentou ver debaixo da blusa, apesar de que sua confirmação de que o problema era mais visual veio quando Malu guiou as mãos dele para debaixo da blusa. Ele estava receoso, mas ao contrário do que pensava, foi ela que o deixou confortável o suficiente para ele seguir em frente.
Foi assim que, diferente das outras noites, eles não pararam.

જજજજજજજજજજજજજ

Então tenta não me provocar, que eu prometo não vou complicar... – Malu cantou, filmando a tela da TV enorme na parede do local, fazendo questão de frisar aquela frase em texto e postando direto em seus stories das redes sociais, tendo apenas uma visualização como objetivo.
Desde que Malu, enquanto voltava da aula, viu Calebe cheio de sorrisos para uma garota da vizinhança, ela vinha bloqueando a entrada dele na casa dela, ignorando-o no Whatsapp, deixando o garoto sem entender nada. Ela sabia que não tinha direito algum de cobranças, não tinham nada concreto e sério, mas se Calebe podia ficar distribuindo sorrisos e gracejos pelo bairro, ela também podia.
Foi assim que Malu acabou sentada na mesa de uma lanchonete no bairro com um cara chato, ouvindo um papo chato e comendo um hambúrguer gigantesco, pois alguma coisa boa tinha que sair daquele encontro que ela havia se metido por puro ciúme. Ao invés de fingir que estava interessada no assunto do rapaz ao seu lado, ela estava ocupada demais mandando indiretas na internet.
Com o alvo sendo atingido com sucesso.
– Olha aí, mãe! – Calebe esbravejou, mostrando o celular para a mãe. – Usando a Anitta pra me atacar, vê se pode!?
– O que você fez pra ela, hein garoto? – Ana gargalhou com a expressão indignada do garoto. – Mal começaram e já estão assim.
– Não começamos nada. – Negou, ainda revendo a postagem da menina, tentando descobrir onde ficava aquele lugar. – Cê sabe onde é isso?
Calebe não tinha intenção alguma de contar à mãe dos seus rolos com Maria Luiza, mas foi inevitável quando ela o encontrou chegando em casa às duas da manhã em plena segunda-feira.
Ele nunca fora muito reservado mesmo, além disso, queria evitar uma bronca colossal, então acabou comentando que estava na casa de Malu e, mesmo assim, acabou sentado no sofá ouvindo um longo discurso de sua mãe, que implorava para que ele fosse cuidadoso e respeitoso com ela. Diferente das meninas que o filho se envolvia, Ana realmente se importava com Malu e via a menina como parte da família, sem falar no seu receio com Andréia, que quando descobrisse que os dois jovens andavam tendo encontros pela madrugada a fora, ficaria uma fera.
– Deixa eu ver. – Ajeitou os óculos no rosto e afastou o celular para visualizar melhor a tela, já que os anos só pioravam a visão da mais velha. – É naquele Blue Burguer, que fica uns quarteirões daqui. A comida lá é uma delícia!
Foi como se uma lâmpada se acendesse na cabeça de Calebe.
– É? Quer um lanche de lá? – Perguntou inocentemente. Ana semicerrou os olhos, repreendendo-o com o olhar. – O que? Você que disse que é bom. – Deu de ombros, puxando o celular do bolso e indo em direção ao quarto.

Calebe
tá aí?
Vinícius 🚬
Fala 🤔

જજજજજજજજજજજજજ

– Cê já viu a Maria Luiza por aí? Ou Alanne? – Questionou, tentando vasculhar o lugar com os olhos, mas sem perder a discrição.
– Se eu soubesse que a tal missão era pra espionar as meninas, eu cobrava mais do que uma pizza... – Vinícius reclamou, abrindo a latinha de refrigerante e acenando para um dos atendentes do local.
– Eu já disse que vou pagar, fica de boa aí. Cê já viu elas? – Questionou, olhando em volta.
Sentia-se ridículo, fazendo algo totalmente sem noção, mas suas pernas quase o guiavam sozinho quando se tratava de Maria Luiza. Ele nunca tinha feito isso por nenhuma garota, sequer sabia por que tinha ido até lá. Queria encontrá-la? Queria que ela não o visse? Queria realmente espionar? Que diabos estava fazendo ali, afinal? Vinicius também olhou em volta, ajudando o amigo e arregalou os olhos quando encontrou os cachos de Malu.
– Ué, você não disse que ela tava com a Alanne? – Perguntou, apontando com a cabeça para a terceira mesa à esquerda deles.
– Eu achei que estava... – Comentou, descrente.
Ele realmente esperava vê-la com Alanne ou alguma amiga sua do cursinho, mas seu queixo quase foi no chão quando viu um cara totalmente desconhecido sentado ao lado da sua garota.
– Bom, já que eu vim até aqui, seria bom uma explicação da tua relação com a Malu, porque eu já não tô entendendo nada. – Vinicius implicou, rindo.
– Não tem relação, ué. – Deu de ombros, tentando desviar o olhar do casal na mesa do outro lado.
– Peraí, você me tirou de casa pra me pagar apenas uma pizza, eu vou ter que pagar minha própria bebida, não tenho a Alanne e ainda tenho que ouvir mentiras suas? A gente é parceiro, mas não abusa! – Calebe gargalhou, passando a mão pelo rosto, a timidez lhe abatendo de repente.
– A gente só ficou, cara. – Resolveu ser justo e contou uma versão nada mais que resumida dos fatos. Vinicius negou com a cabeça, descrente. – Que foi?
– Você pegou a Malu! Máximo respeito, meu capitão. – Fingiu uma reverência, gargalhando. Vinicius já sabia, mas precisava da confirmação. Será que o amigo já sabia que estava louco pela garota? Ou estava negando os fatos, não apenas para o amigo, mas para si mesmo. – E o que tá rolando?
– Nada, ela tem me ignorado, mas eu não sei o que eu fiz de errado. – Contou, frustrado, desviando o olhar para a mesa três.
– Ah, bem-vindo ao mundo dos meros mortais, Calebe! É assim que nós, homens, somos tratados. A solução é pedir desculpas. – Vinicius brincou, olhando no cardápio e escolhendo a pizza mais cara sem dó.
– Eu não sei o que eu fiz, nem se fiz algo errado, não vou pedir nada! – Calebe indignou-se. – Vamo logo acabar com isso, pede sua pizza aí!
Enquanto isso, Maria Luiza batia os pés no chão, impaciente. Agora que já havia comido, já estava indo para o segundo suco de laranja e a terceira porção de batata frita, Malu queria que passasse um tempo socialmente aceitável até que ela pudesse dar uma desculpa para seu acompanhante insuportável e saísse de fininho.
Também queria que o alvo de sua indireta falasse com ela. É claro que ela não responderia, mas precisava que ele estivesse ali. Enquanto isso, ela mandava mensagens de teor desesperado para Alanne, sua parceira de crime, que não estava presente.

alanne ✨
Amiga, não tem nem 1h HAHAHAHAHA
pede mais um lanche, sei lá
😡

Fungou, pesarosa. Seu olfato detectou um cheiro mais do que familiar, fazendo-a fungar novamente, confusa. Até se inclinou um pouco na mesa, tentando identificar se aquele cheiro vinha de André – que babujava algo sobre academia – e ela não havia percebido.
– Que perfume você usa? – Perguntou, interrompendo-o sem discrição alguma.
– Anh, e-eu não sei o nome.
– Engraçado, parece o… – Ela estranhou, murmurando e olhando em volta. Arregalou os olhos ao encontrar o dono do cheiro. Puta merda, ela realmente havia sentido o cheiro de Calebe do outro lado do local?! E o pior: Ele realmente estava ali! – Ér... Ninguém, pode continuar.
– Então, tudo melhorou quando troquei de academia... – Malu desligou-se totalmente do assunto, puxando o celular quase desesperada.

malu
AMIGA🚨
vem pra cá!!!
alanne ✨
tá doida malu?
claro que não
Malu
Calebe tá aqui, não quero que ele pense que tô sozinha com o André 😖
alanne ✨
ué, e eu vou ter que ir aí pegar o André por você?
não que seja muito esforço, sabe 😈
malu
alanneeee, por favor!!!😫
alanne ✨
ah amiga, tô aqui na casa da Gi
malu
traz ela!
alanne ✨
ai malu...vc se mete em cada uma e ainda me leva junto

malu
eu pago o lanche de vcs 😇
alanne ✨

aí sim! HAHAHAHAHA
tamo indo amiga, aguenta aí

– Ei, umas amigas estão vindo aqui, tem problema? – Perguntou, interrompendo o rapaz novamente. Ela sabia que Alanne a ajudaria e mesmo que não conhecesse a garota que estava com ela, sentia-se aliviada.
Receava que Calebe a visse com alguém e perdesse o interesse e a deixasse de lado. Pensando bem, ela havia, sim, agido no impulso, mas não foi para deixá-lo com ciúmes. Pelo contrário, preferia que Calebe nunca soubesse de André.
Ela só queria estar com a consciência tranquila de que não estava “sozinha”, já que Calebe também não estava. Não que fosse uma competição, mas ela não ia perder.
– Não, não, tranquilo. Eu só achei que a gente fosse sair depois daqui. – O rapaz completou, fazendo Malu erguer uma sobrancelha. Ele realmente achava que iria conseguir algo mais a sério mesmo que ela tenha passado o encontro inteiro no celular?
– Olha só, eu amo essa música! – Disfarçou, ignorando o comentário, apontando para a tela grande em que passava alguns clipes de música que animavam o ambiente.
André não era de todo ruim. Era um cara bonito e gentil, entretanto, era chato. Seu jeito era chato, sua conversa era chata, suas piadas eram chatas. Ou talvez Malu só achasse isso porque seu interesse real estava na mesa do outro lado do local.
– Eu só quero um resumo, só isso. – Vinicius insistiu.
– Cara, se você não entende minha relação com ela, eu muito menos! – Calebe brincou, mordendo a pizza.
– Mas quando começou?
– Mas que bela fofoqueira que você tá me saindo, hein? – Brincou, rindo de leve. – “Sepá” começou lá em mil novecentos e alguma coisa. Mas no geral, a gente ficou a primeira vez no ano novo e foi ficando e ficando...
– Bom, o carnaval tá aí. Se vocês passaram por ele ainda nesse “ficando e ficando”, tão salvo! – Assegurou.
– Eu quero ficar com ela, mas não sei não, depois de tudo que aconteceu com a Priscila, não sei se quero parar com alguém de novo. – Refletiu.
Pera, o negócio tá sério assim?! Você já tá comparando com a Pri e pensando em ficar só com ela? Que porra, eu achei que era só um “fica”! – Vinicius riu, feliz. Depois de Priscila, o amigo nunca mais havia se interessado de verdade por alguém e ele ficava contente que esse alguém era Maria Luiza. Ele adorava a garota, mais ainda a amiga dela.
– Não! Eu só... – Calebe parou para pensar e ficou confuso. – Eu tô?
– Ah, agora sim vai ser divertido de assistir! – Vinicius gargalhou, recebendo um chute de Calebe, que estava tentando passar despercebido.
– Bem, como você disse, o carnaval tá vindo aí e logo tudo isso vai passar. – Tentou transparecer segurança, mas nem ele acreditou em si mesmo.
– Ou... – Provocou.
– “Ou” nada, fica quieto e... –
Foi um choque quando os olhares de Malu e Calebe se encontraram acidentalmente e não conseguiram desviar. Malu ergueu uma sobrancelha e fingiu que não tinha o visto ali, acenando de leve como cumprimento. Calebe nem ao menos tentou disfarçar, olhou para o acompanhante da garota bem visivelmente e rolou os olhos, balançando a cabeça.
A atitude malcriada e ousada do garoto fez Malu comprimir os lábios, segurando o sorriso. Esse jeito atrevido e desleixado de Calebe mexia com ela e com todas as meninas do bairro.
Calebe pegou o celular que repousava na mesa e procurou pelo stories provocativo que ela havia postado e resolveu responder. De todos os poucos aspectos do envolvimento dele com Malu, o que ele mais gostava era aquela provocação infantil entre os dois.
Malu riu ao ler na barra de notificação do celular, que Calebe havia respondido sua publicação e olhou para trás, encontrando Calebe ainda olhando-a. Não ia responder, ia deixar bem visível que estava o ignorando, mas não se conteve.

Calebe
Você tá fazendo oq? provocando ou complicando?
Malu
nenhum dos dois
apenas jantando
e você?
Calebe
Decidindo se eu devo esperar pra te carregar daí agora ou depois
malu
se vc me fizer passar vergonha eu vou contar pra tua mãe, Calebe 😡
Calebe

boa sorte explicando pra ela! 🙂


– Amiga! – Malu desviou a atenção do celular quando ouviu a voz de Alanne e quase suspirou de alívio ao ver a amiga indo em direção a ela.
– Oi!! – Jogou o celular na mesa e se levantou, abraçando-a e sussurrando em seu ouvido: – Finalmente!
O queixo de Malu quase caiu quando virou para cumprimentar a tal amiga de Alanne.
Sabia que eram de um bairro pequeno, onde todos se conheciam, mas era muita brincadeira do acaso e do destino que a tal de Gi, amiga de Alanne, era justamente a menina que estava cheia de sorrisos e carinhos com Calebe na semana passada.
– Mano, aquela se sentando na mesa da Malu é a Gi? A que você tava semana passada? – Vinicius questionou, mordendo a pizza assistindo toda a cena como se fosse um bom filme.
– Puta que pariu. – Xingou, enfiando as mãos no cabelo.
– Agora você sabe porque você tem que pedir desculpa! – Vinicius gargalhou da desgraça alheia.
– É muito azar, não é possível! – Calebe resmungou, sem acreditar no seu próprio azar.
Pelo canto de olho, Malu observou a expressão nervosa de Calebe, confirmando o que ela já sabia. Ele estava sim de rolo com aquela menina. Seu lado racional a mandava ficar calma e não enlouquecer, pois ela e Calebe não tinham nada oficial, ficavam poucas vezes, transaram apenas uma vez, mal conversavam.
Calebe tinha seus direitos, era solteiro, assim como ela. Porém, seu lado irracional queria gritar, chutar a cadeira, ir até ele e perguntar o que diabos ele havia visto naquela garota.
– Essa é Gisele, minha amiga do curso de maquiagem, lembra? Comentei contigo ontem. – Alanne apresentou, apontando para a garota de cabelos pretos e lisos. Malu concordou, apresentando-se, tentando ser madura e engolindo os ciúmes chato que ela estava sentindo.
– Oi, tudo bem? – A garota cumprimentou e pigarreou ao notar que sua voz saiu estranha e ela falou de modo seco demais. Balançou a cabeça levemente, a garota não tinha feito nada de ruim para ela. Cumprimentou, trocando dois beijinhos com a garota, que foi simpática com ela.
Malu ficou responsável pelas apresentações e acabou se complicando um pouco ao apresentar seu acompanhante. Alanne ria discretamente do embaraço da amiga, sabendo que ela não estava tímida com a presença deles e sim, com a presença devoradora de Calebe.
– Tudo bem? Senta aí, esse aqui é o…
– Calebe! – A garota exclamou, surpresa e apontando para a mesa atrás delas. Malu engoliu em seco, virando a cabeça para Alanne, que assistia confusa a situação. – Olha aí, Alanne, quem tá aqui também! – Gisele riu, inocente sem saber da situação estranha em que estava se metendo e foi até a mesa dos rapazes.
– Amiga, eu não sabia que eles… – Alanne começou a se explicar, mas foi interrompida por sua amiga.
– Tá tudo bem, eu sabia. – Explicou, puxando a garota pela mão e apresentando-a a André. – Senta, amiga, relaxa.
Calebe sentiu seu estômago revirar de ansiedade quando viu que Gisele caminhava até a mesa dele, sorrindo e acenando. Só conseguia pensar que tinha estragado tudo com Malu antes mesmo de começarem algo concreto.
– Oi, Gi! – Vinicius, que também já conhecia a garota, cumprimentou. Ela não percebeu, mas ele estava prestes a explodir em gargalhadas.
Calebe tinha acabado de se enfiar em uma situação saída diretamente dos capítulos juvenis de Malhação. Ele queria rir só de olhar a expressão medrosa de Calebe, que sequer conseguia disfarçar que estava olhando para trás a cada segundo.
Sobre a Gisele. Era uma menina divertida e simpática, era interessante e ele até se interessaria por ela, se não fosse a Maria Luiza. Ele e Gi eram amigos de festa, haviam se conhecido na casa de amigos em comum e na semana passada, acompanhou a menina até a parada de ônibus ao encontrá-la na rua.
Conversa vai, conversa vem e Gisele, direta do jeito que era, flertou descaradamente com ele. Calebe até tentou se esquivar de todas as formas, mas acabou cedendo e acabou beijando-a antes do ônibus chegar.
Não foi nada demais, um beijo com o mínimo de carinho possível, podendo ser considerado até um pequeno “toque de lábios”, mas vê-la na mesa ao lado era o maior indício de que Malu sabia o que havia acontecido e por isso vinha ignorando suas mensagens, ligações e até mesmo sua presença.
– Te ver duas vezes na mesma semana, que privilégio! – Ela brincou, dando um beijo no rosto do Calebe.
– Pois é… – Ele riu sem graça, desconversando.
– Cê tava com a Alanne? – Vinicius perguntou, interessado.
– Sim, vocês se conhecem? – Ela questionou, surpresa.
– Sim, Alanne e Malu são nossas parceiras. – Vini comentou, chutando a perna de Calebe por debaixo da mesa, tentando acordá-lo do transe em que o rapaz havia se enfiado.
– Ah, que legal! São todos amigos, então, vocês querem sentar com a gente?
Um minuto de silêncio desconfortável seguiu a pergunta. Calebe e Vinícius se entreolharam, em seguida, olharam para a mesa à frente. Malu sentindo os olhares em sua direção, também olhou para a mesa. Malu não pensou mais em fingir naturalidade e Calebe percebeu isso ao notar a expressão dura da garota. Desviou o olhar para o babaca ao lado dela, olhou para Alanne que estava assistindo tudo, assim como Vinícius. E Calebe, novamente perdido em sua própria impulsividade, respondeu:
– Queremos.
– Queremos?! – Vinícius espantou-se, erguendo as sobrancelhas.
– Sim, claro. Somos todos amigos, não? – Levantou-se da mesa antes de mudar de ideia, levando consigo as latinhas de refrigerante e a bandeja de pizza.
– Só pode ser sacanagem… – Malu murmurou, negando com a cabeça quando notou os três vindo em sua direção a mesa dela.
Ai, caralho… – Alanne sussurrou, fingindo olhar o cardápio.
– Gente, como todo mundo se conhece…– Gisele começou a se explicar e foi interrompida.
– Bom, na verdade, eu não conheço todo mundo… – Calebe explicou e olhou para o canto da mesa, encarando o acompanhante de Malu e perguntou de forma rude, sentando-se ao lado de Alanne. – Quem é você?
– Eu? Quem é você? – Óbvio que André notou o tom abusado na voz do rapaz e respondeu de volta.
Malu quase pulou no lugar ao sentir que algumas faíscas provocativas saíram daquela interação. Então resolveu acalmar aquilo, pois André não falaria nada pois apesar de ser direto, era bastante tímido. Mas Calebe era meio doido, como ela mesmo costumava dizer.
– Esse é o André, ele é meu amigo da academia. – Ela explicou, apontando.
– E aí cara? Beleza? Meu mano aqui já tá meio alterado, bebeu umas garrafas, sabe como é... – Vinícius, como um bom escudeiro, se meteu na frente e esticou a mão, cumprimentando o outro, que apenas assentiu.
Era mentira, óbvio. Calebe nunca esteve tão sóbrio, mas Vinícius sabia que aquela não seria a última atitude petulante do amigo, então o álcool seria responsabilizado por tudo que Calebe fizesse ou falasse a partir daquele momento.
– Ah, entendi, amigos, né?
– Então gente, e o carnaval, hein? – Alanne comentou alto, chamando a atenção de todos, tentando tirar a tensão que havia se instalado na mesa, onde os únicos que não estavam entendendo nada eram André e Gisele.
– Vamos naquele bloco na beira-mar, lá no centro, sabe? Combinamos com algumas pessoas lá da nossa rua. – Vinicius também se empenhou em mudar de assunto e desviar a atenção do olhar gélido de Calebe.
– Sério? Nós também, combinamos agora pouco, não foi? – Gi contou, empolgada, apontando para Alanne, que confirmou de forma sem graça, olhando para Malu.
– Quer dizer, eu acho que vamos, né Malu? O que cê acha? – Alanne perguntou, apertando o braço de Malu.
– Eu acho que… – Inconscientemente, ela e Calebe se entreolharam, sem motivo real, apenas por saber que ambos estavam cheios de dúvidas entre si. – Pode ser, vamos sim, vai ser… divertido.

