Revisada por: Saturno 🪐
Última Atualização: 07/04/2025Nem todas as estrelas são visíveis. As flores murcham na primavera e renascem no verão, mas o lago permanece profundo e gelado durante todo o ano.
Os nativos de Swan Lake são depravados e excêntricos, cometendo crimes horrendos ou se perdendo em teorias conspiratórias. Este é o reino dos assassinos em série, um lugar que já foi verdadeiramente depressivo.
No entanto, eu estava enganado naquela época. Meus olhos foram cativados por aquele maldito rapaz! Minha adolescência, sutil e tola, foi profundamente obscurecida.
Eu o encarei pela janela do meu quarto, ainda morando na casa de minha mãe, ainda tão puro e inocente — era como se eu fosse sua distração.
A beleza diabólica instalou-se em suas íris azuladas, me mantendo perdido nas linhas do seu sorriso. Lembro que Henry não havia revelado de imediato o intenso e vigoroso inferno da ultraviolência; entretanto, sua segurança e proteção acabaram fazendo-me crer em uma armadilha endiabrada, como se as graciosas asas de Lúcifer bloqueassem meu caminho para o paraíso divino.
Amava-o quase como um marido ama sua esposa, embora estivéssemos longe de ser um casal romântico.
A mente monstruosa de Henry Albarn controlava meu maldito subconsciente, especialmente nas noites em que seus gritos ecoavam no quarto, após ter pesadelos.
Ele alucinava comigo sobre eventos doentios e terríveis, me ensinando a pertencer somente a ele. No nosso primeiro encontro, percebi o quanto meu coração não cabia no peito.
Meu irmão me alertou, mas recusei dar ouvidos. Já estava imerso no breu das sombras, inserido em um caos de trevas.
Para mim, Henry era a reencarnação de Hades, enviado à Terra para perverter e roubar Eros de Afrodite.
Seu abraço era como o submundo. Ele tinha o dom de sussurrar suavemente no ouvido até que, finalmente, você se acalmasse em seus longos braços. Ele trazia aquele desejo proibido de me entregar diretamente à morte.
Lembro-me de suas roupas sombrias e de sua personalidade mórbida. Elas me envolveram! Peço perdão, mas me ajoelhei diante do próprio diabo.
Esta é a história em que minha vida se desfez. Não é apenas sobre mim, mas também sobre todas as pessoas ao meu redor, todas vítimas da maldição. Foi escrita para minha mãe, meu irmão e vizinhos. É tudo sobre Henry Albarn e a cidade amaldiçoada.
Assim como todas as vidas que se foram, eu também fui obrigado a me esconder, optando pelo meu sacrifício. Mas, felizmente, consegui encontrar a saída.
Os relacionamentos familiares se esgotaram, e, durante dias de visitas constantes a psiquiatras e médicos especializados, nunca lhe foi dado um diagnóstico certo. Suspeitando claramente que seu problema era insano, o garoto seria conhecido por eles novamente como mais um monstro sádico e irado, prosperando em um caos inimaginável na cidade de Swan Lake — a cidade onde toda a fantasia de Tchaikovsky não tinha um final feliz, mas, sim, um final sangrento, repleto de danças de horror e gritos.
Contudo, seres humanos tendem a saber, na fase inicial da vida, enquanto crianças forçadas a descobrir o mundo, que devem crescer de acordo com a idade adequada. Mas e quanto ao pequeno Albarn? Ele, que perdera a mãe — Lynda Robert Albarn — assassinada misteriosamente após um acidente na estrada enquanto viajava a trabalho. Os traumas seriam forçados ou facilmente superados por uma mente inocente ainda em desenvolvimento? Independentemente do ocorrido, ninguém foi capaz de salvá-lo, pois aquele lindo rostinho e coração puro se invalidaram conforme a vida corria com o tempo.
Apagando memórias de infância, agora predestinado a ser um jovem homem, a alma de Henry carregava um ódio imenso no peito. Ele achava enigmático se desvencilhar desse sentimento, especialmente agora, aos dezoito anos, quando escolheu conviver em um lugar desconhecido, onde dificilmente teriam de lidar com ele em uma nova família, em outro lar. Albarn estava mentalmente despreparado; suas tias deveriam ter dado explicações melhores sobre a expulsão do sobrinho. Todavia, escrever uma carta legível para a moradora de seu novo recinto foi o suficiente, apesar dos maus comportamentos que o pálido garoto se recusava a reconhecer.
Vamos esclarecer uma coisa: aquela passagem era a abertura de um novo futuro.
Ademais, seu passado conturbado sempre o enlouquecia, já que Edward Albarn nunca desempenhou o papel de um bom pai. Sua esposa, Carmen, além de rígida, sabia manipulá-lo com maestria, o seduzindo. Henry frequentemente se irritava ao vê-la mentir, percebendo que a mulher estava casada com Edward apenas por interesse em sua riqueza, além de roubar sua confiança. A madrasta achava que o marido era ingênuo demais.
Graças à ignorância do homem, o filho mais velho começou a colecionar rancor, mesclado à solidão, infelizmente sofrendo bullying e exclusão social durante o colégio, ainda no ensino fundamental.
O jovem Albarn mantinha distância das pessoas, sendo considerado pelos outros desde cedo como “anormal”, embora fingisse tomar seus medicamentos, apenas para depois cuspir no lixo.
Enquanto a relação entre a madrasta e o afilhado era frequentemente tensa, marcada por broncas e até agressões físicas por parte do pai, que a acusava de inventar "mentiras", os filhos dela eram os preferidos. Isso o machucava profundamente.
Henry prejudicou demais os acontecimentos pela imensidão de lares caóticos. Ele evitava voltar para a casa do pai e jamais temeria suas tias novamente.
O garoto transtornado estava acostumado a observar seu negligente patriarca trazer prostitutas para casa todas as noites — antes de se casar com Carmen. Isso mudou sua perspectiva, o fazendo hesitar em colocar os pés no colchão velho da cama de madeira, sentindo um embrulho repulsivo no fundo do estômago ao espiar pelo buraco da parede branca manchada, onde via o progenitor transar agressivamente com as vadias que pagava: gemidos, puxões de cabelo, tapas. Ele era apenas uma criança. Que porra de pai doente! Quem diria ao menino que mulheres não eram apenas vadias?
Um sentimento de repugnância e nojo o invadiu. O jovem Albarn não queria uma nova mãe naquela época, nem queria imaginar a traição. Ele só desejava que Lynda retornasse depois de sua viagem de carro, mas ela nunca voltou. Como uma mãe poderia simplesmente desaparecer assim e morrer? Algo estava errado; Edward havia prometido cuidar dele, mas, ao longo dos anos, sua mãe nunca mais voltou.
Foi nesse período que o adolescente ficou ainda mais perturbado, e uma entidade maligna pareceu tomar controle de sua mente. Seus pesadelos tumultuados se fundiram com sua própria identidade; de repente, ele não era mais o garotinho assustado de antes. Henry, por um instante, carregava uma profunda mágoa.
Após o homem casar-se com Carmen — uma mulher com um vislumbre e aparência californiana, belos cabelos castanhos escuros, olhos verdes esmeralda e seios fartos, em torno dos trinta e cinco anos —, ele se tornou cúmplice das agressões, lançando palavras ofensivas e apagando qualquer vestígio de bondade. Edward mantinha o mistério sobre a ex-mulher, alegando ao filho que ela estava morta e enterrada, nada mais.
Lágrimas e gritos escaparam de Henry, sua cabeça balançando de um lado para o outro. Ao fundo, as risadas macabras da madrasta ecoavam. "Parabéns, Carmen, você fodeu com a minha vida!", ele murmurou, se trancando para sempre em seu quarto. “Se eu tivesse a chance, queimaria esse hospício com você e seus filhinhos de merda dentro!”, suspirou, deitado em sua cama, cerrando os punhos nos travesseiros, enquanto pensamentos maldosos martelavam em sua mente.
Devido aos problemas em seu lar anterior e a um comportamento errático, Henry mudou-se para Swan Lake City, uma pequena cidade na fronteira com Michigan. Seu principal objetivo era se reabilitar e encontrar orientação. Suas tias eram devotas ao catolicismo, embora não se entregassem totalmente a um relacionamento amoroso entre ambas.
As mulheres tentaram compartilhar suas crenças com o sobrinho, mas não tiveram sucesso, já que Swan Lake estava longe de ser uma cidade confiável ou religiosa.
As tias tinham esperanças na capacidade de mudança de Henry e notaram o quão diferente ele havia se tornado. Com sorrisos animados, sentiam orgulho de suas próprias lições; Henry parecia ter transformado drasticamente sua atitude hostil, embora não soubessem que tudo não passava de um fingimento.
Nesse período, o pálido respirou fundo, criando uma distração em pleno final de verão, em meados de agosto, a fim de evitar a rotina vazia e não ser pego desobedecendo suas tias. Henry averiguou cada canto da atmosfera gélida da cidade. Mesmo sob o brilho do sol, um clima frio e melancólico pairava no ar. Em dias monótonos, o garoto frequentava bares, se revelando alcoólatra e fumante nas horas vagas, agravando ainda mais sua mente devido à abstinência compulsiva de lítio.
Retornando finalmente ao presente, Henry relia a carta escrita por sua tia Gisele, que informava sobre seu novo lar. O motivo de ter sido retirado da casa anterior ainda era algo que demorava a recordar. Talvez o jovem estivesse ficando um pouco mais insano; quem poderia dizer? A única coisa que permanecia em suas memórias recentes eram suas mãos sujas de sangue e um cadáver frio em seu colo, o corpo plenamente morto em seu jardim. Henry só queria entender por que nunca o descobriram... Ele o matou? Acreditava que não.
Marchando com seus coturnos pela calçada cinza, Henry atravessou a rua e encontrou um táxi parado na calçada, finalmente chegando ao seu destino. Após pagar o taxista, se sentiu aliviado, segurando uma mala a tiracolo na mão direita, enfrentando a chuva que caía sobre sua boina xadrez e o vento congelante que levantava seu escuro casaco de camurça. Parou diante de um casarão de estilo gótico, com um imenso portão. Metade da residência estava coberta por neblina, e ele mal conseguia ver os arbustos, que pareciam saídos de um livro vitoriano.
Henry não teve escolha senão considerar morar com sua outra família, caso quisesse evitar isso. Assim, se mostrou curioso ao notar uma governanta idosa no meio do jardim, observando-o de longe.
Batendo palmas junto ao portão, Henry chamou a governanta, perguntando se a dona da casa estava presente. Ela caminhou até a entrada da residência e notou o jovem pálido, de cabelos pretos-azulados, vestindo trajes diferentes do habitual — uma camisa branca coberta por um colete de lã preto-acinzentado, calças justas, coturnos militares, casaco e boina xadrez. As mãos enluvadas seguravam um dos ferros. Ela nunca havia visto um adolescente tão elegante e excêntrico ao mesmo tempo. No entanto, seu olhar cabisbaixo já indicava a descrição que as conhecidas de sua patroa haviam compartilhado.
Ao perceber o olhar de desaprovação direcionado a ele, Albarn deu um passo à frente, esperando que ela o apresentasse ao seu novo lar.
— Presumo que seja o senhor Albarn — disse a idosa, cruzando os braços automaticamente. O jovem à sua frente respondeu com um aceno. — Vejo que andou perdido pelas ruas — comentou. — Entre, meu querido, senão vai acabar ficando doente.
— Muito obrigado por me acolher aqui. — Ambos deram um aperto de mão, finalmente abrindo passagem para o garoto. — Onde está a senhora Grant?
— Melissa está a caminho — disse a mulher de terceira idade, erguendo o cenho. — Chamo-me June, sou a governanta!
— Prazer em conhecê-la, June. — Henry anuiu, sorrindo de forma ladina e completamente cortês.
A aura emanava uma sensação tranquila, amplificada pela cor neutra da casa. A calma se traduzia nas gotas de orvalho que caíam sobre a roseira branca. O murmúrio suave da água escorrendo pela cascata de mármore proporcionava uma magnífica terapia, enquanto a escultura de Vênus de Milo evocava equilíbrio e bem-estar de forma intencional.
A família Grant sabia como cuidar de seu jardim, um espaço que parecia ter saído de um conto de fadas. Um balanço de madeira pendia alto de uma árvore, enquanto os lírios, em sua hesitação, demoravam a abrir. Contudo, a atenção de Henry foi capturada por uma voz doce e rouca entoando uma canção. Erguendo a cabeça em direção ao som do timbre rouco, ele vislumbrou uma descoberta intrigante na janela.
Seus olhos oceânicos quase saltaram das órbitas. Explorar outros recintos da casa já havia sido uma surpresa genuína, mas sua curiosidade despertou ao deparar-se com um jovem de pele branca e cabelos dourados, sentado no parapeito da janela, fixo em seu aspecto. As íris verdes do rapaz invadiram os tons azuis de Henry de uma maneira hipnotizante.
Então, esse era o dono da voz melancólica? O encontro entre eles era curioso, como se a mesma serpente que o diabo usou para manipular Eva estivesse enrolando o pescoço do pálido de cabelos negros, implorando para que mordesse o fruto proibido oferecido por aquela figura dourada. Entretanto, um coral celestial de anjos parecia impedir o pedido de Satanás, atraindo Henry irresistivelmente.
O loiro fitou-o e cessou sua melodia. A troca de olhares trouxe euforia, excitação e um desejo incontrolável. O corpo ansiava por avançar, mas ele permaneceu imóvel, incapaz de se mover.
Henry deduziu que aquele devia ser um dos filhos de Melissa Grant. As suspeitas foram confirmadas, e ele se perdeu em suas próprias fantasias... O dono da voz angelical parecia ser o alvo perfeito. Apenas um arqueamento de sobrancelhas, seguido de uma risada irônica, confirmou um flerte estranho com o rapaz.
Repentinamente, uma mão delicada tocou o ombro direito de Albarn e o sacudiu levemente, o trazendo de volta à realidade e o fazendo esquecer os pensamentos impuros que o consumiam.
— Este é nosso jardim. Muito bonito, não acha? — June fez o pálido concordar com a cabeça. Então, se voltou rapidamente para a janela; o outro adolescente, aparentemente misterioso, havia saído.
— Oh, sim! É formidável — O garoto pensava, por dentro, por que eram tão austeros e pacientes com seus hóspedes? Devia haver um motivo convincente para suas tias o entregarem àquelas pessoas. — Há quanto tempo trabalha aqui?
— Já se completaram dez anos.
Henry se conduziu para entrar na sala, mas deu um passo para trás, quase colidindo com dois rapazes que aparentavam ser irmãos gêmeos. Para sua surpresa, reconheceu o loiro da janela, que agora usava uma camiseta de banda desleixada. Suas calças rasgadas no joelho e os tênis conferiam-lhe um ar rebelde. Um brinco brilhava em sua orelha direita, e seu rosto agora era mais perceptível pessoalmente. O outro gêmeo ao seu lado exibia um estilo idêntico, usando uma touca. Quando abriu a boca para falar, revelou um aparelho nos dentes tortos. Inacreditável, eles realmente eram gêmeos.
Os irmãos demonstraram uma certa desaprovação ao confirmar que a notícia de que a matriarca havia acolhido mais um hóspede era verdadeira. A privacidade deles seria comprometida novamente. O loiro lançou um olhar temeroso para trás, evitando encontrar o olhar do pálido. Entretanto, a governanta June chamou pelo nome "Billy" para dar as boas-vindas.
— Não seja mal-educado, Billy! — repreendeu o segundo rapaz, a voz carregada de uma autoridade que parecia ecoar nas paredes do ambiente. — Cumprimente o senhor Albarn.
— Como vai? — O garoto estendeu a mão em saudação. Sua pele estava gelada, apesar das luvas de couro que cobriam suas mãos. — Somos os filhos de Melissa. Meu nome é Billy, e este é o Brian. — Ele indicou o loiro, com uma insegurança que transparecia em seu olhar.
— Prazer em conhecê-los. — O tom seco de Henry causou um arrepio no outro gêmeo à esquerda. — Oh, Brian... Que belo nome!
— Obrigado. — Brian esboçou um leve sorriso, o embaraço tingindo suas bochechas. — Senhora Hopkins, então... Este é o rapaz que nossa mãe permitiu ficar aqui?
— Exatamente.
— Frequentamos o mesmo colégio — afirmou Henry, a voz firme, como se estivesse lançando um desafio. — Na carta que recebi, dizia claramente que eu estudaria com vocês na academia Chesterfield.
Foi nesse momento que Brian se mostrou mais intrigado:
— Curioso. Nunca nos vimos antes. — Grant expressou surpresa, como se uma peça do quebra-cabeça estivesse faltando. — Enfim, vou te mostrar mais do nosso espaço. Dividirei meu quarto com você.
— Você tem certeza disso? — o outro Grant cochichou no ouvido do irmão, a desconfiança evidente em seu tom. — Ele não me parece alguém com quem você dividiria tão facilmente o seu quarto.
O loiro deu uma cotovelada nas costas do irmão, que teve um espasmo pelo susto, como se uma sombra tivesse passado por ele.
— Agradeço pela sua hospitalidade.
— Certo, então vamos entrar.
Henry concluiu a observação dos arredores, seguindo o trio até a sala de estar. O ambiente tinha um toque rústico, como se cada objeto ali fossem raridades. Ao atravessar a entrada, percebeu que estava pronto para se acomodar na casa — afinal, era o esperado. Mas uma sensação inquietante o acompanhava.
Diante de uma pequena vitrola, que emitia um som suave e ansioso, uma seleção de discos famosos estava à disposição — clássicos do jazz e R&B, conservados em vinis e organizados em ordem alfabética, como se esperassem por um momento de glória que nunca chegaria.
Para Henry, o nobre garoto de roupas soturnas, aquele ambiente proporcionava a sensação mais reconfortante que já experimentara. Antigamente, na casa de seu pai, as janelas e cortinas permaneciam trancadas, como se o mundo lá fora fosse um lugar a ser temido. Ele era mantido em cativeiro, sem nunca ter a chance de dar um curto passeio pelo bairro.
Lugares esdrúxulos tornaram-se, para Henry, um abrigo familiar, onde o impacto de conforto e segurança aliviava suas ansiedades e alimentava seu ego ferido. Ele não se sentia um estranho ali; abraçava a paisagem da elegante vidraça da janela, que balançava sob o vento feroz e a tempestuosa chuva.
A residência, era um abrigo umbrífero e acolhedor, parecia moldada para ele, mesmo que os residentes não compreendessem sua serenidade.
Os jovens Grant notaram quando Albarn retirou a boina da cabeça, junto ao casaco, ambos pendurados no cabideiro próximo aos guarda-chuvas.
O pálido revelava um físico atlético, com ombros largos e braços robustos, um detalhe que o gêmeo de cabelos loiros não deixou passar despercebido, sentindo um rubor visivelmente explícito nas maçãs de suas bochechas.
Ambos irmãos evitavam interferir nos assuntos da mãe, cientes de seu trabalho como psicanalista. Reconheciam seu extenso histórico profissional e sua responsabilidade inabalável com pacientes marginalizados da sociedade.
Melissa acolhia os desamparados da região, capaz de identificar mentes perturbadas não apenas por suas faces, mas pelas vozes maléficas e hediondas.
Um método pouco convencional, mas eficaz, que ela usava em suas investigações. Entretanto, Brian não via aquele hóspede como uma ameaça a ser temida; ao contrário, sentia uma estranha atração pelo desconhecido, como se algo sombrio e fascinante estivesse prestes a se revelar.
