Finalizada em: 12/06/2025
Combinando com a jaqueta, uma calça de cintura alta, também amarela, moldava suas curvas com perfeição, criando um efeito monocromático moderno e impactante. O look era ousado, solar, impossível de ignorar — assim como ela. passou os dedos pelos cabelos loiros e ondulados, ainda com um meio sorriso nos lábios. Era o tipo de roupa que fazia mais do que vestir: fazia lembrar quem ela era.
O Festival de Festa dos Namorados de Tongyeong, estava de volta depois de dez anos, e bom, a primeira e única vez que havia participado do festival foi exatamente na última edição, quando ela ainda tinha quinze anos.
Ela se lembrava com nitidez quase dolorosa…
“As luzes coloridas refletidas no mar, o som abafado de músicas românticas ecoando pelas vielas e aquele cheiro de algodão-doce se misturando com o vento da noite. Tinha ido com algumas amigas, todas empolgadas com a ideia de encontrar ‘crushes de verão’, mas só tinha olhos para uma pessoa: .
Ele era seu amigo da escola, seu vizinho de rua, seu primeiro sorriso nas manhãs e o último pensamento antes de dormir. Não estavam exatamente juntos — mas também não estavam longe disso. Era aquele tipo de amor juvenil que crescia silencioso entre trocas de cadernos rabiscados, risadas tímidas nos corredores e mãos que se tocavam por acaso… mas que pareciam nunca querer se soltar.
Naquela noite, ele a puxou pela mão até a fila da roda-gigante.
‘Vamos lá de cima ver se as estrelas estão mesmo espiando os casais’, ele disse, com aquele sorriso torto que ela conhecia tão bem.
Subiram. Riram. Fingiram não estar nervosos com a proximidade no banco apertado. E quando a cabine parou no topo, com a cidade inteira iluminada lá embaixo, o silêncio entre eles disse tudo o que as palavras não conseguiram.
Foi ali, naquele instante suspenso no tempo, que encostou os lábios nos dela. Um beijo doce, desajeitado e inesquecível.
Depois disso, ele se despediu com um abraço apertado e uma promessa:
‘Na próxima edição, a gente sobe de novo. Só que como um casal de verdade.’”
Mas o destino — esse traidor impaciente — levou a família dele para longe de Tongyeong logo na semana seguinte. E a próxima edição… nunca veio. Até agora.
piscou lentamente, sentindo o gosto de uma lembrança que ainda morava em algum canto do peito. Dez anos depois, o festival estava de volta…
O sorriso melancólico e amargo logo se desfez dos lábios de que balançou a cabeça algumas vezes, afastando os pensamentos que poderiam torturá-la durante aquela noite toda.
— Ai, ! Dez anos depois e você se derretendo por uma lembrança tão infantil? — bufou e então passou as mãos pelos cabelos loiros soltos, ajeitando-os um pouco mais — Eu nem deveria ir para esse festival. Quantas vezes preciso repetir para mim mesma que o amor não é para mim?
Duas amigas de infância que haviam saído de Tongyeong assim como ela para fazer faculdade e voltado ano passado, para tomarem conta dos negócios dos pais, agora mais dependentes dos filhos, com a velhice chegando, haviam a convencido de ir ao festival.
Ao se olhar de novo no espelho depois de pegar a pequena bolsa ela se questionou com seriedade: “E se eu não fosse?”
Mordeu o lábio enquanto ponderava as duas opções, mas aí ouviu a mãe chamando, os passos dela no corredor logo chegando ao quarto de :
— e estão chamando no portão, querida! Já está pronta? — se virou e encarou a mãe, com um sorriso largo no rosto, cheio de expectativa.
Engoliu seco, ajeitou a bolsa no ombro e sorriu de volta para mãe, tentando parecer empolgada.
— Você e o appa, não vão ao festival? Ele não precisa trabalhar mais tão até tarde assim agora que estou aqui, e ele sabe disso!
A mãe se afastou alguns passos, ainda com o sorriso no rosto.
— Seu appa é teimoso, você sabe disso, minha flor. Mas vou tentar convencê-lo de irmos assim que ele voltar. Nos encontramos lá!
“E se eu não fosse?”
A pergunta ecoou dentro dela de novo, real, incômoda.
Mordeu o lábio, como se a resposta estivesse presa ali, em algum lugar entre o orgulho ferido e o cansaço emocional. Nos últimos meses, vinha tentando manter a aparência de que estava tudo bem. Mas a verdade é que não estava. O fim recente de um relacionamento, o tipo de fim que não se anuncia, que chega como um rompimento seco no meio de uma construção sonhada, ainda latejava dentro dela.
E o festival — com seus balões vermelhos, músicas românticas e casais empolgados — parecia mais uma provocação do que um convite.
Ainda assim, ela forçou um meio sorriso. Aquilo não era por causa do amor, nem de ninguém. Era só por sair de casa. Por respirar. Por se lembrar que ainda sabia rir com e . Só isso.
Respirou fundo e desceu as escadas. Quando abriu o portão, suas duas amigas já estavam lá. usava um casaco rosa berrante que quase gritava, enquanto equilibrava um sorvete na mão, sorrindo como se fosse verão — mesmo que a noite já trouxesse um vento gelado.
— Achei que você tinha fugido pelos fundos — brincou .
— Pensei, mas aí lembrei que vocês me matariam por isso — respondeu, tentando manter a leveza.
— A gente só arrastaria você mesmo assim. — deu de ombros. — Com ou sem motivação amorosa, hoje você vai se divertir, entendeu?
assentiu, mesmo sem acreditar muito. Ela não tinha expectativas. Nem planos. E definitivamente não esperava reencontrar ninguém. Só queria que a noite passasse depressa.
E talvez, no fundo, isso fosse exatamente o que tornaria aquela noite tão diferente.
As luzes penduradas em fileiras sobre as ruas, os estandes com cheiro de milho caramelizado e algodão-doce, a música romântica ecoando pelos alto-falantes e os casais — muitos casais — andando de mãos dadas como se o mundo lá fora nem existisse.
caminhava ao lado das amigas, mas havia algo distante no seu olhar. Como se estivesse ali… e não estivesse ao mesmo tempo. A cidade tinha se mantido fiel à memória dela, e aquilo era mais confuso do que reconfortante.
A roda-gigante ainda estava lá. Majestosa, colorida, girando lentamente contra o céu do início da noite. E, por um segundo, sentiu o estômago revirar. Não de saudade — mas de tudo que havia se perdido no caminho entre aquela menina de quinze anos e a mulher que ela era agora.
Ela desviou o olhar.
— Vamos por aqui — apontou , tentando animá-la. — Quero ir naquele estande dos chaveiros com nomes! Aposto que o meu nunca tem, mas ainda assim me iludo todo ano.
riu, puxando pelo braço.
— Anda, . Só uma noite. Só diversão. Esquece os amargos por umas horas, vai.
forçou um sorriso e foi. Porque era isso que vinha fazendo há meses: forçando. Forçando a levantar da cama, forçando a responder “tá tudo bem”, forçando a seguir em frente sem realmente saber para onde.
Mas ali, cercada pelas luzes amarelas do festival, ela sentiu uma pontinha quase esquecida dentro de si… como se algo estivesse prestes a acontecer, mesmo que ela ainda não soubesse o quê.
Ou talvez só estivesse mentindo pra si mesmo esse tempo todo.
Quando o pai mencionou que passariam o feriado por lá, na casa antiga da família que agora servia mais como ponto de repouso do que lar, apenas assentiu. Sem reação, sem protesto. Mas por dentro, uma onda incômoda de memórias o puxava para um passado que ele preferia manter trancado.
Dez anos. Era estranho pensar assim — com número redondo, quase simbólico. Mas o tempo tinha passado, e rápido. Ele já não era mais o garoto da rua da esquina, nem o adolescente com o coração disparando no topo de uma roda-gigante.
Agora era um homem. Com trabalho, com vida própria, com tantas coisas que havia conquistado… e outras tantas que nem teve coragem de tentar de novo.
A cidade parecia a mesma, mas com o filtro da distância. As lojinhas ainda se alinhavam perto da praça central, as barracas de comida tomavam as calçadas com seus aromas familiares e a brisa do mar seguia cortando as ruas estreitas com o mesmo cheiro de sal e promessa. O festival, no entanto, era o que mais o inquietava.