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“Como é gostoso gostar de alguém.
Ai, morena, deixa eu gostar de você
boêmio sabe beber, boêmio também tem querer”
Quem Sabe, Sabe – Marchinhas Clássicas de Carnaval.

Tão lento quanto o mês de janeiro havia passado, fevereiro estava voando. Mal havia chegado e já era carnaval. A festa, que era tão amada por uns e tão odiada por outros, era a oportunidade perfeita para quem ainda não havia tido coragem de começar o ano. Assim como Malu, que sentia totalmente presa e estagnada no mesmo lugar durante o ano inteiro.
– Eu vou atrás do trio elétrico, vou... – Malu assistiu a animação de Alanne, que dançava pelo seu quarto alegremente, balançando seus cabelos longos de um lado para o outro, enquanto cantava uma das músicas marcantes de carnaval que elas tinham na playlist.
– Eu queriaaa que essa fantasia fosse eterna... – Alanne arrumou o biquini rosa no corpo, que contrastava de forma quase perfeita com sua pele negra. – Eu queria qu...Malu! – Ela desviou o olhar para a amiga, que não demonstrava entusiasmo algum.
O chamado agudo de Alanne a assustou, fazendo com que ela sujasse o rosto com o delineador.
– Caraca, Alanne! Que susto, porra! – Reclamou e foi em busca de um lenço demaquilante que limpasse o estrago que ela havia feito em seu próprio rosto.
– Você que tá viajando aí. O que foi? Acorda, Malu! Carnaval, praia, cervejinha. Cadê tua empolgação? – Alanne questionou a amiga ao notar seu rosto quase impassível.
– Ficou na vaga da Fuvest que eu não consegui. – Murmurou, tristonha.
Malu tentou levar as coisas de forma leve e tranquila, não precisava acumular mais estresse em si mesma, mas então os resultados dos vestibulares que ela havia prestado começaram a ser divulgados e suas reprovações em cada um deles também. A menina tentou se convencer que não tinha pressa, que tinha apenas dezoito anos, ainda tinha um ano inteiro pela frente.
Ela tentou muito se convencer disso.
– Amiga, você nem queria Fuvest mesmo! Imagina se você ia pra São Paulo a essa altura do campeonato? – Alanne foi fuzilada pelos olhos de Malu e riu. – Tá, eu sei que não é bem por isso.
– Eu só queria passar no vestibular, Alanne. – Confessou, sentindo a tristeza passar a ser irritação.
Malu sentia que de uns tempos para cá, nada dava certo para ela. Tinha entrado em uma maré de azar e não parecia que iria sair tão cedo.
– Eu sei, amiga, eu também não passei, mas... – Alanne até tentou consolá-la, mas logo foi cortada pela amiga.
– Não passou, mas pelo menos tem um emprego. Eu sequer tenho um currículo! – Malu bradou, irritada. Jogou a maquiagem na bolsa e deitou-se em sua cama, suspirando completamente frustrada.
Alanne era uma ótima maquiadora e havia conseguido um emprego em um salão de beleza especializado em peles negras que havia no centro da cidade. Era um ótimo emprego e Alanne estava mais do que feliz por ter conseguido juntar o que gostava de fazer com o que precisava, ou seja, unindo o útil ao agradável. Agora além de trabalhar, ela conseguia pagar seus estudos e ajudar em casa. Enquanto isso, Malu sonhava em conseguir a mesma coisa.
Ela queria que a vida sorrisse para ela com um pouco mais de leveza também.
– Caramba, Malu! Nada que eu fale vai tirar você dessa bad, não é? – A garota negou, emburrada. – Já chega, Maria Luiza! Você tá acabando com meu espírito carnavalesco, eu hein! Levanta essa bunda daí, coloca esse tule, joga um brilho nesse rosto e vamos descer pra praia! – Alanne puxou a mão da melhor amiga, já perdendo a paciência.
Impaciente, Malu levantou-se da cama e puxou a saia vermelha que havia sido escolhida para combinar com o único biquini preto que ela tinha. Ela apenas assentia enquanto Alanne falava sem parar.
– E a gente já combinou de ir com a galera toda, não vem dar pra trás agora...
– Eu sei, eu sei... – Murmurou. Alanne observou a amiga se olhando no espelho de forma tristonha.
– Malu? Jura que vai tentar se divertir hoje? – Alanne insistiu, passando a mão pelos cachos armados da amiga, que sorriu de lado e assentiu, concordando.
Não precisava ser um gênio para perceber o quanto Malu estava tentando entrar nos eixos após a morte de seu pai. Ela sabia que a amiga dava duro á meses para tentar manter sua casa, sua vida e sua sanidade mental. Alanne se sentia impotente ao ver que não tinha muito o que fazer para ajudá-la. Resolveu fazer só o que estava a seu alcance, que era ser uma boa amiga e companheira.
As amigas finalizaram seus preparativos, agora contando com uma Malu mais animada e uma Alanne aliviada em ver a amiga mais receptiva a diversão. Ambas adoravam festa e era a primeira vez que curtiriam um carnaval juntas.
Iriam para a beira-mar do outro lado da cidade, que era o ponto de encontro de quase todos os blocos que sairiam pelas ruas das cidades. Era um ponto de diversão garantida, ainda mais com a certeza de que todas os seus amigos estariam reunidos.
Descendo a pequena escada na ponta dos pés e com os tênis em mãos, as meninas analisaram a sala minuciosamente, encontrando Andréia dormindo profundamente no sofá.
– Vai avisar? – Alanne perguntou em um sussurro.
– Se eu acordar ela, vai ser pior. Vem! – Murmurou, puxando-a pela mão e indo em busca da sua pequena felicidade momentânea.

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“Quanto tempo tenho pra matar essa saudade?
meu bem, o ciúme é pura vaidade [...]
sou perecível ao tempo, vivo por um segundo
perdoa meu amor, esse nobre vagabundo”.
Nobre Vagabundo – Daniela Mercury

Foi necessária uma viagem de 1h30 de ônibus até o litoral para Calebe ter certeza do que ele já sabia. Aquela terça-feira de carnaval seria um desastre.
Colocar dez jovens de dezoito a vinte anos dentro de um ônibus, a caminho de uma festa na praia, com um isopor lotado de bebidas alcoólicas enquanto o motorista do ônibus tocava os funks mais tocados do momento era uma receita para o desastre. Os ânimos já estavam mais do que exaltados, o grupo já havia feito amizade até com os passageiros dos ônibus que passavam ao lado e havia até se multiplicado.
Tinha algumas pessoas ali que ele não conhecia, era o “amigo de um amigo”, o “primo da minha prima”, fazendo com que o grupo de dez amigos se tornassem quase vinte. Tudo estava uma grande confusão, do jeitinho mais brasileiro possível.
E estava tudo bem, até Calebe notar que tinham uns e outros interessados demais em Malu. Então, ele se irritou. Maria Luiza havia ficado quase uma semana sem falar com ele, lançando indiretas em todas suas redes sociais, claramente incomodada com o que ele tinha feito. Mas agora ela estava fazendo o mesmo ao ficar de conversa com aquele tal de Renan. Ele se deu o direito de ficar chateado. Já havia admitido para si mesmo que gostava de Malu, então podia se dar o prazer de ficar bravo ao vê-la com outro.
Mas é claro, que seu orgulho ferido não o deixaria ir muito longe sem uma bebida na mão e uma mulher na outra. Então, foi o que ele fez, colocou uma cerveja na mão e Gisele em outra e fingiu que estava tudo bem. Fingiu que aquilo ali não era uma guerra fria em que ele havia entrado contra Malu.
– Tá ficando feio... – Alanne cantarolou, fingindo que estava lixando as unhas. Malu não entendeu e Alanne apontou com a cabeça em direção a Calebe e Gisele, que se beijavam encostados em um carro.
– Não adianta, ele não vai me atingir. – Malu assegurou e virou o copo de cerveja quase cheio na boca.
– Tô vendo! – Alanne debochou, rindo ao ver a amiga agindo de forma contrária ao que estava afirmando. – Mas até que o Renan é bonitinho.
– Quem?
– O primo do Tiago, aquele que você tava de papo ali, maluca! – Alanne riu da desatenção da amiga.
– Quer saber? – Ela desviou o olhar do casal detestável e sorriu provocante. –Ele é mesmo.
– Ih, vai dar ruim, não vai? – Alanne supôs, rindo sem parar, o efeito da bebida já contagiando a garota.
– Vai é dar bom, Alanne! – Abraçou a amiga pelo ombro, rindo.
Não demorou para as garotas se verem vivendo o melhor do carnaval brasileiro. No meio do bloco à beira-mar, a chuva resolveu dar as caras, mas nem isso foi capaz de tirar a animação do grupo de jovens da rua da Saudade. Brincaram na areia, dançaram alegremente, curtiram a chuva quando ela chegou e, é claro, tomaram umas além da conta.
Dançando como se não houvesse amanhã, de braços para cima e balançando seus cachos molhados, Maria Luiza sentia-se viva de novo.
Sabia que era um clichê que ela estivesse se sentindo como a única pessoa no mundo no meio de uma multidão, mas foi delicioso viver aquela sensação. Ela sentia como se ela pudesse fazer tudo o que queria fazer, como se tudo fosse possível. Ela sequer se importava que seus cachos estavam molhados, estragando toda a sua finalização. Ela se sentia tão bem, que parecia que havia passado no vestibular. Ou que o garoto que ela gostava havia deixado a outra garota de lado apenas para ficar olhando-a.
Calebe a assistia dançar quase hipnotizado. Malu tinha um jeito de menina/mulher que era algo de outro mundo. Ela chamava atenção onde passava e ele duvida que não houvesse pelo menos uns cinco pares de olhos a encarando naquele momento em que ela dançava de forma sensual e encantadora.
Ela sabia que ele estava a olhando. Era bom ser olhada daquela forma e aquele olhar ela só encontrava nos olhos de Calebe. Sentia seu corpo ser quase levado contra a maré, com todos os outros corpos encostando no seu, quando no fundo, ela só queria estar encostada nele.
Já sabia que todo a combinação de álcool + chuva + dança + calor humano estava dando mais do que certo, pois ela se viu indo em direção a Calebe.
Ela sorriu ao ver o olhar confuso e ansioso dele a medida em que ela ia se aproximando. Ele estava a coisa mais fofa vestido apenas com uma saia de tule igual a dela. Com os cabelos molhados, ele estava com glitter espalhado pelo rosto e pelo corpo de forma desproposital. Ele sentiu seu coração bater tão acelerado quanto a bateria que regia o bloco de carnaval que eles acompanhavam.
Ela estava dando o primeiro passo, ele sabia. Ela estava engolindo o orgulho e indo em direção a ele, na frente de todos, sem se importar com nada. Tudo ia ficar bem agora. Iria. Até que, sem notar a situação em que Calebe estava, Gisele passou o braço pelos ombros do garoto e tentou beijá-lo. Malu travou no lugar, agradeceu aos céus que ainda garoava, assim ele não perceberia seus olhos enchendo-se de lágrimas. Mas ele percebeu.
Maria Luiza se sentiu frustrada e envergonhada. Olhou para os lados, mas ninguém parecia ter prestado atenção, todos estavam dançando e concentrados em suas próprias conquistas carnavalescas. De repente, a multidão que a acolheu minutos atras, pareceu sufocá-la e ela precisou sair de lá imediatamente. Ela se virou e começou a se afastar, sem saber muito bem para onde estava indo.
Calebe afastou Gisele de forma nada sutil enquanto tentava não perder Malu de vista. Ela sair andando sozinha no meio daquela multidão era uma péssima ideia e ele parecia ser o único que havia notado a garota se afastando. Sem pensar muito, ele deixou todos para trás e foi atrás da morena, que andava rápido entre as pessoas.
Ela finalmente conseguiu chegar à calçada, mas o local ainda estava cheio demais, lotado de ambulantes e pessoas tentando fugir da aglomeração na avenida. Pensando agora, foi uma péssima ideia ela ter ido para uma das alamedas adjacentes, onde não havia muita gente. Em compensação, estava lotado de possíveis ameaças. Se arrependeu no mesmo segundo que percebeu um homem alto que começou a seguir ela. Quase paralisou no lugar, mas seus instintos femininos falaram mais alto e ela deu meia-volta, voltando para o início da rua.
Calebe percebeu que havia um homem logo atrás da garota, olhando-a de forma obstinada e não pensou duas vezes em correr até lá. Ela franziu o cenho ao vê-lo correndo em sua direção e se assustou quando ele a abraçou com força sem mais nem menos. Como ele corria e estava agitado, acabou sendo mais um esbarrão do que um abraço.
– Ai! Tá doido, Calebe? – Ela reclamou, mas ele nem escutou.
Encarou o homem atras dos dois e engoliu em seco a raiva quando constatou que o homem sequer disfarçou que a estava seguindo e parou no meio caminho e voltou a subir a rua na direção contrária.
– Quem tá doida é você! Como é que você sai sozinha de perto de todo mundo? – Atacou, puxando-a pela cintura em direção a parede. – Tinha um cara atrás de ti, Malu!
– Eu sei, eu vi! – Suspirou, sentindo sua ansiedade e nervosismo se dissipando aos poucos. Queria estar perto dele, mas não tão perto como estava, sentindo as mãos dele em sua cintura.
– Viu, mas e aí? Ia fazer o que? Correr? É carnaval, Malu. É bom, é divertido, mas é extremamente perigoso. – Argumentou, irritado com a irresponsabilidade dela. Podia ver em seus olhos baixos que ela estava mais alcoolizada do que ele, então ele fez uma nota mental de não beber tanto para que pudesse ficar de olho nela.
– Eu só queria... – “Ficar longe de você”. Ela pensou em dizer, mas não queria parecer fraca. – Eu não preciso ficar te dando satisfação, não. – Ela tentou puxar seu braço do aperto dele.
– É, eu já percebi isso. – Murmurou. Era melhor que eles se afastassem e ele a levasse de volta para a companhia dos amigos, porém, apesar de ela estar mais alterada do que ele, não quer dizer que ele não estava também. – Eu também não preciso, apesar de que se você pedir, eu dou.
Malu suspirou, encarando-o. Ela negou com a cabeça, sentia-se farta daquela situação. De repente, percebeu que queria voltar para casa, mas não queria ir sozinha. Assim como já vinha acontecendo a algum tempo, ela percebeu que queria estar com ele, quase sempre. Sentia falta de quando ele não estava por perto. E quando ele estava por perto, era doloroso ver que ele não era dela.
– Tô cansada disso. – Admitiu.
– Do quê?
– Da gente, Calebe.
– A gente não tem nada, Malu. – Garantiu, trêmulo. Longe do amontoado de pessoas, o vento frio que batia em seu corpo gelado da chuva o fazia tremer.
– A gente não tem nada? – Riu com desdém, balançando a cabeça. – Você fala isso pra convencer quem? Pra mim, pra você ou pra Gisele? – Questionou, dura.
– Eu fiquei com ela uma vez, Malu, deixa de ser maluca! E você com aquele moleque estranho? Por favor, né! – Irritou-se.
– Maluca? Tá me tirando pra maluca agora? Na boa, Calebe, vai pra puta que pariu! – Ela xingou e virou de costas, tentando se afastar dele, em vão.
– Ei! Vem cá, não fala assim comigo, não! – Ele a puxou de volta e encurralou no caminho. – Cê tá meio maluca, sim!
– Porra nenhuma! – Ela tentou empurrá-lo e se afastar, mas ele a puxou para perto e entrelaçou os braços na cintura dela.
Ela desistiu de tentar se afastar.
– Não, não! Você falou pra caramba, passou o dia inteiro mandando indiretinha besta, agora você vai escutar. – Enfezou-se, sentindo seu sangue pulsar com a adrenalina e a vontade de falar na cara de Malu tudo o que ele queria já tinha um tempo.
– Escutar o quê, garoto? Não tenho que ficar escutando nada de você, não! – Indignou–se.
– Vai escutar, sim! Se tá tão incomodada com a menina, por que você não me deixa te beijar na frente de todo mundo?
A resposta dela veio em poucos segundos. Era a resposta que ela ficava relembrando quando sentia vontade dele e de ir até a casa dele.
– Porque eu não sou a porra do teu troféu, Calebe! Não sou e nem quero ser! – Bradou, aborrecida. Ele franziu a testa, confuso.
– Eu nunca disse isso, sequer pensei dessa forma! De onde você tirou isso? – Questionou, confuso. Nunca havia a ouvido falar desse jeito.
– Você acha que eu não percebo? O jeito que os meninos te veneram quando você pega essas meninas? Acha que eu não vejo eles lançando esses comentários idiotas quando me veem falar com você? Como eles sempre estão comentando que eu não a única que você não consegue “pegar”? – Calebe engoliu em seco.
Não adiantava negar, era totalmente verdade. Entretanto, não era culpa dele. Os outros que esperavam coisas dele que ele jamais se cobraria. Ele até tentava não colaborar com certos comentários e fazia o possível para não ficar com ninguém na frente de todo mundo pois sabia que isso geraria comentários, mas era inevitável. Era coisa de menino, a maioria dos amigos de Calebe eram uns moleques e ele não era a mãe, nem pai de ninguém para ficar ensinando que comentários deveriam ser feitos ou não. Ele só não esperava que fosse justamente isso que tanto incomodava Malu.
– Esse é o problema, então? Quer ficar comigo escondido pra ninguém descobrir que você cedeu e caiu por mim? – Ironizou, não gostando nenhum pouco da insegurança boba da garota.
– Ah, Calebe, fala sério! – Ela rolou os olhos em respostas ao seu jeito debochado, sentindo até vontade de rir com a resposta desleixada.
– Maria Luiza. – Ele apertou o rosto dela entre suas duas mãos. – Eu não sei você, mas se você quiser, eu vou no meio da porra dessa avenida agora mesmo e grito que faz um mês que tô beijando a tua boca na frente de todo mundo.
– Aposto que você ia adorar! – Proferiu, sarcástica.
– Te assumir pro Brasil? – Ele riu, fazendo-a morder o lábio para não rir também com o trocadilho idiota. – É claro que eu ia adorar, morena! – Ele apertou seu rosto com apenas uma mão, forçando-a a encará-lo e fazendo com que ela notasse seus olhos e tão próxima que ela sentia o cheiro de álcool emanar dele.
– Você tá bêbado, Calebe. Não fala besteira. – Negou, ansiosa. Na verdade, não foi o jeito rebelde em sua fala que a deixou nervosa, e sim, a sinceridade que ela viu em seus olhos nebulosos.
Ele desceu a mão para o pescoço dela e acariciou sua bochecha com o polegar. Malu fechou os olhos, aproveitando tanto a caricia que recebia. Sentia todas as forças que tinha para afastá-lo indo embora no momento em que ele começou a deixar beijinhos castos no canto de seus lábios.
– Por que você dificulta tanto isso? – Murmurou, empurrando-a levemente em direção a parede de uma casa de pedras que tinha uma pequena coberta escura. – Eu não tenho a menor vergonha de dizer que eu quero você, não tenho orgulho nenhum, Maria Luiza. Se você deixar, se você quiser, eu me ajoelho na frente de todo mundo e imploro por você. – Ela sentia sua respiração no pescoço, enquanto ele sussurrava que era louco por ela.
– Não faz assim, Calebe. – Sussurrou, com a voz fraca. Ela se sentia salivando pelos lábios dele, por ele. Não queria mais se negar a isso, mas ela havia criado tantas barreiras que ela mesma estava tendo dificuldade para quebrá-las. – Você só tá assim porque me viu beijando o... o... Ah, não sei o nome dele. – Malu de ombros, subiu as mãos em seus braços. Ele riu com a desatenção dela, saber que ela sequer se importava com o nome do cara o deixou satisfeito.
– Quer saber? Tô! Tô com raiva, sim. E aí? – Indagou.
– Eu sou solteira, faço o que eu quiser, com quem eu quiser! – Respondeu, calma.
– Então, morena... – Ele se afastou e ajeitou os cabelos dela gentilmente e passou os dedos em seus lábios, sorrindo. – Faz o que quer... comigo! Eu tô aqui. – Ele abriu os braços em sua frente, entregando-se a ela literalmente de braços abertos. – Faz o que você quiser.
Não foi um pedido, foi um ultimato.
Sem pensar muito, ela jogou o corpo contra o dele, beijando-o de forma feroz, do jeito que ela queria desde que viu ele descendo a rua naquele dia. No meio do beijo, ele suspirou aliviado. O que mais queria era se sentir, pelo menos, considerado, se sentir acolhido. E o jeito que ela o beijava, e como ela abraça ele com vontade, deixava claro que ela o queria também.
– Caraca, que raiva de vocês! – Escutaram o brado raivoso vir de alguém atrás dele e se afastaram rapidamente. – Todo mundo preocupado com Malu, preocupado com Calebe e os dois pombinhos estão onde? Na maior trocação de saliva. – Alanne resmungou, jogando uma garrafinha de água nas costas de Calebe, que riu.
– É melhor do que trocação de soco, não é? – Ele brincou.
– Será? – Alanne questionou e puxou Malu pelo braço, afastando-a de Calebe, que estranhou. Malu olhou para trás enquanto descia a ladeira sendo puxada por uma Alanne irritada. Ela gostava de Malu e Calebe, torcia pelo casal, mas não gostava de ver o garoto fazer com a amiga o que fazia com todas, que era ficar com uma ou duas ao mesmo tempo. Calebe negou com a cabeça, sem ter tempo de se explicar. Então, apenas assistiu quando a garota se virou para Calebe e com a língua venenosa, lançou: – Gisele tá atrás de você.