No entanto, um fato intrigante aguçou os pensamentos de Brian quando soube que Henry frequentava a Chesterfield, a instituição conhecida por ser a mais negligente do estado. Apesar de ter um conhecimento profundo sobre a escola inteira, nunca tinha ouvido falar da presença de novatos, incluindo no ensino médio.
A Chesterfield usufruía da fama de ter estudantes dominantes e revoltados, formando tribos urbanas que ultrapassavam a estrutura democrática da instituição acadêmica. Os subgrupos impunham suas autoridades, e nenhum adulto — nem mesmo os diretores, a princípio — ousava intervir.
Após anos de estudo naquela escola, ninguém jamais mencionou ou falou sobre Henry. Brian cogitou que a ideia era que ele fosse apenas um aluno comum circulando pelo campus. Graças às suas ações, se tornou um líder e, como tal, era responsável por manter seus seguidores sob controle.
Embora não gostasse muito de se gabar apresentando rígidas regras impostas, o fato de ser respeitado diariamente era uma consolação. Antes excluído, ele aprendeu a ter valentia, se tornando dominante e voraz; ainda assim, possuía também suas fraquezas… a dor da paixão.
O loiro enfrentava dificuldades em manter relacionamentos por causa de um medo que o fazia temer entregar-se demais sem querer. Brian Grant não era heterossexual, pois seu coração e atração romântica coexistiam apenas com a preferência por outros rapazes, o que explicava de modo certeiro sua personalidade contundente.
Ele havia revelado sua orientação sexual no ano anterior, mas não o fizera abertamente perante a família. Seu irmão, Billy, descobriu o segredo ao flagrá-lo beijando um colega de classe do segundo ano nas arquibancadas, e prometeu para si mesmo guardar essa informação. A feição corada e as constantes reviradas de olhos mal disfarçavam seu interesse no hóspede.
A vontade conturbada com implícita tensão continuava tomando conta das concepções do adolescente loiro, será que realmente se apaixonou por Henry? Os dois provavelmente estariam mais próximos? Aquele semblante desesperado soube detalhar perfeitamente sua reação.
Sem dar muita atenção às palavras da governanta, Henry continuou a explorar os cômodos e os objetos raros e valiosos que preenchiam cada recanto. O lugar exibia uma elegância marcante em sua decoração. Ele apreciava as esculturas e os retratos emoldurados nas paredes cinzentas, que representavam paisagens e a extensa árvore genealógica da família, composta por bisavós, tataravós, avós, avôs, tios e tias.
A origem do sobrenome Grant pertencia a uma família rica e culta, cercada por mulheres elegantemente retratadas, cada uma com histórias notáveis. Por fim, o pálido sentou-se no sofá vermelho de couro, decidindo se acomodar ali, relaxando os braços e a cabeça.
Senhora Hopkins ofereceu a Henry uma xícara de chá, que ele aceitou. Com as mãos nos bolsos, ele esperava a oportunidade de pegar um maço de cigarros e fumar no escuro, mas conseguiu conter seu vício. Albarn cruzou as pernas, pegou o controle remoto da mesa de centro e ligou a televisão em um programa jornalístico.
Enquanto isso, nos fundos da cozinha, os gêmeos ajudavam as empregadas com as tarefas, mostrando que estavam longe de serem mimados. A dona da casa certamente aprovaria essa atitude. Os gêmeos ajudavam na louça, limpavam o chão, organizavam potes e, de vez em quando, serviam a sobremesa, como era o caso naquela ocasião especial.
Billy finalizou suas últimas tarefas quando, de repente, observou seu irmão com uma expressão levemente perdida, cobiçando casualmente a suspeitosa figura pálida atenta na solidão da imensa sala, totalmente hiperfocado no noticiário. Restaram talheres e pratos para serem guardados e secados, além das obrigações escolares que aguardavam. Melissa certamente ficaria descontente ao ver seu primogênito negligenciando suas principais responsabilidades.
Lentamente, o outro Grant virou-se para a frente e esperou pacientemente até que as empregadas terminassem de guardar os pratos. Depois de secar a sua parte, o moreno se aproximou do irmão, que levou um susto com a expressão incrédula no rosto do outro. O loiro engoliu em seco, voltando à realidade e se afastando dos devaneios, encarando o que estava acontecendo de fato.
— O que está acontecendo contigo? Você está muito perdido. De repente, parou e não falou durante o serviço inteiro! — indagou, impaciente, com as mãos na cintura e em completo sarcasmo deliberado. — Vai finalmente conversar com ele e apresentar o seu quarto? Porque sua atenção nele está muito grande. Isso explica os pratos secos pela metade.
— Cala a boca… Eu só me distraí por um instante, nada demais. — Virou-se na direção do outro Grant, que esboçou uma risada amarga que saiu por seus lábios avermelhados. — Nem sempre me vejo dando de cara com um garoto bonito. Ainda mais… um tão diferente e instigante. — Suspirou levemente, chacoalhando a cabeça de um lado para o outro.
Billy tentava disfarçar seu riso, mas falhou:
— Que merda de desculpa é essa? — falou, desacreditado, boquiaberto, sem entender uma palavra sequer. — O cara nem chegou direito e já está secando ele.
— Deixa de ser ignorante! — Brian rebateu a resposta do irmão rispidamente. — O Henry parece ser confiável. Sinto que vamos nos dar bem… ou talvez não, sei lá. Ninguém é capaz de prever o futuro.
— Gostou dele? — o moreno perguntou, franzindo o cenho em interrogação.
— Não.
— Para de mentir, Brian! Sei muito bem que está mentindo.
A voz elevada assustou o loiro, engolindo em seco.
— Fala baixo! — sussurrou, com o dedo indicador encostado entre os lábios. — A senhora Hopkins pode ouvir.
— Não fode. — Billy revirou os olhos, indignado. — Você é mesmo um precoce do caralho. Mal se conheceram e já está querendo segundas intenções com o pobre rapaz, mas isso daí tem um cheiro de problema. — Entonou a fala em deboche.
— Desde quando começou a tomar conta da vida alheia? — Bateu os pés, nervoso e com a garganta seca, negando a troca de olhares com o moreno teimoso. — Achar bonito não quer dizer que quero imediatamente beijar ou namorá-lo.
— Quem sou eu pra duvidar de algo, né?
Billy deu de ombros e se retirou, subindo até seu quarto. O loiro, por não ter cumprido suas tarefas, foi repreendido por June, que lhe entregou uma bandeja com um bule de chá e biscoitos de chocolate. O rapaz endireitou a postura e aguardou qualquer comentário relacionado à situação.
— Entregue para o Senhor Albarn! — ordenou a idosa ao garoto. — Lembre-se de que um convidado merece cortesia. Assim, eu não contarei à sua mãe que você deixou os pratos na pia.
— Me distraí, peço desculpas pela falta de atenção — murmurou ele.
— Que isso não se repita! Sua mãe pode não estar aqui, mas eu estou! — exclamou ela, com o queixo erguido. — Agora vá!
— Sim, senhora Hopkins.
Brian estendeu os braços, relutantemente carregando a bandeja até a sala, seus passos se apressando em um andar sociável e elegante. Chegando finalmente à pequena mesa de centro, colocou a bandeja sobre o vidro e encheu a xícara com chá verde, decidido a sentar-se ao lado do outro jovem para manter uma conversa mais civilizada.
Ele permaneceu ali, parado e atento ao noticiário, tentando imaginar o que conversariam e quando o hóspede realmente perceberia sua presença. Observou as mãos longas do rapaz de cima a baixo; eram bonitas, sem mencionar seus cabelos ligeiramente úmidos pela chuva. A seriedade que ele irradiava no ambiente era algo admirável para Grant. Enquanto o silêncio pairava, Brian chegou a olhar ao redor, reprimindo seu impulso amigável, até que algo em sua perna direita o fez quase se arrepiar.
Os olhares de ambos se cruzaram, e seu coração quase pulou acelerado.
— É muita gentileza sua me oferecer chá e biscoitos — O hóspede sorriu animado, tomando calmamente o chá adoçado. — Raramente sou bem recebido nos lugares que frequento.
— Já esteve em casas como a nossa?
Albarn fez que não com a cabeça.
— Diria que esta é a primeira residência na qual pude me sentir livre e confortável. — Endireitou a postura. — Mas obrigado mesmo assim, você é uma boa pessoa.
— Não foi nada — A forma que o hóspede pegava na xícara era diferente, o dedo indicador segurava o meio. O som de mastigação irritava um pouco os ouvidos do jovem que estava ao seu lado. Ele era educado, antiquado, quieto. Que tipo de personalidade era aquela? — Minha mãe tem uns costumes diferentes das famílias de classe alta tradicionais, sempre foi rígida e cautelosa. Quando Billy e eu éramos crianças, ficamos de castigo por uma semana e limpamos todo o jardim, foi o momento mais chato do mundo. — Ao compartilhar uma memória de sua infância, Brian deu um sorriso discreto, ouvindo uma risada baixa sair de Henry.
— Sua mãe demonstra uma personalidade forte. — O pálido cruzou uma das pernas de modo mais imponente. — Pena que estou ficando velho para entender a vida adulta, mesmo ainda estando na última fase da adolescência.
— Quantos anos você tem? — quis saber.
— Dezoito, e você?
— Também tenho dezoito — confirmou Brian. — Estamos realmente muito velhos.
A partir daquele ponto, a conversa não parou mais.
— Bom... mudando de assunto. — Interessado em saber mais sobre quem era Henry, o loiro considerou suas palavras por um momento, sem se apressar muito. — Você mencionou que também estuda em Chesterfield. Por acaso fez alguma amizade? Ou quase ninguém se importa com você?
Relacionamentos interpessoais eram fatores cruciais para construir uma boa reputação; no entanto, isso era veementemente complicado para Henry. No estado de Utah, o sistema de ensino público era constituído por alunos caóticos e hostis, enquanto os habitantes e responsáveis pela cidade eram amigáveis. Devido à sua memória curta, o pálido sequer se apegava a amizades de longa data; em conclusão, todos repudiavam o garoto sem motivos plausíveis.
Albarn conviveu com os piores parentes. Seu medo era de que, se algo desse errado, isso o mudaria e o levaria à insanidade. Pessoas eram interessantes, mas perigosas… Henry encaixava-se nesse ciclo.
Quando iniciou o ano letivo na academia Chesterfield, não se sentiu inclinado a se envolver rapidamente. Limitava-se a estudar por horas; assim como todo jovem, estudos e deveres de casa eram irritantes e triviais. Enquanto morava com suas tias, a entrada do garoto no colégio havia deixado os professores aborrecidos por causa de sua conduta hiperativa e desatenta na sala de aula. Reclamações foram feitas devido a atrasos e notas abaixo da média — ele debandava dos arredores, ignorando os educadores.
Os primeiros dias em Swan Lake variavam de manhãs calmas a noites turbulentas. Henry era ausente e retornava para casa apenas em horários alternados, mas estava ciente de que nenhum adolescente deveria sair à noite devido aos boatos de desaparecimentos que circulavam pela cidade.
Três meses passaram-se velozmente. Ainda deslocado, sem amigos ou boa relação com seus colegas, era um menino de aparentemente dezessete anos, uniformizado nos tons escuros da instituição. Seus olhos eram castanhos, combinando com a coloração vívida de suas madeixas, e seu rosto era fino, com traços asiáticos. Usava uma armação de óculos de aros redondos prateados e calçava tênis brancos limpíssimos.
Apareceu estendendo as pequenas mãos de dedos finos para o pálido, isolado nas escadas, oferecendo sua amizade. Yoshida Takeshi Miller… Seu nome, falado por seus lábios, fez Henry conseguir não apenas um amigo — era uma vítima conquistada —, mas também foi o único a crer na existência dele.
Cogitando uma resposta adequada, pois o gêmeo indicava desconfiança em partes, sondando algum impasse que bloqueava as palavras de sua boca, os dois adolescentes mantiveram-se em silêncio, constatando os sons e ruídos vindos da televisão, que mostrava as notícias diárias. Para florescer o assunto de maneira mais confortadora, Henry sobrepôs a xícara de chá ao lado do prato de biscoitos, cobiçando devagar, separando a distância da destra, que pousou abruptamente no joelho de Brian.
Detalhar o assunto não era suportável:
— Honestamente, posso dizer para você que nenhum dos meus colegas queria se tornar meu amigo. Eu demorei muito para querer alguma tentativa de interação. — Os dedos das mãos remexiam ansiosamente. Foi quando Grant retomou a prestar mais atenção no hóspede. — De repente… conheci um garoto completamente diferente. Ele era gentil e muito educado. Nós dois acabamos falando bastante, até que recebi a notícia de que ele desapareceu inesperadamente — murmurou, pressentindo o som da chuva. A ênfase no "desapareceu" causou um susto, fazendo as sobrancelhas escuras de Henry se sobressaltarem em um instante. O loiro não era detetive ou investigador, mas Henry havia presumido incompreensão.
— Você está falando sobre Yoshida Miller? O aluno do 3º ano A? — Sanou a incerteza, embora não houvesse trocado nenhuma palavra com o garoto perdido. Após terminar o último biscoito, Henry balançou a cabeça positivamente. Em seguida, Brian aguardou que Henry fosse adiante no assunto.
— Ele… — Tossiu, cobrindo a boca com a palma da mão esquerda. Lembranças bestiais alastraram-se no psicológico do jovem, imagens trêmulas de sangue escorrendo em um assoalho familiar e pedidos de socorro. Henry queria não lembrar do crime que cometeu. Todavia, precisava ser cauteloso com a informação. Prestes a ter um engasgo, obteve o apoio de um Grant preocupado, agradeceu sua preocupação e disse que estava se recuperando, logo voltando ao assunto. — Sim, ele mesmo.
— Esse menino era da mesma sala que o meu irmão, nunca faltava às aulas e já chegou até a ser representante — comentou o gêmeo, cada vez mais curioso. O que Albarn mais sabia sobre Yoshida? — O povo daqui inventa muitas histórias falsas a respeito dos desaparecidos. Uns disseram que sua última aparição foi no bairro Odile. Não ouvi toda a situação, mas, pelas investigações e teorias, uma pessoa clamava por socorro em uma tempestade. — Ao mencionar o bairro, Henry metamorfoseou a postura, mordiscando o lábio. Por fim, finalizando aquele tópico delicado, disse: — Quero ter a certeza de que ele está em algum lugar seguro.
"Em algum lugar seguro? Pobre garoto. Eu queria poder lembrar da vez em que iria salvá-lo de meus demônios e tocar naquele rosto novamente… Perdi a oportunidade de mantê-lo comigo. Me perdoe, mas ninguém é capaz de curar uma mente ferida. E nem mesmo um feito horrendo. Bom, se for realmente algo que fiz. E se eu mesmo fiz? Algo está querendo me dizer que me arrependo por ter feito?" Seu desconhecido segredo era vagamente extenso, apenas para os monstros doentes sedentos por sangue e ultraviolência.
Henry se perguntava quem teria matado Yoshida; seria ele mesmo? Ou algum tipo de entidade que, por espontânea vontade, possuía seu corpo? Sempre se esforçava para acreditar que tal acontecimento não passara de um pesadelo.
— Creio que este caso não vai ser rapidamente solucionado. Somos uma nação com a bandeira de um país manchada de sangue através de guerras e crimes hediondos; nem sempre a justiça prevalece, e a sociedade glamouriza um psicopata e assassino em série — opinou, sem pausar. Henry declarava para si mesmo que, se Yoshida era uma vítima de desaparecimento, obviamente perderia a vida. — Yoshida deve estar descansando em paz no paraíso, um único lugar que imagino onde seu paradeiro deve estar.
— É assim que você pensa sobre seus amigos? Você não está preocupado?
Albarn mostrou um sorriso amargo, contendo suas lágrimas.
— Evito me preocupar. Nesse mundo, o que mais perdi foram pessoas boas. — Franzia a testa, admirando o semblante caído e confuso de Brian. — Infelizmente, poucos foram sublimes para mim.
— Por quê? — Chegando mais perto do hóspede pálido, encostou sua destra em seu ombro, tão cabisbaixo em tamanho remorso. — Você pensa em algum caminho agradável de agora em diante?
— A vida é algo doloroso e insignificante, enquanto um mundo repleto de pessoas ruins causa atrocidades variadas. Me ensinaram que, na porra dessa existência, nada é possível para manter uma perspectiva positiva. Também nada se trata de buscar vingança, pois o mal sempre será bem visto. Justificar um erro é a desculpa essencial para renascer em outra procura de destruição. — Ele destacou. — Eu busco reforçar esperanças e ignorar minhas fraquezas. Quero ser melhor e perfeito em uma sociedade quebrada e fodida. Yoshida era meu melhor amigo, mas sei que ele não pôde escapar de se tornar uma vítima.
Os discursos insensíveis, carregados de ódio e tristeza pela perda de uma pessoa, mal puderam ser compreendidos pelo morador da residência. Ele não discordava nem concordava com suas frases emaranhadas — controvérsias, hostilidade —, soltando pistas claras de comoções dolorosas sob um sofrimento vasto. Um aperto no coração de Brian lhe incentivou a cuidar daquela alma melancólica.
— Henry, vai estar tudo bem com ele, garanto para você. — Uma voz monótona acalmou o hóspede. Sentindo aquela mão pousar em seus cabelos molhados e recebendo afagos ao virar-se para Brian, lágrimas saíram de seu rosto, o conduzindo para um abraço. Albarn tinha um choro rouco, mas não evitou abrir um sorriso exagerado ao olhar para a parede.
— Obrigado novamente. — Acariciou seu rosto, deixando a aproximação mais intensa. — Desculpe-me se estou te assustando…
— Vai dar tudo certo, confie em mim — o tranquilizou. — Saiba que o bem sempre prevalece. Não precisa ser tão negativo. Há coisas melhores e mais saudáveis. Expressar-se dessa forma é perigoso!
— Quer me ajudar? — sugeriu.
— Até poderia, mas não sou um profissional e sequer conheço sua vida. Minha mãe estará presente e fará de tudo para ajudá-lo. Desabafar faz bem; qualquer coisa, pode falar comigo que eu te escuto.
Na verdade, o garoto não sabia totalmente como aconselhar seu hóspede; ambos tinham suas diferenças, mas eram capazes de se converter em almas distintas.
Brian e Henry largaram suas tristezas de lado, estando lado a lado, finalmente em silêncio.
As distrações dos garotos foram interrompidas quando a porta de entrada se abriu, evidenciando uma figura alta e loira no corredor, que aparentava ser a senhora Grant. Melissa tinha longos cabelos dourados, quase alcançando o final das costelas, uma silhueta fina, lábios cor de cereja e uma aparência jovem e impressionante para a sua idade.
O aspecto e a beleza dos irmãos Grant eram realmente hereditários, e a semelhança entre o filho de cabelos claros e a matriarca era notável.
Melissa possuía um estilo casual, usando brincos de diamantes azuis e saltos altos, acompanhados por um vestido preto de mangas longas, que parecia ter vindo de alguma loja de alta classe. Sabia ser elegante, embora tivesse poucas sardas no rosto e usasse batom vermelho exagerado em seus lábios grossos.
Guardando o guarda-chuva ao lado da porta, a mais velha caminhou até a sala, observando o hospede — também seu paciente — ao lado de seu filho. Ela não esperava que aquilo ocorresse tão rápido. As tias do rapaz alegaram que ele era manipulador e ameaçador, mas ela confiava em sua intuição, se recusando a crer que ele fosse cruel, assim como todos os loucos que teve o desprazer de atender ao longo dos anos.