Ele havia jurado a si mesmo que não voltaria no dia dos namorados. Mas ali estava, parado diante da entrada iluminada com balões em forma de coração, os alto-falantes tocando uma versão acústica de alguma música romântica qualquer, e um grupo de adolescentes correndo e rindo com corações pintados no rosto.
— Idiota — murmurou para si, passando a mão pelos cabelos antes de respirar fundo e dar um passo adiante.
Não estava ali por ninguém. Não por ela. Não depois de tanto tempo.
Era só curiosidade. Nostalgia, talvez. Ou teimosia pura.
Mas ao cruzar o arco principal do festival e ver a roda-gigante ainda ali — como se o tempo não tivesse ousado tocá-la — sentiu um arrepio involuntário. O tipo de arrepio que não vem do frio… mas da memória.
“Não pense nela.”
Mas era tarde. A lembrança veio mesmo assim, como um raio no escuro: “ sorrindo para ele naquele assento apertado, o cabelo sendo bagunçado pelo vento, e os lábios dela ainda doces depois do beijo.” Aquela imagem, por mais que tentasse, ele nunca conseguiu apagar.
Talvez fosse isso. Talvez ele só quisesse ver, com os próprios olhos, o quanto tinha mudado. Ou, quem sabe, perceber que certas coisas — por mais que o mundo avance — continuam exatamente no mesmo lugar onde ficaram.
enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta e começou a andar, tentando parecer indiferente ao turbilhão que se formava por dentro.
O chão de pedra da praça central ainda tinha os mesmos desníveis de sempre. Ele quase tropeçou em um deles, como fazia quando era mais novo, e isso o fez sorrir de canto — por um segundo. Ao redor, as luzes piscavam em tons quentes, lanternas de papel balançavam com o vento e havia música saindo de caixas distribuídas em postes, intercalando pop romântico com baladas antigas.
Ele passou por estandes de brincadeiras e barraquinhas de lembranças. Uma senhora ofereceu um chaveiro personalizado com nomes gravados à mão. Ele recusou com um aceno, mas o olhar bateu automaticamente no chaveiro que dizia “” pendurado bem na frente, e o estômago deu um leve nó.
“Coincidência”, murmurou em pensamento. Mas ainda assim desviou o olhar.
O cheiro de tteokbokki e doces fritos tomava conta do ar, e por um instante ele se sentiu com 15 de novo, esperando na fila da roda-gigante, tentando não suar nas mãos, tentando não parecer nervoso demais — e falhando completamente.
Caminhou mais um pouco, em direção ao velho carrossel que agora parecia menor. Tinha a impressão de que tudo ali havia encolhido, menos a sensação de estar fora do próprio lugar.
Não sabia bem o que estava procurando. Só sabia que, até agora, não tinha encontrado.
Parou próximo a um mirante montado temporariamente com luzes penduradas e bancos de madeira. Era um espaço novo, adicionado ao festival durante os últimos anos, onde os visitantes podiam tirar fotos com o mar ao fundo. se encostou em um dos postes decorados, olhando o reflexo das luzes tremeluzir sobre as ondas lá embaixo.
Era bonito. Era tudo bonito demais para alguém que não estava apaixonado.
— Dez anos. — murmurou em voz baixa, como quem falava só pra testar se ainda doía.
E doía. Não como antes. Não como saudade pura — mas como aquela sensação de que certas coisas nunca foram devidamente encerradas. Talvez ele não tivesse voltado pela cidade. Nem pelo festival. Talvez tivesse voltado para dar um fim de verdade àquilo que ficou pendurado no tempo.
Respirou fundo e se afastou do mirante.
Ainda havia muito festival pela frente.
E, no fundo, algo lhe dizia que a noite ainda guardava uma peça a ser jogada.
— Tipo o quê? “Ainda tentando superar um embuste”? — murmurou , com um sorriso fraco.
— Isso, exatamente isso! — gargalhou. — Pode até colar bem no meio, pra todos os pombinhos lerem e repensarem seus relacionamentos.
riu um pouco mais genuinamente dessa vez. A leveza das amigas era o que a mantinha de pé — mesmo quando por dentro tudo ainda estava meio bagunçado. O término, as expectativas que desmoronaram sem aviso, o cansaço de fingir que tudo estava em paz.
Ela olhou ao redor. O festival era lindo, não havia como negar. Tinha sido montado com cuidado: luzes decorativas passavam de poste em poste, corações infláveis flutuavam nas extremidades da praça, e até uma arquibancada improvisada estava cheia de pessoas assistindo a uma apresentação de dança tradicional.
E, mesmo assim… sentia como se tudo aquilo não fosse para ela.
— Vou pegar um chocolate quente, tá? — ela avisou, se afastando um pouco das amigas.
— Quer que a gente vá junto? — perguntou.
— Não, relaxa. Preciso só de um minutinho. Já volto.
Caminhou devagar entre as pessoas, as mãos segurando a alça comprida da bolsa. O barulho do festival era abafado pelos pensamentos que ecoavam mais alto. Parou na barraca de chocolate quente e fez o pedido, mas enquanto esperava, deixou os olhos vagarem sem destino.
E foi então que viu novamente.
A roda-gigante.
A mesma de dez anos atrás. Colorida, alta, girando como se nada tivesse mudado, como se o tempo não tivesse passado para ela — só para .
Ela desviou o olhar rapidamente e mordeu o lábio, engolindo em seco. O cheiro doce do chocolate chegou, e ela agradeceu à atendente quase num sussurro, pegando o copo com ambas as mãos. Ficou ali parada por alguns instantes, só observando o mundo ao redor, como quem espera que o peito desacelere.
Ela não fazia ideia de que, a poucos metros dali, outro olhar também se perdera na mesma roda-gigante. E que o tempo, finalmente, começava a girar de novo — para os dois.
Cortou caminho por entre as barracas e passou por um corredor lateral onde os estandes eram mais vazios. Foi aí que sentiu o impacto leve no ombro.
— Desculpa — ela disse, recuando um passo sem nem olhar direito.
— Ah… foi mal — respondeu uma voz masculina, baixa, rouca, educada.
Ela apenas assentiu e seguiu adiante, sem reparar no homem de jaqueta escura que ficou parado por um segundo a mais, observando o movimento, antes de continuar em outra direção.
Foi só um esbarrão. Entre centenas naquele lugar, mais um qualquer.
Mas, por um breve momento, algo ecoou dentro dos dois.
Um desconforto sutil. Uma sensação vaga de familiaridade.
Como se a alma reconhecesse o que os olhos ainda não ousavam encarar.
parou mais à frente, sentando-se no banco de madeira perto do mirante decorado. Bebia algo morno, olhando fixamente para o mar. Tentava lembrar por que aquela voz, aquela presença rápida, o havia deixado inquieto.
, por outro lado, já havia se encostado no parapeito da praça superior, observando os enfeites refletidos nas poças de chuva da tarde. Bebia seu chocolate em silêncio, como se o calor nas mãos tentasse aquecer algo dentro dela que ainda estava frio demais.
Eles estavam a poucos metros um do outro.
Na mesma cidade. No mesmo festival. Na mesma noite.
E o destino, sorrindo discreto, sabia que era só questão de tempo.
Quase.
Ela estava distraída, olhando a tela do celular. E ele, por algum motivo, sentiu o coração acelerar mesmo sem saber por quê.
Seguiu andando.
Mais tarde, ela passou pela arquibancada de apresentações enquanto saía de uma barraca de comida. Um esbarrão quase aconteceu de novo. Mas ele se desviou sem olhar para o rosto dela. Ambos continuaram seus caminhos, em direções opostas.
A noite parecia brincar com eles. Aproximando, afastando. Como se estivesse esperando o momento certo.
O reencontro viria — mas não por acaso.
Seria inevitável. E inesquecível.
vagava sem pressa. Tinha se perdido das amigas de propósito, como quem precisava de silêncio até mesmo entre os barulhos. Passou por um painel de fotos antigas do festival, onde registros das edições anteriores decoravam uma parede iluminada por cordões de luz. Reconheceu uma ou outra imagem. Uma delas, de 10 anos atrás, mostrava a roda-gigante contra o pôr do sol. Ela prendeu a respiração. Aquela era a noite.
A noite do beijo.
Desviou o olhar. Não estava ali para reviver. Estava tentando, na verdade, esquecer. Ou, ao menos, se reconstruir. Só não sabia muito bem como.
Enquanto isso, do outro lado da praça, caminhava sem direção exata. Passou por uma barraca de lembrancinhas onde os visitantes podiam escrever cartas para entes queridos — cartas que seriam queimadas em fogueiras simbólicas no fim da noite, como um ritual de libertação.