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Já passava da meia-noite quando o grupo de amigos do bairro da Saudade desceu do ônibus que vinha do litoral. Animados, todos gargalhavam das imitações de Vinicius e comentavam os acontecimentos entre si. Apesar do desencontro de Malu e Calebe, o resto do dia fora extremamente divertido e o grupo já ansiava pelos próximos dias de carnaval.
Aos poucos, o grupo ia se dispersando e logo restou apenas Malu e alguns dos meninos, inclusive Calebe, que moravam na rua de cima. Eles fizeram questão de acompanhá-la até a porta de sua casa. Também não pouparam as brincadeiras e provocações entre si.
– Alô tia, a princesa tá entregue! – Um deles gritou na porta, fazendo Malu rir e mandá-lo falar baixo.
– Quer companhia pra dormir, Malu?
– Prepara o meu lado da cama, viu? Logo tô chegando.
– Vocês são péssimos! – Ela riu, enquanto abria a portinha de madeira. De canto de olho, ela observou Calebe, que apenas assistia com um sorriso de canto que beirava o insuportável para ela. Ela se despediu de cada um, com um abraço e um sorriso, sentindo-se satisfeita com as amizades que ela tinha ali.
– Se quiser que eu volte mais tarde, é só mandar mensagem, morena. – Calebe proferiu alto quando já estava quase no meio da rua.
Todos os meninos riram, achando que aquela era mais uma gracinha de Calebe, mas não perceberam pela troca de olhares dos dois, que o aviso era mais do que sério. Ela negou com a cabeça, novamente rendida pela atitude atrevida do rapaz. Cansada do jeito que estava, ele não a veria pelo resto do carnaval.
Ainda rindo, Malu se abaixou para tirar seus tênis imundos antes de entrar na sala de sua casa. Sabia que era ela que teria que limpar a mistura de lama, cerveja, chuva e lixo que estava impregnada nos calçados. Enquanto desamarrava os cadarços, ouvia sua mãe se aproximar e ergueu a cabeça.
– Oi, mãe. Cheguei. – Avisou e voltou sua atenção para os pés.
– Percebi. – Respondeu, num tom seco. – Você saiu assim?
– Assim como? – Retirou as meias e se levantou.
– De biquini e saia transparente, igual uma vagabunda.
– Sério, mãe? Sério mesmo? – Ignorou o comentário brutal da mulher e se afastou, indo até cozinha.
– Onde você tava? – Questionou, seguindo Malu de braços cruzados.
– Na rua. Carnaval. – Malu respondeu monossilábica e se serviu um copo de água.
Estava com tanta sede, tanto calor. Tudo o que ela queria era tirar o biquini, a fantasia, a maquiagem, tomar um banho de meia hora e dormir. Mas as intenções de Andréia eram outras. Ela estava extremamente irritada de ver a filha chegar em casa de madrugada, com a maquiagem escorrendo pelo rosto, claramente alcoolizada, descalça e... Feliz.
Ficou com raiva de ver sua filha feliz.
– Carnaval. – Bufou. – Quer saber? Some da minha frente agora, Maria Luiza. – Bradou, nervosa.
– Como assim? Pirou, mãe? – Malu franziu o cenho, totalmente confusa com a reação exagerada de sua mãe. Tudo bem que ela não avisou antes de sair, mas já tinha passado dessa fase. Já tinha um tempo que a mulher não pedia satisfação de onde a garota estava.
– Vai embora, Maria Luiza.
– Eu hein. – Ela deu de ombros e deixou seu copo na pia. – Tô indo pro meu quarto, se quiser conversar igual gente. – Provocou.
– Não, você não entendeu. Vai embora da minha casa. – Malu paralisou e ficou encarando a mulher, esperando ela dizer que estava brincado ou algo do tipo. Mas sua mãe não fazia brincadeiras. – Você quer viver sua vida dessa forma, se estragando em festa, bebidas e sabe-se lá o que mais que você faz na rua, você pode ficar à vontade, mas não debaixo do meu teto.
– O teto também é meu. – Malu sentia seu sangue começar a esquentar.
– Nada nessa casa é teu. Tô cansada de ver você agir como uma fedelha mimada que...
– Que o quê? Que paga as contas? Que cozinha, passa e lava porque você tá ocupada vegetando no sofá? – Retrucou, enfezada.
– Como é que é, sua ingrata?! – Ela se aproximou, irada. – Ou você me pede desculpas agora ou vou te fazer engolir cada palavra dessa, sua estúpida!
– Você começa a me atacar do nada e quer que eu fique calada? Mal pisei em casa e você me chamou de vagabunda, faça-me o favor! – Malu tentou seguir em frente, tentou ir direto para o seu quarto e evitar um atrito maior com a mulher que, novamente, tinha seus planos próprios.
– Enquanto morar nessa casa, vai ser uma mulher decente! Não quero mais te ver usando essas porcarias! – Antes que pudesse se defender, Andréia puxou a saia de tule colorida de Malu. Com a força, a saia se rasgou no cós, caindo no chão antes que Malu notasse. – Olha isso, o biquini depravado, mal cobrindo suas partes!
– Ei! – Ela gritou, tentando se afastar a todo custo, mas Andréia a segurava e gritava ofensas a garota – Tá ficando doida?
– Me respeita, porra. Cala a sua boca enquanto eu tô falando. Eu sou sua mãe e... – Agarrou-a pelo braço, sem medir sua força e apertou a pele da garota com força.
– Ah, lembrou que é mãe?
Ela desferiu um tapa em seu braço com força. A raiva que Andréia estava sentindo era perigosa, mas ela não estava conseguindo se controlar. De início, só queria chamar sua atenção, mas a forma como Malu a respondia lhe deixava brava.
Nos últimos meses, tudo que Andréia sentia, ela sentia em dobro. Quando estava triste, ficava muito triste. Quando ficava brava, ficava muito brava.
– Eu não suporto ver você falando assim comigo, Maria Luiza! Se o seu pai...
– Se o pai o quê, mãe? – Interrompeu antes de ela concluir. Não queria nem por um segundo que ela usasse o nome de seu pai naquela discussão.
– Se ele estivesse aqui, teria vergonha de te ver assim!
– Mas ele não tá aqui! Sabe por quê? Porque o papai morreu, mãe! Ele morreu!
Malu sentiu sua mãe esbofetear seu rosto, mas sequer se defendeu pois sentiu que havia merecido aquele tapa. Ela só não esperava que receberia mais alguns repetidas vezes. Ataques tão bravos que ela sentia sua pele arder. Lembrou de quando a mãe a batia na infância quando ela fazia alguma traquinagem, mas logo a lembrança a abandonou de forma bruta quando Andréia a empurrou contra a parede. Ela nunca teria feito aquilo com ela quando criança.
– Me solta! – Malu tentou falar de forma feroz, mas sua voz saiu chorosa e nervosa. Nunca havia passado por aquilo.
Não sentia que estava recebendo uma lição de sua própria mãe, sentia que estava apanhando de uma outra mulher e ela não demorou a perceber que eram coisas completamente diferentes.
– Vai embora daqui! – Ela empurrou Malu, que tropeçou nos próprios pés e caiu no chão. – Eu não quero te ver aqui tão cedo! – Para fugir dos ataques, Malu engatinhou rapidamente até a porta de saída da casa. – Vai embora! Vai embora DAQUI! – Malu lançou seu corpo para fora da casa sem pensar duas vezes.
Andréia jogou um quadro contra a porta ao ver a filha sair. Nervosa, ela passou a mão nos cabelos e correu até o banheiro de seu quarto. Enfiou garganta abaixo três comprimidos e se olhou no espelho.
Não reconheceu a figura descabelada, pálida, emagrecida e envelhecida que ela viu no espelho. Ainda tremendo de nervoso, Andréia foi até o sofá e pensou que seu marido morreu e ela bateu na sua filha, que era a única família que ela tinha. Andréia chorou copiosamente até cair no sono que o sedativo lhe presentou.
Cambaleando, Malu saiu de casa e só levantou quando sentiu que suas pernas não fraquejariam. Maria Luiza nunca havia se sentido tão desprotegida.
E não tinha nada a ver com o fato de ela estar apenas de biquini em uma rua vazia no meio da noite. Não queria voltar para dentro, mas estava de biquini, sem celular, sem dinheiro e principalmente, estava sem coragem. Nunca havia apanhado daquela forma. Ela sentia seu rosto pulsando e seu corpo inteiro latejava.
Malu engoliu o choro que queria vir com força e decidiu o que faria. Voltar para casa não era uma opção. Não no momento e, talvez, nem no futuro. Trêmula, ela tocou no próprio lábio e viu uma pequena gota de sangue em seu dedo quando olhou. Estava machucada, mas nem uma ferida em seu rosto ou hematoma em seu corpo doía tanto quanto o seu coração.
Não foi um garoto e sim, sua mãe quem partiu seu coração pela primeira vez.
Se deu o direito de deixar cair algumas lágrimas enquanto correu até a única casa onde ela poderia contar que foi Andreia que havia lhe batido.
Ana estava se preparando para ir para o seu quarto quando ouviu a campainha tocar. Olhou no relógio, preocupada. Calebe havia chegado tinham alguns minutos e o garoto chegou tão cansado que apenas deu um beijo na mãe e informou que iria tomar banho e cair na cama. Receosa, ela olhou pela fresta antes de abrir a porta totalmente e tomou um susto.
– Malu, pelo amor de Deus! – A mulher correu até o portão, tão nervosa que quase não conseguia colocar a chave no cadeado.
– Tia... – Ela choramingou. Não iria conseguir falar. Sua voz foi engolida pelo choro e soluço.
– O que aconteceu, minha filha? Minha nossa! – Desesperou-se quando abriu o portão e percebeu que não estava enganada. A garota realmente estava só de biquini e com machucados em seu rosto e braços. Puxou-a para dentro e abraçou-a rapidamente, levando-a para dentro da residência. – Malu, por favor! O que aconteceu? Fala comigo!
Não queria deixar a mulher ainda mais nervosa, mas não conseguia proferir nenhuma palavra sem soluçar e chorar. Toda a adrenalina da briga havia passado e agora além de sentir seu corpo doer, Malu sentia que não iria parar de chorar tão cedo.
– Malu, calma, respira! Você tá me assustando... Calebe! Vem aqui! Rápido! – A garota chorava desesperadamente e Ana já estava perdendo a força de segurá-la em seu braço. Chamou por Calebe imediatamente.
O rapaz havia acabado de sair do banho quando ouviu a campainha tocar, mas decidiu primeiro colocar um short antes de ver quem era. Correu em pânico quando ouviu sua mãe chamá-lo com a voz nervosa e agitada. Paralisou quando viu Maria Luiza ali. Não é possível, ele havia deixado ela praticamente dentro de casa, o que teria acontecido?
– Malu, o que aconteceu? – Correu até elas e ajudou a segurar a menina, que chorava e sequer sentia suas pernas, não sabia como estava se mantendo em pé. – Mãe?
– Eu não sei, ela chegou chorando e olha só, tá machucada. – Ana apontou para o rosto e as marcas no braço de Malu. Caleb desceu o olhar e quase vomitou de aflição quando notou que ela vestia apenas um biquini.
– Malu, por favor! Alguém...T-tocou em você? – Questionou e não esperou respostas, já ia em direção a porta.
Não sabia o que faria se algo realmente tivesse acontecido, não sabe se ele correria pela rua até chegar à delegacia mais próxima, se bateria de porta em porta, se pularia os muros até achar o culpado. Na verdade, faria de tudo um pouco.
– Não! – Ela segurou o braço dele antes que ele se afastasse. – F-foi a minha m-mãe... – Engoliu o máximo de choro e ar que conseguiu e olhou para Ana, que parecia desolada. – Ela me bateu, tia! Ela me empurrou, arrancou minha roupa, me chutou... – Não conseguiu continuar, apenas caiu em prantos novamente.
– Meu Deus... – Ana murmurou e puxou Malu para seus braços, acolhendo-a em um abraço.
– Puta merda. – Calebe engoliu em seco.
Foi a própria mãe que havia feito aquilo. Ele não poderia ir à delegacia, nem pular um muro, nem bater de porta em porta. O que diabos ele poderia fazer?
– Calma, filha. Senta aqui comigo... Eu não acredito que Andréia fez isso. – Confessou, Malu se sentou no sofá, sendo amparada pelos braços de Ana e Calebe, que a acalentava de maneia afetuosa. – O que aconteceu?
– Eu não sei, tia. Eu cheguei em casa e ela já começou a gritar e me chamar de nomes e... Eu juro que não sei, eu apenas rebati os absurdos que ela me falava e ela p-perdeu a cabeça e me a-atacou... – Contou, sentida e passando a mão pelos braços.
– Eu não acredito nisso. – Calebe bufou irritado. – Que filha da puta!
– Calebe. – Ana repreendeu.
– Não, mãe! Olha pra ela! Tá toda machucada, olha o rosto dela! – Apontou para Malu, que abaixou a cabeça, envergonhada.
– Quer saber? Vamos todos nos acalmar. Eu vou... – Ana não conseguiu fingir que não estava meio desorientada em ver a menina daquela forma. Quase não conseguiu formar uma frase pois só conseguia concordar com Calebe e pensar “que filha da puta!”. – Eu vou pegar uma roupa pra você, uma toalha e-e... Um banho, isso! Um banho vai ajudar! – Repetiu mais para si mesma do que para a menina. – Vai nos dar um tempo e...
– Eu não vou voltar pra casa, tia. – Malu informou de forma decisiva. – Ela disse que eu não deveria voltar e eu não vou. Pelo menos, hoje não.
– Não se preocupa, você não voltaria hoje nem se quisesse. – Calebe assegurou, olhando-a e se levantou, saindo do cômodo.
Ana suspirou, preocupada. É claro que não expulsaria a menina, ainda mais naquelas vestimentas. Mas se preocupava com sua amiga Andréia e principalmente com a amizade entre elas. Ana nunca bateu em Calebe, podiam ser contadas nos dedos as vezes em que ela havia levantado a voz para ele de maneira mais incisiva. Então, olhar o rosto machucado de uma menina tão bonita e frágil com Malu deixava Ana enfurecida.
– É claro que não vai, minha linda. Você fica aqui essa noite. – Concordou, pesarosa. – Eu vou organizar umas coisas pra você, ok? Ér... – Ela sentou ao lado de Malu e se inclinou em sua direção. – Você quer dormir no quarto comigo ou...? – Deixou a frase em aberto, apenas acenou com a cabeça em direção ao pequeno quarto de Calebe.
Ana não ia fingir que não sabia o que acontecia entre Malu e Calebe. Nunca precisou se preocupar com segredos, pois seu filho sempre fora muito honesto e sincero com ela. Eles tinham uma relação de cumplicidade de dar inveja em muito filhos que não conseguiam sentir segurança com seus pais. Quando Calebe contou que eles haviam se beijado, ela ficou preocupada com a forma que a menina poderia ser “usada” por Calebe.
Mas a alguns dias atras, o garoto comentou que estava se sentindo confuso e corou como um menininho quando Ana perguntou se ele e Malu estavam tendo mais intimidades que o normal.
No fundo, ela ficou feliz e até um pouco aliviada. Malu era uma ótima pessoa e ela sentia que Calebe realmente gostava dela. Sentiu-se aliviada que a garota por quem Calebe possivelmente se apaixonaria era uma que ela conhecia bem e amava. Ana amava Malu, de verdade. Sentia um carinho maternal por ela desde que nascera. E pensar isso, só a deixava mais entristecida ao pensar que a mulher que deu à luz a ela havia deixado uns bons hematomas em sua pele.
– Ah, tia... – Malu envergonhou-se e abaixou a cabeça. Calebe já havia comentado que sua mãe sabia sobre eles, mas se sentiu assustada por isso. Não iria negar, queria dormir no conforto e para ela, essa palavra remetia a ele. – T-tem problema? Eu não quero que a senhora pense... É que eu vou ficar mais...
– Confortável com ele. É, eu sei. – Ela completou, assentindo – Não me incomoda, de maneira alguma. Eu confio em vocês. – Ana acariciou os cabelos úmidos de Malu e sorriu, doce. Calebe voltou a sala com uma toalha grande suas em mãos. Ele entregou a ela, que se cobriu imediatamente, aliviada por não estar mais tão exposta. – Filho, a Malu vai dormir com você, tá? Só... Deixem a porta aberta, por favor. – Pediu, de forma bem-humorada.
– Tudo bem, mãe. Fica tranquila. – Ele tranquilizou, afagando seu ombro.
– Eu vou pegar umas roupas e uns produtos pra você. Talvez uma gaze pra limpar essa boca e eu acho que tenho uma pomada que pode ajudar... – A mulher se levantou e deixou a sala ainda falando, enumerando as coisas que ela traria para Malu. – Você pode tomar banho no banheiro do meu quarto enquanto Calebe arruma o quarto. – Ela assentiu, concordando e acompanhou a mulher, sem olhar para trás. Estava envergonhada de olhar para Calebe, apesar de ter escolhido dormir com ele.
Durante o banho, Maria Luiza se negou a chorar. Quando a água bateu em seus ombros, ela praguejou, incomodada com a sensação. Ela pensou que tinha errado em rebater a mãe de forma tão incisiva e raivosa, pensou ter sido realmente ingrata como sua mãe a chamou, mas no fundo, ela sabia que não havia certo ou errado. Sendo assim, ela se deu o direito de sentir um pouco de raiva da mãe, principalmente quando sentia o corpo arder nos locais doloridos onde sua mãe havia batido.
A garota vestiu o pijama confortável de Ana, mas a mulher era menor que ela, então a roupa acabou ficando justa demais, decidiu colocar a camisa grande de Calebe por cima. Entrou no quarto e encontrou Ana sentada na beirada da cama, olhando para as próprias mãos, parecendo perdida em pensamentos. Malu sentiu-se culpada de tê-la arrastado para aquela confusão, imaginou se a acolhida de Ana custaria a amizade dela com a mãe.
– Tia? – Chamou sua atenção.
– Oi! Já, meu amor? – Levantou-se, assustada por não ter percebido Malu ali. – Eu separei um lençol e deixei lá com o Calebe. Senta aqui, deixa eu dar uma olhada em você. – Pediu, suavemente.
Ainda fragilizada, Malu se sentou na cama e esperou que Ana observasse minuciosamente os hematomas em suas pernas e braços. Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto Ana passava uma pomada aliviante em algumas marcas mais escuras.
– Tia, desculpa ter vindo pra cá, eu não queria envolver você nisso. – Malu enunciou, baixinho.
– Imagina, Malu. Eu jamais deixaria de te acolher aqui. – A mais velha assegurou, sorrindo.
– Eu nem sei como agradecer, de verdade. Eu tô com tanta vergonha, tia... – Admitiu, abaixando a cabeça. – Eu não acredito que isso aconteceu. Eu já apanhei antes, sabe? Mas dessa vez, foi diferente, sei lá. Foi a primeira vez que eu vi raiva nos olhos da minha mãe.
– Sua mãe tá passando por um momento difícil, Malu, mas nada justifica a violência que ela cometeu com você hoje. – Acariciou a cabeça da menina e suspirou, entristecida. Malu era daquelas pessoas que quando feliz, todo mundo se alegrava junto. E quando ela estava triste, era difícil não perceber e ficar triste também. – Já tá tarde, foi um dia cheio, vocês devem estar cansados. Tem certeza que não quer dormir aqui? – Malu assentiu com a cabeça.
– Na verdade, tia... – Ela pensou bem antes de falar. Já estava se sentindo tão exposta, mas não conseguiu manter aquela confissão apenas para si. – Eu só quero chorar mais um pouco e sinceramente, acho que só vou conseguir fazer isso com Calebe do meu lado.