Embora segurasse suas apreensões como psicanalista, Melissa cumprimentou-o sem mostrar desrespeito de sua parte:
— Boa tarde, Henry! — os dois deram um aperto de mão respeitoso. — Vejo um bom sinal de convívio entre vocês dois. Está gostando de nossa casa? Sei que teve uma boa recepção de June; ela sempre consegue prometer excelentes anuências.
— Certamente estou. Prevejo que me darei muito bem. — Albarn sorriu suavemente, beijando delicadamente a mão da psicanalista. No entanto, sua conduta educada não convenceu a mulher como ele imaginou. — As cozinheiras fizeram biscoitos deliciosos; depois, Brian e eu conversamos um pouco.
— Brian geralmente é introvertido. — Viu o filho virar o rosto para o outro lado, não querendo falar com a matriarca por vergonha. — Sobre o que estavam conversando?
— Sobre coisas relacionadas ao aluno desaparecido — anunciou o hóspede. — Uma história ainda sem novidades.
— Oh… — Revirou os olhos. Sabia a verdade, mas negou-se a complementar o papo. — Entendi.
— Mas notei como todos estão acolhedores aqui. Estou ansioso para compartilhar minha vida com vocês.
— A casa agora também é sua!
— Er… mamãe, onde a senhora estava? — Grant interrompeu a conversa entre os dois. — Trabalhando?
A senhora Grant limpou a garganta após o gêmeo fazer a pergunta inocentemente. Os filhos não sabiam que Henry era um paciente insano; em contrapartida, acreditaram na possibilidade de ele ser alguém que sofre de depressão profunda ou neurodivergência.
— Querido, você sabe que a minha vida profissional é particular — retorquiu, numa carranca austera, com os braços cruzados sob o peito e os cabelos jogados para frente. — E quanto a você e seu irmão? Não o vi quando cheguei.
— Billy subiu para o quarto — Brian contrapôs, por fim. — Henry e eu vamos dividir o mesmo quarto; ele também mencionou que é estudante da Chesterfield. — O fato impressionou sua mãe, que pensava que o rapaz estivesse afastado dos estudos. — De qual cidade você era mesmo? — voltou-se para Albarn.
— Era de Cottonwood West, fica no Utah. — Riu orgulhosamente, cruzando as pernas em uma posição com a coluna reta no sofá, desistindo da postura torta. — Morei por seis anos com meu pai e madrasta, para ser específico.
— O seu pai é uma pessoa legal? — questionou Brian.
— Não me sinto confortável para falar sobre isso.
O adolescente usou um tom de voz seco, olhando nos olhos da mulher e do garoto. Melissa arqueou as sobrancelhas, surpresa com sua reação.
— Desculpa.
— Relaxa, você não tem culpa de nada.
— Se é assim. — Brian passou a mão nos cabelos, pegou um pano úmido e limpou a mesa de centro. Em seguida, pegou a bandeja e a entregou a uma das empregadas que estava arrumando a estante. — Eu também vou subir; apareço na hora do jantar.
Henry levantou-se de supetão.
— Posso ir com você? — solicitou, receoso. — Preciso organizar minhas coisas.
— Melhor irem depressa! — Ao olhar para o relógio de bolso que tinha, um presente de puro ouro, Melissa notou que já eram quase seis da tarde. O jantar estaria pronto em breve. — Todos nós iremos jantar. Espero que sejam pontuais, e não esqueça de avisar ao seu irmão — direcionou-se ao loiro.
— Sim, senhora — anuiu, se deslocando na escadaria e pressionando o corrimão. — Vou avisar, fique tranquila.
— Precisa de algo mais, senhora Grant? — Henry, atencioso, demonstrou ser responsável, mesmo que ela não fosse sua mãe. — Fico honrado em ajudá-la.
— Depois, passe na minha sala quando terminar de almoçar — Melissa ordenou, já que estava preparada para tratá-lo. — Estarei te aguardando pacientemente.
— Certo.
A dupla de garotos trocou olhares e suspirou ao mesmo tempo. Subiram uma escada e percorreram um corredor com várias portas. Algumas estavam abertas, outras fechadas, e havia quartos especiais onde as maçanetas estavam quebradas. As paredes eram acinzentadas e o forro do teto, branco, era enfeitado por um lustre de cristais.
Conduzindo sua mala em mãos, o novo hóspede alcançava os passos de um Brian que ostentava cada dormitório.
O outro gêmeo, deitado em sua cama e usando fones de ouvido, lançou um olhar nervoso a Brian quando sentiu os passos do hóspede se aproximando e adentrando seu quarto. O ambiente tinha um ar suave e rústico, apesar dos cartazes que cobriam a parede. Havia duas camas de solteiro, um sistema de som, instrumentos musicais e um guarda-roupas antigo pintado de preto.
— Pronto, aqui é onde vamos ficar — o mais alto anunciou, com as íris esmeraldas fixas nas oceânicas. — Saímos para a escola às oito, depois ajudamos na cozinha, e às seis jantamos. Essa é a nossa rotina diária.
Brian passou as informações de forma simplificada, e então caminharam juntos. O loiro abriu a janela sem demora, mostrando a tamanha beleza do céu com a forte rajada do vento. Henry encarou os demais objetos; entretanto, uma fotografia de uma modelo saída de alguma famosa revista erótica estava caída no tapete, e ele se perguntava a quem a imagem pertencia.
Cutucou as costas do rapaz, que se virou para o hóspede rapidamente:
— Isso é seu? — Apontou para a foto borrada, sem saber o que poderia ser. — Não precisa se envergonhar. Desculpe se estou sendo invasivo.
— O quê? Mas que merda é essa? — Olhou incrédulo para a mulher encorpada, completamente nua, deitada em um tapete felpudo. Deduziu que fosse coisa de Billy e sua mania de invadir o quarto do irmão para pegar algum instrumento emprestado. — Billy! Quantas vezes tenho que te dizer para parar de entrar no meu quarto e jogar suas putarias fora daqui?! — gritou, abrindo a porta do terceiro quarto e jogando o pertence do moreno em cima dele com muita raiva e nojo.
— Ei, como isso foi parar aí?! — inquiriu, se abaixando para pegar aquilo que havia perdido. — Puta merda… Foi mal.
— Seu punheteiro! — Ergueu o dedo médio em forma de xingamento. — Traga esse lixo pro meu quarto que vou contar para a mamãe que você tá comprando revista pornográfica com identidade falsa de novo! — O assustou. Billy rodopiou os olhos, extremamente nervoso.
— Eu não sou o único punheteiro daqui! — debochou em tom provocativo, com as mãos na cintura, vendo as bochechas do irmão tornarem-se rosadas. Ele realmente não estava mentindo. Brian desfrutava de manias de se masturbar quando passava pelo banheiro, relembrando os atletas sarados tomando banho após os treinos. — Toquei na ferida, né? Mas beleza, sei o quanto você odeia peitinhos! — Mostrou a língua.
— Vai se foder!
Como último gesto, Billy mostrou o dedo do meio e trancou a porta do quarto. A raiva passageira de Brian surpreendeu o hóspede, que ficou com as bochechas coradas após a menção íntima do loiro, mal conseguindo respirar. Henry ouviu toda a conversa, percebendo como aqueles irmãos agiam quando estavam juntos.
— Tudo bem? — Albarn não mostrou muito interesse no que havia acontecido; contudo, seria grosseria se não fosse compreensível.
— Sim. — Relaxou os ombros. — Billy é foda. Adora ficar me provocando; é um babaca. Quase repeti de ano por causa dele.
— Estou acostumado com discussões. — Henry colocou a mala na cama, ainda conversando com o loiro, enquanto organizava seus utensílios e colocava as roupas no lugar. — Meus irmãos são crianças, então nunca tive problemas com eles. Se eles fossem mais velhos, entenderiam que intimidade é algo relativamente normal.
— Eu quase não falo sobre isso. — Brian suspirou, se sentando na cama macia com lençóis finos. — Sabe, eu posso parecer durão, mas pouca gente sabe quem eu sou de verdade.
— Quer me insinuar que Billy é um cara bobo e imaturo, enquanto você é responsável e sério? — Deu uma risada divertida, o vendo sorrir discretamente.
— Exato. — Riu em conjunto. — Bem... O único problema com o qual eu me preocupo em falar é que... não sou heterossexual, por assim dizer.
— Como assim? — Henry perguntou, curioso. — Você é gay? Algo desse tipo?
— Sim, eu gosto de garotos — confessou, revelando um ponto fraco. — No ensino fundamental, muitas garotas queriam namorar comigo, mas eu sempre recusei. Só percebi que era gay no ensino médio… Não tenho certeza se devo contar para minha família abertamente.
— Acho que não precisa se envergonhar em relação a isso. Admito, também gosto de garotos. — Albarn tirou o colete, ficando apenas com a camiseta branca, a apoiando na cabeceira de sua cama. — Com garotas, nem sempre me dou bem, mas elas são interessantes também.
— Não escolhi totalmente ser gay, mas acho que ninguém me entende melhor do que os garotos. — Cruzou as pernas, meio desajeitado. Henry abria e fechava os olhos, usando a posição de lótus ao se aconchegar no colchão. Grant fez o mesmo, encostando o dorso da destra no rosto. — Minha mãe nunca falou de nosso pai, e nem me interessa tanto para ser sincero.
— Você é um cara tão bonito; não vejo por que se bloqueia tão emocionalmente. — O elogio encantou o jovem, que sentiu ainda mais batidas prolongadas em seu peito. Henry era muito intimidador. — E sobre seu pai, ele que se foda.
— Verdade, foda-se ele — concordou com Albarn. — Quanto a você? Como foi que sobreviveu para chegar até aqui?
O pálido balançou a cabeça, tentando negar a pergunta, mas encorajou-se por causa do rapaz.
— Minha família simplesmente não se esforçava para me entender. — Deu de ombros. — Na verdade, eu ousaria dizer que sofri muito mais! Sabe, enfrentei muitas adversidades ao longo da vida: sofri bullying no colégio, minha mãe fugiu de casa e foi assassinada inesperadamente, e meu pai investiu a vida dele por uma vadia egoísta. Ele me abandonou em Swan Lake com minhas tias. Elas eram chatas e rígidas; não sei por que me tratavam tão mal. Fui obrigado a tomar remédios fortes e, por um tempo, os comprimidos deixaram de fazer efeito.
— Ah, sinto muito pelo que você passou.
— Relaxa, estou me sentindo melhor agora. Você me fez bem; adorei conhecer você. — O sorriso dele ainda mais o saciava. Era tão puro e inocente, o oposto de Yoshida, além de ser um rapaz perfeito.
— Que tal ouvirmos alguma música? — Apontou para o aparelho de som com alguns CDs empilhados. — Gosta de ouvir o quê?
— Tem algum álbum do The Smiths?
— Não sou muito de escutar, mas posso abrir uma exceção. — O loiro procurou em sua coleção bagunçada. — Hatful of Hollow. Acho que este serve! — Inseriu o CD no rádio, reproduzindo a melodia post-punk das canções que costumavam tocar.
O hóspede virou-se para a janela de seu novo quarto, através de passos côncavos, sentindo uma nostalgia enquanto via o sol se pôr e fechava os olhos. A tranquilidade e a privacidade não o impediram de pegar um cigarro que estava guardado em seus bolsos, puxar o maço e, com um isqueiro em mãos, acender a chama para observar o sol desaparecer.
Brian levantou-se da cama e também decidiu aproveitar a vista noturna perto da alma atormentada. Eles se acalmaram enquanto soltavam a fumaça. Tinham sentimentos semelhantes, a sensação de estarem juntos até o final, mesmo que não se conhecessem completamente. Observaram o céu escuro, fecharam os olhos e entrelaçaram os dedos das mãos, enquanto o vento frio entrava pela janela.
Brian abraçava-o, enquanto ambos dividiam seus cigarros, aquela personificação de um cisne negro se deparando com o caminho de um cisne branco. Eram quase feitos um para o outro.
Ficaram ali juntos, como se suas vidas dependessem disso. A tempestade estava criando um turbilhão de tragédia de maneira enigmática.
Brian, infelizmente, não sabia que seus braços envolviam o corpo do próprio diabo.
O candelabro de cedro prateado, com nove velas de parafina derretendo sob o calor das chamas, se destacava pela fumaça que se elevava. Ele iluminou o centro da mesa, e tudo estava definitivamente pronto.
A psicanalista Grant se ofereceu para cortar em fatias sua costela bovina assada ao molho de churrasco, servindo os pratos do trio de garotos. Os gêmeos e a matriarca rezavam habitualmente para Deus Pai e a Santíssima Maria, em agradecimento pelos banquetes do dia a dia, exceto pelo hóspede, que preferia se alimentar de imediato. Albarn aguardou pelo último “amém” e, então, pegou primeiramente as folhas de alface temperadas com gotas de vinagre e azeite de oliva extra virgem — verduras em primeiro lugar.
Brian e seu irmão montaram seus pratos com alimentos idênticos, incluindo carne, salada e batatas coradas. Notaram a governanta levando uma molheira de vidro puro para ambos. Cada irmão implorava para que o molho branco fosse derramado sobre as batatas cozidas.
— Jezebel, sirva-me mais vinho! — Saracoteando o sino que segurava na mão esquerda, a mais velha ordenou a um de seus serviçais, que estava exposto na parede. O primeiro a ser chamado era pardo, com barba branca e cabelos encaracolados. Sem delongas, arrancou a rolha firmemente da garrafa, derramando o majestoso vinho europeu, caríssimo. Nunca permitiria que a taça de sua patroa ficasse vazia; portanto, nenhuma garrafa permaneceria intacta. — Obrigada! Agora podem se acomodar. — Os demais se retiraram. Melissa não queria ficar de ressaca no dia seguinte; ela era uma mulher responsável.
— Carne deliciosa, senhora Grant — disse Henry, cerrando a faca no pedaço da costela e mastigando devagar, sem perder a educação e seu tom lisonjeiro. — Aposto que qualidade melhor que esta não há muito por aqui.
— Cozinhar é uma das artimanhas dela — sussurrou o gêmeo de cabelos loiros próximo à orelha do pálido, abrindo um sorriso ladino. A convivência entre ambos era fluida. — Toda exagerada! — Fez uma expressão caricata, mostrando a ponta da língua. O jovem moreno de dentes metálicos grunhiu insatisfeito pela interação dos dois; queria estar contente, mas isso era improvável. Brian merecia amizades melhores, pois, na visão de Billy, aquele rapaz parecia enganá-lo ocultamente. No entanto, por alguma razão, ele iria descobrir qualquer suspeita futuramente.
— Não precisa me agradecer, Henry; nossos cozinheiros da casa são os verdadeiros merecedores. — Ela realmente odiava querer se gabar, enquanto suas longas unhas pintadas de esmalte preto batucavam agressivamente na madeira. Finalizando sua refeição, esfregou o guardanapo nos lábios, o manchando com seu batom carmesim. — Ah, preciso retocar minha maquiagem antes de nossa sessão. Estou horrível! — reclamou da aparência, ao notar tons vermelhos fora dos contornos da boca.
— Eu preciso tomar um banho; essa merda de dia inquietante me deixou estressado. Só fiquei fazendo dever de casa o tempo inteiro — disse, mais indignado, com notórias contestações. Bocejos e movimentos rítmicos com ambos os braços interpretavam claramente a exaustão singular de Billy.
— Mentiroso do caralho — disse o primogênito de Melissa, bronqueando gargalhadas com mero sarcasmo e tossidas involuntárias. Era de se imaginar que o segundo Grant fabulava inverdades efetivamente. — Não sabia que escutar música trancado no quarto era uma atividade escolar! — Lançou a informação verdadeira através de ironia.
— Uau… Também não sabia que despir visualmente o recente hóspede era algo legal para fazer enquanto não terminava de lavar toda a louça suja. — Devolveu na mesma moeda, ríspido, com os punhos apoiados sobre a mesa. Ambas as sobrancelhas erguidas em protesto.
— Idiota!
— Você quem começou.
— Obviamente, fui honesto ao dizer a verdade. Billy, você quase não estuda; só sabe entrar no meu quarto para roubar minha guitarra ou copiar os textos da lousa do meu caderno. — Deu de ombros. — Sempre que acaba levando bronca dos professores, eu levo a porra da culpa.
— Isso é sério? — perguntou a mãe.
— Ele está mentindo! Não ligue para ele.
— Eu mentindo? — Apontou o dedo indicador contra o peito, os olhos abrindo e fechando inquietamente. — Você foi para a diretoria só umas três vezes esta semana.
— Mas o que você está aprontando tanto para ir à diretoria, garoto?! — Melissa contorcia as costas na cadeira, ficando furiosa e impaciente. — Me responda!
— Argh, eu briguei com uma menina folgada da minha sala e xinguei o professor de matemática de “velho broxa” — admitiu Billy, esgotando o resto de sua paciência. — Satisfeito agora, Brian?
— Que falta de respeito… Esperava menos vindo de você. — Uma risada estridente assombrou o ambiente, e Billy e Melissa suplicaram silêncio. — É, acho que estou satisfeito.
— Eu te odeio, babaca!
— Nossa, me diga uma coisa que eu não saiba.
Henry assistia aos familiares brigando como se fossem parte de um entretenimento.
— Uh, que gente estúpida. — Pensou Henry, torcendo para que a discussão acabasse, enquanto engolia com dificuldade o último pedaço da carne que acabara de comer. Por muita sorte, ninguém prestou atenção em sua fala.
— Só para constar, lavei as louças, mesmo que tenha me distraído. Não deixei de cumprir minhas obrigações. — Os talheres do loiro caíram em seu prato após o término da refeição. As serventes continuavam a trabalhar em meio às vozes barulhentas.
— Não te perguntei nada.
— Já chega! Podem parar de brigar, vocês dois! — Os gêmeos calaram-se sem tardar quando a psicanalista suprimiu posturas que não lhe concerniam. Ela resistia às discussões ignorantes dos adolescentes, a partir do momento em que eles eram crianças tolas. — Expliquei mais de mil vezes o quanto odeio esses linguajares infames. Irmãos precisam ter respeito e união uns com os outros; não criei nenhum filho desobediente sob o meu teto.
“Só criou um moleque faltando uma parte do neurônio e outro que estou ansioso para ouvir gritar quando eu tiver a chance de fodê-lo de míseras formas. Nada fora do habitual.” Pensou Henry, malicioso e lascivo, soltando um suspiro lento que rejeitava um possível estresse.
— Peço perdão pela inconveniência — disse Brian e se recompôs com um semblante cabisbaixo. — Não vai acontecer novamente. Preciso me retirar. Boa noite.
— Billy? Você não irá dizer nada?
— A única coisa que peço é respeito da parte dele — rebateu, de braços cruzados, extremamente cansado. — Vou tomar um banho e descansar. Acho que Henry também pensa o mesmo, certo?
— Quem, eu? — Desatento ao alvoroço que acabara de ocorrer, Albarn fingiu estar se importando, embora estivesse pouco se importando com aquela família nobre.
— Nosso convidado especial não precisa estar envolvido em suas brigas — disse, se virando para Henry e pedindo perdão. Ele respondeu que não havia se incomodado, pois brigas eram música para seus ouvidos, resultado de anos de violência psicológica causada pela megera companheira do pai. — Vocês não vão ficar para a sobremesa, meninos?