Leu algumas frases expostas em voz baixa.
"Que eu aprenda a me despedir."
"Que o amor venha limpo da dor."
"Que aquilo que foi, me deixe em paz."
Sentiu o estômago revirar.
Era só um festival, certo? Mas ali, naquela cidade, naquele dia, parecia que tudo falava dele. Dela.
Do que ele não teve coragem de guardar, nem de esquecer por completo.
Mais uma hora se passou, e o tempo começava a esfriar. estava sentada nos degraus do coreto central, observando as luzes refletirem nas árvores. a encontrou ali com um saquinho de doces e se sentou ao seu lado, entregando um deles sem dizer nada.
— Você está quieta hoje. — comentou, sem cobrar.
apenas deu de ombros.
— Acho que é porque estou tentando não sentir nada. Mas esse lugar… não ajuda muito.
assentiu devagar.
— Talvez seja porque tem coisa que a gente não resolve fugindo. Mesmo que passe dez anos.
encarou o chão, apertando o doce nas mãos.
— Eu só queria passar por essa noite sem lembrar. Só isso. Não queria lembrar desse beijo e de como ele foi embora na semana seguinte sem se despedir, sem nem lembrar que eu existia. Meu primeiro amor e minha primeira decepção amorosa… depois dele foi só ladeira abaixo e você sabe.
respirou fundo, como se prendesse o choro na garganta.
— Lembrar dele e de tudo que aconteceu aqui, há dez anos, é como desencadear todas as lembranças ruins que vieram depois disso, no que diz respeito ao amor na minha vida. Então, eu quero tentar não pensar nisso.
segurou a mão dela com força antes de assentir.
E, enquanto isso, parava outra vez — desta vez, diante da roda-gigante.
Olhou para cima. As luzes giravam devagar. Casais riam lá de cima. E ele ficou ali parado, como alguém esperando algo que não sabia nomear.
Ao longe, uma voz soou no alto-falante:
— Em alguns minutos, daremos início à última volta simbólica da roda-gigante para aqueles que participaram da edição de dez anos atrás. Caso deseje reviver esse momento, a fila está aberta. Os assentos serão distribuídos por ordem de chegada ou sorteio.
ouviu o anúncio e, pela primeira vez na noite, sentiu o coração reagir. Não de saudade. Mas de impulso.
E foi aí que os dois, em direções diferentes, começaram a caminhar…para o mesmo lugar.
A fila estava curta — poucas pessoas haviam participado do festival dez anos atrás. Ela hesitou por um segundo, mas então um dos organizadores a reconheceu pela pulseira antiga no pulso (uma das amigas havia insistido para usarem por nostalgia).
— Você esteve aqui na última edição, certo? Pode ir à próxima volta. Vaga para uma pessoa?
— Sim… uma só. — respondeu baixinho.
Foi direcionada para a cabine número 3.
Encostou-se na grade de madeira, esperando o embarque.
A noite soprava um vento frio, e ela cruzou os braços. Estava tudo silencioso por dentro, mas era o tipo de silêncio que gritava.
Do outro lado da roda, caminhava lentamente. Pensou em ignorar o anúncio — quase foi embora — mas seus pés o levaram ali antes que a cabeça pudesse discordar.
Quando o viram com a pulseira da edição antiga presa no bolso da jaqueta, o mesmo funcionário o parou.
— Tem uma cabine sobrando. Última volta simbólica. Vai querer?
Ele olhou para cima. A roda girava devagar, como se tivesse esperado por ele esse tempo todo.
— Tá… tudo bem.
— Cabine 3. Pode entrar direto. A outra passageira já está lá.
— Outr…? — ele começou a perguntar, mas parou.
Deu de ombros, caminhou até a entrada e subiu os degraus de metal. O som do vento entre as barras metálicas da estrutura era o único ruído ao redor.
Quando abriu a porta da cabine…
Parou.
O tempo não fez barulho. Mas parou.
Lá dentro, de costas para ele, sentada com o olhar perdido no horizonte, estava .
Os ombros dela se enrijeceram no mesmo instante.
Ela soube.
Antes de vê-lo, antes de ouvir qualquer palavra.
Ela soube.
Virou o rosto devagar. Os olhos encontraram os dele. Castanhos nos castanhos. Dez anos de silêncio entre um olhar e outro.
— …? — a voz dela saiu quase como um sopro.
Ele piscou, como se precisasse confirmar que não era um delírio de memória.
— .
Ela não sabia se levantava, se sorria, se fugia.
Ele não sabia se pedia desculpa, se ria, se chorava.
Mas o funcionário fechou a porta atrás dele e a cabine começou a subir.
A roda girava devagar, como há dez anos.
Como se o universo, enfim, tivesse fechado o círculo.
Ali estavam eles.
No mesmo lugar.
Mas com corações diferentes.
Com feridas abertas e sentimentos não enterrados.
Com olhares que ainda sabiam se reconhecer, mesmo depois de todo o tempo.
O silêncio era denso.
Mas não era hostil. se sentou à frente dela, os olhos ainda fixos.
— Eu… não fazia ideia de que você…
— Nem eu. — ela cortou, com um sorriso sem força. — Talvez seja por isso que estou aqui. Pra não pensar.
Ele assentiu, os olhos cansados, mas vivos.
— Eu pensei em você todos esses anos, sabia?
não respondeu. Só olhou para fora. A cidade de Tongyeong se estendia abaixo deles, salpicada de luzes como estrelas caídas.
Mas havia uma lágrima presa no canto do olho dela.
E um nó preso no coração dele.
Ainda não era hora das respostas.
Talvez fosse o recomeço do que na verdade nunca teve fim.
passou os dedos pelo próprio casaco, ajeitando as mangas sem necessidade. O chocolate quente em sua mão já havia esfriado.
— Você voltou pra morar aqui? — ela perguntou, por fim, sem encará-lo.
— Não. Só… visitando com meu pai. Ele quis vir pro feriado, achei que não fazia diferença. — respondeu com a voz baixa, quase contida.
assentiu devagar.
Ela também achou que não faria diferença voltar ali.
Ambos estavam errados.
— O festival está igual — disse ela, ainda olhando pela janela de vidro. — Mas eu sinto que encolhi.
soltou uma risada seca, sem humor.
— Ou cresceu.
— É, talvez. — ela respondeu com um sussurro.
O silêncio voltou, só que dessa vez era menos estranho.
Mais… confortável.
Como se os dois estivessem testando o peso das palavras antes de derrubá-las entre eles.
finalmente a olhou, e sua voz saiu mais firme:
— , eu nunca consegui te escrever.
— Eu sei. — ela o cortou com gentileza, virando-se de leve para ele. — Eu também não tentei.
Ele pareceu se encolher um pouco diante da resposta. Não de dor — mas de compreensão.
— Eu achava que te ver de novo seria impossível. E, ao mesmo tempo, eu sempre imaginei como seria se acontecesse.
— Não foi assim que imaginei. — ela respondeu com um sorriso pequeno, sincero.
— Nem eu. — ele admitiu, sorrindo de volta, quase tímido.
A roda começou a desacelerar no topo.
A cabine parou.
Suspensa, como da última vez.
Os dois sabiam disso. E lembravam.
soltou o ar devagar.
— Sabe… a parte mais difícil não foi você ter ido embora. Foi ter guardado tudo o que ficou pendurado naquela noite.
— Eu sei. Eu… também guardei. Tudo.
Os olhos dela se voltaram para os dele. E havia tanta coisa ali: saudade, raiva dissolvida pelo tempo, carinho, dor, e algo que ainda não tinha nome.
Ou talvez tivesse. E eles só estivessem redescobrindo.
— Você parece diferente. — ela disse, encarando-o com mais nitidez.
— E você parece igual. Mas mais forte.
— A vida tratou de me moldar assim.
Ele assentiu.
— E… como você está? Quer dizer… de verdade?
Ela hesitou.
Mas decidiu ser honesta.
— Desgastada. Mas… sobrevivendo.
— Eu entendo.
Mais um momento de silêncio.
Dessa vez, sem pressa. Sem peso.
— Você ainda pensa naquela noite? — ele perguntou, sem conseguir mais esconder o que vinha guardando.
Ela respirou fundo, mordeu o canto do lábio e respondeu com calma:
— Só voltei a pensar naquela noite porque o festival voltou. Antes disso… fazia tempo que ela não me visitava.
a olhou com atenção, como se a resposta o atravessasse.