“No vão das coisas que a gente disse,
não cabe mais sermos somente amigos.
E quando eu falo que eu já nem quero a frase fica pelo avesso.
[...]
Toda vez que eu procuro uma saída,
acabo entrando sem querer na tua vida”.
Quem De Nós Dois – Ana Carolina

– Tudo bem mesmo se eu dormir aqui? – Malu questionou enquanto observava Calebe a arrumar o colchão que ele havia colocado no chão, para dar lugar para a menina na cama.
– Claro, Malu. – Respondeu, simplesmente. Ele arrumou os lençóis atentamente e logo se deitou. Notou que a menina ainda estava sentada na beira da cama, olhando para os próprios pés.
Ele suspirou. Odiava ver Maria Luiza retraída daquela forma. Simplesmente não era ela. Os olhos tristes, os cachos desmontados e a feição atordoada deixavam Calebe mais do que irritado, deixava-o triste. Se ele pudesse voltar no tempo, jamais deixaria ela entrar em casa sozinha.
– Malu? – Chamou, fazendo com que ela quase se assustasse com sua voz grave. – Tá tudo bem? – Ela pensou por uns segundos antes de balançar a cabeça negativamente. Ele analisou a situação e se colocou no lugar dela. O que ele iria querer dela se estivesse em uma situação frágil como aquela? – Quer que eu durma aí com você?
Era isso que ele iria querer. O corpo quente dela o aquecendo e afastando toda a dor e tristeza que estivesse nele. Por sorte, era o que ela queria também. Malu assentiu e se deitou na cama, deixando um espaço para ele se deitar ao seu lado.
Calebe deitou-se ao lado dela, passando um braço em volta de seu ombro, receando machucá-la ainda mais. Ela se aconchegou no peito dele, sentindo que os batimentos tranquilos do coração dele era o que a acalmaria.
– Não levanta. – Murmurou, pedindo. Calebe a olhou confuso, não tinha intenção de sair dali. – Depois que eu dormir. Você p-pode não levantar daqui?
– Não vou te deixar sozinha. – Assegurou, firmemente. Ela assentiu e procurou pela mão dele debaixo dos lençóis.
Entrelaçando seus dedos, ela fez mais um pedido:
– Posso chorar mais um pouco? – Não queria incomodá-lo. Sabia o quanto ele devia estar cansado depois de um dia inteiro de carnaval na praia, mas ela sentia que também não conseguiria descansar se não tirasse aquele peso de lágrimas de dentro do seu peito.
– Pode chorar a noite toda se você quiser, Malu. Eu não vou sair do seu lado.

જજજજજજજજજજજજજ

– Ah, cara! Sério, que puta palhaçada! – Calebe bradou, irritado. – Desliga essa merda, eu não vou mais assistir! Quer saber, deixa aí só pra gente ver a merda que esses caras vão fazer daqui pra frente.
De cara fechada e braços cruzados, Calebe bufava e resmungava enquanto assistia ao jogo de futebol na TV. A única coisa que tirava mais a paciência dele, além de Maria Luiza, era o Fluminense. Ela, por sua vez, se deliciava assistindo as reações espontâneas dele. Malu não imaginou que passaria a Quarta-Feira de Cinzas deitada no sofá enquanto assistia um jogo de futebol do Fluminense com Calebe, mas não desejaria estar em outro lugar.
Os seus amigos estavam todos pelas ruas, celebrando e aproveitando o restinho do carnaval. Malu e Calebe mal conseguiram levantar-se da cama. Ela, apesar de dolorida, dormiu muito bem envolta nos braços de Calebe. E ele, dormiu melhor naquela noite – com a perna e os cabelos de Malu por cima dele – do que sozinho nas outras noites.
A noite passada fora pesada e intensa, Malu ainda sentia sua cabeça pesar quando pensava muito no que tinha acontecido. Então ela decidiu não pensar muito naquele dia.
– Puta merda, goleiro! Ajuda a gente também, né? – Exclamou, passando a mão pelo cabelo, demonstrando ansiedade. – Olha só, esse cara aí, toda vez faz isso. No jogo passad... o que foi, Maria Luiza? Tá rindo do quê? – A menina gargalhou, jogando a cabeça para trás.
– Você fica uma gracinha quando tá irritado com o Fluminense. – Ela balançou os pés, que repousavam nas pernas dele.
– Malu, eu tô puto da vida e você vem dizer que eu fico uma “gracinha” quando tô com raiva? – Reclamou, puxando os dedos dos pés dela e terminando com uma carícia suave. – Eu esperava que fosse algo tipo “pô, você fica sinistro, fica assustador”.
– Mas fica, ué! Você fica com uma ruguinha aqui perto dos olhos, parece muito de quando você era gordinho... – Ela riu quando ele negou com a cabeça, parecendo envergonhado. – Você era super fofinho, o que foi que aconteceu hein? – Ela brincou, cutucando a cintura dele com o pé.
Era óbvio que era apenas brincadeira da garota. Na verdade, ela não conseguia imaginar como aquele garoto gordinho e birrento havia se tornado tão bonito e educado. E vendo ele ali, de perfil e sem camisa, enquanto massageava os pés dela sem intenção alguma, ela precisava admitir. Calebe era mesmo um cara bonitinho. E droga, ela estava quase admitindo para si mesma que estava afim dele.
– Não vem ficar me zoando só porque você nasceu bonita, cresceu bonita e muito provavelmente vai morrer bonita. – Declarou, risonho e fez Malu rir também.
Aquelas tiradas brincalhonas e provocativas de Calebe deixavam-na completamente arrebatada. Era assim que ele a ganhava e sabia disso. Malu sentou rapidamente e se esticou, encostando os lábios nos dele, depositando alguns selinhos e voltou a se deitar. Ele a olhou, questionando, confuso. Não era uma reclamação, ele apenas ficara surpreso. Sempre ficava quando era ela que iniciava algum tipo de contato mais íntimo. Maria Luiza deu de ombros e voltou a olhar para a televisão, fingindo estar assistindo o péssimo jogo que o Fluminense fazia naquele dia.
– Caramba, morena. Até esqueci o ódio que eu tava sentindo do Flu. – No mesmo instante, algo mais surpreendente que o beijo de Malu aconteceu. O Fluminense fez um gol, levando Calebe aos gritos e Malu as gargalhadas. – Eu não acredito no está diante dos meus olhos, meu Deus! – Ele gritava o nome dos jogadores e batia palmas, entusiasmado.
– Que gritaria é essa, garoto? – Ana entrou na sala, assustada e reclamando. – Daqui a pouco o vizinho vem reclamar.
– Quem, mãe? Aquele flamenguista SECADOR? – Debochou, gritando a última palavra em direção a janela.
– Calebe! – A mulher repreendeu, rindo. – Eu vou até o supermercado e volto logo, pode ser?
– Supermercado, mãe? Hoje? Não tá tudo fechado, não? – Ele estranhou.
– Eu não sei, vou ver qualquer vendinha aberta. Quero comprar alguns materiais pra fazer um bolinho pra gente. Não sobrou nada do almoço e nem temos algo pra lanchar agora. – Ela arrumou a bolsa no ombro e foi até Malu. – Tudo bem, meu amor? Eu vou rapidinho, se comportem vocês dois.
– Não se preocupe, tia. Eu tô com um pouco de sono por conta do analgésico, logo vou tirar um cochilo. – Malu tranquilizou-a. Ana assentiu e caminhou até a porta, voltando para o sofá no mesmo minuto e disparou dois tapas no ombro de Calebe.
– Ai! O que eu fiz? – Reclamou, passando a mão no local.
– Se comportem. – Frisou, o encarando fixamente.
– Relaxa, mãe. A Malu é bonita, mas não ganha da torcida do Fluzão. Olha aí, que coisa mais linda! – Assegurou, apontando para a televisão. Malu e Ana se olharam e reviraram os olhos ao mesmo tempo.
Assim que Ana saiu de casa, Calebe olhou de canto de olho para Malu, que prendeu os lábios em um sorriso e fingiu que não estava vendo a expressão travessa do rapaz.
– O que foi agora, Calebe? – Não resistiu e perguntou.
– Nada, não. Pensando numa teoria aqui. – Ele coçou a cabeça, olhando-a. – Assim que a gente se beijou, o Fluminense fez gol. Mas assim, não tem como a gente comprovar muito bem essa teoria, não é? – Malu negou com a cabeça, descrente em como a lábia dele combinava bem com o sorriso atrevido.
– A não ser que o Fluminense faça outro gol. – Supôs.
– Ou que você me beije de novo.
– Sua mãe disse pra gente se comportar! – Ela apontou para ele com o dedo em riste.
– Mas eu não fiz nada. – Respondeu, contrariado. E proferiu num murmúrio após alguns segundos de silencio: – Só acho muita falta de consideração sua deixar o Fluminense perder esse jogo...

જજજજજજજજજજજજજ

Ana sorriu fraco ao ver a foto grudada no armário da sala. Malu sempre fora uma criança com um lindo sorriso e cachos bem formados. E na foto com ela sentada no colo do pai, era possível ver o quanto ela tinha herdado dele fisicamente. Os olhos pequenos e o sorriso simpático. Sentiu-se triste ao pensar que talvez Calebe e ela fossem os únicos que realmente se importassem com Maria Luiza. Mas essa sua suposição caiu por terra quando ela acordou naquela quarta-feira com uma mensagem de texto no seu celular, de um número bem conhecido.
Ana. Ela está aí?”
Ana se sentiu aliviada ao ver a mensagem e ter a certeza de que Andréia se importava, sim.
– Me dê um bom motivo, por favor! – Ana suplicou, virando-se novamente para Andréia. Ela precisou ficar uns bons minutos batendo na porta até vencer Andréia pelo cansaço. Precisava conversar com ela, precisava entender. – Me dá um bom motivo pra você ter deixado a sua filha...
– Ana. – Andréia tentou interromper, sem sucesso.
Ana era uma mulher muito simples e dócil, mas sabia dar uma lição de moral como ninguém. Era paciente e bondosa, mas também sabia ser dura quando se via diante de qualquer injustiça.
– Pra você ter deixado a sua filha sair daqui de biquini, roxa e machucada! No meio da noite! Uma menina, Andréia! – Expressou, ríspida. Andréia passou a mão pelos cabelos frágeis e tão cacheados quanto o de Malu e suspirou profundamente. Merecia todas aquelas palavras duras de Ana, merecia todo o julgamento. Se fosse o contrário, ela também o faria. – O que diabos aconteceu?
– Você quer saber o que aconteceu, Ana? – Murmurou, amarga. – Meu João morreu, Ana. Morreu, levou minha alma junto dele e deixou meu corpo vagando nessa terra maldita. – Respondeu, seca.
– E eu sinto muito por isso, Déia. – Sentou-se ao lado da mulher, chamando-a pelo antigo apelido. – Mas a tua filha não tem nada a ver com isso. – Andréia pegou a carteira de cima da mesa de jantar e retirou um cigarro de dentro.
– Eu sei que não. Surtei, Ana. Surtei, perdi o controle de mim mesma. – Tentou explicar. Esticou a mão, oferecendo o cigarro aceso para a antiga amiga.
– Eu não fumo mais. – Ana contou, mas pegou o cigarro e deu uma longa tragada.
As duas mulheres de meia idade estavam sentadas no sofá, encarando o teto. Ambas com os cabelos embranquecendo, a idade começava a dar as caras na pele delas. Os anos foram duros e difíceis com as duas e apesar de nem sempre concordarem entre si, se respeitavam e, principalmente, se entendiam. Só foram trocar palavras novamente quando o cigarro chegou ao fim.
– Ela não quer voltar e eu não sei se vou deixá-la voltar. – Informou.
– A filha é minha, Ana. – Rebateu, indo em busca de outro cigarro, sentindo a garganta secar e o corpo implorar por mais nicotina quando ouviu a afirmação de Ana.
– E eu estou avisando que não deixo a sua filha voltar pra essa casa. Pelo menos não enquanto você não me garantir que isso nunca mais vai acontecer. – Ana foi categórica no aviso. Não queria meias palavras entre elas, queria ser a mais clara possível. – E se acontecer de novo, eu te prometo que vou ser a primeira a levar a garota numa delegacia e abrir uma ocorrência contra você.
– Você sempre curtiu essa área de defesa e advocacia, né Ana? – Exprimiu, sarcástica.
– Andréia. – Advertiu, sem paciência.
– Eu tomo dois remédios pra dormir toda noite, Ana. Depois de ontem, eu precisei tomar oito comprimidos. E olha só, já estou acordada de novo. – Contou, cabisbaixa. – Nem no dia da morte do João eu precisei de tantos remédios. O que eu tô tentando dizer é que... Estou garantindo que não vou fazer de novo.
– Acredito em você. – Ana afirmou. Não teve dúvidas, Andréia podia ser muita coisa, mas sempre fora uma mulher de palavra.
– Como ela está? – Questionou, curiosa.
– Vai sobreviver. É uma pessoa incrível, está caminhando pra se tornar uma mulher gigante. – Ana expôs, sorrindo orgulhosa. – Meu filho está se apaixonando por ela, caso queira saber. – Andréia sorriu, soltando a fumaça do cigarro com força.
– Calebe sempre foi apaixonado por ela, Ana. – Divulgou, balançando a cabeça. – Bom, eu já o vi escapando pela janela da sala durante a madrugada, caso queira saber. – Elas se entreolharam, cúmplices e riram. – São bonitinhos juntos, não dá pra negar. – Deu de ombros e Ana concordou.
Novamente a sala caiu no silêncio, sendo preenchido apenas pelas tragadas fortes e contínuas de Andréia e os pensamentos inquietantes de Ana. As duas grandes amigas se viram perdidas em seus próprios pensamentos por um tempo antes de Ana olhar no relógio e ver que já havia se passado quase uma hora.
– Eu preciso ir, não contei pra Malu que eu vinha aqui. – Revelou, indo para a porta de saída.
– Não conta ainda, Ana, e-eu... – Suspirou, abaixando a cabeça, sentindo-se completamente envergonhada. – Eu ainda não sei como vou olhar pra ela de novo.
– Não vou contar. Mas não é por você, Déia, é por ela. Não quero ser dura e chutar cachorro morto sendo a dona da verdade, mas a menina chorou a noite inteira. Meu filho contou que ela pediu permissão pra ele pra chorar. Ela não se sente confortável em chorar sem ser autorizada. Isso não é certo, Andréia. Ela é muito jovem pra ter esse tipo de insegurança consigo mesma.
– Eu sei, Ana. Eu sei que preciso colocar a cabeça no lugar. – A mulher esfregou a testa, inquieta. – Acredite quando digo que estou tentando, porque eu estou, Ana. Estou tentando muito ficar sã.
– Eu acredito em você, queria que não fosse tão complicado assim, mas você vai ter que lidar com as consequências de seus próprios atos. – Acenou com a cabeça, indo em direção a saída quando foi parada por Andréia novamente.
– Obrigada, Ana. Por cuidar dela quando eu não consegui. – Os olhos marejados da mulher provocaram lágrimas em Ana também.
– Você e João cuidaram de mim quando essa rua inteira me apedrejava. Tenho dívida com você até o fim, Déia.
– Considere a dívida paga, minha amiga.