— Estamos satisfeitos — afirmaram os dois em uníssono.
— Então poderão comer o bolo de cerejas amanhã de manhã — disse Melissa. — E você, Henry? Precisa de mais alguma coisa? Daqui a pouco te chamarei para minha sala.
— Acho que Billy e Brian estão certos; os dois merecem um repouso. — O pálido queria escapar da consulta terapêutica de Melissa, iniciando um jogo manipulador em relação à loira, que não cedeu aos seus encantos. Henry achava-se esperto, mas não conseguia enganar uma mulher adulta. — A senhora também quer que eu me retire?
— Lhe darei um tempo para se banhar e trocar de roupa — falou, por fim. — Ficarei no aguardo; nosso assunto pessoal é urgente.
Sua mãe e seu irmão o cansavam inteiramente. Mesmo considerando que eram uma família menor e longe de qualquer parente, Brian possuía total aceitação da parte de Melissa. Tampouco fazia sentido abandoná-los ou cortar seus laços de união. Entretanto, lidar com Billy, que era infantil e afrontoso a cada dia que passava, era genuinamente insuportável; ele não parecia ter a idade que aparentava: aprontava no colégio, se embriagava com cerveja amarga, roubava bicicletas dos valentões e frequentava shows em hideouts. Sabia o verdadeiro significado de liberdade tênue, aproveitando cada segundo da vida que lhe restava.
Brian era completamente o oposto do irmão; odiava socializações em festas e fazer novas amizades. Respeitar quem não merecia respeito, para ele, era uma merda. Gostava de impor dominância e ordem na escola, mas raramente as pessoas queriam ser controladas por um bad boy de sobrenome Grant. Seu chamado só valia a pena quando os jovens pagavam para ter o gabarito das questões das provas bimestrais.
Na imensidão do banheiro, o som avassalador de Asking Alexandria estourava na minúscula caixa de som, acima do mármore da pia. A voz pesada de Danny Worsnop tranquilizava seu banho; deixava o clima perfeito, pois, para sermos francos, bandas metalcore eram quase como um dogma religioso.
— You need a doctor, baby? You’re scared? (Você precisa de um doutor, querida? Está assustada?) — Batendo a cabeça e dançando com o refrão, Brian se divertia sozinho, se lavando com sabão de cereja, perfumado pela fragrância adocicada.
Ele tranquilizava os músculos do corpo; as pernas afundavam-se sob a temperatura morna da banheira, em um completo silêncio ensurdecedor, após sua playlist ter acabado com a última reprodução da música "Shades of Cool", de Lana Del Rey. As estrofes da canção, por algum motivo desconhecido, lembravam a personalidade fria e transtornada de Henry, um homem incapaz de ser consertado, vivendo em tons de azul, impossibilitado de amar. Mas como explicar tamanha generosidade vinda de sua alma machucada? E por que, quando se juntavam, a compaixão entre eles mudava? Os pelos dos braços dele se arrepiavam, e a respiração enfraquecia.
“Com licença, posso entrar? Encontrei uma toalha no chão. Acho que deve ser sua.”
Batidas em conjunto a um demorado empurrão na porta revelaram a pele leitosa e pálida da mão esquerda escorada no batente. Fixando entre os dedos compridos a toalha marrom que havia sido deixada jogada no corredor — onde Brian, sem querer, a deixara antes de tê-la verificado no pavimento —, constatou que poderia ter notado que seu objeto de banho havia escorregado dos trajes. Acanhado por identificar Henry daquela forma, pôde tolerar sua entrada. Num instante, a porta abriu-se integralmente, mas, em uma fração de segundos, Grant decidiu não sair da banheira, afundando um pouco o corpo, lidando com a água esguia que cobria até seu pescoço veído e ossudo.
Ele vestiu seu pijama branco e preto. Mesmo distanciado do hóspede, era possível notar os botões meio abertos de sua blusa, que deixavam à mostra parcialmente a metade de um abdômen vistoso. Basicamente, o físico de Henry assemelhava-se ao de um atleta robusto; Edward submetia o filho a praticar exercícios e fazer corridas pelo antigo bairro. Não era culpa dele ser encorpado.
Ao se aproximar do mármore da pia e encontrar o reflexo de sua imagem no espelho, Albarn dobrou a toalha ao meio, a sustentando em cima da pia. Ao mesmo tempo, era complicado não fixar o olhar na nudez implícita do gêmeo. Embora a clareza da água ensaboada fosse rósea, era inevitável olhar para baixo e notar os joelhos vermelhos embaixo dela. Queria ter visto a estrutura física por completo; ele queria saber como era cada detalhe da anatomia de Brian.
— Er… obrigado. — Escapuliu um gaguejo de sua boca, o fazendo rodopiar os olhos. Através de mero constrangimento, começou a observar firmemente o rosto de Henry, evitando dar mais atenção à blusa aberta, por mais que fosse difícil. — Pode, por obséquio, virar para trás? Se não se importa, me sinto melhor tendo privacidade.
— Claro! — respondeu Henry, se voltando na direção da porta.
Virou-se para os azulejos incolores, com os braços atrás das costas. Um desejo inexplicável invadia sua consciência; estava sedento por ele, sonhando com a possibilidade de afogar sua vítima dentro d’água, implorando por ajuda. Ao mesmo tempo, almejava, em sua imaginação tresloucada, ver o loiro saindo despido da banheira, coberto de sangue, tocando seus ombros e lhe entregando um beijo. Porém, a inspiração “sonhadora” tornou-se aterrorizante quando foi interrompida por risadas de uma velha enrugada e perturbada, asfixiando-o até a morte. Isso fez com que o insano voltasse à realidade, ignorando seus planos bizarros.
Grant amarrava um nó no barbante da calça de moletom estilo esportivo após colocar sua peça íntima, finalizando com uma justa camisa preta curta que exibia seu umbigo. Que estranho… Albarn ainda não parava de contar mentalmente quantos azulejos existiam.
— Então… Posso olhar agora? — Piscou, impaciente. — Já terminou?
— Sim, você pode olhar.
Henry pôde encará-lo frente a frente; sua vista brilhava em admiração pelo garoto de estatura média. Contudo, ele não entendia absolutamente nada sobre o tipo de interação que o hóspede provava. Seu rosto… Tão puro e delicado, um mero semblante confuso, com ambas as pupilas dilatadas, análogas às de um cervo canadense preso e vulnerável na armadilha de um sanguinário caçador prestes a disparar um tiro de espingarda diretamente em seu crânio.
— Brian.
— Henry?
Não houve diálogo; o pálido queria tentar se aproximar, mas seus pés não permitiam.
— Deixe pra lá, não é nada importante. — Ele abriu a porta e saiu sem explicar.
“O que acabou de acontecer agora?” O dedo indicador na ponta dos lábios e a respiração descompassada, conturbado por uma inquietante ansiedade. Brian, por enquanto, preferiu seguir em frente; quanto mais aprofundava seus conhecimentos sobre ele, mais seu coração acelerava.
O escritório de Melissa era uma sala escura e acolhedora. Sentada com os cotovelos sobre a mesa e segurando o caderno no colo, era perceptível que ela tinha fotos de Edward e de outros indivíduos ligados à ficha do garoto Albarn.
Ela não pausou em momento algum sua leitura referente ao histórico clínico do jovem, ajeitando os óculos que haviam escorregado pela ponte do nariz. Folheando as cinco páginas, percebeu que havia algo errado no diagnóstico, que alegava que ele tinha depressão profunda e transtorno bipolar. Como Henry poderia ser depressivo se sempre se alegrava com pequenas coisas? Bipolar? Ele não parecia ser propenso a se irritar. Não acreditou nas análises dos psiquiatras e teorizou outras hipóteses sobre o comportamento dele.
Atrapalhada por seu paciente, ajeitou sua postura na cadeira rotatória para recebê-lo na sala extensa, recheada de vitrais coloridos e livros especializados em psicanálise — Sigmund Freud, Jacques Lacan, Clarissa Pinkola Estés — organizados na estante. O garoto não hesitou e se sentou no divã, longe da mesa, contra sua vontade.
Dando as últimas verificadas no reflexo do espelho de bolso, deixou de se preocupar com a maquiagem e voltou ao seu trabalho. Pegando um caderno para anotações retirado da gaveta, esperava que Albarn reagisse antes da sessão; no entanto, ele nada disse ou declarou, assim iniciando finalmente a primeira consulta.
— Seja bem-vindo. — A psicanalista cruzou as pernas suavemente, enquanto abria o caderno e apertava uma das canetas pretas, possivelmente para tomar notas do novo histórico do paciente. — Antes de prosseguirmos, sabe me dizer quais remédios te medicaram?
— Meu último profissional receitou haloperidol, fluoxetina e lítio. Tinha paranoias constantes e comportamentos agressivos. Já minhas tias me davam clonazepam para que eu pudesse dormir. — Medicamentos essencialmente indicados para esquizofrenia, depressão e crises de ansiedade. A descrição escrita nas fichas batia muito com os relatos lidos.
— Não consegue dormir? — indagou, preocupada, juntando as mãos uma sobre a outra. — Há quanto tempo parou com o tratamento?
— Só existem indagações da sua parte. Não quero ser o maior revelador e nem preciso dizer o quanto isso me irrita. — Foi direto ao ponto, impaciente.
— Meu trabalho se resume a isso; fui chamada para oficialmente iniciar seu novo tratamento — rebateu. O pálido calou-se instantaneamente, mesmo sabendo quantas vezes iria retrucar.
— Parei com os medicamentos em julho por conta da validade — ele revelou, os cabelos emaranhados cobrindo um pouco da visão oceânica. — Meu sono não era regular; tive inúmeros pesadelos desde que pisei meus pés no chão desta cidade maldita.
— Entendo. — Anuiu em uma voz monótona, retornando a anotar mais descrições na folha em branco. — Quais outros motivos o fizeram parar? Além da data de validade?
— Meu organismo foi prejudicado; esses remédios secavam minha garganta, me deixando enjoado e tonto — acrescentou, sem pausa. — Eu tinha vontades incontroláveis de me masturbar, mas meu pênis não subia, mesmo tentando pensar em nada que fosse prejudicial.
— … Masturbação compulsiva, falhas no organismo. — Escrevia em itálico, com um lápis escuro. — Agora me diga: sabe por que o mandei vir para minha sala, Henry?
— Não — respondeu em um tom tranquilo. Era previsível que ele, mais uma vez, se encontrava nas mãos de outra terapeuta, imaginando que ela talvez tentasse sedá-lo ou restringi-lo de alguma forma. — Imagino que seja sobre o rompimento familiar e meus supostos problemas mentais.
Com uma voz articulada, doce e cativante, Melissa lidava com um adolescente peculiar. Sua postura relaxada no divã cor de areia e suas costas retas eram atípicas para alguém de sua idade.
— Na verdade, te trouxe para minha casa para te entender melhor. — A mais velha notou a expressão abatida do jovem, absorvendo cada detalhe do escritório. — Quero que você fale o que vier à sua mente! Irei continuar com as perguntas, mas também preciso que seja honesto e me diga apenas a verdade — encorajou suavemente. — Faz parte do processo, e assumi a responsabilidade de cuidar de você por causa das suas tias.
— Deixe-me adivinhar… Você também planeja me medicar, me amarrar na cama, senhora Grant? Pretende vestir uma camisa de força em mim? — Henry esboçou um sorriso malicioso, tentando fazer uma piada de mal gosto. Obviamente, a mulher não achou graça.
— Negativo. — Balançou a cabeça depois de suas perguntas desconfortáveis. Ela não o conhecia totalmente, mas, pelas palavras do hóspede, não era zombaria. Suspeitou que outros doutores usaram métodos mais graves contra Albarn. — Somos parceiros; nunca irei ser agressiva com você e nem o forçaria a dormir contra sua vontade.
— Parceiros? Nós dois seremos parceiros? — demandou, sinuoso. Ninguém havia dito algo daquele tipo para ele; porém, tudo se remetia à conquista. No entanto, tinha que fazer direito, sem dar questionamentos e interrogações sigilosas.
— Vamos nos ajudar mutuamente conforme o tratamento vai se iniciando — elucidou a psicanalista, ajeitando os óculos quadrados que ameaçavam cair do seu rosto. Uma carranca conspícua e mal-encarada focava sucintamente nas anotações pessoais. — Eu diria que essa é minha forma de analisá-lo, basicamente o oposto dos outros terapeutas e psiquiatras que tiveram o prazer de atendê-lo.
Henry sobrepôs o peso da cabeça no ombro esquerdo, levantando as sobrancelhas junto a um sorriso desanimado no semblante contrariado. Melissa era intrometida o suficiente para cair em suas averiguações. Ela podia detectar alguma mentira sem precisar ver a cavidade bucal dele se movendo. Não a considerava ingênua como era seu primeiro primogênito; todavia, seria facilmente eficaz ter aquele garoto sob seus encantos.
Soube diretamente onde a mais velha queria chegar… Ela provavelmente tinha certeza de que Yoshida Miller foi assassinado por Albarn; não podia deixar passar despercebido, teria que inventar toda a história. Se admitisse, perderia todas as chances de estar abrigado no domicílio.
Respirando duas vezes, ele então foi adiante:
— Tudo bem... — Deu um suspiro prolongado. — Quais serão os assuntos que vamos debater de agora em diante?
— A terapia é sua. Você decidirá sobre o que iremos debater, porém, como nosso caso é mais pessoal… Tenho uma pergunta para fazer.
— Claro. — Anuiu, mudando de posição e ficando de pernas cruzadas, com as mãos pousadas no joelho. — O que exatamente está disposta a me perguntar?
Melissa manteve-se em silêncio por um momento. Suas dúvidas sobre o desaparecimento de Yoshida Miller e algo que envolvia somente os dois… Na carta que recebera, dizia: “Nosso sobrinho matou uma pessoa e se deitou no torso do cadáver. Estava acariciando, gritando em choradeiras, acreditando que não tinha o atacado. Por favor, o ajude! Estamos com medo. Não o queremos atrás das grades.” A imagem da cena a perturbava, só de imaginar como teria sido encontrar o sobrinho abraçando um ser humano morto.
— Quero que você comece me explicando... o que viu na noite em que Yoshida Miller foi encontrado morto no jardim da sua casa — disse, percebendo o rapaz hesitar num susto. — Gisele e Miranda afirmaram corretamente o ocorrido; você foi encontrado chorando muito, entrando em pânico… Sabe me dizer o que houve nesse dia fatídico?
— Oh, como você sabe disso? — Henry parecia trêmulo, sem ar nos pulmões. O nervosismo o consumia, hesitante em abordar o assunto. Era uma performance teatral deveras encenada, a sinfonia de dentes branquíssimos rangendo dentro da boca, enquanto usava a lábia entristecida. — Ele sofreu e não pude fazer nada. Fui um inútil.
— Não importa como sei sobre isso — exclamou Melissa, com aspereza. — Só quero a verdade e que você assuma o ocorrido. Yoshida está desaparecido; o único que sabe é você mesmo. Como ele foi atacado? Alguém entrou em sua casa?
— Não me lembro. — Rejeitou dar resposta, omitindo todo o acontecimento. — Só consigo pensar no estado dele: hematomas por todo o rosto e naquele sangue vermelho vibrante.
— Sua encenação não está me convencendo do contrário.
— E o que ganho dizendo a verdade? — Albarn fez uma expressão medrosa, disfarçando estar lastimado com o assunto. — Como posso provar à senhora que não estou inventando nada?
— A minha confiança será o seu amparo.
— Não sei o que aconteceu! Nós dois bebemos, jogamos videogame, estudamos. E, quando percebi, ele estava sem vida em meu jardim. Fiquei em choque! — Ele adotava drasticamente um desespero que claramente levantava ainda mais suspeitas. Pessoas diagnosticadas com psicose e psicopatia são experientes em enganar. Henry, por mais que seu diagnóstico não fosse confirmado, fazia Melissa ter certeza de que o paciente se enquadrava perfeitamente nas características.
— Qual a sensação de ver um cadáver pessoalmente?
— Uma sensação horrível.
“A sensação? Essa sensação… Oh, se eu fosse incapaz e burro o suficiente, como estou sendo agora, senhora Grant, não falaria abertamente que foi a sensação mais linda e cruel que já presenciei em toda a minha vida! O corpo enfraquece, fica mais pesado e se torna mais gelado. É como uma pintura renascentista mórbida de Jesus Cristo crucificado, onde o destaque é o sangue derramado na coroa espinhenta, entre lágrimas de piedade. Se Yoshida estivesse em um quadro deste estilo, a pintura clássica seria dele deitado comigo, perdendo a vida em um jardim de corvos negros agitados, crocitando ao redor de plantas secas pela falta de água, enquanto um punhal perfura bem fundo seu peito.”
Henry tocou as bochechas com as duas mãos, soprando para o alto e fingindo um choro. Porém, queria dar um riso caótico, dizendo orgulhosamente seu grande feito — o demônio que regressava em sua intenção homicida.
— E quanto às suas tias? Elas disseram que não foi assim realmente como você está contando para mim — Melissa alfinetou, cruzando as pernas e os braços, largando o caderno, pois tinha anotado o suficiente. — Vocês dois chegaram ao domicílio após as aulas. Tenho a teoria de que ambos estavam presentes no momento do homicídio. Parece que você não se lembra porque teve um apagão. Quando acordou, notou seu uniforme sujo de sangue humano, com os dedos da mão direita feridos e roxos. Talvez quisesse protegê-lo do criminoso que adentrou em seu lar. Acha que pode ser isso?
— Faz sentido. — Ele olhava para frente e para trás. — Ele era um garoto muito magro e indefeso; talvez o criminoso que o golpeou fosse mais forte e também tenha conseguido me atacar.
— Conte-me desde o começo! Não se preocupe, esse segredo ficará entre nós.
— Mesmo não lembrando, você vai acreditar em mim?
— Desses seus lábios, não quero que saiam inverdades, Henry. Porque tenho a mera sensação de que você está escondendo os reais acontecimentos. Estou certa?
— Já disse que não o matei. — Albarn se incomodou com a teimosia da mulher. Visto sua atitude, ele se recompôs, relaxando os braços no divã. — Não sei se fui eu realmente… Por favor, quero me abrigar aqui. Não sou um monstro! — implorou, quase saindo de onde estava para ajoelhar no chão.
— Não estou pedindo para você confessar — ela confrontou. — Apenas fale, diga o que está preso dentro de seu subconsciente.
— Certo… Eu vou contar.
Sete de Outubro de 2017
Von Rothbart St.
No álgido daquela tarde, o sinal do último horário tocou pontualmente às duas horas e trinta minutos, permitindo que todos os estudantes descansassem após um dia cansativo e longas explicações de professores rígidos. Para surpresa do recém-chegado, Henry, o relacionamento amigável com Yoshida se desenvolvia muito bem. O mais novo lia um mangá dark fantasy — Berserk, do autor Kentaro Miura — acompanhado pelo rapaz alto.
Os dois voltariam juntos para a casa das tias de Albarn. Observador, o asiático parecia gostar tanto de leitura quanto a mãe do novato, relembrando a época em que Lynda lia os livros de contos de fadas dos irmãos Grimm e poemas brasileiros. Henry sentia saudades de quando era pequeno e sempre dormia quando a falecida matriarca contava boas histórias.
O longo tecido negro do casaco guiava Miller atentamente, como se Henry interpretasse um flautista de Hamelin, o levando longe com seu caminhar, desaparecendo para sempre, trancado numa caverna distante da civilização. Os outros estudantes circulavam nas ruas com suas bicicletas, ansiosos para não voltarem para seus lares no horário.