— Entendi.
— Não é que tenha deixado de ser importante — ela continuou, com honestidade. — Mas, depois de um tempo, outras coisas aconteceram. Outras feridas vieram. A vida seguiu, sabe?
Ele assentiu, embora com um peso visível nos olhos.
Como se a resposta dela o colocasse, de repente, em outro lugar da história.
— E você? — ela perguntou, devolvendo o olhar. — Ainda pensa naquela noite?
engoliu em seco antes de responder:
— Penso. Muito mais do que deveria, provavelmente. Acho que parte de mim ficou parada lá em cima, numa cabine como essa. Como se o tempo tivesse descido... e eu não.
A roda começou a desacelerar, preparando-se para descer.
desviou os olhos para a janela, observando a cidade iluminada abaixo deles.
— Às vezes, a gente acha que ainda está no mesmo lugar, mas não está. A gente muda sem perceber.
a encarou mais uma vez, em silêncio.
E ali, no topo da roda-gigante, o passado e o presente finalmente se encostavam — não para reviver o que foi, mas para revelar quem eles haviam se tornado.
Mas entre e , o tempo ainda parecia lento. Quase respeitoso.
A porta foi aberta por um dos atendentes, e saiu primeiro. Sentiu o vento gelado bater no rosto e respirou fundo, como se estivesse voltando à superfície depois de um mergulho muito longo.
veio logo atrás. Nenhum dos dois falou de imediato.
Não havia urgência.
Só um espaço entre eles que agora precisava ser preenchido com calma — ou não ser preenchido.
caminhou alguns passos à frente, indo em direção ao parapeito que dava vista para a baía. As luzes refletidas na água pareciam flutuar, como memórias indecisas.
a acompanhou, mantendo uma distância respeitosa.
— Você tá diferente. — ele disse, a voz baixa, mas firme.
Ela sorriu de lado, sem desviar os olhos do mar.
— Todo mundo muda, .
— Eu sei. Só… não achei que você fosse se tornar tão distante de quem eu lembrava.
Ela o encarou por cima do ombro, os olhos mais serenos do que ele esperava.
— Talvez você tenha se apegado à lembrança de uma versão minha que parou no tempo. Mas eu continuei. Com ou sem o festival. Com ou sem você.
Houve um silêncio honesto ali. Não magoado — só verdadeiro.
E assentiu, os ombros um pouco mais baixos agora.
— Eu não soube como seguir — ele admitiu. — Você foi meu primeiro amor, . E eu… acho que transformei aquela noite em algo que talvez não tenha sido igual pra você.
Ela não respondeu de imediato. Apenas virou-se por completo, agora de frente para ele.
— Aquela noite foi linda. Foi real. Você também era o meu primeiro amor, . Mas foi uma noite. O que veio depois… foi só meu. E não foi fácil.
Ele a olhou com mais cuidado, como se finalmente enxergasse além da menina de quinze anos que ele tinha guardado na memória.
— E agora? — perguntou, quase num sussurro.
respirou fundo. O ar estava frio, mas o coração, aos poucos, se aquecia de algo novo.
Não esperança. Não ainda.
Mas talvez… curiosidade.
— Agora… não sei. — ela respondeu. — Mas acho que a gente pode descobrir. Sem pressa. Sem promessas.
Os olhos de se suavizaram.
— Eu topo.
E ali, sob as luzes da roda-gigante, com o passado enfim aceito e o presente respirando por si, eles começaram — não de novo — mas de um jeito novo.
— Quer andar um pouco? — perguntou, os olhos ainda tentando decifrar o dela. — A roda-gigante é bonita… mas sempre achei o chão mais seguro.
soltou uma risada breve, quase surpresa por rir de verdade.
— Você ainda tem medo de altura?
— Eu diria que é só um respeito bem fundamentado — respondeu ele com um sorriso inclinado.
Ela assentiu, puxando a alça da bolsa no ombro.
— Tudo bem, vamos caminhar. Só… nada de estandes de declaração pública, por favor. Estou emocionalmente alérgica a corações gigantes.
— Sem corações. Prometo. — ele levantou uma mão como se fizesse um juramento. — Posso te comprar uma batata frita para compensar?
— Agora você está falando a minha língua.
Eles seguiram lado a lado, com o som do festival preenchendo os espaços que o silêncio deixava. Pararam em uma barraca de batata frita, e insistiu em pagar. aceitou, não porque precisava — mas porque por algum motivo, naquele instante, parecia certo deixar.
Sentaram-se em um banco de madeira um pouco afastado da multidão, onde podiam ver as luzes refletidas na água. mordeu uma das batatas e soltou um suspiro satisfeito.
— Isso aqui sempre teve gosto de infância.
— E de gordura. — completou.
— Melhor combinação possível.
Ela olhou para ele de lado, por um momento, observando o jeito como ele mexia no saquinho de papel com batatas. Ele estava mais velho, sim — mas o gesto era o mesmo. Os olhos também. Havia uma calma nele agora que ela não lembrava de ver antes.
— Você tá bem, ? Tipo… de verdade?
Ele demorou alguns segundos para responder.
— Tô tentando estar. A vida foi meio confusa nos últimos anos. Mas acho que agora tô conseguindo ficar em paz com algumas coisas.
assentiu.
— Paz é boa. Silêncio, às vezes, também.
— E você? Ainda dança? — ele perguntou, virando-se um pouco mais para ela.
Ela sorriu com surpresa.
— Você lembra disso?
— Como esquecer? Você quase me quebrou no meio naquela apresentação da escola. Eu fingia que sabia dançar só pra ficar mais tempo com você.
— Eu lembrava disso diferente. Lembrava que você era quem me fazia rir quando eu tava nervosa.
— Eu era os dois. Desastrado e útil.
Eles riram juntos dessa vez. Um riso leve, como se tivessem voltado, por instantes, àquela fase em que tudo era mais simples.
suspirou e encostou as costas no banco.
— Não sei se eu teria vindo hoje se soubesse que te encontraria. Não por medo… mas porque às vezes a gente não sabe se consegue encarar certas partes de si mesma de novo.
— E agora que veio?
Ela pensou por um instante.
— Agora, acho que precisava. Não por você. Mas por mim.
Ele assentiu devagar, com respeito, com gratidão.
— Fico feliz por isso.
Ficaram ali por mais alguns minutos, só observando os fogos que começavam a estourar no céu distante.
Dois antigos amores. Duas versões novas.
E uma noite onde, pela primeira vez, o reencontro não doeu.
Apenas… fez sentido.
foi o primeiro a quebrar o silêncio:
— Você também veio pelo feriado? — Ele levou uma batatinha aos lábios finalmente.
— Eu voltei a morar aqui desde o ano passado, . Vim assumir os negócios do meu pai, ele não anda dos melhores.
Ele ergueu o olhar e encarou o perfil bem desenhado de , que agora encarava um ponto fixo na frente deles, mas sem ver exatamente nada.
— Então está tentando refazer a vida aqui agora?
Ela demorou um pouco para responder. Deu mais uma mordida distraída na batata frita e depois apoiou os cotovelos nos joelhos, olhando o chão.
— Tentando, sim. Mas "refazer" talvez não seja a palavra certa. Às vezes sinto que estou só… me sustentando, sabe? Como quem segura uma casa que já tem rachaduras, mas não pode deixar cair.
não respondeu de imediato. Ouvia. E entendia mais do que queria admitir.
— Eu achei que você, sei lá, tivesse ido embora pra nunca mais olhar pra trás — ele disse, quase num sussurro.
— Eu também achei. — ela respondeu com sinceridade. — Mas tem coisas que puxam a gente de volta. Às vezes é a família. Às vezes… são promessas que a gente nem lembra de ter feito.
Ela o olhou de canto.
Não era uma acusação.
Era só um fato.
E sentiu o peso disso.
— Você realmente mudou. — ele disse, com suavidade, um sorriso surgindo no canto dos lábios. — Está mais… firme. Como se tivesse aprendido a se manter de pé sozinha.
— E você parece menos perdido. — ela respondeu, sem ironia. — Ainda se agarra ao passado, mas… acho que começou a aceitar que o presente não é tão ruim assim.
Ele sorriu com um canto dos lábios.
— O presente acabou de melhorar um pouco.
balançou a cabeça, rindo de leve.
— Você sempre teve essa cara de quem sabe exatamente o que dizer na hora certa.
— E, mesmo assim, quase nunca disse — ele admitiu, com uma expressão de arrependimento discreta.