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– Totalmente mentira. – Calebe murmurou contra os lábios dela.
– O que? – Ela questionou, totalmente inebriada com o cheiro e o carinho suave que Calebe fazia nela com seus próprios lábios.
– A torcida do fluzão é muito linda, mas perde e muito pra você, minha morena.
Não demorou muito após a saída de Ana que os dois jovens se enrolaram pelo sofá, brincando de abraço, flertando com beijos inocentes, trocando caricias inocente, até não serem mais.
– Calebe, tua mãe... – Ela suspirou, tentando tirar as mãos atrevidas dele de seu quadril.
– Eu sei. – Segurou o rosto dela com as duas mãos e avançou nos seus lábios, desistindo daquela brincadeira boba e a beijou com vontade. Malu o abraçou pelo pescoço e o puxou o suficiente para que ele deitasse por cima dela no sofá. – Não temos muito tempo.
– Não temos nenhum tempo, garoto. – Ela riu, fazendo carinho nas costas nuas dele e tomando seus lábios com fúria e vontade.
Na noite passada, Malu passou a noite chorando e quando cansou, caiu no sono tão rápido quanto Calebe. Apesar de dormirem e acordarem juntos, não sentiram a necessidade do toque íntimo. Até chegarem naquela tarde de quarta-feira chuvosa, quando todo e qualquer toque se tornou inflamável demais para seu próprio bem. Nem a falta de fôlego os afastou totalmente, fazendo com que intercalassem os beijos vorazes com selinhos provocadores.
Foi quando tudo saiu do lugar. Malu, como sempre, guiou a mão de Calebe para debaixo de sua blusa, ansiando pelo toque dele em sua pele. Aquele ato o incomodou profundamente, tanto que não conseguiu continuar. Se afastou, olhando-a curioso.
– O que foi? – Ela estranhou o olhar dele.
– Malu, eu te machuco? – Questionou, preocupado. – Das vezes que a gente... fez algo a mais, eu te fiz algo? – Ela negou com a cabeça, imaginando onde aquilo iria parar. Sabia o que vinha depois daquilo, sabia o que ele iria perguntar, mas não estava pronta para que ele visse aquela sua faceta.
De menina frágil. Não era assim que ela queria que ele a enxergasse.
– A gente precisa parar por aqui. – Ela tentou sair debaixo do corpo dele, mas ele não se moveu um centímetro, ainda olhando-a de maneira minuciosa, tão curioso que parecia estar analisando uma pedra lunar nunca vista antes. – O que foi, Calebe? Para de me olhar assim. – Pediu, envergonhada.
– Te assustei, não é? – Tomou suas próprias conclusões. – Você sabe o que eu ia perguntar.
– Você pergunta demais, Calebe. – Se remexeu debaixo dele, tentando novamente sair do lugar. – Sai de cima de mim.
– E você pergunta de menos. Na verdade, você nunca pergunta nada. – Constatou.
– Do que você tá falando? – Questionou, confusa e assustada.
– Nem sei, Malu. – Suspirou fortemente, arrumando um cacho teimoso que se soltava do coque no cabelo dela. – Só tô divagando, do nada vieram uns pensamentos aqui que não tá dando pra deixar passar. – Foi totalmente sincero, deixando as palavras saírem de sua boca sem passar pelo filtro que ele ativava quando estava com ela.
– Eu acho que preciso ir. – A voz dela estremeceu.
Malu pensou que logo Calebe ia pensar demais e ia se dar conta que talvez, estar com ela, não fosse a melhor escolha que ele faria na vida. Ou talvez ele estivesse pensando em como ia contar para os meninos da rua que ele estava dormindo com ela. Ou talvez... Ou talvez...
Eram muitas dúvidas que planavam sobre a cabeça juvenil dela. E na dele também.
– Pra onde? – Perguntou, sincero. Malu engoliu em seco quando se deu conta do fato de que, pela primeira vez na vida, ela não tinha para onde ir.
Tudo ficou estranho rápido demais.
– Sai de cima, Calebe. – Ela pediu, incomodada com o fato que tinha se dado conta.
– Eu acho que vou começar a gostar de ti mesmo. Tipo, de verdade.
Ela paralisou.
Ficaram em silêncio, cada um tentando lidar com o peso das palavras dele. Calebe não tinha ideia do porquê estava falando aquilo e daquele jeito, mas já tinha se acostumado com o próprio jeito impulsivo, depois seu “eu-futuro’ que lidasse com as atitudes precipitada do seu presente.
Malu pensou que talvez aquilo fosse um sonho. Ela queria muito que Calebe gostasse dela, mas com ele falando aquilo tão abertamente, ela sentiu medo. Sem nem saber do quê.
– Você gosta de mim também, não é? – Perguntou, tentando não parecer tão angustiado com o conhecido silêncio dela.
– Para com isso, me deixa ir, vai. – Murmurou, acanhada.
Ela tentou levantar novamente e ele, em um ato desesperado de fazê-la entender ou falar, prensou seus joelhos em cada lado do quadril dela. Ela até fingiu que queria sair dali, mas não lutou. Não queria deixar de sentir a pele dele na dela, mesmo que aquilo significasse ouvir demais.
– Deixa de ser difícil, Maria Luiza. – Sorriu, enviesado. O jeito arredio da garota o deixava maluco. Às vezes, não do jeito bom. Sabia que ela gostava dele, tinha quase certeza disso. Ele via no olhar dela o quanto ela o admirava. Mas ele sentir não era o suficiente, queria fazê-la falar. – Lembra do aniversário do Vini? Que você me agarrou no quarto da mãe dele porque eu tava olhando pra outra garota?
– Cê sempre tá olhando pra outra! – Reclamou, tentando ignorar o fato de que ela realmente o agarrou no quarto da mãe de Vinicius e muito provavelmente por ela estar com ciúmes.
– Eu sempre tô olhando pra você, isso sim. – Sorriu, implicante. – Às vezes, você me chama de “mô”. É muito bonitinho e nunca gostei disso antes, viu? – Confessou, passando a mão em seu rosto suavemente.
– Larga de ser besta, eu chamo todo mundo assim. – Tentou disfarçar o sorriso bobo que ficou em seu rosto com a confissão dócil do rapaz.
– Eu lembro quando você me deixou entrar no seu quarto pela primeira vez. Foi naquele domingo, lembra? – Ela cerrou os olhos, desconfiada. – Saímos com a turma da rua pra comer hambúrguer e acabamos em uma festa.
– Você tava bêbado. – Comentou, relembrando o quão engraçado e barulhento ele ficava quando estava embriagado.
– Tava mesmo, mas lembro que você não sossegou enquanto eu não entrei no táxi contigo. Você tava toda preocupada, queria até ligar pra minha mãe...
– Por que você tá lembrando dessas coisas? – Ela o empurrou delicadamente, fazendo com que ele se deitasse ao lado dela, jogando a perna e o braço por cima do corpo dela. Malu, novamente, não se mexeu ou reclamou.
– Você veio pra cá. – Sentiu a respiração dela se tornar totalmente irregular quando finalmente comentou o fato. – De todos os lugares, você veio. E preferiu dormir comigo do que ficar sozinha.
Era um terreno perigoso e instável. A noite passada era um assunto mais do que sensível para Malu, ela não queria ter que falar sobre isso tão cedo, mas Calebe estava forçando isso. Ela engoliu em seco e o encarou, quase de maneira tempestuosa.
– Eu não tinha ninguém. – Replicou, agitada.
– Não mesmo? – Ele questionou. Sem ser irônico, apenas curioso.
– Pelo amor de Deus, por que você tá falando essas coisas? – Irritou-se e empurrou os braços dele para longe e levantou-se do sofá. – Eu tenho a Alanne, sim! Mas como vou chegar na casa dela de madrugada e contar que peguei porrada? Com que cara eu contaria pra ela que minha mãe me bateu? – Malu se exaltou.
– Calma, Malu. Só tô tentando fazer você perceber que gosta mais de mim do que você queria gostar. E também tô tentando entender isso melhor... – Confessou, baixinho, para si mesmo. – Você gosta de mim, não é? – Perguntou tão calmo que sequer parecia um questionamento.
– Eu não tô ficando com mais ninguém, Calebe. Diferente de você. Já deixei de fazer alguma coisa pra passar a noite contigo, coisa que você também não fez. Você questiona demais pra quem não tá totalmente certo em relação a gente. – Irritou-se e deixou escapar algumas dúvidas que persistiam em sua cabeça.
Quando estavam juntos, Calebe parecia ser tão louco por Malu que estenderia um tapete para que ela caminhasse pelo bairro. Entretanto, mesmo parecendo tão intenso e apaixonado, Malu ainda escutava algumas histórias de Calebe se envolvendo com mais de uma garota por aí. Ela se restringia toda vez que se incomodava com isso, pois não queria fingir que queria um relacionamento sério naquele momento em sua vida.
Mas era Calebe. Era o seu Calebe, aquele abusado que paralisava partidas de futebol só para vê-la passar, é claro que ela se incomodaria.
– E você questiona de menos. – Refutou.
– Eu não vou ficar aqui agora. – Ela explicou lentamente, não queria mais se manter naquela conversa, naquele assunto. O clima leve que estava na sala evaporou de forma drástica com a mudança de assunto. – É melhor eu ir... – Ela se afastou e foi em direção ao quarto.
– O que você sabe sobre mim? Diz uma coisa. Só uma. – Ele levantou, pedindo decidido. Calebe vinha pensando naquele tinham uns dias, mas nunca tinha se permitido levar a frente o pensamento ridículo de que Maria Luiza não o conhecia. – Eu só preciso de uma coisa, Malu. Só uma certeza.
– E se eu disser que não sei? – Perguntou, relutante.
– Eu vou achar que você nunca quis saber algo real sobre mim. E pensando bem, eu acho que é isso mesmo... – Sentou-se novamente, apoiando os braços no joelho, pensativo. Malu irritou-se ao notar que ele agia como ele se ela nem estivesse ali. Reflexivo, perdido em si e em seus próprios pensamentos. – Você nunca perguntou pelo meu pai. – Declarou, absorto em pensamentos.
– Não vem querer fazer essa porra agora, sério! – Exclamou, apontando para ele com o dedo esticado, irritada. Não era hora de Calebe questionar suas ações, sentimentos e atos. – Você não sabe nada de mim, por que diabos eu tenho que me meter na tua vida?
Ele levantou do sofá, passando a mão pelo cabelo de maneira agitada. Acabou falando demais e não organizou suas ideias de maneira satisfatória, acabou causando uma tensão entre os dois que não existia antes. Ele não precisava de um título, não precisava de um papel e caneta, mas precisava da confirmação dela, queria saber se ela gostava dele tanto quanto ele estava descobrindo gostar dela. Queria saber mais dela, não importava como. Perdeu grande parte da vida dela e não conhecia aquela garotinha da vizinha, muito menos a mulher que voltou a morar lá anos depois. Se tivesse que ser por meio de brigas e discussões, então seria.
– Por que você não me deixa te ver sem blusa? – Perguntou o que queria ter perguntado na primeira vez que aconteceu.
– O que aconteceu com seu pai?
O silêncio emergiu como um soco no estômago de cada um, ambos não tinham intenção de fazer aquele tipo de questionamento de forma tão abrupta, mas os meios acabaram levando-os ali. Malu quase abriu a boca para responder à pergunta de Calebe, mas perdeu a coragem quando os olhos dele abandonaram os dela e se focaram na parede.
Calebe percebeu que não estava pronto para compartilhar e estava tão inseguro quanto ela, em relação a tudo. Ele engoliu em seco e abaixou a vista, não querendo ver a expressão dura que ela estava. Os dois ouviram um barulho no portão de entrada e não demorou mais que uns segundos para Ana entrar no cômodo com duas sacolas na mão.
– Cheguei! – Exclamou, animada. Porém, seu sorriso foi diminuindo quando ela notou a tensão no lugar e o jeito intenso que Malu e Calebe estavam se encarando. – Eu trouxe uns bolinhos de morango... – Murmurou, entreolhando entre os dois jovens.
– Obrigada, tia, mas posso me deitar no seu quarto? – Pediu, ressentida. – Tô com muita dor nas pernas. – Ana apenas assentiu, estranhando.
A mais velha se virou para o filho, confusa. Não tinha demorado mais que uma hora e as coisas pareciam ter saído do eixo de tal forma que Calebe parecia sério demais e Malu estava trancada no quarto.
– O que aconteceu, Calebe? – Perguntou, preocupada.
– O tio João morreu, mãe. Isso aconteceu.

“Um girassol nos teus cabelos
batom vermelho, girassol.
Morena, flor do desejo,
há teu cheiro em meu lençol”.
Girassol – Alceu Valença

O Dia dos Namorados. Ah! Esse dia. Para os solteiros, uma lástima. Para os casais, alegria. Para os comerciantes, um bom negócio.
Em alguns países é São Valetim. Para o Brasil, a data é ligada ao dia seguinte. No dia 13 de junho, se celebra o dia de Santo Antônio, o famoso “santo casamenteiro”. Para Maria Luiza e Calebe, era só mais um dia.
Quando o mês de junho chegou, ele trouxe consigo uma quantidade generosa de comidas juninas, quermesses, quadrilhas divertidas e, o preferido de Malu, maçã do amor. Também trouxe uma boa dose de readaptação para Maria Luiza e Andréia, que voltaram a viver juntas após uma semana do acontecido dramático entre elas.
O início foi difícil e sendo sincera, Malu só voltou a morar com a mãe porque estava cansada de viver com Calebe. Ela acordava e já dava de cara com ele no café da manhã, e mesmo passando o dia fora por conta das aulas integrais no cursinho, voltar para a casa e se sentar ao lado dele para jantar era quase doloroso. Claro que não tanto quanto ter que ir dormir no quarto de Ana toda noite. Foi quando Malu se pegou observando demais a rotina de Calebe, que ela achou que estava apegada demais a ele, então engoliu o orgulho e resolveu conversar com a mãe.
Não fora uma conversa muito esclarecedora. Malu chegou, Andréia se desculpou, Malu aceitou e elas foram tomar café da tarde juntas. Como se nada nunca tivesse acontecido. Elas pensaram que talvez fosse melhor daquela forma, porém, ignorar um fato não vai fazer com que ele deixe de existir.
Então, às vezes, Malu se controlava para não responder a mãe de maneira afrontosa e debochada simplesmente porque queria ver se a mãe teria coragem de bater nela de novo. Aí ela se recriminava e se perguntava por que agia daquela forma tão medíocre.
Não dava para negar que Andréia estava tentando. Ela tentava acordar cedo e preparar o café da manhã, tentava preparar um jantar e até tentava arrumar a casa, mas tinham dias que parecia que o seu corpo estava preso por pedras no sofá da sala e ela não conseguia levantar. Paralisada, era como ela se sentia.
Malu conseguia reconhecer quando Andréia se esforçava, mas desde que apanhou, ela sentiu que algo morreu dento dela. Um pouco da empatia, carinho e respeito que ela sentia pela mãe, acabou se perdendo em um mar de sentimentos conflitantes, como culpa, pena, medo, repulsa e, principalmente, apatia.
No mesmo dia que saiu da casa de Ana, Malu – sentindo-se muito conclusiva e determinada – achou melhor se resolver com Calebe. De forma imatura e fria. Mandou uma mensagem de texto, que Calebe sentiu muita, muita raiva quando viu.

malu
melhor a gente parar...
Calebe
parar o quê?🤔
não vai responder?
tudo bem, Malu. vamo parar por aqui

Calebe ficou tão amuado que parecia que ele havia terminado um namoro de tempos. Nem quando Priscila o trocou pelo safado do Pedrinho da rua de cima ele se sentiu tão triste. No fundo, ele sabia que Malu estava assustava e não sabia como agir com a dimensão do que ela sentia. Mas, afinal, ele não estava da mesma forma? Foi assim que ele resolveu mudaria de foco. Com o início das suas aulas na faculdade, Calebe ficou meio ausente do mundo social do bairro da Saudade.
Lutou muito para chegar ali e não queria desperdiçar sua chance, mas na real, ele só estava se ocupando com as tantas matérias da faculdade para não perder tanto tempo pensando em Malu e na insistência dela de não querer nada. Foi assim, ansiando por uma boa festa e companhia dos amigos, com quentão, milho e pipoca, que Calebe aceitou o convite para a festa junina que a senhora Fátima – mãe de sua grande amiga Alanne – sempre ofertava em sua casa.
Deitado na cama de Ana, ele assistia a mulher compenetrada em sua atividade. Sentada a frente de uma máquina de costura antiga, Ana se sentiu quase emocionada quando Calebe pediu uma camisa temática junina. Não pensou duas vezes em utilizar os tecidos que ela tinha ali para construir.
A mulher amava costurar e criar roupas, ela só não comentou que também recebeu o mesmo pedido de Malu e criou uma roupa para a menina também.
Calebe assistia a mulher trabalhar com olhos de admiração e orgulho. Ele passou a vida inteira assistindo-a fazendo bicos de costureira, ouvir o ruído da máquina de costura era tão familiar e nostálgico para ele quanto brincar de bola na rua.
Amava a mãe de forma tão grande que era assustador. Talvez seja por isso que Calebe não tinha medo algum em amar.
– Parece que você tem sete anos de novo... – Ana comentou, sorrindo nostálgica. – Esperando a roupinha da festa da escola ficar pronta. – Ele riu, nem um pouco surpreso com a sincronia de pensamento entre eles.
– Mas dessa vez eu não vou chegar em casa sujo de tanto brincar no chão.
– Não sei o que é mais difícil, tirar aquelas manchas pretas das tuas roupas ou tirar o batom e perfume de mulher que vem agora. – Comentou, implicante. – Por falar em mulher... – Ana tentou, mas logo foi cortada por Calebe.
– Ih, mãe. Vou chegar atrasado, corre com isso, mulher! – A distraiu pois sabia que ela perguntaria algo sobre Malu. Algo que ele não saberia responder.
– Tá bom, tá bom... Vem aqui, veste a camisa. – Ana caminhou até ele e o entregou a camisa, assistindo com um sorriso meigo no rosto a cena.
Toda vez que ela olhava para Calebe, sentia uma inundação de amor cobrir seu peito, o amava tanto que apertava seu coração. Ela sorriu e alisou a camisa, desfazendo os amassados com a mão e aproveitando para fazer um leve carinho no seu filho. Cena quase parecida acontecia na casa de madeira da rua de cima.
Quase.
– Ai! Você me furou. – Malu reclamou.
– Você se mexeu. – Andréia retrucou, com uma agulha presa entre os lábios.
Agachada ao lado de Malu, Andréia tentava retirar uma costura do cós da saia da filha. Quando ela provou da última vez na casa de Ana, a saia quadriculada cabia perfeitamente, mas naquele dia ela ainda não tinha entrado numa situação misteriosa com Calebe, nem tinha começado a estudar para mais um vestibular, logo, sua alimentação ainda estava regular. Malu aumentou uns centímetros na cintura e a saia feita sob medida por Ana, insistiu em não entrar em seu corpo justo no dia da festa.
– Como a Ana errou sua medida? – Andréia estranhou. Ana era uma costureira de mão cheia, a melhor do bairro, não erraria em uma medida e em um modelo tão simples quanto aquele.
– Ela não errou, eu acho que engordei. – Malu se olhou no espelho, preocupada. Precisava voltar para a academia, mas com toda a correria dos seus últimos dias, ela acabou deixando a atividade de lado.
– Não tá grávida não, né Maria Luiza? – A mulher se esticou para analisar a feição de sua filha.
– Claro que não, mãe! Tá maluca? – Malu negou com a cabeça, com vontade de rir. Ela era bastante precavida com sua própria saúde, principalmente nessa área. Apesar de saber que não existe nenhum método 100% contraceptivo, Malu estava tranquila. Só havia transado naqueles tempos com uma pessoa, Calebe e fora só uma vez. – É só estresse com os estudos. – “E com o Calebe”. Ela completou em pensamento.
– Olha lá hein! A Ana te mata e teu pai também. – Voltou sua atenção para a saia.
– Para de falar besteira e olha aí o que tá fazendo. Afinal, cê sabe o que tá fazendo aí, mãe? – Provocou, mexendo um pouco o corpo e fazendo a mais velha resmungar.
– Claro que sei, garota. Te falei que trabalhei com a Ana uns tempos aí...
– Hm, sei. Ei, você vai aparecer lá na festa? – Questionou.
– Não sei, não falo direito com ninguém de lá e, bom... Ana não tem falado muito bem comigo. – Admitiu, envergonhada. Malu mordeu os lábios, sentindo um pouco de vontade de sorrir. Ana a protegia como ninguém. – Mas pode ir, fica tranquila, só leva a chave da porta. – Levantou-se, dando uma última olhada na saia. – Ficou bom?
A garota balançou a cintura em frente ao espelho, vendo a saia rodada esvoaçar sem perigo de cair ou soltar e sorriu. Sentia-se muito bonita aquela noite. A saia combinava com o cropped estilo ciganinha e seus cachos estavam presos em tranças finas, formando um belo penteado.
Tudo o que ela queria era dançar forró, comer maçã do amor e, com sorte, não pensaria em Calebe nem um minuto.
– Calebe vem te buscar? – Andréia perguntou, inocentemente. Malu esbravejou e saiu do quarto batendo o pé igual uma criança. A mãe riu, negando com a cabeça. Segundo as poucas fofocas que ela e Ana compartilhavam, as coisas entre os dois não estavam indo muito bem. – Ué, foi só uma pergunta!