Sentados no beco à beira da praça, de frente para o amplo lago da cidade, onde os cisnes planavam após voarem pelo céu acinzentado, a concentração de Yoshida e Henry fez com que contemplassem o horizonte nebuloso habitual de Swan Lake.
A rua Von Rothbart era relativamente movimentada e agitada. Diversos cidadãos se reuniam diariamente para alimentar os pombos que pousavam nas calçadas ou nos postes. Ao verem migalhas caídas no chão — qualquer tipo de alimento — eles competiam freneticamente por elas. Um efeito vórtice surreal, famintos pelas sobras jogadas, se deparando com humanos sem um pingo de educação quando se tratava de jogar lixo ou desperdiçar comida no meio da rua.
Yoshida fechou seu mangá, decidindo iniciar uma conversa com o novato. Os dois se encararam completamente. Henry batucava os dedos na madeira do banco, demonstrando agitação, demasiadamente inquieto, remexendo os sapa tênis de couro. Era agradável saber o quão importante era ter uma nova amizade, porém algo a mais estava por vir — e não era nada relacionado a um clima amoroso entre eles.
— Como foi o seu dia na escola? — Yoshida iniciou a conversa, se simpatizando com seu novo colega. Um sorriso feliz esticava seu rosto, semelhante ao de um bonequinho fabricado de pano, com olhos, nariz e boca costurados por linha e agulha.
— Nada fora do comum. — O garoto transtornado inquiriu tranquilamente, fixando o olhar no céu ao mesmo tempo em que voltava a interagir com o japonês. — Alguns professores não foram simpáticos comigo. E o seu? Seu dia foi bacana hoje?
— Diria que foi menos entediante do que sempre; todos costumam ser assim a cada semana que passa — comentava Yoshida, com os cotovelos sob os joelhos devido à posição torta e desleixada. — Sou péssimo em matemática; acabei levando broncas do senhor Clyde… Quase perdi minha responsabilidade de representante também. Algumas coisas na escola me chateiam profundamente.
— Imagine eu, que sou péssimo em história americana. Não me importo nem um pouco com essa porcaria de país. — Albarn empolgava-se ao seu lado, em meio a risadas comprometedoras. — Me interesso por literatura e arte. Normalmente, costumo estudar buscando conhecimento geral sobre todos os artistas e quadros. Quem sabe um dia eu possa te desenhar? — Uma reação tímida foi notada pelo novato da Chesterfield; Miller não esperava intimidade tão rápida.
— Acho que seria legal; nunca fui desenhado por ninguém — disse ele, com uma alegria expressiva, lembrando um jovem orgulhoso e jovial no meio da sua intrínseca solidão. — Quando morava em Kyoto, na grande maioria das vezes, meus antigos colegas pintavam quadros ou criavam origamis de papel. — Yoshida era nativo do Japão, embora seu pai fosse norte-americano e oficialmente casado com sua mãe. Henry achava aquele garoto surpreendentemente esperto e interessante, e gostaria de descobrir mais sobre ele a cada dia.
— Que legal! — Soltou um riso jocoso, que havia aperfeiçoado em deslizes. — Daqui para frente, seremos uma dupla e tanto.
— Uma dupla de alunos excluídos? Por que não, né? — brincou Miller, com as mãos na cintura em uma pose blasé. — Estou cansado desses valentões e brutamontes por aí! Odeio estar aglomerado com muita gente.
— Soube que o maior grupo de pessoas maldosas é composto pelos atletas.
— Com certeza, é. — Yoshida franzia a testa, coçando a nuca por conta da gola alta de sua camisa. — Chesterfield está um caos ultimamente; cada novato que pisa os pés naquela escola transforma tudo em situações piores. Alguém precisa pôr um fim a esses problemas no campus.
— Fico imaginando onde os adultos estão, ou o que fazem dentro da secretaria. Será que nenhuma autoridade vai amenizar o sistema? — Albarn estreitou o olhar para baixo, visualizando o chão áspero e rachado. — Aposto que a secretária dá várias trepadas com o diretor depois de servir duas xícaras de café quente. — Gargalhou com sua própria piada, mas o colega ao seu lado não esboçou uma reação positiva, não entendendo seu humor negro e ácido.
— Bom… Eles são pagos para saber sobre os outros estudantes. — As palavras mínimas do adolescente transmitiam certamente um desconforto e agonia enquanto ouvia Henry conversar. Ele estava gostando de sua companhia; em contrapartida, desejava que ele não falasse muito. — Eu prefiro me importar menos com os responsáveis da escola; são todos insuportáveis e inconvenientes.
— É… Vou ter que concordar com você. — Henry, no entanto, teve uma ideia. Ambos estavam sozinhos na praça, inspecionando o lago frio e escuro, sabendo quais cisnes brancos apareciam, levantando as asas penosas. — Gostaria de estudar na minha casa? — O convite poderia levar a consequências de um desfecho miserável… Seduzir sua primeira vítima nunca pareceu tão simples para Henry.
— Pode ser. — Automaticamente, saiu de onde estava sentado; o colega mais velho fez o mesmo. — Vamos antes que fique muito tarde. Preciso retornar para casa antes que eu leve uma bronca dos meus pais.
— Ela não gosta que você saia com estranhos?
— Você não é estranho, Henry! Estamos no mesmo colégio; vai estar tudo bem.
“Posso não ser estranho agora, mas se nos conhecêssemos antes… Você teria muito mais medo de mim. Queria poder confessar para você que este provavelmente poderá ser seu último dia na terra.” Desejou para si mesmo, um adeus a Yoshida… Ele queria que ele fosse embora para sua casa; contudo, não foi isso que aconteceu.
— Obrigado por confiar em mim.
Percorrendo o bairro Odile enquanto atravessavam descontraidamente as calçadas, com as mãos nos bolsos, o rapaz ao seu lado olhava para o chão, parecendo confuso e perplexo. A fobia social costumava assombrá-lo quando saía da instituição. Ao contrário de Henry, ele não era extrovertido. Estava bem familiarizado com os rostos notórios da cidade — os garotos imaturos que o humilhavam e o atacavam verbalmente. Apesar de apenas duas semanas terem se passado, Yoshida e Henry já haviam estabelecido uma boa relação.
Naquela altura, nada era controverso do ponto de vista do menino mais novo; ademais, o segundo rapidamente compreendeu a personalidade do asiático. Afinal, ele era inteligente, atraente e carismático. No entanto, certos contratempos surgiram mesmo sem aviso, e o olhar hesitante de Yoshida em direção ao portão da casa pitoresca onde Henry morava era um deles.
O bairro Odile possuía inúmeras residências simples e coloridas, uma vizinhança harmônica, sem brigas entre os moradores. Famílias de baixa renda pairavam frequentemente nas avenidas; todos os domiciliados eram padres, deputados, idosos, arquitetos e cristãos. Muitos nativos de outras cidades do estado de Michigan passavam por lá, pois as casas eram utilizadas apenas para fins de semana ou férias de verão.
Henry parou de carregar sua mochila nas costas e ofereceu-se para segurar a do colega, que parecia esgotado. Sua coluna mal estava reta sob o peso dos livros didáticos. Albarn pegou a chave do bolso e permitiu que o convidado entrasse primeiro. O casarão neutro e tranquilo atrás dos portões trouxe a Yoshida um certo conforto e paz. Além de tudo, o novato foi amável ao carregar sua mochila.
Ao chegar pelo jardim, pisando na grama esverdeada e molhada, uma mulher de meia-idade, com a cabeleira volumosa e avermelhada — envelhecendo a coloração por conta dos fios brancos —, longa até o final dos ombros, pele exatamente branca e oleosa. Com um ar austero, usava um sobretudo preto, e seus crucifixos branco e vermelho ornavam-lhe o pescoço. Nomeada Gisele Albarn, ela era a irmã do pai e uma das guardiãs legais do sobrinho embaraçoso. Ao avistar um garoto mais novo que o pálido, expressou surpresa com a visita. Era algo completamente novo, nunca antes imaginado pelo garoto Albarn.
— Olá, tia Gisele — cumprimentou a senhora cordialmente. — Precisa de algo?
— Quem é esse garoto, Henry? — apontando em direção ao jovem que a fitava confuso, resolveu virar o rosto para a esquerda. — Você não nos avisou que teríamos visita.
— Este é Yoshida, ele é meu novo amigo. — O apresentou, tocando os ombros largos do visitante, querendo não dar atenção para os dois. — Nós vamos estudar lá em cima e nos divertir um pouco. Meu dia na escola não foi dos melhores, e a senhora e a tia Miranda estão ocupadas.
Miranda era a esposa de Gisele. A convivência entre as duas mulheres no internato construiu um relacionamento, o que era algo repudiado na comunidade religiosa. Se o lar de Deus acolhe todos os seus filhos, por que não aceitariam seu amor e devoção?
— É um prazer conhecê-la. — Miller fez uma leve reverência à mulher mais velha. — Nós estamos no mesmo colégio e vou embora em breve. Então, ficarei apenas alguns minutos.
— Você vai mesmo embora? — Henry sentiu-se traído. — Tem certeza de que deve ir cedo?
— Sim, minha família não sabe que estou aqui. — Disse o visitante, por fim. — Aceitei o convite, mas, como tinha dito, preciso ir embora antes do anoitecer.
— Bom, espero que se divirta comigo antes de sua saída — disse, falsamente despreocupado, recusando-se a querer que ele partisse. Seu sangue fervia entre as veias. Não, não estava nada bem; na verdade, para ele, as coisas iriam terminar em uma catástrofe se o deixasse ir em vez de executá-lo. — Respeito seu espaço.
Gisele, sem saber o que falar, deu as costas para os dois rapazes e saiu, deixando-os sozinhos, sumindo para longe.
— Ela é sempre assim? — Yoshida ficou intrigado com a atitude da ruiva, que sequer os cumprimentou. — Puxa… Não queria causar nenhuma má impressão.
— Ela é assim desde que eu era pequeno; você não tem culpa de nada — o pálido gesticulava de maneira teatral com as mãos. Cansado de esperar pelas tias, decidiu sair da entrada. — De qualquer forma, vamos entrando? Quero mostrar para você o meu quarto.
— Claro, vamos. Afinal, temos que estudar.
Na realidade, a senhora estava preocupada com as intenções do sobrinho. Ele nunca tinha trazido visitas para casa em todos esses anos. De acordo com o argumento de seu irmão, o menino mudava completamente de comportamento quando alguém além da família aparecia.
Edward censurava os detalhes para a irmã, pois falar sobre o filho era seu assunto menos favorito. Mal tinha consideração por ele, então, por qual motivo se preocuparia, não é mesmo? Não estragaria seu casamento por um merdinha bastardo.
O visitante se destacava nessa situação como um simples jovem comum; entretanto, para Albarn, Yoshida era muito mais do que isso. Ele tinha a chance de tê-lo como um troféu, exclusivamente seu, e ninguém mais estaria presente. Nenhum ser humano além de Henry.
Ao explorarem seus reflexos na água escura da piscina, houve uma breve pausa entre os dois. As folhas alaranjadas do outono caíam e flutuavam sobre a imagem de seus rostos, criando uma visão um tanto distorcida. Era intenso e profundo encarar os olhos azuis dele, mesmo em um reflexo, mostrando ainda mais tensão.
Balançando os carvalhos das árvores devido à bruta ventania do céu, diversas folhas corriam contra a brisa amargurada. Era sinal de que uma tempestade surgiria na terra, sob um chuvisco ínfimo.
Henry não se virou para conversar com Yoshida. Em vez disso, permaneceu formalmente sentado na borda da piscina profunda, enquanto o visitante imitava sua ação, sentando-se inquieto ao seu lado. O asiático seguiu seu ritmo, mesmo sabendo que não podia perder muito tempo; afinal, tinha um horário para chegar em casa.
Ele ficou paralisado, sem saber o que dizer, sem iniciativa alguma. Parecia que a vida estava apática; nada se movia ou mudava de lugar. Sua feição estava congelada em uma expressão claramente desanimada, piscando sem parar.
Não obstante, o pálido foi automaticamente guiado até a porta de entrada, onde a imagem de São João Neumann havia sido colocada. Albarn se ajoelhou, fazendo uma oração: “Deus de amor e de bondade, cuja graça renova a vida humana a cada dia, concedei-nos, pela intercessão de São João Neumann, as forças necessárias para enfrentar os desafios que pretendem enfraquecer nossa fé. Por Cristo nosso Senhor. Amém. São João Nepomuceno Neumann, rogai por nós.” Após sua prece, o sinal da cruz foi feito entre duas a quatro vezes. Finalmente, adentrou o domicílio, permitindo a entrada do convidado. Porém, seu colega demonstrou hesitação ao explorar o local.
O adolescente ignorava a existência de certos lugares, inclusive a sala escura repleta de velas, santos, crucifixos e quadros com orações escritas, possivelmente venerados. Pois eram os principais cenários religiosos; o japonês deduziu que os familiares do recinto eram radicalmente devotos ao catolicismo tradicional.
As janelas estavam cerradas; não havia televisão ou qualquer aparelho eletrônico. Duas poltronas de couro bege e um vaso caríssimo, acima da mesa da sala de jantar, continham esvoaçantes orquídeas se abrindo.
"Como alguém consegue viver sem isso nos dias de hoje?" O mais novo questionou, com os lábios trêmulos e as sobrancelhas franzidas de agonia.
Esquecendo-se dos cômodos e detalhes daquela casa austera, o estudante, no entanto, sentiu sua boca e garganta secarem rapidamente. Precisava beber água — a ansiedade fez sua garganta secar.
Antes de subirem para o quarto, como Henry sugeriu, Yoshida perguntou sem delongas:
— Será que eu posso tomar um pouco de água ou qualquer refrigerante?
— Está com sede?
— Sim, por favor, me dê algo para beber.
Enfurecido com a demora e hesitação de Miller, Albarn o observou de cima a baixo, gesticulando murmúrios e batendo o calcanhar do pé no chão impacientemente. Abandonou o casaco calorento no sofá, vestindo a camiseta branca com o emblema do instituto estudantil costurado no peito.
— Achei um refrigerante de laranja — anunciou, abrindo a geladeira ao mesmo tempo. O ar frio soprava em seus braços nus. — Você gosta?
— Sim, gosto! — O pequeno sorriso deixou transparecer uma intenção maliciosa, mesmo que de forma sutil. — Vai matar minha sede, disso tenho certeza.
— Ótimo! — exclamou, satisfeito. — Agora, você se importa de me dar licença? Vou pegar os copos do armário e servir as bebidas para nós.
— Claro, mas... você não quer ajuda?
— Pegue a garrafa para mim, por favor.
— Certo.
Yoshida se aproximou do armário, pegou um dos copos de vidro com cuidado e o sobrepôs na pia. Com a ajuda de seu colega, ele retirou as duas garrafas de Crush da geladeira, deixando-se sozinho, sentando-se no sofá conforme Henry indicara.
Era uma estratégia tentadora encontrar veneno de rato na gaveta para envenená-lo ou querer adulterar a bebida com soníferos e substâncias químicas. No entanto, o jovem resistiu em ceder às ordens de sua mente perturbada. Assim, contentou-se em fechar a gaveta, mas escondeu uma faca de cozinha atrás das costas.
“Ele é tolo o suficiente para acreditar que vou realmente servir de consolo.” Ao encher os dois copos com o refrigerante, o garoto estava com as mãos ocupadas enquanto se aproximava de onde Yoshida estava sentado. A bebida foi entregue, mas não foi sabotada.
O casal de mulheres religiosas havia saído para o mercado do outro lado da cidade, concedendo ao visitante a oportunidade de se acomodar na companhia do sobrinho. Não queria levantar suspeitas sobre o que faria, o fogo ardendo em seu instinto assassino.
Henry era habilidoso; fazia parte de seu modus operandi: chamar um indivíduo para seus encantos e convencê-lo a fazer o que queria, manipulando-o através de sua lábia fatal, sedutora e inocente, para realizar seus desejos nocivos.
Ao encher os dois copos com o refrigerante, o garoto estava com as mãos ocupadas enquanto se aproximava de onde Yoshida estava sentado. A bebida foi entregue, mas não foi sabotada. Ambos fizeram um brinde, tomando o refrigerante em sequência.
— Puxa, estava sedento! — disse o asiático, satisfeito, depois de matar a secura em sua boca. — Esse é o melhor refrigerante que já tomei em toda a minha vida. Nunca vi nenhum desses com gosto parecido.
— Deu para perceber — Henry balançou a cabeça de um lado para o outro, fixando-o com um olhar intencional. — Achou refrescante, não é mesmo? — escorregou os dedos lentamente até a ponta fina da lâmina de sua faca escondida.
— Com certeza. — Yoshida sorria contente enquanto colocava o copo de volta na mesa de centro. — Sua casa é bem diferente, você sabe? Essa decoração é meio abstrata.
Albarn parou de segurar o objeto afiado debaixo de sua camisa, surpreendido com a curiosidade do adolescente.
— Como você define abstrato?
— Bem... — Yoshida semicerrou os olhos para as paredes decoradas. — Acho que são essas velas e cruzes ao redor da estante. Suas tias são muito religiosas!
— O catolicismo é a estética da casa inteira. Sim, ambas sempre foram fiéis a Cristo, uma delas sempre comunga — sua voz baixa ganhou um tom mais amargo. — Desde que cheguei, elas aumentaram as orações. Acreditam que um demônio ronda essa cidade. — Um riso zombeteiro saiu por impulso. — Coisa de maluco, né?
— Oh… — Yoshida estava sem saber o que comentar. — Isso é bastante mórbido, tenho que admitir.
— Eu só acho que nada disso tem a ver comigo — o pálido enfiou as mãos nos bolsos. Yoshida ainda parecia desconfortável. — Mas também... quem não é meio louco nos dias de hoje? Swan Lake, pelos boatos, é uma cidade cheia de lendas sobre assassinos implacáveis ou demônios sobrenaturais; sei lá o que isso significa.
Miller engoliu em seco.
— As lendas aumentam a cada época do ano. Para viver aqui, é preciso ter a mente aberta — avisou diretamente. — Quer dizer, não diria que essa cidade fosse semelhante a uma Sin City.
— Sin City?
— É uma história em quadrinhos do Frank Miller — começou a explicar o título mencionado de uma das obras que havia lido nas férias. — É sobre uma cidade onde só criminosos, cidadãos desamparados e personagens imperfeitos vivem. Ela é repleta de violência, sexo, morte e totalmente fascista, porque o autor insere elementos meio criminosos, por assim dizer.
— Interessante — fingiu estar entusiasmado com os assuntos intelectuais do rapaz. — Talvez eu procure um dia para ler.
— Você tem cara de que gosta desse tipo de conteúdo — em seguida, decidiu mudar de assunto. — Sinceramente, acho que às vezes fico assustado com as pessoas, sabe?
— Por que? Quais são seus medos?
A tensão malfeitora aumentava sucessivamente.
— Os meus medos? — ele gaguejou, intimidado. — Eu não sei... Acho que meu maior medo é perder minha família. E também não poder sair de casa; odeio me sentir preso. Ah, e eu também tenho medo do escuro.
"Escuro, perda, solidão", Henry repetia essas três palavras-chave em sua mente. Ele virou o pescoço para os lados, causando estalos. O silêncio pesado tomava conta do corredor.