— Quase. Mas hoje disse.
Eles se olharam por mais alguns segundos. Dessa vez, sem peso, sem pressa.
Só dois adultos tentando se reconhecer no reflexo do tempo.
— Me acompanha até a saída? — ela perguntou, levantando-se do banco.
— Claro. — ele respondeu prontamente, levantando-se ao lado dela.
E assim, caminharam juntos pelo festival que os viu crescer, tropeçar, se perder… e agora, quem sabe, recomeçar.
Nem como antes.
Nem como sempre.
Mas como agora, no que o presente podia prometer.
Eles pararam a poucos passos do portão principal, onde os arcos de luz em forma de coração piscavam preguiçosamente.
— Você veio sozinha pro festival? E seus pais?
deu de ombros, sentindo as bochechas esquentarem. Ela praticamente havia abandonado as amigas.
— Não, eu vim com a e a . Minha mãe disse que viria com meu pai, mas acho que eles desistiram.
— E suas amigas ainda estão aqui? — perguntou, olhando ao redor.
— Acho que foram embora faz um tempo. Eu mandei uma mensagem, mas não responderam. Devem ter se perdido entre algum estande de cerveja artesanal e outro de boys coreografando em troca de corações — respondeu , com um sorriso contido.
riu baixinho.
— Esse lugar tem de tudo mesmo.
Ela ajeitou a alça da bolsa no ombro e inspirou o ar noturno, mais leve agora. O frio não parecia tão incômodo quanto antes.
— Obrigada por me acompanhar até aqui — disse ela, olhando para ele com suavidade. — E… por não fingir que a gente não se conhecia. Tem gente que faria isso.
— Eu nunca conseguiria fingir que não te conheço, .
O nome dela na voz dele pareceu ecoar mais fundo do que o esperado. Ela desviou o olhar por um segundo, depois voltou.
— A gente provavelmente vai se esbarrar por aqui mais vezes, já que estou morando de novo na cidade.
— Espero que sim — ele respondeu, e a honestidade nos olhos dele era impossível de ignorar. — Eu adoraria… continuar essa conversa. Com menos barulho, talvez.
Ela arqueou uma sobrancelha, com um toque de provocação leve.
— Café?
— Café. — ele confirmou. — Sem rodas-gigantes, prometo.
Por um instante, ficaram parados ali, como se o tempo esperasse pela decisão dos dois.
— Já que suas amigas não estão com você, posso te levar para casa. Tá escuro… — mordeu o lábio inferior, hesitante, como se temesse ter sido muito atrevido.
abriu a boca, um tanto quanto surpresa pela proposta. Fazia um bocado de tempo que um homem não se mostrava tão cavalheiro com ela, pagando as coisas, se oferecendo para levá-la em casa…
— Tudo bem, podemos ir. Apesar de Tongyeong não ser tão perigosa assim… Eu aceito sua oferta. — Ela sentiu o vento gelado bater contra o rosto outra vez e ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha.
As casas estavam silenciosas, as ruas mais ainda, quem não estava no festival, provavelmente já estava dormindo. A rotina da cidade era aquela, até os jovens costumavam dormir cedo, especialmente quando a cidade não tinha nenhum evento daquela magnitude.
— Essa rua aqui… — começou, com um sorriso discreto surgindo no canto dos lábios — …você lembra da vez que a gente tentou construir uma pista de corrida de tampinhas com o pessoal da rua de trás?
olhou para ele, surpresa, e soltou uma risada leve.
— Meu Deus, eu tinha esquecido disso! A gente usou fita adesiva e giz para marcar o trajeto, né?
— E seu irmão mais velho passou de bicicleta bem no meio da pista e destruiu tudo — completou ele, rindo também.
— Eu fiquei tão brava naquele dia. Acho que chorei de verdade.
— Você jogou uma tampinha nele. Com força. — balançou a cabeça, fingindo indignação. — Foi aí que eu pensei: “ok, essa menina é perigosa.”
riu mais alto dessa vez, deixando a cabeça pender um pouco para o lado.
— E mesmo assim, continuou vindo atrás de mim.
— Óbvio. Eu gosto de perigo. — ele respondeu, com uma piscadinha irônica.
Ela balançou a cabeça, mas o sorriso ficou ali, firme.
Por um instante, eles não eram dois adultos cheios de cicatrizes e ausências.
Eram só dois adolescentes de novo, andando pela mesma rua de sempre, rindo das mesmas lembranças.
O vento voltou a soprar com mais força dessa vez, balançando os galhos das árvores intensamente, derrubando ainda mais folhas e viu encolher os ombros de frio e cruzar os braços, numa tentativa de diminuir o impacto do vento em seu corpo pequeno e magro.
Ele delicadamente retirou a jaqueta que estava usando, e a pousou sobre os ombros dela, ajustando o suficiente para o tecido não cair.
sentiu o calor do tecido envolver seus ombros antes mesmo de processar o gesto. Parou de andar por um segundo, surpresa, e virou o rosto lentamente para ele.
ainda estava ali ao seu lado, os olhos atentos, as mãos deslizando com cuidado pela jaqueta para ajustá-la melhor.
Ela piscou, um pouco desconcertada.
— Você não precisava…
— Eu sei. — ele respondeu, com um tom calmo, quase gentil demais. — Mas eu quis.
Os olhos dela buscaram os dele por um instante, como se tentassem entender até que ponto aquele gesto era só cavalheirismo — e onde começava algo mais.
abaixou o olhar em seguida, mordendo de leve o lábio inferior, o vento ainda bagunçando uma mecha solta do cabelo.
— Faz tempo que ninguém cuida de mim assim… — ela murmurou, sem intenção de transformar aquilo em uma confissão, mas saiu.
não respondeu de imediato. Apenas a observou, respeitando aquele espaço frágil que se abria entre eles.
— Então é bom começar a se lembrar de como é — disse ele, por fim. Baixo. Simples. Mas com um calor discreto, que ficou pairando no ar como um abraço não dado.
apertou a jaqueta ao redor do corpo, como se o gesto tivesse um peso maior agora.
E continuou caminhando, dessa vez mais perto dele.
Só um pouco.
Mas o suficiente para que ele percebesse.
O vento continuava impiedoso, fazendo as folhas secas dançarem pela calçada. caminhava com os ombros encolhidos, segurando firme a jaqueta que ele havia colocado nela. a observava de canto de olho, e depois de alguns passos, tomou uma pequena liberdade:
— Vem cá… — disse, em voz baixa, e sem esperar muito mais, passou um dos braços com delicadeza pelos ombros dela, puxando-a suavemente para mais perto.
Ela parou por um segundo, surpresa. Mas não se afastou.
— É só pra proteger melhor do vento — ele justificou, com um sorriso quase tímido. — Juro solenemente que não tô tentando me aproveitar da situação.
arqueou uma sobrancelha, mas havia um riso contido nos lábios.
— Isso parece algo que um cara que está se aproveitando da situação diria.
— Talvez. Mas nesse caso, é só um nutricionista tentando evitar que uma paciente em potencial pegue um resfriado.
— Nutricionista? — ela virou um pouco o rosto, intrigada. — Desde quando?
— Me formei tem três anos. Tô trabalhando numa clínica particular em Busan. Mas desde que meu pai também adoeceu, ele tem pensado muito em abrir alguma coisa para mim aqui. Tem pensado em voltar, para “terminar a vida na cidade onde nasceu.”
Ela assentiu, absorvendo a informação, o corpo ainda ligeiramente colado ao dele. O gesto era sutil — mas cheio de camadas.
— Eu não imaginava você nessa área… quer dizer, você vivia comendo ramyeon no intervalo das aulas e tentando convencer todo mundo de que bala de morango era fruta.
— Mudanças, né? — ele deu de ombros, sorrindo. — Às vezes a vida cobra a gente de um jeito que nem dá pra ignorar.
— E vocês estão pensando em morar aqui de novo, então?
— Digamos que sim. Eu e minha mãe estamos cuidando do meu pai. Mas até já alugamos um apartamento perto do hospital central. Não é longe daqui.
assentiu de novo, e o silêncio entre eles voltou — mas agora era outro silêncio. Um mais aconchegado, como se o frio do vento tivesse feito os dois se recolherem para dentro de algo que ainda não sabiam nomear, mas que reconheciam pelo calor.
olhou para ela de lado, ainda com o braço em volta de seus ombros, e disse, sem pressa:
— Você fica bonita em silêncio, sabia?
Ela soltou uma risada baixa, balançando a cabeça.