જજજજજજજજજજજજજ

“E sem saber direito a hora e o que fazer,
eu não encontro uma palavra só pra te dizer.
Ai, se eu fosse você eu voltava pra mim de novo.
E de uma coisa fique certa, amor
A porta vai estar sempre aberta, amor.
O meu olhar vai dar uma festa, amor, na hora que você chegar”
Espumas ao Vento – Fagner

Todo ano, a mãe de Alanne fazia uma grande festa junina para celebrar o dia de Santo Antônio, cujo a mulher era devota fiel. Naquele ano, o dia 12 havia caído em um sábado de lua cheia e a mulher não pode deixar a oportunidade passar. Celebraria seu santo e honraria a ele à meia-noite, como sempre. Para o resto dos convidados, era apenas uma festança da boa, com comida, dança, música e brincadeiras típicas que todos amavam.
Calebe chegou à casa de Alanne e a casa estava inteiramente decorada com enfeites juninos e coração de papelão vermelho simbolizado o dia dos namorados. Como de costume, cumprimentou todos os vizinhos e até os que ele não conhecia, do jeito que sua mãe sempre lhe ensinou. Brincou com dona Cida, mãe de Alanne, fingiu que tiraria a avó para dançar e bebeu um quentão com o pai da menina.
Esse era Calebe, sempre simpático e caloroso, fazendo com que todos sempre o quisessem por perto. Quando chegou no grande quintal da casa de Alanne, que era o local onde a maioria dos seus amigos estavam, ele sorriu alegre ao notar a animação e os comentários enquanto ele se aproximava.
Calebe amava ser amado. Sentia-se bem sendo uma pessoa boa e ver que todos gostavam dele e o queriam por perto fazia tudo valer a pena.
O quintal amplo estava enfeitado com bandeirinhas e diversas cores animadas, parcialmente iluminado por uma fogueira no centro do local. E diversas mesas espalhadas pelo local, mas quase ninguém sentado.
– O meu artilheiro saiu da toca, é isso mesmo? – Vinicius ergue os braços, abraçando o amigo.
– Tava com saudades de mim, lindo? – Calebe brincou, abraçando-o de volta.
– Claro! Toda as vezes que eu fiquei bêbado, nem um desses moleques cuidou de mim! – Vinicius reclamou alto com os amigos.
– Quem é tua babá é o Calebe, abusado! A gente não larga tudo pra limpar vômito de marmanjo, não. – Tiago refutou, causando risadas em todos.
– Só você por mim, Calebe. – Vinicius fingiu pesar, negando com a cabeça.
– Só eu por ti mesmo, Vini. – Calebe concordou, rindo. Era bom estar entre amigos, mas no fundo, seus olhos estavam percorrendo o local em busca de uma pessoa só.
Malu tentou não ficar ansiosa e mexer nos cachos, mas não foi eficaz na sua tentativa. Quando Calebe chegou, o local simplesmente mudou. E não era coisa da sua cabeça encantada pelo rapaz. Tudo ficou mais animado, todos começaram a falar mais alto e até a interação entre todos aumentou. Calebe era uma daquelas pessoas que faz o lugar inteiro se iluminar só com o seu sorriso e charme.
Em cinco minutos, Calebe conseguiu falar com metade das pessoas ali, conseguiu um par de dança para Tiago, jogou pescaria com as crianças e ainda comeu a elogiada cocada de dona Cida. Cinco minutos e o local inteiro só falava nele. Era como se fosse cargo que ele carregava, não tinha como fugir e isso assustava um pouco Malu. Ela sempre fora reservada e tímida, melhorou bastante suas habilidades sociais depois que morou em Vitória, mas perto de Calebe, ela voltava a ser uma menina de sete anos que sentia suas bochechas queimarem só de ser chamada para brincar de pique.
– O que eu faço? O que eu faço? Não deixa ele vir aqui. – Malu murmurou nervosa, mantendo sua cabeça baixa e falando quase no ouvido de Alanne. – Não deixa ele vir aqui, eu não sei o que vou fazer.
– A casa é minha, é claro que ele vem falar comigo, Malu. – Alanne riu, jogando seus cabelos lisos para trás, como de costume.
– Amiga, por favor!
– Ué, não foi você que mandou aquela mensagem ridícula pra ele? Agora lide com as consequências...
– Caraca, Alanne, que amiga hein! – Malu reclamou, beliscando seu braço.
– Ué, Malu! Você não sabe o que quer e a culpa é minha? – Replicou, confusa.
– Eu sei o que eu quero, o problema é... – Ela encarou a roda onde Calebe passava no momento, vendo como ele movia a festa com apenas seus movimentos. – Tudo isso, sabe?
– O cara é gente boa, amiga. E daí que ele é um pouquinho... popular demais? – Alanne ponderou, mordendo os lábios. É claro que ela sabia o que incomodava Malu, mas não conseguia entender muito bem pois no seu lugar, Alanne adoraria receber toda a atenção que vinha com Calebe.
– E por que você não assume o Pedrinho? – Malu relembrou o assunto mais uma vez.
– Ah, ele mora em Brasília. – Alanne respondeu, vagamente.
– Você namorou por três anos com um cara do sul. O problema é realmente esse? – Duvidou.
– Sim, mas.... Ah, sei lá, relacionamento a distância é difícil e também, sabe aquela música? – Alanne pensou uns minutos antes de continuar: – “Como é que faz quando nenhum dos dois é flor que se cheira? Quando foi sério o que era pra ser brincadeira?”.
– Ai, amiga! – Malu gritou, animada e meio boba, colou a mão no peito, fingindo emoção com a citação da amiga. Mas logo em seguida foi cortada por Alanne, que falou entredentes:
– Ele tá vindo, disfarça.
Num ato de desespero, Malu pegou a maçã do amor que estava nas mãos de Alanne e enfiou um grande pedaço na boca. A manteve calada, mas também grande o suficiente para tirar o ar da garota, que começou a tossir e bater no próprio peito.
– Opa, emocionou? – Calebe falou por trás dela, fazendo-a revirar os olhos e empurrar o ombro dele para longe dela.
– E aí, lindão? Que saudades que eu tava. – Alanne o cumprimentou e se abraçaram. – Tá sumido hein.
– Pois é, faculdade, estudo, provas, pé na bunda, essas coisas... – Calebe provocou, olhando de soslaio para Malu, que ainda mastigando, olhou para o outro lado. Ela estava achando difícil se concentrar com toda a presença e perfume emanando dele.
– Você é demais! – Alanne negou com a cabeça, percebendo a “cutucada” nada discreta de Calebe na morena ao seu lado. Ela olhou para Calebe e logo em seguida para Malu, entrelaçando o olhar entre eles. – Sério que vocês estão combinando?
Eles se entreolharam, percebendo que estavam com roupa com estampas idênticas.
– Minha mãe...
– Uhrum... – Malu concordou com a cabeça rapidamente, ainda tentando exterminar os pedaços de caramelo e maçã da sua boca, mas agradecida de estar realmente impossibilitada de trocar palavras com ele.
– Você guarda um forró pra gente dançar depois, nêga? – Passou os braços em volta dos ombros de Alanne, que assentiu animada. Os dois sempre foram ótimos parceiros de dança, principalmente no forró e no xote. – Ei, sabe quem me seguiu no Instagram? Meu grande amigo, Pedro Paulo. Engraçado que foi depois que você postou aquela nossa foto... – Provocou, fingindo estar falando sério.
– Caramba, hoje você tá impossível, cai fora daqui! – Alanne esmurrou o ombro do amigo. – Vini, leva esse encosto daqui! – Gritou chamando a atenção do amigo, causando risos em todos que assistiam a cena cômico de Alanne puxando Calebe pelo cabelo até chegar em Vinicius.

“Tenho tudo nas mãos,
mas não tenho nada.
Então melhor ter nada
e lutar pelo que eu quiser”
Xote dos Milagres – Falamansa

Calebe estava inquieto. Apesar de ter aproveitado a festa em todos os aspectos, ele sentia que algo estava faltando. Comeu, brincou, dançou, até pulou a droga da fogueira, mas ainda não se sentia pronto para ir embora. Já era de madrugada e a lua ainda estava tão forte e imponente no céu que Calebe sentiu que ela estava brigando com ele.
“Vai lá, faz alguma coisa” a lua parecia gritar com ele. E ele? Queria gritar de volta. Encarou Maria Luiza a noite inteira, até mesmo contra sua vontade. Ensaiou várias vezes ir até ela e sempre parava ou era parado no meio do caminho. Olhou para os lados, olhou para os céus, buscou nos olhos de Santo Antônio uma resposta para sua pergunta.
Queria engolir o orgulho de ter sido dispensado com uma mensagem meia-boca, queria fazê-la engolir o também orgulho e medo que a puxava para longe dele.
– Cê tá estranho. – Vinicius notou, cutucando a perna do amigo.
– Tô?
– Batendo a perna, olhar distraído igual de doido, se perdeu na conversa... É, eu diria que algo não tá certo aí dentro da tua caixa, mano! – Vini riu, oferecendo uma cerveja para o amigo.
– É só um problema que eu... – Calebe suspirou, fixando o olhar em Malu, que dançava xote de maneira meiga e suave com Gabi e mais duas meninas. – Parece que eu não consigo resolver.
Vinicius seguiu o olhar do amigo de infância e sorriu. É claro que Malu era o problema de Calebe. Aqueles dois conseguiam passar despercebidos por todos que não sabiam que existia algo entre eles. Mas depois que você descobria, não tinha como não ver o quanto eles eram magnéticos e certos um para o outro. Até mesmo Vinicius, que era quase contra o amor romântico, conseguia perceber isso.
– E tem algo que você, meu grande artilheiro, não consegue resolver? – Brincou, bicando a cerveja gelada.
– Pior que tem. Tem sim. – Enquanto proferia a frase, os olhos dele encontraram os olhos pequenos de Maria Luiza, que percebeu que ela era o assunto entre os dois amigos que a encaravam. Ela franziu a testa, sentindo-se envergonhada e balançou a cabeça, cobrindo o rosto com os cachos. Vinicius riu e também negou com a cabeça.
– Parece a porra de uma festa da escola. Cara, vai lá, chama ela pra dançar, beija essa mulher na frente de todo mundo e foda-se. Vocês estão pensando além da conta nesse assunto. Ela tá afim, você tá mais do que afim, o que falta? – Vinicius argumentou. Calebe olhou para o amigo, pensativo. O que faltava?
“Coragem e um sinal”, pensou, ainda relutante. Precisava de um sinal. Que veio em forma de música.
“Escrevi seu nome na areia, o sangue que corre em mim sai da tua veia...”.
Começou a tocar o Xote dos Milagres, era o preferido dela. Só podia ser milagre mesmo. Calebe desceu o olhar para as mãos de Tiago, que também estava sentado ao seu lado, e puxou a coragem de suas mãos. Um copo de cachaça pura que estava sendo usada no quentão e estava pela metade.
O sinal e a coragem estavam ali. Agora só faltava ela.
Levantou-se da mesa e foi até a morena, que paralisou vendo ele ir em sua direção. Parecia que ela estava vendo Calebe pela primeira vez na vida. Ele andou em direção a ele, com aquele sorriso, aquela confiança, como se já soubesse que, daquele dia em diante, ela seria dele. E ela parou de se negar a isso naquele exato momento.
– Vem, vamo dançar essa. – Ele esticou a mão em sua direção, com um sorriso ladino e presunçoso. Virou o rosto para a menina, inocentemente.
– Não tô afim. – Ela bebericou a bebida, desviando e trocando olhares com as meninas que estavam ao seu lado.
Até queria dançar, mas não queria ter que lidar com os olhares de todo mundo na festa quando ela se levantasse para dançar com Calebe, que ela sabia muito bem que estava sendo alvo de competição até mesmo entre as próprias amigas dela, seria a atração principal.
Veja só, você é a única que não me dá valor! – Cantou alto, atraindo atenção de quase todas as pessoas para eles dois. Ela gargalhou e se aproximou dele rapidamente, puxando-o pela mão.
– Você é insuportável.
– Não desisto do que eu quero. – Ela respirou fundo, tentando ignorar que a frase foi escutada por alguns que estavam por perto. Ela sabia que não tinha mais jeito, havia se tornado uma das conquistas de Calebe aos olhos de todos na vizinhança.
– E o que diabos você quer, garoto? – Questionou, seriamente, mas não foi respondida. Dois para lá, dois para cá, um giro, ela com as costas grudadas no peito dele, a mão mexendo sua cintura de um lado para o outro. – Tá todo mundo olhando...
O passo fez com que fosse possível de Malu passar um olhar panorâmico em quase todo o quintal, que surpresa! Olhavam quase fixamente para os dois dançarem de maneira tão íntima e bonita.
– Estão orgulhosos que finalmente te tirei pra dançar. – Comentou, rindo. – Porém, não é pecado se eu falar de amor. – Cantou baixinho no ouvido dela.
– Não começa... – Pediu quase suplicante, fechando os olhos.
– É só a música, morena, relaxa. – Deixou um beijou em sua bochecha e com outro giro, a deixou de frente para ele. – Será que esse xote realmente faz milagre acontecer?
– Por quê?
– Tô doido pra te beijar.
Giro.
– Achei que a gente não fazia mais isso.
Dois para lá, dois para cá, as mãos dela nos ombros dele, sua mão esquerda no quadril dela e mão direita rodeando a cabeça dela, acariciando seu cabelo. Malu até chegou a pensar que queria morar naquele cafuné, naquele carinho que ela só encontrou nas mãos dele.
– A gente nunca chegou a decidir nada. – Ele deu de ombros, olhando fixamente para os lábios dela.
– Tá todo mundo olhando. – Repetiu. Sentia-se estúpida, mas era Calebe ali, ela precisava falar a verdade sobre o que estava sentindo. E o que estava sentindo naquele momento era que todos olhavam para eles. – Ninguém sabe da gente.
– E a gente sabe? – Calebe sabia que todos os seus amigos estavam olhando, mas ele não os culpava. A uns meses atrás, ele também não acreditaria que aquele moleque largado e safado estaria dançando um xote agarrado com a menina mais bonita. – Você tá linda demais, Maria Luiza.
– Eu amo teu perfume. – Ela pressionou seu corpo contra o dele, encostando o nariz na linha entre seu pescoço e seu queixo, deixando ali um ‘cheiro’ discreto. Naquele ponto, ela não estava ligando para ninguém. O papa poderia estar os olhando, comendo paçoca e bebendo quentão, mas ela não se soltaria dele. Não enquanto ele a quisesse por perto daquele jeito.
– Só uso quando eu sei que vou te ver.
– Eu sei... – Ela mexeu o nariz no rosto dele, fechando os olhos e apreciando o cheiro tão forte e característico dele. – O pior é que eu sei.
A mão de Calebe, que mexia em seu cabelo, acabou indo em direção aos lábios dela, seu dedo indicador queria brincar com seu lábio inferior, mas foi Malu que brincou com ele quando apertou levemente os dentes em seu dedo e ele sentiu a pontinha de sua língua ali. Puxou seu queixo e a beijou. Sem nem pensar duas vezes. E “puta merda, que beijo gostoso!”, ambos pensaram. Beijo molhadinho, quietinho, beijo inocente, beijo que estava preso no abraço de quem sente saudades.
Eles ouviram alguns gritos de celebração e as reações divididas em frases como “finalmente!” ou um simples “ué, como assim?”. Entre os gritos e vozerio murmurados, os dois conseguiram ouvir os gritos diferenciados de Vinicius e Alanne, que já sabia da história desde o início, e isso os fez rir entre o beijo.
– E não é que um milagre aconteceu? – Ele passou os braços em volta da cintura dela, impedindo-a de sair de perto dele.
– A gente já se beijou outras vezes, não é milagre. – Malu levou as mãos até os cabelos dele, brincando com um fio desgrenhado que estava ali desde que ele era menino.
– O milagre foi tu ter engolido esse teu orgulho aí, maluca. – Cutucou a cintura dela, fazendo-a revirar os olhos.
– Não sei que orgulho. – Implicou, sarcástica.
– Não começa, cê se conhece bem. – Riu, ainda balançando os corpos deles no ritmo do xote que fez um milagre acontecer.
– Quem me conhece é você, mô. – Puxou ele pelo rosto e o beijou de novo, matando a vontade que ela estava de beijá-lo desde que ele entrou naquele quintal.
Foi naquela noite dos namorados e de Santo Antônio que Maria Luiza parou de negar e Calebe desistiu de ficar longe.
Mais tarde, ninguém conseguia evitar os olhares em Calebe e Malu, todos curiosos para ver o próximo passo. O que seria aquilo? Só um beijo, só uma “ficada" de festa? Todos estavam ansiosos por uma boa fofoca, essa era a verdade. Tudo que Calebe fazia era interessante de se assistir, tudo que Malu fazia era envolvido em um certo mistério. Não era de se estranhar a curiosidade.
Malu até ensaiou ficar meio paralisada após os beijos públicos, mas o jeito feliz e bobo que Calebe a olhava tiraram suas restrições a tudo. Ela se sentia querida e desejada por ele, era nítido que ninguém ali a olhou do jeito que ele a olhava. E dane-se se fosse apenas aquela noite, ela iria aproveitar.
Saindo do banheiro, Malu encontrou Calebe em uma roda de conversa. Sem pensar muito no assunto, ela se aproximou, entregou-o uma garrafa de cerveja e passou o braço em volta da cintura dele. O casal parecia tão habitual, tão natural, que ninguém comentou ou estranhou quando ele beijou os lábios dela rapidamente em agradecimento e voltou a conversar com o grupo.
E desde então, não era difícil ver Maria Luiza e Calebe andando pelas ruas do bairro da Saudade como no poema de Carlos Drummond de Andrade, com “beijos que se beijam”, com “mãos que se conversam e que viajam sem mapa” e muitas outras coisas que ninguém ousava compreender.

જજજજજજજજજજજજજ

“Se eu soubesse o quanto dói a vida,
essa dor tão doída não doía assim.
Agora resta uma mesa na sala [...]
Naquela mesa ‘tá faltando ele
e a saudade dele ‘tá doendo em mim”.
Naquela Mesa – Nelson Gonçalves.

27 de julho, o dia em que Calebe nasceu. 28 de julho, o dia em que Maria Luiza nasceu. Porque até nisso eles combinavam. Faziam aniversário juntos e desde sempre ambos tinham lembranças fortes e prazerosas das respectivas datas, lembranças de infância que se misturavam.
Calebe amava seus aniversários desde sempre. Desde pequeno, Ana sempre comemorava o dia, mesmo que fosse em uma segunda-feira, mesmo que não houvesse dinheiro, mesmo que não houvesse clima, mesmo que fossem apenas eles dois. Tendo a mãe que tinha, que transformava o dia em felicidade plena, não tinha como o rapaz não amar seus aniversários.
E Malu pensava e se sentia da mesma forma. Até o seu último aniversário, em que ela passou o dia sentada em um banco de igreja, vendo um padre de outra cidade dar um sermão que ela sequer se lembra.
Seu pai morreu uma semana antes de seu aniversário e não tinha como melhorar aquilo. Seu aniversário nunca mais seria a data mais feliz do ano.
A seis dias atrás, Maria Luiza tinha passado um dia inteiro chorando trancada no seu quarto. Naquele um ano de falecimento do homem que ela mais amaria na vida, ela se deu ao direito de apenas chorar e sentir saudades. Achou que fazendo aquilo durante o dia inteiro, ela conseguiria voltar a viver a vida normalmente após aquele dia.
Mas a noção da realidade a abateu antes que ela tivesse consciência e se deu conta que estava a um ano vivendo sem a presença física de seu pai. Um ano inteiro que ela não sentia o cheiro de erva cidreira que vinha do hálito dele, sempre impregnado por conta do vicio no chá de tal sabor.
Um ano inteiro em que ela não passou as mãos em seus cabelos ralos, não viu seus olhos pequenos e assistiu seu rosto doce se mover com uma delicadeza incomum e, ao mesmo tempo, muito característica de quem veio do sul da Bahia. Malu virou saudade e não parecia que ia voltar tão cedo daquela viagem dolorosa.
“Mas..., mas é meu aniversário...” Ela se recordou com dor e embaraço da frase dolorida que ela proferiu quando o médico informou a ela e sua mãe que João tinha ido a óbito após o acidente.
Ela riu sem humor, passando a mão no rosto, tentando limpar as lágrimas inutilmente e negou com a cabeça. Se jogou novamente na cama, apertando as mãos contra o rosto. Desde que acordou, a menina era só lágrimas teimosas. Ficou naquele limbo entre o sono e o despertar o dia inteiro e mal percebeu que já havia anoitecido.
– Malu? Maria Luiza, tá aí? – Andréia bateu na porta do quarto de Malu algumas vezes no dia e não foi recebida. Na última tentativa, ela resolveu entrar. – Ô menina, te chamei o dia inteiro e você aí nessa cama. – Malu rapidamente limpou o rosto com as mãos, mas não se virou.
– Desculpa, eu dormi demais. – Respondeu, pigarreando.
– Demais é apelido, né Maria, já são quase sete da noite! – Andréia adentrou o quarto e abriu a janela. – Achei que você iria pro almoço no Calebe hoje, vi os meninos passando desde cedo. Você não esqueceu do aniversário dele, não né? A Ana até me pediu emprestado aquela forma de pudim que você usa, mas não achei por aqui. Você tem usado esses tempos? – Andréia tagarelava enquanto recolhia algumas roupas do chão.
Malu suspirou, sentindo-se exausta só de ouvir a mãe falar. Sentou-se na cama e apoiou os braços no joelho, soltando os cabelos presos, sentindo o corpo inteiro reclamar por conta das horas passadas na mesma posição. Não tinha esquecido o aniversário de Calebe, só não havia conseguido sair de casa, do quarto.
Sentiu-se preocupada pois sequer havia mandado uma mensagem para o rapaz. Andréia ainda falava quando notou Malu sentada, mas paralisou no lugar quando viu o rosto de Malu pelo reflexo do espelho.
As horas seguidas de choro abafado e sonolência deixaram o rosto da garota visivelmente marcado com manchas avermelhadas e inchaço.
– Tá se sentindo bem, Malu? – Questionou, estranhando. Malu apenas negou com a cabeça, sentindo suas lágrimas voltarem aos seus olhos. – O que foi?
Abriu e fechou a boca algumas vezes, tentando criar alguma mentira rápida, mas poxa, estava tão cansada. Com os olhos transbordando lágrimas e com a voz fraquinha, ela respondeu: – Tô com saudades dele, mãe.
Andréia ficou alguns segundos sem reação, sem saber muito bem o que dizer ou o que fazer. Não precisou nem ser citado, Andreia sabia exatamente de quem ela falava. Afinal, o que responder? Ela mesma se perguntava a mesma coisa todos os dias, ela também se sentia perdia e desolada quando pensava nele. Não sabia como agir quando lembrava que a filha também estava ali e sentia. Se sentia envergonhada por não pensar tanto na saúde mental da menina, mas quem ela queria enganar? Mal estava conseguindo se manter de pé.
Andréia resolveu vestir seu papel de mãe. Sentou-se ao lado da filha, acariciou seus cabelos, disse algumas palavras genéricas de conforto, deu opções a garota, ofereceu levá-la até o aniversário, ofereceu-se para inventar uma desculpa caso ela não quisesse ir, mas principalmente, Andréia a deixou chorar. E depois de uns bons minutos chorando nos braços da mãe, Malu decidiu que era hora de reagir.
– É aniversario dele, filha. E não só dele, daqui a pouco é seu aniversário também. – Seria injusto com Calebe e seria injusto com ela mesma.
Tendo isso em mente, Malu limpou as lágrimas, tomou um banho restaurador, Andréia a ajudou com o vestido simples de alcinhas já costumeiro da garota e arrumou seus cachos enquanto a garota se maquiava.
Saudosa, Andréia assistia da janela de madeira enquanto sua filha única saindo de casa, lembrando dos aniversários infantis em que Malu seguia por aquele mesmo caminho, indo para a mesma casa, carregando no peito o presente e um sorriso que seriam direcionando para o mesmo menino.
A mulher quase conseguia sentir a presença de João ao seu lado, observando Malu e seus cachos se movendo pela rua abaixo, comentando o quanto elas eram parecidas. Assim que Malu desapareceu pela rua das Flores, Andréia soltou uma respiração que parecia estar presa desde que entrara no quarto da menina.
Andréia decidiu que era hora de tirar a sua fantasia de Mãe que havia vestido e voltar a usar uma que estava no armário tinham uns dias. Tomando ansiolíticos e barbitúricos, ela vestiu seu papel de viúva e se sentou no sofá. Com um cigarro na mão e uma foto antiga de Malu e João na outra, ela esperou o sono lhe abater, e como se fosse uma tortura, ela demorou para conseguir enfim dormir e sair da realidade onde o amor de sua vida tinha morrido.