Antes que Henry pudesse seguir com seu plano, ele sugeriu que subissem para o quarto depois da breve conversa e da bebida.
Concordando com Albarn, Yoshida pegou um de seus livros de história para estudar, enquanto o outro garoto puxava a cadeira e deixava a porta do quarto aberta. Henry observava enquanto Yoshida se acomodava na cama e ligava a televisão de 22 polegadas para jogar videogame depois dos estudos.
A matéria sobre a Revolução Francesa era entediante. Eles leram textos, responderam perguntas e assistiram a alguns documentários em um canal educativo encontrado no YouTube, a maioria sendo vídeos de professores formados ou influenciadores especializados nas matérias.
Devido a muitas horas cansativas de estudo, o céu começava a escurecer na janela, algo que não agradou ao pálido. Ele estava aguardando a frustração do colega, que começou a falar sobre sua mãe ficar preocupada. Depois de uma partida rápida de Smash Bros, risadas e comentários sobre o jogo, e discussões sobre qual personagem era o melhor, a diversão teve um fim terrível, trágico e perturbador.
Yoshida sentiu seu bolso vibrar; era o seu celular, com nove chamadas perdidas de sua mãe. Pedindo um momento, o japonês se levantou de onde estava sentado e finalmente atendeu à ligação.
— Onde você está? Por que ainda não voltou pra casa? — A mãe estava visivelmente preocupada do outro lado da linha.
— M-Mãe? Espera, que horas são? — Ele havia se esquecido completamente do tempo.
— Já são quase 20:00 da noite!
— Desculpa, eu deveria ter avisado a senhora — suspirou, sentindo-se chateado. — Um amigo me chamou para estudar com ele.
— Amigo?
— Enfim, estou indo agora mesmo — concluiu.
— Estarei te esperando. Quero uma explicação quando você chegar.
— Vou explicar tudo para a senhora!
Yoshida encerrou a ligação e voltou sua atenção para o colega, percebendo que, por um instante, Henry não estava mais no quarto.
— Henry? — chamou. — Você ainda está aqui? — chamou novamente. — Acho que deve estar embaixo. Preciso ir embora; minha mãe está preocupada.
Coitado do garoto... Ele nem imaginava que Henry estava se escondendo, preparando-se para ameaçá-lo. Não queria deixá-lo ir embora; precisava mantê-lo ali como isca, senão suas tias descobririam e o trancafiariam na capela dos fundos, enchendo-o de medicamentos.
Henry queria poder relembrar daquele ocorrido. Aquela noite havia sido mortal.
Yoshida, então, pegou seus livros e os segurou nos braços, ajeitou os óculos que haviam escorregado pelo rosto, calçou seus tênis e desligou a televisão. Por fim, abriu a porta do quarto. Quando percebeu, a casa estava tão escura que mal conseguia enxergar a palma de sua mão.
Segurando o corrimão da escada, impulsionado pelo medo que tomava conta de seu subconsciente, ele virou-se abruptamente para trás, achando que estava sendo seguido. No entanto, não ouviu nenhum passo. Continuou chamando por Henry, mas ele não respondeu. Teria ele saído? Não fazia ideia!
— Henry, por favor, apareça! — suplicou, descendo os degraus um por um. — Me mostre o caminho para fora!
Yoshida estava encurralado, preso como um rato na armadilha. Não tinha a menor noção de que o amigo gentil que havia conhecido momentos atrás estava parado atrás dele, com uma faca afiada pronta para perfurar suas costelas se ele avançasse um pouco mais.
Henry, como um anjo da morte, tinha o rosto oculto pelas sombras e um sorriso sinistro estampado, enquanto lutava contra seus próprios demônios. Ele segurou as lágrimas. Não queria sentir pena se tivesse que matar Yoshida. Ele não tinha escolha... Não queria vê-lo partir; estava implorando para que o colega não ultrapassasse aquela porta.
“Por favor, não vá, Yoshida”, ele arfou involuntariamente, respirando ofegante.
— Henry… é você que está atrás de mim?
O medo era tão evidente que Yoshida virou-se rapidamente para ambos os lados, verificando se Albarn realmente estava por perto. Seu coração batia acelerado, e suas mãos tremiam quando deu um passo à frente, quase cambaleando depois de tropeçar involuntariamente.
Ele andou, continuou a andar e parou abruptamente quando percebeu que havia alguém seguindo seus passos.
Ao virar o rosto para trás, Yoshida foi bruscamente agarrado pela gola de sua camisa e soltou um grito estridente.
A agressividade de Henry o pegou de surpresa. A ponta da lâmina tocou suas costas. Seus dedos gelados sufocaram seus gritos, impedindo-o de escapar.
Yoshida lutava para se libertar, mas suas tentativas eram inúteis. O metal frio deslizava para cima e para baixo em suas costas, dominando-o completamente. Ele estava encurralado, sem opções, sem saber o que fazer.
No entanto, um sussurro ameaçador em seu ouvido o atormentou ainda mais.
— Fique parado — Henry avisou com aspereza, retirando uma das mãos de seus lábios para que ele pudesse respirar. — Se você se mexer, vou te rasgar aqui mesmo!
— H-Henry? O que está fazendo? Me solta! Eu quero ir embora! Deixe-me em paz! — Yoshida falava com voz trêmula, mas o grito foi abafado pela mão de Albarn, que continuou a cobrir seus lábios. — Me solta, por favor!
— Não há escapatória. Estou fazendo isso porque quero te manter comigo… até a morte — o pálido, em tamanha agressividade, desceu as escadas, degrau por degrau, com o garoto rendido, mantendo-o estático em seus braços. Eles se dirigiram até o final da sala. — Se quiser procurar um lugar para correr ou se esconder, saiba que estarei atrás de você.
— Você não entende, eu quero ir para casa. Agradeço pelo convite! Nós nos divertimos muito, mas tenho obrigações! Juro que não vou contar para ninguém sobre nós dois, nem para suas tias, mas, por favor... me solte, mostre-me a saída.
— Mostrar a saída? — Henry virou o rosto de Yoshida para encará-lo, apontando a faca de cozinha sob seu queixo. Uma lágrima se formou nos olhos do garoto, que levantou suas mãos em direção ao rosto de Henry, tentando impedir o ataque. — Quem me garante que você está falando a verdade?
Enquanto olhava para o chão, Yoshida tentou pegar sua mochila e escapar, mas foi interrompido.
— Olhe para mim! — Henry gritou, erguendo ainda mais a faca. Seus cabelos caíam sobre suas têmporas, e seu olhar estava cheio de raiva. — Quero que você olhe para mim!
— Estou olhando! — O asiático respondeu com voz chorosa. — Por favor, não me machuque… Tenha piedade, pare!
Albarn abaixou a faca à medida que a tensão aumentava junto com os batimentos cardíacos. Um riso sinistro escapou de seus lábios, e ele limpou as lágrimas do rosto de sua vítima, usando isso como uma forma de manipulação.
Uma beleza inexplicável, todavia amedrontadora e insalubre, a presa aos prantos implorando para ser livre. Tremendo, perdendo o ar de seus pulmões, quase perdendo as cores da carne de seu corpo indefeso e maculado.
— Você chorando… é tão maravilhoso presenciar seu desespero — articulou em um tom autêntico e sedutor. Henry continuou a se comportar de maneira perturbadora, tocando os cabelos negros do visitante e tentando beijar a testa do rapaz, que se afastava gradualmente. — Preciso ter você... Você é tão excepcional. Quero preenchê-lo de dor.
— Do que você está falando?
— Uau, isso não está óbvio para você? — ele questionou, aproximando seu rosto do rosto assustado do outro. — Cada segundo que passei com você foi incrível.
— Isso não justifica nada! — Yoshida o empurrou. — Henry, estou falando sério! Se você não me soltar... vou chamar a polícia! — soltou uma ameaça, embora balbuciasse pelo medo, apontando raivosamente.
Yoshida cerrou os punhos e rapidamente os levou em direção ao rosto pálido de Henry, que conseguiu se esquivar. Antes que ele pudesse escapar, o sociopata atacou seus rins, joelho e barriga. Miller gemeu de dor, e lágrimas continuavam a cair. Socos foram direcionados ao seu rosto. Henry estava fora de controle, sem nenhuma consideração por suas ações.
Quando o japonês caiu para trás no chão frio, o peso do corpo de Henry o impediu de se levantar. Mais gritos ecoaram quando ele retirou brutalmente a faca do corte profundo, manchando a camiseta da vítima com sangue, e pegou a faca afiada, com a lâmina tingida em vermelho vibrante.
Isso o excitava; o deixava em êxtase.
Yoshida tentava reagir, mas evitava mover qualquer músculo. Henry olhava para a lâmina e depois para o jovem, tentando descobrir como se livrar do corpo. Yoshida teve as lentes de seus óculos quebradas; sua visão estava turva e seu corpo, fraco e gravemente ferido. A visão do rapaz problemático e pálido não o deixava.
O curioso foi Henry perceber que Yoshida ainda estava consciente e reagindo. Foi quando ele se aproximou mais do ouvido dele e declarou:
— Yoshida... ainda consigo ouvir sua respiração — riu com um tom nasal. — E sentir as batidas do seu coração.
— Por favor, me deixe ir embora.
— Fique calmo... — Henry o levantou. — Vou te mostrar a saída, vou deixar você ir embora — segurou a mão esquerda do estudante. — Você estará seguro na capela. — Era onde pretendia matá-lo.
Sem entender completamente o que estava acontecendo, Yoshida decidiu seguir as instruções, apoiando-se nas pernas trêmulas e com um braço apoiado nos ombros de Henry. Sentiu o toque do rapaz em seu couro cabeludo enquanto ele segurava sua cintura fina.
Saíram da casa, deixando a faca cair no chão da sala, e chegaram ao jardim, mesmo com Yoshida lutando para enxergar devido à sua fraqueza.
Percebendo que Henry estava distraído, Yoshida aproveitou para reagir, dando-lhe uma cabeçada e empurrando-o ao chão.
Ele correu, correu o mais rápido que pôde. Tentou pedir ajuda, mas perdeu muito sangue e acabou falecendo quando um galho de árvore caiu sobre sua cabeça durante a tempestade.
Era isso que Henry se lembrava… após desmaiar.
— E quando acordei… Ele estava lá, gravemente ferido. Dei um grito alto e comecei a querer um mandato de socorro, mas ninguém deu ouvidos — Confessava sua história distorcida para Melissa, baseada em detalhes fabulados. Na versão dele, Yoshida havia sido morto e o assassino responsável pelo crime sumiu, no entanto… A verdadeira versão ele sabia que não tinha nenhuma ligação com o que contava, porque soube fielmente o quanto Yoshida era fraco e não resistiu por muito tempo. — Isso foi tudo que aconteceu — respirava por um segundo para poder ir adiante. — É tudo que consigo me lembrar.
— …O paciente alega que ao despertar entrou em pânico com a visão do cadáver, ele acredita que tenha sido assaltado. Mas algo está definitivamente errado: “era um sangue vermelho vibrante.” O que isso pode significar? — Melissa ficou chocada com tantos detalhes descritos por Henry e demorou um tempo para se recompor. Ela estava fazendo suas anotações finais, listando cada relato. Era estranho pensar que alguém tão bonito e educado poderia ser mentalmente doente. Em todo o decorrer da história inventada por Henry, dava para notar seu choro fingido, mas cada narrativa descritiva mostrava admiração pelo ocorrido, achando ser uma aventura.
Diferente de assassinos em série famosos — a psicanalista Grant já atendeu: predadores sexuais, homicidas, canibais, aniquiladores, todo o tipo de criminoso que possa imaginar — o garoto Albarn não parecia ser particularmente inteligente. Era uma situação única para ela. Melissa tinha esperança de que ele pudesse mudar, pensava que talvez tudo fosse um tipo de encenação. É impossível curar um louco, assim como é difícil tirar o podre de uma laranja. Henry poderia estar livre e curado, em contrapartida, a ultraviolência consumiria cada fibra de seu ser.
— Se Yoshida não tivesse sido encontrado pelas suas tias, o que você faria com ele? — Questionava a loira, enquanto o hóspede cruzava as pernas ansiosamente.
— Como assim? — Não entendeu.
— Você o salvaria?
— ...Sim, deveria ter o salvado das mãos daquele desconhecido se eu não tivesse um apagão.
— E se o culpado for realmente você?
— Senhora Grant, por favor, não me subestime — ajustou sua postura. Limpando a garganta — Eu nunca faria mal ao Yoshida. Acredito que ele apenas sofreu e eu não tive a oportunidade de ajudar.
— Entendi! — A psicanalista concordou. — E como você descreveria o culpado?
— Tenho a impressão de que ele seja um homem alto, pálido, perigoso… — Enumerou as características com os dedos — Ele o golpeou com facadas e punhos, correu para matá-lo, mas no mesmo instante uma árvore derrubou sobre ele. — Anunciou seu ato.
— Uma árvore caiu sobre ele, é isso?
— Sim. Isso é outra coisa de que me lembro.
— Certo — ela respirou fundo. — Então, resumindo: a faca encontrada na sua sala estava com sangue, você não se lembra de todos os detalhes e estava deitado ao lado do corpo.
— Isso mesmo — confirmou. — Eu comecei a chorar e tentei ligar para a polícia, mas minhas duas tias me impediram. Então fui mandado para cá.
— Hm... — A terapeuta se levantou abruptamente da cadeira. — Henry, qual era a cor do sangue, de novo?
— Vermelho vibrante.
— Por que "vibrante"?
— É estranho dizer, mas acho admirável e bonito. Ele estava parecendo uma pintura renascentista mórbida deitado; eu gostaria de ter tido a oportunidade de desenhá-lo. Se eu tivesse o protegido daquele acidente horrível — ele cruzou os braços. — Não me interprete mal, senhora Grant.
— Está bem, você pode ir embora da minha sala... — Ela balançou a cabeça, ainda processando as informações. — Vamos conversar mais amanhã à noite. Você tem aula amanhã.
— Claro, claro! — despediu-se. — Boa noite!
— Boa noite!
Melissa saiu da sala e se deparou com Billy, seu segundo filho. Ela observou enquanto June acompanhava o rapaz pálido até o quarto, sentindo um alívio. Decidiu chamar o segundo filho para alertá-lo sobre Henry:
— Billy, quero que você me faça um favor a partir de agora.
— O que foi, mãe?
— Fique longe do Henry! — apontou o dedo para ele. — Entendeu? Longe.
— Claro! Eu já estava pensando nisso. Estou mais preocupado com o Brian. Eles estão sempre juntos.
— Fique de olho no seu irmão! É só isso que eu peço! — falou, preocupada. — Este rapaz está em tratamento. Você pode fazer isso?
— Claro, mãe! A partir de amanhã, vou ficar de olho neles.
Quando Billy desejou boa noite para sua mãe e saiu, viu o outro garoto subindo as escadas. Pelo menos eles estariam seguros — pelo menos, era o que Melissa mais desejava.
Esta era a vida de Cassandra Silverstone Rutherford, a ovelha negra da família, uma típica moça complicada e traumatizada, que transcendia o início da pré-adolescência, embora não conseguisse ter um minuto de paz. Assim como qualquer ser humano, Cassie possuía seus defeitos. Não que odiar a socialização fosse exatamente um defeito, mas, aos olhos de seu pai — William Wilbur Silverstone —, era, sim, um problema preocupante.
Silverstone queria morar com sua avó materna, pois era a única que a ouvia. Quando se é filha de um pai ausente, nenhum diálogo existe; nenhum mínimo de amor e sentimentalismo é facilmente encontrado. O pai nunca demonstrou qualquer tipo de atenção. Na tentativa de fazê-la se enturmar com sua entediada madrasta, Cassie preferia trancar a porta do quarto e ouvir música com os fones do iPod no último volume.
A convivência com os adultos era, no mínimo, incompreensível. Ela permaneceu dez anos ouvindo gritos, na tentativa de ser educada, recebendo puxões de orelha do padrasto depravado, que chegou a lhe bater com um cinto de couro, marcando feridas cicatrizantes em suas pernas. Ele a trancava em seu quarto até que Cassie resolvesse obedecer. A matriarca, por sua vez, era o estereótipo da mulher megera, que parecia ignorar o sofrimento da filha para dar atenção exclusivamente ao seu marido — por mais estúpido que fosse.
No entanto, sua avó era a que se destacava. Sempre acolhendo a neta em sua casa e se esforçando para entender o ponto de vista da menina, ela era a única pessoa da família com quem Cassie conseguia se abrir e conversar sobre suas dores — pelo menos sobre o que passava em sua cabeça.
O tempo passou, e a jovem de pele branca, repleta de olheiras fundas e com uma pinta no nariz, possuía radiantes íris castanhas escuras e longos cabelos loiros perolados repartidos ao meio. Seu colégio comunicou-se imediatamente com a justiça devido aos abusos domésticos e à negligência familiar; infelizmente, a guarda não foi permitida para sua avó, fazendo com que o juiz concedesse legalmente a guarda de Cassandra a William.
Ela implorou para poder viver com sua avó, mas a mulher mais velha não pôde fazer nada. As duas trocavam mensagens e ligavam frequentemente, porém Cassie recebeu a notícia de que sua avó havia falecido de um infarto fulminante. Isso gerou uma profunda depressão na loira, mas, ao longo dos anos, ela conseguiu superar.
Quanto à família paterna, era realmente harmônica. Havia uma segunda jovem adulta e uma esposa de aparentemente quarenta e três anos, ambas ruivas, com olhos azuis brilhantes mesmo sem a presença da luz solar. As feições salpicadas de sardas se destacavam devido ao tom cenoura de seus cabelos. O marido possuía curtos cabelos cor de mel, crespos; barba espetada e olhos acinzentados. No entanto, a personalidade deles era fútil e desagradável, de vez em quando.
Lauren Wilbur trouxe sua filha, Ashley, para morar com William e esnobava a garota loira sempre que ele saía para trabalhar. Cassie era constantemente obrigada a cumprir rotinas desgastantes e a ser responsável pela limpeza do lar. Posteriormente, ouvia repreensões da madrasta pela “péssima” limpeza — a mãe biológica de Silverstone também pedia que ela fosse organizada, mas isso mais se assemelhava a um trabalho escravo do que a uma rotina doméstica comum. Ashley era a única que recebia liberdade e respeito.
Cassandra terminava os afazeres domésticos sem reclamar. No entanto, Ashley achava que a meia-irmã precisava de descanso e fazia questão de ajudá-la a arrumar os quartos e lavar as peças de porcelana. Cassie sequer agradecia, pois, para ela, a ruiva era chata e superficial.
As circunstâncias naquela época eram bastante peculiares. Cassie Silverstone havia sido vítima de assédio sexual por um colega de classe e o chutou nas partes íntimas numa tentativa de defesa. Ao tentar relatar o incidente ao diretor da escola, recebeu uma resposta machista, diretamente do século passado: "Você é uma jovem atraente para a sua idade, e garotos na puberdade não têm culpa de se comportarem assim. Quer um conselho? Você deveria se vestir de maneira mais decente se quiser evitar que isso aconteça novamente." O mais irônico é que ela estava usando o uniforme padrão da escola. Não era a primeira vez que isso acontecia; Cassie frequentemente tinha que se esquivar dos garotos, alguns pedindo que ela fosse ao banheiro com eles — frases rabiscadas em canetão permanente nas paredes: “Cassie Silverstone me deve um boquete”, “A loirinha fogosa senta muito”, “Cassie Silverstone é uma vadia tímida” — ou a insultavam com termos misóginos e grotescos.