— Não estraga tudo com essas frases prontas, .
— Não foi pronta. Foi sincera.
E ela sabia disso. Por isso não respondeu — apenas manteve o passo constante, sentindo o corpo se aquecer mais pela presença dele do que pela jaqueta.
A caminhada terminou mais rápido do que os dois gostariam. Quando viraram a última esquina, a casa já estava ali — parada no mesmo lugar de sempre, com a varanda estreita, o portão baixo e os vasos de cerâmica ainda alinhados na entrada, como se nada tivesse mudado.
Mas havia mudado. E também.
Pararam em frente ao portão. O vento ainda soprava, mas mais leve agora, como se até ele entendesse que havia algo no ar que não devia ser interrompido.
— Então… — ela começou olhando para a calçada, depois para ele. — Obrigada por me acompanhar. E pela jaqueta.
— Claro. Qualquer desculpa pra bancar o herói num festival romântico.
Ela riu com sinceridade, embora os olhos estivessem mais suaves, quase tristes.
— Você sempre teve essa mania de aparecer quando eu menos espero.
— E você sempre teve essa capacidade irritante de parecer forte até quando tá claramente cansada — ele respondeu, baixando um pouco a cabeça para encontrar os olhos dela.
O silêncio entre os dois se formou de novo, denso. Mas, dessa vez, havia algo pulsando ali. Não era apenas lembrança. Era presença.
ajeitou a alça da bolsa e respirou fundo.
— Você quer entrar pra tomar alguma coisa? — ela perguntou, de forma quase automática, mas sem muita convicção. — Tem chá, eu acho…
— Melhor não — ele disse, com a voz baixa, mas firme. — Acho que se eu entrar agora, vou querer conversar até o sol nascer. E a gente ainda não tá pronto pra isso… certo?
Ela hesitou. Mas então assentiu.
— Certo.
deu um passo para trás, mas parou. Os olhos dele buscaram os dela de novo, e o tempo pareceu parar, como havia parado lá no alto da roda-gigante. Dessa vez, no entanto, não havia cabine. Só os dois. No chão. No agora.
Ele ergueu a mão e, com delicadeza, afastou uma mecha de cabelo do rosto dela. Os dedos roçaram sua pele de leve, o suficiente para fazer o coração dela dar um passo em falso.
— Boa noite, .
Ela mordeu o lábio por um segundo, o olhar grudado no dele. Quase disse alguma coisa. Quase…
Mas apenas sussurrou:
— Boa noite, .
Ele sorriu.
E então se virou, caminhando devagar de volta pela rua por onde tinham vindo.
Ela ficou ali, parada, com a jaqueta dele sobre os ombros, sentindo o tecido ainda quente… e o coração, ainda mais.
Talvez fosse cedo demais para recomeçar.
Mas tarde demais para fingir que nada mais existia.
Os pais ergueram os olhos da TV para a filha e o pai sorriu, batendo levemente a mão no lugar vago ao seu lado no sofá, convidando a filha para se sentar ao seu lado.
sorriu, desfazendo a falsa marra e se sentou ao lado do pai, deitando a cabeça em seu ombro. Fechou os olhos quando sentiu uma das mãos do mais velho lhe encostar na perna, depositando alguns tapinhas leves por lá.
Ali, com a cabeça encostada no ombro do pai, ela deixou que o sentimento de medo que ela vinha tentando evitar, lhe escorresse brevemente pelos olhos. Medo de perder o pai. Por mais que ela soubesse que esse momento algum dia chegaria, seria inevitável, ela não estava preparada de verdade.
O pai e ela sempre foram muito grudados, como unha e carne, e quando ela se mudou para Seul para fazer faculdade e depois para Busan para trabalhar, ela sentira falta dele de forma inescrutável, como se lhe faltasse um órgão vital.
Ligava para ele todos os dias, ia visitar quando conseguia períodos de folga maiores da faculdade e posteriormente do trabalho, até que a doença veio: Silenciosa no início, discreta como um sussurro incômodo que ninguém quer escutar.
Primeiro, foi só cansaço. Depois, lapsos de memória, exames, consultas. Até que o diagnóstico chegou — e junto com ele, o medo tomou forma concreta, com nome, estágio e plano de tratamento.
se viu voltando para casa sem nem ter tempo de pensar duas vezes.
Deixou o emprego, os projetos, o conforto de uma vida que começava a se organizar.
Porque o pai estava ali — e ela não conseguia imaginar o mundo sem ele.
Sentia que devia tudo a ele. Cada passo que deu, cada queda que suportou. Era ele quem a ensinava a amarrar os tênis, quem a levava ao parque aos domingos, quem sempre dizia que ela era "pequena demais pro mundo, mas grande demais pra desistir". E agora, ali, com a cabeça encostada em seu ombro, sentia esse mesmo mundo tentando dobrá-la por dentro.
O pai não disse nada ao ver a lágrima discreta escorrer pelo rosto dela.
Talvez nem tenha percebido.
Ou talvez tenha escolhido fingir que não viu — como sempre fazia quando ela era criança e se machucava, mas dizia “tá tudo bem” com a voz embargada. Ao invés disso, continuou com os tapinhas leves na perna dela, em silêncio, como se dissesse: “Eu tô aqui. Ainda tô.”
A mãe observava da poltrona ao lado, os olhos marejados, mas firmes. Sabia que entre os dois não precisava de muito.
Eles se entendiam no silêncio — e sempre se entenderam.
respirou fundo, ainda com o rosto meio escondido no ombro do pai.
— Hoje foi um dia… estranho. — murmurou, quase para si mesma.
— Estranho bom ou estranho ruim? — ele perguntou, sem tirar os olhos da televisão.
Ela hesitou por um segundo.
Depois, respondeu com um sorriso discreto:
— Estranho bom.
Ele assentiu, satisfeito, como se aquela resposta fosse o suficiente para garantir que, por enquanto, tudo estava no lugar certo.
E, por um momento, estava mesmo. Mesmo que a vida estivesse por um fio tênue de tempo, naquele instante, entre a TV ligada, o sofá antigo e o calor do ombro do pai, se permitiu apenas… existir. Sem medo. Sem pressa.
Só ela.
E ele.
Enquanto ela retirava a maquiagem no grande espelho do banheiro, os pensamentos se voltaram involuntariamente para o reencontro inesperado com . Os planos dela para aquela noite haviam sido completamente revirados do avesso, graças a presença dele. Pela voz. Pelos olhos que pareciam não ter esquecido nada, mesmo que o tempo tivesse passado por cima de tudo.
Ela passou o algodão com mais força do que deveria na região dos olhos, tentando apagar não só o delineado, mas também a lembrança de como se sentiu quando ele ajeitou a jaqueta sobre seus ombros. Quando a olhou com aquele cuidado silencioso, tão raro. Tão perigoso.
— Droga… — murmurou para si, com um sorriso cansado.
tinha esse poder irritante de chegar devagar, mas mexer com tudo. De novo. Ela não sabia o que aquilo significava. Nem se significava algo. Mas ali, diante do espelho, com o rosto limpo e a alma agitada, sabia de uma coisa: por mais que ela tivesse seguido em frente… uma parte dela, hoje, voltou a olhar para trás.
Ele passou uma das mãos pela nuca, e soltou o sorriso torto que já conhecia há tanto tempo.
— Oi. — Ele respirou fundo, como se estivesse juntando toda a coragem do mundo no peito e soltando logo em seguida. — Vim te chamar para almoçar comigo… ou estou me precipitando demais? Sendo invasivo demais?
o observou por um instante, avaliando o convite com uma expressão indecifrável. O sol da tarde refletia em seus cabelos, e o blazer que usava ainda trazia o perfume discreto da papelaria da empresa — a rotina, os compromissos, a vida que ela tentava manter no eixo.
Mas ali estava ele. . Com aquele sorriso torto e o nervosismo mal disfarçado nos ombros tensos.
Ela cruzou os braços, inclinando levemente a cabeça para o lado.
— Bom… isso depende.
— Depende de quê? — ele perguntou, já preparando uma possível retirada estratégica, caso a resposta não fosse boa.
— De onde você pretende me levar. Porque se for pra comer ramyeon barato numa conveniência, vou considerar ofensivo.
Ele riu, relaxando visivelmente.
— Eu evoluí, tá? Escolhi um restaurante de verdade. Mesa, cardápio, até talheres.