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O almoço que Calebe havia oferecido para os amigos mais próximos em comemoração ao seu aniversário acabou se tornando uma festa sem hora para acabar. Ele havia convidado alguns amigos da faculdade, os amigos da rua, alguns primos, alguns amigos da academia, alguns do futebol, alguns amigos da feira (pois é, Calebe fazia amizades até na feira), outros do curso de inglês... Na cabeça dele, “só algumas pessoas”.
Entretanto, Ana conhecia aquele garoto a 19 anos e sabia muito que que quando ele dizia poucas pessoas, seriam, no mínimo, umas trinta. Claro que ela até tentou providenciar comida o suficiente, mas o pessoal ali não estava ligando muito para alimentação, visto que cada grupo chegava com ao menos um pacote de bebida alcoólica. Ana tentava até brigar com Calebe, mas acabava rindo. Era típico dele rir, dar de ombros e falar “ué mãe, a culpa não é minha, não”.
A festa no quintal da casa de Ana estava a toda. Por todos os cantos, as pessoas dançavam, bebiam e se divertiam. Até ela já havia se distraído e tomando uma cerveja ou outra enquanto se dividia entre limpar a bagunça e dançar um sertanejo com algum amigo engraçadinho do filho. Mas Ana a todo instante olhava para a porta, atenta. Já era noite e Malu ainda não havia aparecido.
– Mãe! Deixa essa louça aí, mulher. Depois eu lavo, relaxa. – Calebe se aproximou, reclamando e oferecendo uma latinha de cerveja a mulher.
– Filho, deixa eu te perguntar... – Desligou a torneira e secou as mãos. Ana não queria ser intrometida, mas já estava ficando preocupada. Malu e Calebe estavam a semanas agarrados pelos cantos e, de repente, ela não aparece em seu aniversário. Algo estava errado. – Cadê a Malu, hein?
– Ah, acho que ela não vem... – Respondeu, abrindo a latinha e entregando-a.
– Como assim? Por quê? Vocês brigaram de novo? – Estranhou.
– Nãao, a gente tá bem, tá tudo tranquilo. – Ele coçou a cabeça, distraído. Calebe pensou já estar sentindo o efeito da mistura de bebidas, melhor começar a maneirar. – A senhora sabe que essa semana não tem sido fácil pra ela, achei melhor não insistir, dar um espaço pra ela. – Ana ainda mantinha a expressão confusa e questionou com o olhar de novo. – É que fez um ano do tio João, mãe...
É claro, como Ana pôde esquecer disso? Levou as mãos a testa, preocupada. Andréia devia estar uma confusão e se Andréia estava mal, Malu também estaria. Esperava que a mulher não tenha descontado suas frustrações na menina, que devia estar lotada de frustrações dela mesma.
– Poxa, é... eu esqueci. – Ana comentou, tristonha.
– Ela tá mal desde a semana passada e como hoje ela não respondeu nenhuma das minhas mensagens, imaginei que fosse isso também. – Completou, lembrando de Malu ficar subitamente quieta ou então se perder em pensamentos rapidamente. Quando questionada pelo rapaz, ela apenas respondeu que estava pensando no pai.
– Ai, eu sinto tanto por ela, Calebe. Ninguém deveria passar pela perda de um dos pais sendo tão nova e de maneira tão trágica. – Disse, pesarosa. – Ainda mais com a Andréia aprontando com ela de vez em quando.
– Ah, mas elas estão bem. A tia Andréia nem reclama mais quando eu passo a noite por lá, bom, não tanto quanto reclamava. Até porque ela sempre reclama... – Ana cruzou os braços e encarou o filho, que sequer notou que estava falando demais. – O que foi?
– Então quer dizer que você anda passando a noite na casa da Andréia, Calebe? E sem me falar nada? – Confrontou o rapaz, que prendeu o sorriso com os lábios.
– Ih mãe, aquela ali é a dona Natasha te chamando? – Disfarçando, apontou para a vizinha que estava do outro lado do pátio, que definitivamente não estava chamando Ana.
– Calebe, pelo amor de Deus! Você não é maluco de engravidar essa menina, garoto! – Começou a estapear o filho, que gargalhava alegremente e empurrava a mãe de volta para o quintal. – Eu tô falando com você, Calebe.
– Ninguém vai engravidar ninguém, mulher. Mãe, mãe! – Ainda rindo, ele parou em frente a mulher e resolveu provocá-la, como sempre, e piscando, disse: – Ei, confia no pai, pô.
Todos no quintal riram enquanto Ana batia irritada nas costas de Calebe com um guardanapo, que corria e sorria feliz igual um menino de oito anos de novo.
Maria Luiza quase se perdeu em pensamentos quando chegou à frente da casa de Calebe. A casa de alvenaria agora tinha uma desgastada pintura azulada, mas as plantas que ficavam presas no portão estavam sempre formosas e bem tratadas. No chão, não havia mais marcas de amarelinha ou riscos infantis aleatórios, mas também não havia mais a voz de João atras dela, a guiando pelo caminho quando ela reclamava de ter que ir as festinhas de Calebe.
Ela sorriu com a lembrança do última aniversário de Calebe que ela tinha ido. No fundo, ela até sentia um pouco de inveja das festinhas de aniversario dele. Todas as crianças da rua iam as suas festas, sempre rolavam diversas brincadeiras divertidas e era assunto na rua a semana inteira. Malu nunca foi de muito amigos e muitas palavras, sempre tivera o jeito mais reservada, mais “enjoadinha”, como sua própria mãe sempre dissera.
Pensando bem, se ela fizesse uma festa de aniversário naquele ano, também não teria muitos amiguinhos para convidar. E pelo número de carros estacionados na calçada e o volume alto da música que emanava da casa, Calebe ainda tinha as melhores festas de aniversário.
Como sempre, o portão estava aberto e Malu foi entrando sem reservas. Nunca havia passado tanto tempo naquele pátio e naquela casa quanto naquele mês, em que ela e Calebe estavam simplesmente aproveitando a presença um do outro sem tantas complicações e questionamentos. Ela adentrou o primeiro cômodo e encontrou Ana, sentada no sofá, com um copo de cerveja na mão e um olhar distante.
– Tia? – Ana, assim que reconheceu a cabeleira cacheada, abriu um sorriso e quase pulou do sofá e indo até a garota.
– Filha! Você veio! – Abraçou a menina afavelmente. – Que bom! Que bom que você veio. – Malu riu, tímida.
– Ah, o Calebe iria me matar, cê sabe. – Brincou, balançando as mãos e foi se sentar no sofá ao seu lado. – E por que você tá sozinha aqui na sala?
– Ah, eu só tô... – Ana olhou em volta, procurando uma desculpa, mas resolveu falar no que estava pensando antes da garota chegar. – Sinceramente? Eu tô tomando uma pelo João, Malu. É isso que eu tô fazendo. – Malu engoliu em seco e lutou muito para segurar as lágrimas que seus olhos criaram em tempo quase recorde. – Sabe que depois de você, da sua mãe e daqueles livros todos, a coisa que ele mais adorava fazer era tomar uma cervejinha gelada enquanto ouvia um bom samba.
– Nelson Rodrigues. – Malu completou quase com um soluço.
– Exatamente! Poxa, ele adorava o Nelson... – Ana relembrou e encostou-se no sofá. – Hoje deu uma saudade danada dele, Malu. – Confessou, baixinho.
– Tia, e-eu... não parei de chorar desde a hora que eu acordei. – Limpou as lágrimas com cuidado antes de caírem e prejudicarem sua maquiagem. – Fala mais dele? Eu quero falar sobre ele, tia, mas a minha mãe... Ela não consegue e eu preciso disso! Preciso falar sobre ele, tia. – Suplicou, angustiada.
Ana assentiu, também segurando suas lágrimas com força. Entendia Andréia, entendia Malu, era uma situação difícil para todos, até mesmo para ela. Mas Malu precisava daquilo, precisava daquele conforto de ouvir alguém falando o quanto seu pai era um homem bom, então foi isso que ela fez.
Com um copo de cerveja na mão de cada uma, Ana contou os momentos felizes que ela compartilhou com ele e Andréia. Contou o quanto eles ajudavam nos aniversários de Calebe, relembrou as famosas brigas de Andréia e João, que segundo ela, eram um casal totalmente diferente e totalmente apaixonado. Falou sobre a adoração de João por livros e como foi ele que ensinou a Calebe suas primeiras palavras. Malu riu mais do que chorou na conversa e isso foi mais do que suficiente para Ana perceber que estava fazendo a coisa certa. Ficaram uns bons minutos naquela conversa que Malu até esqueceu o porquê estava ali.
– Ih tia! O Calebe, esqueci! – Malu se levantou do sofá, agitada e fez Ana rir quando saiu correndo de maneira desastrada em direção ao quintal.
Para Ana, era extremamente nostálgico ver Malu e Calebe juntos. Naquele dia do ano principalmente. Balançando a cabeça e sorrindo melancólica, Ana se serviu mais uma cerveja e foi para o seu quarto. Pegou um cigarro que achou no fundo da gaveta, acendeu e após uma longa tragada, ela começou a rir sozinha.
– João, seu filho da puta. – Murmurou. – Morreu e me deixou aqui com a doida da Déia. – Riu novamente, limpando umas teimosas lágrimas. – Seu velho filho da puta, que saudades de você, meu amigo.

“Nos abraçamos sob o nosso conforto de amar.
Se há dores, tudo fica mais fácil, seu rosto silencia e faz parar. [...]
Entre tantos anos, entre tantos outros, que sorte a nossa, hein?
Entre tantas paixões, esse encontro, nós dois, esse amor
Entre tantos séculos, entre tantos outros, que sorte a nossa, hein?”.
Ainda bem – Vanessa da Mata

– Ih tia! O Calebe, esqueci! – Malu se levantou do sofá, agitada e fez Ana rir quando saiu correndo de maneira desastrada em direção ao quintal.
Estava ansiosa pois não queria que Calebe pensasse que ela não iria aparecer, até respondeu suas mensagens avisando que estava indo, mas não chegaram até ele, fazendo-a crer que ele sequer estava com seu celular por perto. Andou (quase correu) até o quintal e esbarrou em algumas pessoas, que cumprimentou rapidamente. O quintal não era tão grande, mas tinha tanta gente que ela estava sentindo dificuldade de achar o seu... amigo? Ela nem sabia mais o que era naquela altura do campeonato.
– Oi, Tiago. Você viu o...? – Ela se aproximou de um de seus conhecidos, mas nem foi preciso resposta.
Porque tudo que um homem precisa eu tenho em casa! – Cantou, ou melhor, berrou a frase do pagode que tocava na festa. – Olha a primeira-dama aí, galera!
Não, não era Tiago sendo irritante. Era um alcoolizado e alegre Calebe, que gritava em cima de uma cadeira e apontava para Malu, que escondeu o rosto com as mãos enquanto o local inteiro berrava seu nome. Calebe, que sempre estava esperando por ela, viu o exato momento em que ela adentrou o quintal e não conteve sua alegria. Ou talvez fosse o álcool berrando. Ela estava envergonhada, mesmo assim, ria, enquanto corria até ele.
Era exatamente aquele motivo que Malu havia deixado suas inseguranças, tristeza e melancolia em casa. Era por causa daquele bêbado que cantava em cima de uma cadeira de plástica. Foi por causa daquele brilho nos olhos e sorriso de moleque. Foi por ele.
– Idiota. Quer me matar de vergonha? – Reclamou quando chegou até ele, mas não se conteve e pulou no rapaz, que a levantou do chão, cheirando o cabelo cacheado que quase o sufocava de tanto amor.
– Shhh, meu aniversário, Maria Luiza! – Grudou seus lábios enquanto ambos riam.
– Cê tá muito abusado, moleque! – Malu provocou, virando o boné vermelho na cabeça do rapaz. Já havia beijado tanto Calebe na frente de todo mundo que nem sentia mais tanta vergonha, apesar de ainda se incomodar com alguns comentários e olhares.
– Ah, sempre. Vem aqui. – Murmurou e pedindo licença para os amigos ao lado, puxou a menina de volta até a cozinha em busca de um canto mais reservado. – Cê tá bem? – Ela assentiu, acariciando seus cabelos que saiam pelas bordas do boné. – Ei, olha aqui pra mim, você tá bem mesmo? Não quero que você fique aqui por obrigação.
Ela sorriu, sentindo-se extremamente acolhida e desejada por ele. Aproximou-se e passou os braços em volta do pescoço dele, depositando um beijo leve nos lábios dele.
– Eu tava péssima, mas ficaria mil vezes pior se eu não te visse hoje. – Confessou, acariciando os ombros dele. – Feliz aniversário, seu insuportável. – Ficou na ponta dos pés e o beijou com vontade.
– Obrigada. Dorme aqui hoje? – Pediu, manhoso enquanto descia os beijos para o pescoço perfumado de Malu.
– Ah, não sei, Calebe. Tua mãe pode não deixar. – Rebateu, afastando o corpo dele do dela, pois toda aquela movimentação dele estava deixando Malu cheia de ideias e vontades.
– Malu, meu aniversário! Eu posso fazer o que eu quiser! – Insistiu infantilmente, fazendo-a rir.
– Só não esquece que teu aniversario tá chegando no fim e sabe o que acontece depois que teu aniversário acaba? – Ela o puxou para a parede do lado do armário da cozinha, onde ficavam praticamente escondidos. Ele olhava sedento para os lábios bem contornados de Malu, que brincava com o alto controle do cara a sua frente ao brincar com as unhas na barriga dele daquele jeito. – Começa o meu. E no meu aniversário a gente faz só o que eu quero. – Frisou.
– Ah, é? – Ele se afastou um pouco e levou a mão até o rosto dela, acariciando e apreciando a visão dela, como esperou o dia inteiro. – Mas ainda faltam umas horinhas, morena. Ainda tá no meu horário.
– Não tem problema. Mesmo no teu horário, a gente ainda faz só o que eu quero. – Deu de ombros, desafiadora.
– Ih, tá com moral, hein! – Ele zombou e novamente grudou seu corpo no dela, sem saber como esconder sua animação totalmente fora de hora de outro jeito.
– Ah, não tenho moral? – Ele deu de ombros e negou com a cabeça, com um sorriso instigante. – Pois eu acho que tenho. Sabe por quê? Daqui a cinco minutos você vai fazer o que eu quero.
Todo mundo erra sempre, todo mundo vai errar! – Cantou novamente o refrão de uma música que tocava na casa, fazendo-a rir em como ele sempre conseguia o timing perfeito das músicas.
– Você sempre consegue! – Ela gargalhou, jogando a cabeça para trás.
– Eu sempre consigo! – Riu junto dela e logo em seguida se inclinou para beijá-la e estranhou quando ela se afastou.
– Cinco minutos, Calebe. É só o que eu preciso pra dar teu presente. – Ela sorriu de lado, com a feição mais pura e excitante que ele já havia visto nela.
– Ah, então é isso que vai me fazer ceder o meu horário pra ti e ainda por cima vai provar que você tem moral comigo? – Ele cruzou os braços, sorrindo enviesado. – E o que é esse presente milagroso que vai fazer isso em cinco minutos?
Ele sabia muito bem pelo olhar dela o que era o presente, mas o mundo inteiro de Calebe explodiu de satisfação, deleite e euforia quando Malu proferiu a resposta de maneira séria, sedutora e fascinante: – Eu vou te chupar no banheiro, Calebe. – Ela levantou a mão, balançando os cinco dedos na frente dos olhos nebulosos dele. – Cinco minutos.