Ela relembra cada vez o dia em que sua finada avó lhe disse: “Os homens não são como nós, mulheres. Eles foram feitos para serem predadores e constituírem famílias, mas, ao mesmo tempo, são frios e podem até se tornar egoístas quando uma mulher diz um ‘não’ para eles. Se algum moleque merdinha te azucrinar, desça o cacete nele ou chute bem no saco com toda a força! Assim, ele não vai ter filho nenhum e não vai pagar pensão; afinal, todos os homens temem pagar pensões de filhos que não querem assumir.” Ela acreditava na filosofia da avó, que fazia muito sentido. Através da vivência com o padrasto, Cassie cresceu entendendo quão tenebroso era compreender a mente de um homem quebrado e tóxico.
Infelizmente, o garoto saiu impune e Cassie, com toda a indignação do mundo, não poupou palavras e xingou imediatamente aquele homem incompetente. O resultado foi passar mais algumas horas de sua adolescência na detenção — que já era conhecida como sua segunda sala.
A era estudantil nunca mudou; era eternamente infernal. Não surpreendia o fato de Cassandra odiar a escola. Devido ao seu comportamento hiperativo, que fugia do padrão esperado, ela era um alvo constante de bullying e piadas tolas. Contudo, engana-se quem pensa que ela era uma loira frágil. Diferentemente de muitas pessoas antissociais, para se defender dos assédios que sofria, Silverstone deixava emergir seu instinto agressivo e usava xingamentos e agressões físicas para proteger sua integridade.
Ela sequer teve um bom relacionamento com os alunos. A natureza de seu comportamento agressivo teve início no quinto ano, quando Cassie precisou enfrentar seu maior pesadelo: Debra Fletcher. Foi o pior ano escolar de sua vida — devido às péssimas notas no boletim e à contagem excessiva de faltas — já que a mimada de doze anos se divertia humilhando crianças que não faziam parte de sua classe social, e Cassandra foi sua primeira e favorita vítima.
Puxões de cabelo, roubo de materiais e empurrões na escada eram apenas alguns dos tormentos que ela infligia. Os professores não tomavam medidas cabíveis naquelas situações; se os Fletcher abrissem parcerias com verbas escolares, eles apoiavam uma boa educação, liberando sua única garotinha para ter inúmeros direitos dentro da instituição.
A loira chorava todos os dias no banheiro feminino, não aguentando mais sofrer sem motivo. Era impossível desabafar com a matriarca, pois, se chegasse machucada por causa dos empurrões da escada, apanhava mais injustamente. Cassie não revidava; mal tinha coragem de encarar Debra nos olhos, e, por isso, Debra a rebaixava. “Neste mundo, os diferentes caem, e os melhores alcançam o sucesso.” Após essa tortura psicológica, a loira passou anos planejando uma maneira de pôr um fim a tudo isso — ela não era insana o suficiente para cometer massacres e tiroteios iguais aos casos que apareciam na televisão. Pobre menina, ela foi uma criança inofensiva na época.
Foi então que Cassandra quis elaborar uma pegadinha de mau gosto. Pegou tinta spray da garagem de sua antiga casa, comprou sangue falso — daqueles usados em maquiagens de Halloween — e esperou estar sozinha para guardar todos esses "materiais ilegais" em sua mochila.
Sua mãe havia perguntado: “Que merda você vai fazer, garota? Saiba que, se eu for convocada na direção por sua causa, você vai apanhar dobrado e ficará de castigo por duas semanas.” Avisou, apontando o dedo raivosamente, com uma voz rouca, típica de uma fumante compulsiva.
A filha virou-se para o campo de visão da mulher, replicando: “Estou buscando vingança! Não aguento mais ser humilhada pela filhinha de papai… Vovó Georgia me disse que, quando somos destinados a sofrer, não podemos ficar calados. As meninas se defendem. Então, também vou criar atitude para finalmente derrotar quem quer me destruir.” Sem reações vindas da mais velha, viu a menina sair pela porta, dando adeus sem nenhum contato visual.
A matriarca, Chloe Rutherford, deu de ombros, fechando a porta do domicílio com uma indiferença compactada em seu semblante.
No dia seguinte, em um surto de coragem, Cassandra pichou o armário de Debra com palavras como: “escrotinha mimada”, arrombou o armário da garota e deixou lá uma cabeça de manequim com uma peruca das mesmas cores de suas madeixas, ensanguentada, rindo só de imaginar o pavor que causaria em Fletcher.
O plano havia sido concluído. Cassie aguardou pacientemente até a chegada de Debra, gargalhando com o berro agudo que ouviu em seguida. De súbito, sentiu seu corpo ser empurrado diretamente ao chão áspero do corredor. Foi nesse momento que Silverstone levou o soco mais agressivo de sua vida. Todavia, não foi Debra quem ganhou a briga.
Cassandra foi convocada para a sala do diretor, onde sua expulsão foi anunciada. Em seu rosto, era possível notar lágrimas caindo lentamente. Começou a chorar, estressada por aguentar o diretor gritando com ela — implorando para que ele não chamasse sua mãe —, mesmo após seu desabafo sobre as inúmeras vezes que havia sido vítima de bullying pela colega. Ademais, nada surtiu efeito; Chloe abordava a filha desnecessariamente, opinando cruelmente que Cassie não passava de uma criança manipuladora defendendo a outra garota.
Seu pai, obrigado a sair do emprego para participar do conflito que sua filha mais velha causou, não testemunhou a cena naquela época. Diferente da ex-mulher, William reconhecia várias falhas em Cassie, nem sempre sendo culpa da pequena moça. Cassandra não tinha idade o suficiente para argumentar fluidamente, mas também não admitia ter errado ao sabotar e aterrorizar sua colega.
William, que era um advogado responsável, processou a escola e estava ciente dos direitos dos alunos, sabendo que a instituição deveria prestar assistência a cada um deles.
Chloe não perdeu seu tempo com toda a picuinha, saindo da sala do diretor sem pestanejar. Dava muita pena vê-la viver com uma mulher grosseira e negligente. Foi naquele momento que a mente destruída de Cassandra decidiu se abrir; ela diria para os professores e autoridades que a vagabunda hipócrita de sua mãe estava fodendo com a porra de sua vida.
Pensava naqueles longínquos anos em que se encorajaria a dizer o quanto aquela família a maltratava, querendo ter a certeza de morar com sua avó — infelizmente, seu maior desejo não aconteceu, contando a verdade tarde demais.
Infelizmente, todas essas ações resultaram em vão. Ao final dessa história, ninguém saiu como inocente, mas também ninguém foi punido. Cassie sentiu remorso logo em seguida; no entanto, isso não foi o suficiente para provocar uma mudança em suas atitudes.
Teve que se adaptar a diversas escolas diferentes. Depois do ataque de Debra Fletcher, Cassie ouvia mais sermões de seu padrasto e foi forçada a trabalhar aos treze anos em uma oficina de automóveis. Trabalho infantil era crime, mas ninguém queria resgatar uma adolescente, pois sua antiga vizinhança cuidava da própria vida.
Essas lembranças ela jamais iria esquecer.
“Vovó… se estivesse comigo agora, me diria exatamente o que estou passando.” Releu sua última mensagem encaminhada de seu telefone, desligando o aparelho sob o peito. O celular caiu lentamente ao colchão, produzindo um leve estrondo pelas molas, que era audível.
A família Silverstone estava feliz dentro do carro, aguardando a garota mais velha se despedir de sua antiga casa. Estavam se mudando para outra cidade, pois William havia sido transferido. Era estranho para Cassie perceber que estava abandonando sua vida anterior, marcada por tantas chatices e babaquices compostas em passeios chinfrins e festas de parentes que ela não tinha nenhum interesse em ver novamente.
Tragédias e ruínas ocorreram nas últimas semanas, muitas das quais causadas pela própria Cassandra. Ela ainda brigava na escola ou ia para a detenção; acabara de fazer dezenove anos e ainda não havia aprendido que já era uma jovem adulta.
Lauren não suportava mais lidar com as reclamações do marido sobre sua enteada, tão intensa e fechada, que só trazia inconveniência.
Ao mesmo tempo em que a jovem se sentia apavorada com essa ideia, não tinha medo de encará-la. De acordo com Lauren, ninguém mais suportava o temperamento anormal de Silverstone. Contudo, as emoções são difíceis de serem colocadas em ordem. Ashley nunca dava preocupações; ela era sociável e a mais linda animadora de torcida do colégio.
Deixar para trás Golden Oaks era um alívio para seu subconsciente; ela não teria mais a obrigação de encontrar as mesmas pessoas chatas. Havia algo melhor do que isso? Cassie mal podia conter um sorriso brilhante diante de tudo aquilo.
A loira usava um moletom com o capuz puxado, dando-lhe uma aura melancólica, como se estivesse em um videoclipe triste. A calça jeans exibia alguns rasgos nos joelhos, combinando com seus coturnos táticos, o que não lhe conferia uma aparência muito amigável. Agora, ela se dirigia ao Cadillac DeVille preto que a aguardava para levá-la para longe dali. Era um alívio se despedir; no entanto, lembranças da noite anterior a deixavam entristecida e atordoada de alguma forma.
Cassandra fumava tranquilamente na varanda de seu quarto, que agora estava desocupado devido aos móveis terem sido levados pelo caminhão de mudanças. Enquanto aproveitava o som apático de Radiohead, que refletia suas emoções a cada estrofe, a sensação de solidão e culpa facilmente a sufocava, apertando seu coração no peito e fazendo lágrimas rolarem por seu rosto. Pensava que, se voltasse no tempo, faria tudo diferente e ajudaria sua avó com os tratamentos médicos; ela nunca mais teve notícias de sua mãe — apagando sua existência de vez.
William continuava agindo desinteressado pela filha. Tentava chamá-la para conversar, mas Cassie sempre rejeitava seus assuntos. Ele cobrava e insistia que ela fosse compreensiva e entendesse que seu amor por ela era real, embora não demonstrasse. Se ele se abandonou sem dar nenhum sinal de vida… por que caralhos queria aproximação dela? Ou por que não a deixou morar com sua sogra?
No meio das entrelinhas de suas concepções, batidas na porta de seu quarto chamaram sua atenção. A loira amassou o maço de cigarros no cinzeiro, desligando seu rádio logo em seguida. Ela perguntou quem estava lá, e William pediu gentilmente para entrar. “Novamente mais uma chatice pra lidar.” Cassie fechou a janela rapidamente, arrumando os lençóis do colchão estirado no chão, procurando uma posição confortável para se sentar e permitir que o patriarca entrasse.
Quando o viu adentrar na quietude do dormitório, a primeira coisa que ela notou foi a expressão de desapontamento no semblante do mais velho. Todavia, tudo o que conseguiu responder foi um sorriso fechado, sem humor; nenhum pingo de alegria. Evitava mostrar os dentes, como de praxe. Vê-la inconformada não era mais novidade para os membros da família Silverstone.
— O que você quer, pai? — suspirou levemente, demonstrando desinteresse pela discussão. No entanto, resolveu prosseguir: — Não precisa me olhar com cara de paisagem; eu já me sinto um lixo de qualquer maneira. Desculpe por não ser igual à sua ruivinha maravilhosa.
— A “ruivinha” é sua irmã… francamente, Cassandra — desapontado, o homem falava com os braços cruzados. Will tinha ouvido vários motivos da filha para suas ações, mas ainda assim sentia mais vergonha dela do que do diretor. Ela estava crescida o suficiente. — Está se tornando cada dia mais difícil te defender. Sem contar essas suas birras infantis quando peço humildemente para você ser educada e mais amorosa com a sua irmã e com minha mulher.
— Quero que a sua velha intrometida se foda — Cassie retrucou, com um tom de voz elevado. Não soube dizer se estava irritada ou apenas enfurecida. — Agora, quando se trata de eu ter sido assediada e de como me sinto com essa mudança, ninguém parece se importar, não é? Eu não quis fazer isso, mas não tive escolha, já que ninguém quis me ouvir.
— Pare de usar palavrões, menina! Pelo amor de Deus, Cassie, não se faça de vítima! Assuma seus erros e valorize o que tem! — O advogado também elevou o tom de voz e endireitou sua postura para parecer mais autoritário. — Você desafiou a autoridade, pichou um armário, danificou propriedade pública e agrediu dois meninos que são dois anos mais novos! Como quer que eu te defenda quando você não age como uma pessoa decente em nenhum momento? — Ele respirou fundo. — Você passou sua infância inteira com a vagabunda da sua mãe: te espancando, te menosprezando e te deixando sozinha com um padrasto alcoólatra, que só ensinava o que não presta. Olhe como está segura agora…
Foi interrompido quando a filha levantou a cabeça, os tons acastanhados das íris dilatadas, criando uma visão furiosa, como se averiguasse uma fogueira na brasa:
— Você me abandonou quando nasci só para não cuidar de mim. Não lembro de nenhum momento feliz ao seu lado; nunca recebi sequer um abraço seu… me deixou com aquela puta da Chloe e só aparecia ou ligava para saber de mim quando ela te chamava. — A voz amena da garota calou-se, dando espaço para um tom dominante; aquilo que havia contado era veementemente verídico. — Infelizmente, minha avó não está aqui. Sabe quanto dói não ir mais à casa de quem ama? É claro que não sabe! Amor pra você é seu trabalho e a porra do seu dinheiro sujo.
— Justificar meus erros do passado não vai tranquilizar o problema — ignorou o desabafo da jovem, pois achava que era perda de tempo. Ele queria demonstrar que realmente amava sua primogênita, mas o silêncio não era exatamente um método para excluir o assunto preocupante que Cassandra havia levantado. — Passaram-se anos; acabou. Viva o presente… droga, não faz sentido estarmos aqui. Graças às suas petulâncias, quase perdi minha esposa.
Cassandra sentiu vontade de se encolher de vergonha. Ela não era alguém que agia com violência gratuita; isso ia contra seus princípios. Prezava por liberdade e um pouco de paz, queria a oportunidade de não repetir de ano e estudar em casa quando se graduasse em uma faculdade. As repreensões sufocavam-na sem motivo.
— Interessante, então, se nós mudarmos para essa cidadezinha, Swan Lake, fará alguma diferença? — questionou, com a sobrancelha direita erguida. Ela sabia o quão Will ficava sem argumentos quando se tratava de Lauren. — Sua companheira histérica vai deixá-lo? Essa decisão se baseia nas regras dela?
— Não, essa mudança é por conta do meu trabalho, não por conta da Lauren.
— Tô entendendo — pôs as mãos na cintura, saindo da beira do colchão onde estava sentada, escorada na parede fria. — Acredito em você… quer dizer, em partes.
O patriarca queria ajudá-la, dar uma chance de torná-la uma pessoa educada e completamente diferente de sua ex-esposa. Era irônico, na perspectiva de Cassie, já que sua meia-irmã, apesar de ser vista como educada e doce por seus pais, escondia algo descaradamente.
— Se não fizer diferença… teremos que abrir mão de você. Está atrasada; deveria ter finalizado o ensino médio, mas repetiu novamente. — Era a vez de William ser sincero. A camisa branca o incomodava devido ao calor escaldante. — Já que gosta de mostrar essa sua rebeldia, sinto muito em dizer que, se não terminar a escola e não conseguir nenhum emprego, terá que morar nas ruas, igual a um vira-lata sarnento.
— Queria morar com a vovó Georgia.
— Cassandra, sua avó está morta.
— Ah, tá bom! Me desculpe, pai! Eu não aguento mais viver assim — vociferou, desistindo de argumentar sobre o que pensava a respeito. — Eu odeio ter que acordar cedo e aguentar um monte de idiotas me cercando. E quanto a essa nova casa, as coisas irão continuar sendo iguais e eu vou me defender! Se alguém for atrevido o suficiente para me provocar, vai levar um soco por ser um safado covarde! É isso!
— Então é esse o motivo pelo qual você continua agredindo os outros?
— Claro que não é por esse motivo, pai! Fui criada assim, tive a obrigação de me defender sozinha, sem deixar que nenhum cretino encostasse mãos sujas no meu corpo.
— Você pode me mostrar isso de maneira sincera e sem gritar como uma criança?
— Não preciso mostrar para o senhor! Você parece que nunca vai entender; esses merdas só me diminuem e espalham fofocas absurdas sem sequer me conhecer! — Apesar de sua agitação, Silverstone se controlou para não gritar, gesticulando com ambas as mãos enquanto falava.
— Veja só! Você está novamente se fazendo de vítima! Eu não acredito em você, garota. Assuma logo seus erros e deixe de lado um pouco as emoções.
— Mas…
— Já chega, Cassie. Não adianta me convencer do contrário.
Cassandra então rendeu-se à discussão:
— Esqueça! Vocês só sabem falar das coisas que eu apronto e nunca adianta explicar o motivo. Sempre vão tocar na mesma tecla…
— Talvez então seja melhor não discutirmos mais sobre isso. — O advogado virou as costas. William, no fundo, acreditava nas palavras da jovem, mas sabia que tinha que fazer o que precisava ser feito. Embora fosse um patriarca ausente: — Lauren está sobrecarregada por causa desse seu mau comportamento.
— Não ligo para ela. Pai, por favor, acredite em mim! — Silverstone até juntou as mãos, como se estivesse implorando pela sua vida. — Por que não posso terminar o terceiro ano e estudar em casa quando chegarmos lá? Não consigo suportar a ideia de sofrer diariamente em um lugar novo. Estou cansada de ter que me encaixar em cada escola!
— Você precisa ter contato social.
— E por que isso é tão importante?
— Garota… você precisa de amizades, pois no futuro elas podem te garantir um bom emprego e proporcionar as melhores memórias e passeios. Amizades; nenhum ser humano sobrevive sem um bom convívio com as pessoas.
— Estamos em dois mil e dezessete — seu pai realmente não entendia mais sobre a atualidade. Após tantas transferências de colégios diferentes, ninguém gostava dela. O que era estranho, pois Cassie era: branca, loira, atraente. Talvez pudesse ser seu estilo divergente? — As pessoas não são mais amorosas como você pensa que são.
— Eu quero o melhor para você, Cassandra. Quero que jogue fora essa amargura guardada no peito. — William se aproximou para abraçar sua filha, mas percebeu a confusão em seus olhos. Cassie deu um passo para trás, afastando os braços do advogado, recusando o abraço. — Eu gosto de você, você é minha filha. Sei o quanto luta pelo que quer, apesar de ter vários defeitos e por não ter tido mais a minha companhia no momento em que precisava. Nossa decisão está tomada. Vamos nos mudar amanhã de manhã para Swan Lake. Você e sua irmã estarão matriculadas na melhor escola da cidade; discussões encerradas.
O coração de William era demasiadamente mole para odiar sua primogênita — todavia, isso não justifica inteiramente o abandono paternal — mesmo que tenham se passado anos; acolher décadas de rancor era sempre complicado.
Cassie, infelizmente, nunca chegou a saber realmente como era o primeiro casamento de seu pai, mas, de acordo com as palavras de Georgia, eles eram um casal feliz até Chloe engravidar de Cassandra e entrar em profundo ódio e depressão. Ela não queria filhos. William também não queria assumir uma filha… portanto, ambos tiveram a chance de se divorciar. Ela nasceu apenas com o amor da falecida avó. Disso, ela não pôde esquecer.
Ashley era completamente o oposto da meia-irmã; ela adorava aprender e ser o centro das atenções. Nunca havia sido reprovada e raramente tinha mau desempenho ou se envolvia em discussões pelos corredores.