— Uau. — fingiu espanto. — Uma proposta quase romântica. Isso é um almoço ou uma entrevista de reconciliação?
fingiu pensar por um segundo, antes de responder:
— Pode ser só um almoço. Mas... se você quiser, pode virar uma entrevista. Com perguntas difíceis e tudo.
Ela finalmente sorriu de verdade, aquele tipo de sorriso que ele lembrava — o que vinha devagar, mas preenchia tudo.
— Então vamos. Mas já adianto que eu cobro caro por tempo de conversa.
— Ainda assim, acho que vale cada segundo.
Ele abriu a porta do carro para ela com um gesto leve, e , após uma breve hesitação, entrou.
Não havia promessas ali.
Apenas um convite simples — para sentar frente a frente, dividir uma refeição e ver no que aquilo tudo poderia dar.
E naquele momento, era o suficiente.
Agora, o cenário era outro — mas ainda havia traços do passado, discretos, guardados com carinho.
As cortinas haviam dado lugar a grandes janelas de vidro fosco, que deixavam a luz entrar de forma suave, quase poética. A fachada fora repintada em tons de terracota e marfim, com um letreiro de madeira talhado à mão exibindo: Cho & Filhos – Cozinha Coreana Contemporânea.
Por dentro, o ambiente era acolhedor e sofisticado na medida certa. As paredes em tom areia eram decoradas com quadros minimalistas que retratavam ingredientes típicos em pinceladas suaves — kimchi, cebolinha, pimenta-do-reino. As mesas eram de madeira escura, polidas com cuidado, e os bancos baixos tinham almofadas em tecido cru, bordadas à mão com pequenos padrões geométricos.
No fundo do salão, uma estante de livros e temperos dividia espaço com fotos antigas da cidade — entre elas, uma da senhora Cho ainda jovem, sorrindo de avental ao lado do fogão.
O aroma no ar era reconfortante: um misto de caldo bem temperado, arroz recém-cozido e algo levemente adocicado que lembrava chá de canela.
observou tudo com um meio sorriso nos lábios, discreto, quase íntimo.
havia escolhido um lugar que cresceu com eles, mas também havia mudado — assim como eles. E, de algum jeito, isso parecia… certo.
Ela se virou para ele, enquanto caminhavam até a mesa que o garçom indicava no canto da janela.
— Você pensou bem.
— Achei que seria simbólico — respondeu ele, puxando a cadeira para ela com um gesto tranquilo. — O lugar mudou. A gente também. Mas ainda é bom estar aqui.
assentiu devagar, encarando a mesa posta com simplicidade e charme.
Por dentro, algo nela parecia começar a se ajeitar.
Como se o passado, finalmente, estivesse se sentando à mesa sem precisar mais pesar tanto.
— Uau, o cardápio agora tem alguns pratos bem sofisticados! — piscou os olhos, surpresa. — Eu sabia que Seojin havia sido se tornado chef, mas caramba, não é?
levou uma das mãos até os lábios para gargalhar e logo o acompanhou, gargalhando junto.
— Acho que vou ficar com alguma coisa clássica, conhecida, segura… sabe? — levou os olhos até ela.
— Tem razão, também não vou arriscar. — ela respondeu, ainda sorrindo. — Hoje não é um dia para aventuras gastronômicas. Melhor escolher algo que abrace por dentro.
Depois de fazerem seus pedidos, digitou uma mensagem para mãe dizendo que não almoçaria em casa e sim com um amigo. Quando digitou a palavra “amigo”, ela levantou os olhos para ele, que a olhava de volta, um tanto quanto intensamente.
“Amigo.”
umedeceu os lábios e voltou os olhos de volta para o celular, enviando a mensagem.
sabia que havia muito mais ali, naquele olhar…na escolha do restaurante.
No silêncio tranquilo entre os dois.
Era como se as palavras ainda não tivessem sido ditas — mas o corpo já estivesse dizendo tudo.
— Isso parece ótimo — disse , ajeitando os hashis entre os dedos.
— Acho que ganhamos na escolha. — sorriu, já partindo um pedaço do jeon que tinha pedido. — Aposto que Seojin fica de olho na cozinha igual general em campo de batalha.
riu.
— Ele sempre foi assim, mesmo quando a gente fazia trabalhos de escola. Mandava a gente refazer até a dobra da folha se não estivesse alinhada com “a proposta estética”.
— Lembro disso! — fingiu estremecer. — Ele uma vez me obrigou a pintar um cartaz três vezes porque o amarelo estava “muito deprimido”.
levou a mão à boca para conter a gargalhada.
— Sério, eu precisava disso. — disse, depois de se recompor. — Só rir. Só comer. Só existir sem mil coisas passando na cabeça.
a observou por um momento, mais sério agora.
— Está difícil, né?
Ela assentiu lentamente, desviando os olhos para o prato.
— Cuidar do meu pai, reorganizar tudo, estar de volta aqui… às vezes parece que a vida pausou e me puxou pra um lugar onde todo mundo esperava que eu soubesse exatamente o que fazer. Mas eu só… tô tentando.
— Você não precisa ter todas as respostas agora — ele disse, com a voz baixa. — Só precisa continuar tentando. Isso já é muito mais do que parece.
ergueu os olhos devagar e encontrou os dele.
Ali estava o que ela lembrava…
Mas também um homem que sabia ouvir de verdade.
Um homem que não oferecia soluções prontas, só presença.
E isso bastava.
— E você? — ela perguntou, pegando um pedaço de carne com os hashis. — Como tá lidando com tudo?
Ele apoiou os cotovelos na mesa, cruzando os dedos diante do prato.
— Tem dias que eu sinto que voltei no tempo. Que ainda sou o garoto que nunca soube como me despedir direito. Mas agora tô aprendendo. Aprendendo a ficar onde dói, sem sair correndo.
o encarou por alguns segundos. Sentiu o nó na garganta.
Mas sorriu.
— Estamos dois bagunçados funcionais então.
— Dois bagunçados que sabem escolher bons restaurantes.
— E que dividem a última peça de panqueca — ela completou, já estendendo a tigela na direção dele.
aceitou, mas não antes de encostar de leve os dedos nos dela ao pegar a travessa. O toque foi breve. Mas certeiro.
Ambos sentiram. E, por algum motivo, não pareceram dispostos a se desculpar por isso.
O almoço havia sido leve, divertido, até simples…
Mas deixou um peso gostoso no peito. Do tipo que permanece mesmo depois que a última palavra foi dita.
Ela releu mentalmente algumas falas, alguns olhares. O jeito como ele a ouviu, com atenção sincera. O toque breve dos dedos. O sorriso de canto quando ela falou sobre eles serem uma “bagunçada funcional”.
Suspirou.
Ao entrar na empresa, voltou automaticamente ao modo prático. Trocou a expressão suave por uma mais sóbria, cumprimentou dois funcionários com um aceno de cabeça e ajeitou os cabelos antes de passar pela recepção.
Mas, mesmo enquanto respondia a e-mails ou lia relatórios no computador, uma parte dela ainda estava sentada naquela mesa do restaurante.
Com ele.
O gosto do almoço ainda estava na boca. Mas era o sorriso da que continuava ali, presente, como uma imagem persistente.
Ele se pegou sorrindo sozinho quando lembrou da forma como ela riu alto ao relembrar os tempos de escola. E do silêncio repentino que veio depois, quando ela falou sobre o pai. Um silêncio que não pedia respostas — só presença.
E ele tinha ficado.
Dessa vez, ele tinha ficado.
Estacionou em frente ao prédio e desligou o carro. Ficou ali por um tempo, com as mãos no volante, o motor já silencioso.
— Ainda é ela. — murmurou para si mesmo, sem surpresa, mas com um certo espanto calmo.
Não sabia o que viria a seguir.
Mas sabia que não queria desaparecer de novo. E talvez, só talvez… tivesse chegado a hora de descobrir quem ela se tornou. E quem ele ainda poderia ser com ela.
não tinha planejado sair de casa novamente. Mas o dia havia sido longo demais — e leve demais, também. Um leve que pesava diferente. O reencontro, o almoço, o jeito como ele a olhou. Tudo aquilo continuava latejando dentro dela de forma contida, mas constante.
Ela precisava respirar.
Precisava andar.
Então calçou um par de tênis, prendeu os cabelos em um coque simples e saiu, com o moletom mais largo que encontrou.
Caminhou até a praia, onde a calçada de pedras margeava a areia escura e quase não havia gente por perto — só o som das ondas quebrando suaves e a brisa noturna acariciando os braços.