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Muita gente sequer notou que Malu e Calebe haviam sumido, muito menos notaram quando o casal voltou ao quintal como se nada tivesse acontecido, mas não precisaria ser vidente para perceber que o casal estava aos beijos e amassos por algum canto da casa. Ele apareceu sem camisa e ela sem batom, não precisa de mais explicações.
Por sorte, a maioria de seus amigos que ainda estavam ali não ligavam nenhum pouco para esse tipo de coisa, eles todos já estavam acostumadas com a intimidade que tinham para não precisarem mais esconder certos comportamentos.
As horas seguintes passaram sem grandes surpresas e emoções. Malu não pensou que conseguiria se divertir naquele dia, mas não ficou surpresa por estar aproveitando. Já no finalzinho da festa, depois que a maioria das pessoas já haviam ido embora, ficaram apenas os amigos mais próximos de Calebe. Todos estavam cantando músicas antigas de maneira divertida, bebendo de maneira moderada, apenas apreciando as amizades especiais que estavam presentes ali.
– Vinicius, já chega, larga essa caixa. – Malu bradou, fingindo estar irritada. – Você só tá colocando sertanejo pra chorar, que porra.
– A culpada? Olha aqui ó. – Apontando para Alanne, Vinicius respondeu com a língua já meio enrolada após a ingestão de muitas bebidas.
– EU? – Alanne gargalhou.
– É claro, você não quer largar aquele osso velho do Pedrinho e não quer ficar comigo. – Apontou, rindo e negando com a cabeça.
–Iiih! – Todos responderam em coro.
– Essa relação só existe na cabeça de vocês, eu hein. – Alanne disfarçou, trocando alguns olhares com Malu, o que não passou despercebido por ninguém.
– Malu, fala aí, hora da verdade. Alanne e Pedrinho, tá rolando ou não? – Vinicius cutucou ainda mais, fazendo Malu rir.
– Eu não sei de nada não, Vini. Mal sei da minha vida. – Respondeu, rindo.
– Sabe sim, maluca, que isso. – Calebe reclamou, balançando sua perna, onde a garota estava sentada.
– Só sei de você, meu amorzinho, claro! – Brincou, beijando a bochecha do rapaz, mas quando virou o rosto de volta para seus amigos, fez uma careta e piscou, brincalhona.
– A patroa dando volta no cara na frente dele, os tempos mudaram mesmo, tsc. – Tiago negou com a cabeça, provocando o casal.
– O dia que você tiver uma dessas pra dar uma volta em ti vai parar de zoar os outros. – Calebe respondeu, rindo.
– Ou um desses. – Alanne tentou, cutucando a cintura o amigo. A verdade é que todos sabiam que Tiago gostava de meninos e meninas, menos o próprio, que viviam em um profundo esquema de negação consigo mesmo.
– Claro que não! – Sua voz aumentou umas três oitavas quando reclamou, fazendo todos rirem.
– Ti, ninguém liga! – Malu, finalmente, falou o que todos viviam querendo dizer ao amigo e nunca falavam.
Era a mais pura verdade, ninguém ligava para os gêneros que Tiago se sentia atraído. Gostava das brincadeiras bobas, as sacadas rápidas e do jeito que ele sempre fazia todo mundo estar sempre reunido, mesmo com as dificuldades do dia a dia. Mas ele ainda não estava pronto, então apenas deu de ombros e, como sempre fazia, mudou de assunto:
– No fundo, todo mundo sabe que o Pedro é o maior talarico e a Alanne é destinada a ficar com o fruteiro que libera laranja de graça pra ela. – Tiago insistiu, fazendo todos rirem.
– Vou tocar funk nessa merda também. – Disse, fazendo todas as meninas soltarem um gritinho empolgado e saírem de seus lugares.
Após mais duas horas envolvendo muito dança, funk, risadas e brincadeiras inapropriada entre amigos de infância, as pessoas começaram a se despedir. Calebe foi acompanhar os amigos até a porta enquanto Malu organizava a pilha de louças e garrafas que ela encontrava pelo quintal.
Calebe passou pelo quarto da mãe, encontrando-a dormindo tranquilamente na poltrona próximo a janela, com um cigarro descansando entre os dedos. Ele sorriu de lado, negando com a cabeça.
A mãe insistia em dizer que não fumava mais, que não sentia falta e que não tinha vontade de voltar, mas de tempos em tempos – principalmente em tempos de grande estresse ou imensa felicidade – ele encontrava Ana exalando cheiro de nicotina e os dedos sujos de cinzas. Ele se aproximou, apagou o cigarro no cinzeiro e acariciou o ombro dela até acordá-la.
A mulher ainda tentou levantar-se, insistindo em arrumar a casa, mas Calebe falou que já estava tarde, todos estavam cansadas e era melhor deixar a grande limpeza para o dia seguinte.
– Cadê a Malu?
– Tá na cozinha.
– Olha, normalmente eu reclamaria por ela dormir aqui sem a mãe saber, mas acho que hoje não tem problema. – Calebe franziu a testa, estranhando. – É aniversário dela, né? Ela provavelmente vai chorar por causa do João, e se for assim, que ela ao menos tenha companhia.
– É... – Calebe concordou, guiando a mãe em direção a cama. – Cê sabe que pode confiar na gente, que não precisa se preocupar tanto. A Malu é responsável e eu também.
– É, eu sei, filho. Sei bem que não vai adiantar nada dizer que não deixo. – Sorriu, confidente. – Só tô fazendo meu papel de mãe.
– E faz mais do que bem, dona Ana. – Beijou a testa da mãe, com carinho. – Obrigado por ser a melhor, viu?
– Igualmente, meu amor. – Respondeu, sorrindo, já meio adormecida.
Assim que saiu do quarto da mãe, Calebe passou o olhar rapidamente pela sala, vendo se tudo estava em ordem e seguiu para a cozinha. Encontrou Malu lavando e organizando a louça em suas prateleiras, cantarolando algo diferente do que estava tocando anteriormente. Ele sorriu de lado, confortável. Durante aquele mês, aquela visão acabou se tornando habitual para ele. A abraçou por trás, beijando seu pescoço carinhosamente.
Chegou, sorriu, beijou, mostrou como se faz, por isso eu quero te falar... – Malu cantarolou, sorrindo ao sentir as mãos dele em sua cintura.
– Tá cantando pra mim? – Gracejou, descendo os beijos pelo seu ombro.
Vou te falar, mas acho que você já sabe. – Ela continuou, sorrindo abertamente. – Você apaixonou, alucinou, descompassou... – Não continuou, apenas virou de frente para ele e encostou seus lábios rapidamente.
Ele rapidamente se viu embebido pela presença forte e provocante dela, tinha noção o quão linda ela ficava quando ficava na ponta dos pés daquela forma só para abraçá-lo pelo pescoço. Ele sorriu ao ver pelo espelho do fogão que a posição fez o vestido dela subir alguns centímetros. E ele, como um adolescente, não conseguiu se conter e passou as mãos para debaixo do tecido.
– Ei... – Ele a respondeu com um murmuro desleixado. – Se perdeu aí embaixo? – Ela brincou ao sentir a ponta dos dedos dele brincado com a ponta de renda da sua calcinha.
– Não, me perdi aqui em cima. – Rapidamente subiu as mãos e segurou o rosto dela, encarando-a intensamente. Ela suspirou fortemente, já se sentindo entregue a ele e aquela atmosfera que sempre surgia quando eles ficavam sozinhos. Mas estavam sozinhos?
– Cadê a tia? – Perguntou, virando-se novamente e secando as mãos no guardanapo.
– Encontrei a mulher dormindo com um cigarro na mão, vê se pode? – Riu levemente.
– Igualzinha a dona Andréia, faz a mesma coisa. Vamos arrumar aqui? Acho que falta pouca coisa, talvez guardar umas panelas e ver se na geladeira...
– Não, não. – Calebe interrompeu, tirando o pano de suas mãos e a empurrou para fora da cozinha. – Amanhã a gente dá um jeito nas louças, na cadeira, em tudo o que você quiser. Agora eu quero aproveitar mais um pouquinho de você. – Ela sorriu, deixando com que ele a abraçasse por trás e a beijasse até seu quarto.
– Só vou deixar você desobedecer às regras dessa forma porque é seu aniversário. – Informou, entrando no quarto do garoto.
– Saiba, mocinha, que faltam poucos minutos pro meu aniversário acabar. – Pontuou, mexendo nas gavetas de sua cômoda. – Pois é, seus dezenove estão chegando, princesa. – Sorriu.
– Ah, meu Deus, e agora? – Brincou, fingindo um leve desespero. – Quais os planos iniciais, senhor? – Perguntou, cruzando os braços.
– Um banho rápido, trancar a casa e depois disso, você vai se deitar aí do jeitinho que tá agora, vou pegar umas cervejas que restaram pra gente e vou ficar te beijando até eu dormir, pode ser? – Explicou como se estivesse palestrando para um congresso. Ela sorriu, balançando a cabeça, em negação, sem entender como ela havia negado a si mesma o quão bom aquele cara era para ela.
– Pode ser, só se esse banho for um convite pra mim também... – Mordeu os lábios. Ela realmente queria um banho, havia dançado umas poucas e boas com os amigos e sentia sua pele meio grudenta. Só não sabia distinguir o que era o suor causado pela dança e o que era causado pela proximidade de Calebe.
– Engraçado você achar que eu realmente tomaria banho sozinho... – A levantou pela cintura, colocando o corpo dela sobre o seu ombro e indo ao banheiro, causando gargalhadas na garota.

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Após um banho – que seria rápido – ser demorado, lotado de mãos bobas e brincadeiras nada inocentes, Calebe e Malu fizeram exatamente o que foi planejado. Colocaram roupas confortáveis, se arrumaram na cama em uma posição confortável e tomaram suas cervejas de forma confortável até as 23h59.
– 36, 35... – Calebe estava, literalmente, contando os segundos olhando para o relógio moderno no criado mudo, fazendo com que Malu risse.
– Eu nunca esperei tanto por um aniversario, que maluquice. – Ela ria, mas sentia seu coração totalmente quente e protegido onde estava.
Se lhe dissessem no início do dia, que ao final dele, ela estaria se sentindo tão segura e feliz onde estava, ela só acreditaria se dissessem que Calebe estaria com ela. Ali, enrolada numa mistura de braços, lençóis e travesseiros, ela estava perfeitamente bem como a tempos não estivera. Sabia que era perigoso, depositar tanta confiança e responsabilidade em alguém, mas não conseguia evitar.
Ele era tudo o que ela sempre quis e nem sabia.
– Igual você. Minha Malu-ca. – Brincou com as palavras enquanto tocava nos seus cachos ainda pouco resistentes.
– Você é bobo. – Frisou. Ela apoiou a garrafa para fora da cama e se inclinou sobre ele, beijando-o levemente.
– Fiquei pior depois que te conheci. – Sussurrou como se estivesse contando m segredo. – 20, 19...
– Para, tá me deixando ansiosa! – Ela riu, empurrando-o pelos ombros e se sentando ao seu lado, com as pernas cruzadas. – E sem necessidade. Absolutamente nada vai mudar depois que o relógio mudar pra meia-noite.
– Vai, sim. á meia-noite, eu vou dizer que tô apaixonado por ti e que acho que te amo. 14, 13, 12...
Maria Luiza paralisou e ficou encarando o rapaz, que analisava o relógio com um sorriso convencido no rosto e muito calmo para quem havia acabado de dizer palavras fortes demais.
Ela abriu a boca, mas as palavras não saíram, ela sequer sabia o que falaria. Sentiu seu coração disparar como se tivesse corrido uma maratona, apesar de estar deitada já havia uns bons minutos.
Ninguém nunca havia falado aquele tipo de coisa para ela e vice-versa, mas no fundo, ela sabia, teria que ser ele. Calebe seria o dono das suas primeiras vezes.
– 10, 9, 8... – Ele contava em um tom de voz baixo, olhando fixamente para os números mudarem. Estava quase deitado na cama, com apenas a cabeça apoiada na cabeceira. – 7, 6, 5... – Ele olhou de soslaio e sorriu ao ver que ela encarava o relógio com um olhar ansioso e agitado. – 3, 2...
Ele parou de contar e virou-se para ela, encarando-a seriamente. Quando abriu a boca para falar o que ele havia planejado desde a semana passada, foi surpreendido pela mão de Malu cobrindo seus lábios e sua voz quase murmurada: – Tô apaixonada por ti.
– Eu acho que te amo.
Ambos se encaravam com sorrisos tímidos e apaixonados. Não precisavam de mais palavras, não precisavam de explicações, estavam apaixonados e se amando e que delícia de sentimento! Como era bom gostar dele e mostrar isso, como era bom ter aquele sentimento totalmente correspondido por ela. Calebe e Malu jamais esqueceriam aquele momento, onde eles amaram e foram amado de uma das melhores formas possíveis.
Nunca esqueceriam aquele olhar e a sensação reconfortante de ter alguém que te olhasse dessa forma. Caramba, com era bom gostar, como era bom amar.
Malu foi para o colo do rapaz, entrelaçando as pernas em sua cintura e o beijou calorosamente, querendo transpassar para ele tudo que estava sentindo em um beijo. Calebe sentou-se com ela ainda em seu colo e apertou sua cintura por baixo da camisa dele que ela vestia tão bem. A garota fechou os olhos com força, mergulhando o rosto no pescoço dele enquanto as mãos dele passavam pelo seu corpo. Se afastou apenas para cobrir o rosto de Calebe com beijos delicados, assistindo a forma como ele sorria de olhos fechados, aproveitando o carinho dele.
Ele a amava. Não sabia a quanto tempo, nem se duraria mais do que aquele mês. Mas naquele momento, naquele minuto, não havia ninguém no mundo que ele amava e queria tanto quanto ela. Foi assim que Malu procurou toda a coragem, desembraço e determinação que tinha em si e colocou as mãos na barra da camisa que usava e começou a puxar para cima.
– Ei. – Calebe chamou, segurando as mãos dela no lugar. Não queria que ela sentisse obrigação de algo só por ele ter dito o que disse.
– Eu não acredito nisso. – Sussurrou, nervosa, fechando os olhos e mordendo os lábios.
– Não precisa disso, você sabe que eu não importo. – E não se importava mesmo, havia acabado de tomar banho com a garota vestindo uma camisa dele e não ligava, só de ver o formato de seus seios através do tecido molhado era o suficiente para ele.
– Não, tá tudo bem. Se não for com você, não vai ser com mais ninguém.
Malu tirou a camisa, sentindo seu interior contrair com uma mistura de medo e ansiedade por nunca ter feito aquilo, e excitação e prazer por estar com seus seios expostos tão próximo ao rosto de Calebe.
Ele engoliu em seco, encarando o torso delicado de Maria Luiza de forma ávida e concentrada. Ele não falou mais nada, queria fazer mais do que isso, queria mostrar para a menina que não havia motivos para que ela sentisse tal insegurança. Queria que ela se sentisse tão bonita e especial do jeito que ele a enxergava. Malu não conseguiu olhar seu rosto por muito tempo, pois seus olhos estavam lacrimejados.
Ele percorreu um caminho com seu dedo indicador que ia da sua clavícula, a dobra do seu seio e seguiu até a auréola, ambos observando atentamente a ação. Ambos com os olhos fechados, mergulharam com anseio na sensação indescritível dos lábios dele encostados em seu seio.
A cada beijo que ele dava em seus seios, um soluço discreto saia de lábios de Malu. Calebe sentiu pena por Malu não ter ideia do quanto era bonita e sentiu raiva do tal babaca que a fez acreditar nisso. Ao contrário do que foi dito, os seios dela eram maravilhosos.
Com a voz fraquinha, Malu pediu para parar, porém ele continuou saboreando seu corpo da forma mais intensa que conseguia. E mesmo pedindo, Malu não o soltou, apenas o puxava mais próximo de si como se fosse possível.
– Você... é... ah, Maria, como você é linda! – Ela não teve tempo para responder ou agir, pois no segundo seguinte, eles voltaram a unir seus lábios e se beijaram de maneira fervorosa.
Beijá-la sempre era algo fora de série, mas beijar Maria Luiza com os seus seios apertados contra o tórax dele, sentir a pele macia dela, era de outro mundo. Logo, o calor se tornou maior do que eles e as peles de ambos pareciam ter rastros de fogo.
As batidas dos corações batucavam e dançavam com os sons sôfregos que escapavam de seus lábios, como um perfeito dueto.
Aquele ali era o paraíso infernal e particular de Calebe e Malu.

જજજજજજજજજજજજજ

Ele estava confortavelmente desconfortável. Malu estava deitada quase em cima dele por inteiro, estava com a cabeça virada para o outro lado, fazendo com que seus cachos estivessem sufocando-o. E mesmo assim, ele não se mexeu nem por um centímetro desde que acordou naquela manhã.
Sabia que logo ela despertaria pois já conhecia suas manias antes de acordar. Se mexia bastante, procurava e se deitava por cima dele e, se não pegasse no sono imediatamente de novo, ela voltaria ao seu lado da cama e desistiria de dormir, levantando-se.
Ele sorriu convencido quando notou ela fazendo cada etapa daquela rotina. Ele sempre acordava antes, então ela apenas beijou seu rosto e levantou-se da cama, indo direto para o banheiro. Ele olhou para a cômoda de seu quarto e foi até lá, lembrando que o presente dela estava guardando na primeira gaveta. Sua intenção era entregar na noite anterior, mas foi surpreendido pelas ações determinadas de Malu.
– Bom dia. – Ela proferiu, suave, quando retornou do banheiro, prendendo seus cabelos em um coque alto. Beijou as costas dele e voltou para a cama, enrolando-se nos cobertores quentinhos e confortáveis. – Tá tudo bem? – Perguntou, receosa, ao ver que ele estava parado em frente a cômoda, sem se mover.
Ele não sabia mito bem como fazer isso. Sabia que era um presente mais do que especial e que ela provavelmente choraria, sentia-se receoso em despertar aquelas lembranças e sentimentos na garota, mas também sabia que não havia melhor presente para dar naquele momento.
– S-sim, é... – Ele virou-se e esticou a mão, estendendo o embrulho pequeno para Malu. – Feliz aniversário.
– Ah, mentira! Você me comprou um presente? – Sentou-se, empolgada, sorrindo e pegando a caixa da mão dele. Ele sorriu de lábios fechados e sentou ao lado dela, respirando fundo. – O que foi? – Ela estranhou a reação dele, olhou em seu rosto e podia jurar que os olhos dele estavam marejados.
Calebe não sabia explicar, mas de repente, se sentiu emotivo e frágil, como quando ganhou aquele mesmo presente á onze anos atrás. Malu abriu a caixa parda simples e sentiu tudo oscilar em volta dela quando viu o livro que estava ali. O Pequeno Príncipe, o mesmo livro que ela havia dado de presente para Calebe em seu aniversário de oito anos. E pelas cores apagadas e pequenos amassados nas bordas, era exatamente o mesmo livro que fora escolhido a dedo por João naquele dia.
Antes de fazer qualquer coisa, ela fechou a caixa novamente e entregou de volta a Calebe, que negou com a cabeça e empurrou para ela novamente.
– É seu presente. – Ela justificou, com a voz trêmula.
– Eu tenho... – Ele engoliu em seco, sentindo-se abalado subitamente. Lembrar do tio João sempre era especial para Calebe, mas ele sentia que aquela era a primeira vez que ele se dera conta de que não veria mais o homem. Respirou fundo antes de continuar, sentindo-se embaraçado com a própria emoção. – Esse é seu, eu tenho uma gaveta inteira com livros que ganhei do tio João, Malu.
A voz de Calebe falhou no final da sua frase, isso fez com que os olhos de Malu trasbordassem lágrimas e ela abaixou a cabeça, apoiando a mão na testa, lutando para não se debulhar em lágrimas e encarando a caixinha.
– Eu não consigo abrir... – Lamentou, fungando, já com a voz completamente chorosa.
Abalada, eles mantiveram o contato visual enquanto ele sentou-se em frente a ela e pegou a caixa em suas mãos. Com ternura e carinho, ele limpou as lágrimas grossas que escorriam dos olhos pequenos de Maria Luiza e retirou o livro da caixa e entregou em suas mãos trêmulas, com a primeira página em aberto.
“Para CALEBE, que você não perca seu jeito de criança mesmo quando já for uma pessoa grande. Com amor e carinho, tio João, tia Andréia e Malu”.
Ela soluçou, cobrindo a boca com uma mão enquanto passava a outra pelo papel, sentindo a textura das palavras escritas por João. A tinta da caneta preta ainda estava forte e marcada com força. Ficou uns segundos olhando para as páginas gastas do livro antigo, era possível notar que havia sido lido diversas vezes, mesmo assim, estava bem cuidado.
Ela sorriu entre lágrimas, sentindo-se em uma montanha russa emocional, onde suas lágrimas de saudade se misturam com seu sorriso comovido. Calebe observou atentamente a variedade de emoções que continham nos olhos dela e se sentir feliz e orgulhoso por ter escolhido o presente perfeito.
– É o melhor presente que eu já ganhei. – Afirmou, como se estivesse lendo os pensamentos dele.
– Eu também. – Confessou, baixinho, apesar de não saber exatamente se estava falando do livro ou dela. Mas suspeitava, com uma certa desconfiança e leve certeza, que era ela o melhor que ele já havia ganhado.

“Acho que é bobagem a mania de fingir,
negando a intenção.
Se quando um certo alguém cruzou o teu caminho
e te mudou a direção”.
Um Certo Alguém – Lulu Santos



Continua...


Nota da autora: Sem nota!

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