Foi quando o viu.
corria devagar pela calçada, fones no ouvido e a camiseta grudando ao corpo pelo suor discreto. Estava de cabeça baixa, concentrado, até que a presença dela o fez parar.
— ? — ele disse, ofegante, puxando os fones com um sorriso desacreditado. — Você por aqui?
— E eu achando que estava fugindo de tudo. — ela respondeu, sorrindo com surpresa. — Você corre à noite agora?
— Quando não consigo dormir direito… gosto de correr. E aqui em Tongyeong o barulho do mar ajuda a organizar as ideias.
— E suas ideias andam desorganizadas?
— Desde ontem. — ele disse sem hesitar.
Ela desviou o olhar, mordendo o canto dos lábios. O vento soprou forte, e eles começaram a caminhar juntos, lado a lado, os passos lentos e sincronizados.
— Você sempre corria quando tava nervoso — ela comentou. — Até nos trabalhos em grupo da escola, lembra?
— E você sempre ficava parada, dizendo que pensar demais também era uma forma de agir.
— Era a minha desculpa pra não correr.
Os dois riram juntos, e por alguns minutos, não disseram mais nada. Só andaram. E o silêncio entre eles era diferente. Não desconfortável. Mas denso. Como se algo estivesse amadurecendo ali, entre uma brisa e outra.
Pararam próximos a um deck de madeira, onde os bancos de pedra davam vista direta para o mar. As ondas quebravam com leveza, iluminadas pela luz dos postes e da lua.
se apoiou no corrimão, olhando para o horizonte.
— É estranho voltar a sentir algo que você achava que tinha deixado pra trás.
— Você acha que deixou?
Ela virou o rosto devagar, encontrando os olhos dele.
— Acho que enterrei. Mas a gente nunca enterra direito, né?
se aproximou um passo. Depois outro. Parou bem diante dela. Os olhos agora sérios, intensos, o peito subindo e descendo devagar…
— Eu tentei seguir. Mas toda vez que fecho os olhos, ainda lembro daquele beijo…
— Faz dez anos — ela murmurou.
— E ainda assim… parece agora.
Ele levantou a mão e, com a ponta dos dedos, afastou uma mecha solta do cabelo dela. O toque foi sutil, reverente. não se moveu. Nem para frente, nem para trás.
Só ficou ali.
Esperando.
Permitindo.
Querendo.
E então, sem aviso, ele se aproximou.
Devagar.
Com a testa quase roçando a dela.
Os lábios ainda a milímetros.
— Se eu te beijar agora… você vai fugir de mim?
sorriu, quase sem ar.
— Acho que já fugi demais.
E foi ela quem se inclinou primeiro, tocando os lábios aos dele com a suavidade de quem sabia exatamente o que estava fazendo — mas não queria assustar o sentimento.
O beijo veio lento. Profundo. Real. Com gosto de lembrança e de promessa.
Com os olhos fechados de quem finalmente entendeu que o tempo, quando quer, também devolve.
Eles ficaram ali, colados, por segundos que não existiam no relógio.
O tempo não corria — apenas pulsava entre eles.
O beijo começou suave, quase tímido, como se ambos estivessem com medo de romper algo frágil demais. Mas bastou o toque dos lábios para que o mundo ao redor perdesse importância. Não havia mais o som das ondas, nem a brisa noturna. Havia só eles.
Os lábios de se moldaram aos dela com uma precisão assustadora, como se o tempo tivesse ensaiado aquele momento em segredo. O beijo não pedia pressa — pedia presença. Ele sentia o gosto discreto de chá de gengibre e alguma lembrança adormecida. Ela sentia o calor morno da respiração dele, o ritmo calmo e, ao mesmo tempo, urgente de um desejo que não gritava, mas queimava.
levou as mãos até o peito de , tateando a camiseta úmida do exercício. Seus dedos se fecharam no tecido com delicadeza, como se quisessem segurar aquele instante no espaço.
, por sua vez, pousou uma das mãos na lateral do rosto dela, o polegar roçando de leve a pele da bochecha, enquanto a outra mão desceu pelas costas, puxando-a sutilmente para mais perto.
Ela se encaixou.
Sem esforço. Sem hesitação.
O beijo se aprofundou então — mais firme, mais entregue.
As respirações começaram a falhar entre um toque e outro, e foi ali, naquele instante em que os corpos se colaram de verdade, que ambos entenderam o que tinham evitado por tanto tempo, mesmo sem querer.
Não era exatamente sobre a saudade. Era sobre reencontro.
Não de quem eram — mas de quem se tornaram.
E ainda assim, de quem nunca deixaram de ser um para o outro.
Quando se afastaram, foi devagar. Como se o corpo quisesse continuar, mas a alma dissesse: ainda não é o fim — é só o começo.
manteve os olhos fechados por um segundo a mais. Os lábios entreabertos, o coração disparado. encostou a testa na dela, ainda tão perto que a respiração de um esbarrava na pele do outro.
— Eu esperei tanto tempo por isso — ele murmurou baixo, rouco.
abriu os olhos devagar, os dedos ainda presos à camiseta dele.
— E eu… nem sabia que ainda queria — respondeu ela. — Mas agora…
— Agora? — ele perguntou, num sussurro.
Ela sorriu.
— Agora eu não quero esquecer.
A brisa fria continuava vindo do mar, mas agora nem sentia tanto. O calor que ainda vibrava na pele, o gosto dele nos lábios, a memória recente dos dedos firmes em sua cintura… tudo isso parecia ter criado um casulo em torno dos dois.
— Engraçado como a gente muda — disse, por fim, com a voz baixa, mas clara. — E mesmo assim… certas coisas continuam dentro da gente, esperando o tempo certo para acordar.
olhou para ele de lado, pensativa.
— Acho que eu precisei passar por muita coisa pra entender que nem tudo que fica pra trás precisa ser enterrado. Algumas coisas… só estavam esperando a gente voltar mais inteiros.
Ele assentiu, os olhos ainda fixos à frente.
— Eu não quero mais fugir, . Nem correr.
— Eu não quero mais me proteger tanto. — ela respondeu, com sinceridade. — Tô cansada de levantar muros pra tudo.
parou de andar. também.
Ali, no meio da calçada de pedra, iluminados apenas pela luz suave dos postes e pelas sombras dançantes das folhas das árvores, eles se encararam.
— A gente pode fazer isso com calma — ele disse. — Sem pressa, sem obrigação de acertar tudo de uma vez.
— Eu quero descobrir quem você é agora. E quero que você me veja como eu sou hoje — respondeu ela, com um brilho discreto nos olhos.
— Eu tô vendo. — ele sorriu. — E quanto mais vejo… mais quero ficar.
Ela sorriu de volta, pequena, mas verdadeira.
— Me acompanha até em casa?
— Até onde você quiser.
Eles voltaram a caminhar.
Sem entrelaçar as mãos — ainda não.
Mas lado a lado, no ritmo certo.
Dessa vez, juntos. E no tempo certo.
Ela ajeitava a toalha de piquenique no gramado da colina que dava vista para o mar, onde algumas crianças corriam entre os pinheiros baixos e casais andavam de bicicleta pela ciclovia.
— Você trouxe o chá? — ela perguntou, sem olhar, já sabendo a resposta.
— Trouxe. E trouxe também aquele bolinho que sua mãe disse que você gostava quando era pequena.
apareceu atrás dela, segurando uma sacola de papel kraft e duas garrafinhas térmicas.
Sentou-se ao lado dela com a naturalidade de quem já fazia parte da rotina — não como alguém que invadiu o presente, mas como alguém que se encaixou nele, peça por peça.
olhou para ele e sorriu. Um sorriso sem defesas. Sem dúvidas.
— Minha mãe te entregou uma receita antiga assim, de graça?
— Precisei lavar a louça da casa de vocês três vezes essa semana. Acho que ganhei a confiança.
Ela riu e se encostou no ombro dele, deixando que o silêncio preenchesse o espaço entre os dois com conforto.
Ao longe, a roda-gigante girava lentamente — reformada, como eles. Mas ainda no mesmo lugar de antes.
— Você acha que a gente vai dar certo? — ela perguntou, quase num sussurro.
não respondeu de imediato. Apenas olhou o mar por um instante antes de virar o rosto para ela.
— A gente já tá dando.
E era verdade.
Não havia grandes declarações, nem promessas impossíveis. Só um carinho que crescia dia após dia, no passo deles, na medida deles. E, pela primeira vez em muito tempo, não sentia medo.
Sentia paz.