Em contrapartida, estava longe de ser perfeita sempre, e era Cassie quem sabia disso melhor do que ninguém. Além de ser uma estudante linda e desejada, Ashley fazia questão de cheirar pó de cocaína no quarto e trazer o namorado atleta — agora ex-namorado — escondido para transar com ele. Provavelmente, isso aumentava suas chances de ser escolhida como capitã das líderes de torcida. Mas, em certas situações das quais não falava, a ruiva corria para o quarto chorando ou com manchas escuras ao redor de sua clavícula. Não eram marcas de beijos; eram marcas de agressões — algum filho da puta batia nela? Ou era apenas o quarterback em carícias selvagens exageradas?
Após aquela conversa que não levou a lugar nenhum, o patriarca se afastou da filha, a encarou e relaxou os ombros. William estava inseguro, e com razão, já que sua filha, no fundo, nunca o perdoaria.
— Enfim, boa noite — disse ele, por fim, saindo do quarto, ecoando frases devido ao vazio do ambiente. — Traga suas malas amanhã.
— Sim, senhor!
A conversa terminou ali, e, sem perceber, a loira começou a chorar. Possivelmente, estava magoada consigo mesma.
A claridade do amanhecer surgia lentamente no horizonte. No banco da frente, Lauren e William ouviam o rádio ligado em uma estação de dark country, em um volume moderado, enquanto as duas jovens dormiam no banco de trás. Cinco horas de viagem foram suficientes de Golden Oaks para Swan Lake, exceto pelos carros bloqueando as vias e policiais rodoviários fazendo blitz em alguns trechos da estrada. Lauren parava às vezes para ir ao banheiro ou comprar um sanduíche, enquanto William abastecia o Cadillac.
Cassie e Ashley adormeceram durante todo o percurso, ao menos tiveram a oportunidade de se despedir do antigo bairro.
Quando finalmente chegaram à pequena cidade de Swan Lake, Cassandra foi a primeira a acordar, notando a placa rústica com uma imensa escultura de pedra escura acinzentada da bailarina Odette dançando ao lado do letreiro. Através do vidro de sua janela, ela fitou diversas lojas, cisnes voando em direção ao lago, feirantes de tralhas, árvores e arbustos.
A maioria dos habitantes usava longos casacos e chapéus. Policiais patrulhavam os perímetros das ruas, criando uma atmosfera sombria e sinistra na região. Cassie imaginou cenários terríveis, e as sete viaturas em cada esquina explicavam isso. Contudo, a vantagem seria poder, de vez em quando, matar aulas para andar de skate — melhor estar acompanhada antes.
Durante sua exploração, Cassie foi levemente interrompida pela madrasta:
— Acordou, bela adormecida? — Lauren encarou a enteada, ajeitando sua postura torta no banco. — Dê um sorriso, menina! Aqui será o nosso novo lar. Olha que coisa boa! Deveria estar feliz, já que odiava a nossa antiga cidade, não? — puxava assunto gentilmente, embora não gostasse de falar com a Silverstone.
Em resposta, a loira sorriu rapidamente e continuou com seu semblante sério.
— Feliz? É… posso dizer que estou satisfeita — Cassie deu de ombros e continuou com sarcasmo: — Estou tão feliz em saber que posso me livrar de vocês por algumas horas e sair andando despreocupada com as mãos no bolso.
— Tá certo — as madeixas curtas e cacheadas de Lauren balançavam enquanto ela chacoalhava a cabeça para os lados. — Só lembre-se de que ainda está vivendo sob o meu teto! Você ainda está conosco e terá que ajudar em casa e me respeitar.
Cassie notou os lábios cor de rubi de Lauren sorrindo de um modo mais perturbador do que o normal. Como de costume, ela tinha um cigarro Marlboro entre os dedos.
A garota continuou a dar de ombros, ficando calada, enquanto pegava seu iPod e fones de ouvido.
— Fique tranquila, amor... — William tranquilizou a esposa. — Ela sabe disso.
— A propósito… que tipo de cidade é esta? Parece que estamos morando naquela cidade fantasma: Centralia — indagou Cassandra, sem compreender absolutamente nada sobre seu novo lar. — Esses policiais rondando como formigas pelos cantos, esse céu cinza mesmo sem a presença da chuva… Não tenho certeza de que estaremos seguros vivendo nesse lugar.
— Aqui é onde o seu pai morou quando era criança — William começou a explicar suas lembranças mínimas, os dedos batendo no volante. — Meu bisavô e eu costumávamos pescar aqui no verão. De repente… uma época drástica dominou aqui. Muitos crimes e assassinatos aconteciam sem soluções. Não acredito muito nessas histórias que costumam contar, mas é bom ficar atento.
— Crimes? Então aqui não é nada seguro — criticou a garota mais velha, embora sua música estivesse muito alta em seus ouvidos. — Nem fodendo que vou andar sozinha por aqui! E o “verão” simplesmente não existe, né? Já sei que estarei presa em mais um inferno estadunidense.
— Bom… os últimos crimes que ocorreram por aqui tiveram soluções, e os criminosos foram presos. Não sei dizer se haverá problemas ou se alguém vai te atacar desesperadamente. Como eu disse: é melhor ter cuidado e sempre desconfiar. — O advogado virou o volante para a rua à direita, onde uma bela vizinhança de casas tradicionais com jardins embelezava o bairro. — Estamos no outono, então... o sol nem sempre estará brilhando.
— Verdade, se algum protótipo de Edmund Kemper sair correndo com um machado ensanguentado atrás de mim e me decapitar, provavelmente vão me achar. Claro que vou confiar pra caralho! Vou mesmo, pai — ironizou, sardônica. Cassie ria sem parar, mas em um instante foi interrompida pela madrasta, que a mandou ficar calada. — Beleza, parei. — Cruzou as pernas. Em um sobressalto, a garota ruiva acordou agitada. Outro pesadelo? Pensou Cassandra, impaciente, mexendo na franja comprida que atrapalhava sua visão, pois caía frequentemente.
— Ash? Está tudo bem? — A primeira a notar a expressão de choque da garota foi a matriarca. — Bom dia, querida.
— Está sim, mãe… só tive um pesadelo bobo, nada preocupante — os olhos azuis piscavam incessantemente. — Oi, Cassie, bom dia. Ah, e bom dia para vocês, William e mamãe — a voz fina e cordial encantava o casal de adultos.
— Bom dia — Cassandra revirou os olhos com certo desgosto. — Aposto que você deve estar sonhando com aquele ex-namorado medíocre de pau pequeno — murmurou o mais baixo possível, para que a meia-irmã mais nova não ouvisse.
— Ignorante — Ash olhou rapidamente para Cassie antes de voltar sua atenção para o padrasto e a matriarca. — Onde nós estamos?
— Em nossa nova casa. — William estacionou o carro próximo ao portão da nova residência.
Os Silverstone saíram do carro, aguardando enquanto Ashley e Lauren retiravam os pertences do porta-malas. O frio da cidadezinha penetrava nos rasgos das calças de Cassandra, enquanto Ashley evitava que sua saia plissada azul se levantasse. Ambas observaram um belíssimo casarão de pedra pintado de preto, com teto alto, nove janelas quadradas e duas cadeiras de madeira no alpendre. Uma visão intrigante, apesar da aparência antiquada que se comparava a casas assombradas.
Com o molho de chaves em mãos, o homem abriu os portões de ferro conforme instruído por William. Cassie levava suas malas de roupas para dentro, enquanto Ash, ainda sonolenta, optou por sentar-se nos degraus da primeira escada, causando incômodo à loira, que apertava as mãos delicadas nas alças.
Não teria o trabalho de levar tudo sozinha.
— Ei, será que pode levantar a bunda daí e me ajudar? — absteve-se por um segundo, cerrando o olhar indignado para a Wilbur. — Infelizmente, não tenho quatro braços igual a um alienígena do Ben 10. Se eu tivesse, com certeza carregaria as malas de todo mundo daqui.
— Deixe sua irmã em paz, Cassandra! — suplicou a madrasta, batendo o salto de seu scarpin de couro marrom, que combinava com as peças sociais que vestia. — Você não percebeu que ela acabou de acordar? Está exausta!
— Exausta? Ela não faz merda nenhuma o dia inteiro. Sou a única que é obrigada a prestar os serviços da casa — reclamou, bufando novamente e gesticulando uma das mãos com o objetivo de se expressar. — Ah, espera aí! Ashley deve estar muito sobrecarregada e exausta porque não vai mais poder quicar no taco de baseball do namorado dela, né? — Após soltar uma piada obscena de mau gosto, recebeu um tapa raivoso da madrasta em seu rosto. Lauren odiava que sua enteada difamasse sua filha. — Tá, tudo bem… desculpa! Porra, parece que tudo recai sobre mim. Que gente insuportável.
— Mal criada, inconveniente! — a mulher repreendeu, ordenando à enteada que adentrasse imediatamente na casa. — Parece que, quanto mais cresce, mais vira uma moleca da sarjeta. Dê-se ao respeito!
— Lauren tem toda razão! Você é adulta, Cassie! Não é hora para brincadeiras — o patriarca se intrometeu, com as mãos na cintura. Seu relógio de pulso Rolex era visivelmente prateado. — Continue seu trabalho e pare de reclamar.
— Já aviso de antemão que não sou obrigada a carregar as coisas dela — Cassandra declarou, por fim. — Vou ajeitar meu quarto e ninguém vai me perturbar.
— Faça o que quiser, contanto que não desrespeite sua madrasta — o homem saiu do espaço, voltando a abrir a porta de vidro da entrada. Cassie o acompanhou.
— Céus… esse William me estressa de vez em quando — Wilbur deu um suspiro prolongado, em seguida virando a cabeça e verificando mais malas de roupas para pedir que a enteada levasse. — Ashley, querida, que tal explorar um pouco o bairro? Conhecer os vizinhos? Vai te fazer muito bem. O que você acha da ideia? — voltou-se para sua filha, ainda cabisbaixa, com a mão escorada em seus ombros.
— Talvez mais tarde, mamãe — replicou a ruiva, balançando os tênis esportivos. — Estou ansiosa para conhecer tudo, mas vou dar um tempinho agora.
— Ótimo, querida — beijou a testa de sua filha, por fim, conduzindo-se para dentro da casa. — Continue assim. Mudanças são complicadas, mas logo logo você estará com novos amigos.
Ashley teve uma noite de sono agitada. Semanas atrás, começou a sonhar com uma figura desconhecida; alguém que ela nunca viu ou soube sua verdadeira origem. A formosa e esbelta líder de torcida atraía diversos olhares devido à pele leitosa e sardenta; até os seus quadris avantajados e curvilíneos chamavam a atenção dos outros.
A rotina dela sempre foi especial, já que costumava receber vários reconhecimentos e elogios no antigo colégio. Assim é a vida de uma celebridade colegial comum, onde a beleza muitas vezes é construída por um corpo atlético, pílulas dietéticas e revistas de moda. Diariamente, praticava atividades físicas antes dos ensaios, bebia água gelada ou, quando tinha uma pausa, comia uma maçã. Para que seu organismo fosse saudável, frutas eram essenciais para começar um dia agitado.
No entanto, Ash começou a perceber uma mudança significativa após ter sonhos enigmáticos. Geralmente, se sentia fora de controle ou pirando quando essas coisas apareciam, sem nem ao menos pensar sobre.
A vida da ruiva costumava ser maravilhosa, despertando inveja em garotas inseguras de baixa autoestima. Ela tinha plena consciência disso, especialmente porque sua irmã mais velha também se encaixava nesse padrão. Contudo, essa não era a realidade quando sua popularidade começou a crescer.
O que sua família nunca soube eram os sexismos, as misoginias e os abusos sexuais que a rondavam. Sim, ela amava seu namorado da época, mas o sentimento não era recíproco. Ashley, infelizmente, escondeu isso dos familiares desde dois mil e quinze.
Certa vez, em um dia normal de escola, o zagueiro e capitão do time dos Dark Eagles, Ralph Lewis, avistou uma bela e virgem moça solitária de dezesseis anos sentada na arquibancada, escrevendo em seu diário. De supetão, ele a puxou pela raiz sensível de seus cabelos — sem que ninguém soubesse —, arrastando-a para dentro da cabine do auditório. Tirou suas roupas, abafou os gritos de pavor e a estuprou, mesmo ouvindo sua vítima implorar para que o monstro cruel parasse. Infelizmente, ela não pôde ser salva. Aquela menina linda e feliz havia morrido, graças a um cretino que se achava o "boa pinta", pensando que todas as mulheres eram dele.
Ela acreditava que sua primeira experiência sexual seria romântica, especial, com um cara que a amasse profundamente. Mas seus sonhos foram destruídos por alguém que ela nem conhecia. Ashley correu para seu quarto, chorando e gritando, arranhando seus braços com as unhas afiadas. Estava com medo de denunciá-lo para as autoridades; queria se vingar, desejava que ele fosse morto, torturado assim como ela foi por aquele nojento imundo e pervertido.
Após um ano que passou rapidamente, Ashley foi perseguida por um maníaco a caminho de casa. Por sorte, conseguiu despistá-lo. Todavia, o espírito vingativo renascia nela de vez em quando. Ela mostraria para os homens que, se um dia a machucassem, veriam como ela seria totalmente capaz de atacá-los sem pena.
O relacionamento com seu ex-namorado demorou para se tornar saudável. Ela não sabia realmente como era beijar alguém que gostasse dela; em sua mente, ele também faria algo horrível se ela negasse. Mas o jovem tratava a namorada com amor e carinho. Porém, Ashley não o amava de verdade… só queria aproveitar os momentos.
Sua história também não era feliz como os outros idealizavam. Todos os dias, sentia-se suja por dentro e, após esconder ter sido violentada pelo zagueiro, reagiu e foi prestar queixa às autoridades.
Em um dia fatídico, quando denunciou o predador juvenil na delegacia, os policiais pediram provas contra isso. O rapaz deu seu depoimento alegando que era inocente, dizendo que Ashley havia inventado aquela acusação séria para chamar atenção. Embora a ruiva tenha contado detalhadamente o episódio, não deram ouvidos a ela, inocentando Lewis. Um dos homens então perguntou: "Contou para algum parente seu?" Ela respondeu que não tinha contado. Aquele policial negou com a cabeça, pedindo então para que ela saísse, aconselhando-a a não dar um depoimento falso, senão acabaria sendo presa em um reformatório.
Por que era obrigatório ter uma prova? Foi uma acusação séria! Isso tudo é para inocentar um adolescente repugnante só por ser homem e não ter culpa de ser “atraído” por alguém que não quis dar seu consentimento?
Não adiantou batalhar pelos seus direitos. Queria ter contado aos seus pais, mas William não se importou ou perguntou por que ela estava chorando. Cadê a porra dos adultos? Eles não reparam nas lágrimas de uma filha ferida? Só pensavam nos empregos e em como Cassandra era complicada, se importando apenas com eles mesmos. E quanto a Ashley? Sempre será taxada de garotinha exemplar, mesmo não tendo a coragem de justificar a fodida história dolorosa que suportava nas costas.
Ashley então preferiu seguir em frente, recorrendo a receitas para emagrecer, visitas frequentes ao salão de beleza e trocando boas notas por vício em cocaína. Todos adoravam Wilbur, mas alguém percebia seu sofrimento? Suas amigas já intervieram quando alguém a importunava?
Wilbur estava prestes a completar dezenove anos, quase na mesma idade que sua irmã. Portanto, Ash era mais madura do que Cassie, pois ela estava longe de amadurecer.
Felizmente, teve uma infância normal, nunca conheceu seu pai biológico e não estava preocupada em saber quem ele era. Mesmo assim, tinha muita pena do que Cassandra havia passado… ela lembrava vagamente do dia em que a garota mostrou suas cicatrizes em algumas regiões das pernas, dizendo que seu antigo padrasto batia nela com uma cinta.
Ashley tentava compartilhar suas angústias com Silverstone, querendo que ela entendesse mais o seu lado, mas sabia que encontraria palavras grosseiras, pois, afinal, continha uma raiva incontrolável pelo pai dela.
Sentindo alívio pelo fim de sua vida tumultuada, Ashley respirou fundo enquanto recordava, erguendo a cabeça e contando os carros na nova vizinhança. Seus cabelos cor de cenoura esvoaçavam ao vento, libertos do prendedor que danificava suas mechas.
Ao falar sobre seus sonhos, Ashley não tinha conhecimento da origem deles. Ao abrir e fechar os olhos, a imagem de um rapaz alto, pálido e magro, parcialmente obscurecida por nuvens de fumaça, emergia de seu subconsciente. Garotas bonitinhas como a ruiva costumam se interessar por famosos ou caras latinos, lábios rubros, sorriso branco e olhos claros; Wilbur sempre foi uma exceção. Nos seus sonhos, visualizava um garoto distinto, alguém perigoso e protetor, na mesma sintonia, onde sua sanidade fosse entregue a um purgatório.
Como assim? Ela gostaria de passar por outro evento desagradável? Na verdade, não. Ash estava profundamente confusa em relação a isso. Ela realmente desejava um amigo, ansiava saber o significado por trás dos pesadelos e encontrar razões para sua atração por essa figura desconhecida.
Cansada de ficar inerte, a animadora de torcida se moveu, abandonando seu local e decidindo explorar a casa, pegando suas malas. Na sala, a garota sentia-se intrigada e animada ao se deparar com diversas pinturas que coloriam a decoração. Os antigos moradores da casa pareciam ter sido artistas ou algo do tipo, já que as cores escuras das paletas mal permitiam decifrar as origens das imagens. Cada canto a deixou pasma. A mobília tradicional de sua mãe estava disposta de forma espaçosa e bem organizada. Realmente, 95 pratas fizeram uma grande diferença na mudança.
William descia os degraus da escada, notando sua filha e esposa com expressões nada amigáveis à mesa. Não precisou de muito esforço para deduzir que tinham brigado novamente devido ao comportamento de Cassandra.
No entanto, em algum momento, um sorriso escapou dos lábios do advogado ao ver Ashley, confiante de que finalmente estava livre das complicações trazidas pelos cabelos loiros. Afinal, eles tinham um futuro brilhante pela frente.
A caçula se acomodou no sofá com a maleta no colo, suspirando e batendo os tênis no assoalho bege, resultado de sua ansiedade e da falta de ocupação no momento. Para ela, sair sozinha em uma rua que mal conhecia estava fora de cogitação. Esse comportamento contrastava com o habitual da garota, e a mãe não pôde deixar de estranhar.
Quando Ashley se aproximou das duas para conferir o que estava acontecendo, não ficou surpresa e também não ignorou o clima tenso da família.
Ela e suas sardas no rosto entenderam o que estava acontecendo ali, mas não viu problema em esperar um pouco antes de cumprimentar os pais. Lauren sorriu com orgulho para a filha. No entanto, ao ouvir Cassie falar novamente, o sorriso da mulher se transformou em um sorriso sarcástico. Silverstone revirou os olhos impacientemente.
— Certo, o que vocês estão planejando fazer aqui? Vamos, desembuchem. Estou esperando. — A impaciência da loira rapidamente se transformou em desespero quando Lauren simplesmente lhe mostrou a foto da escola onde estudariam, junto com uma lista de tarefas e regras. — Que diabos é isso? Vamos estudar nesse lugar estranho?
— Vocês duas terão horários alternados! — a mulher respondeu. Cassie ameaçou se levantar, mas um olhar de Lauren a fez recuar imediatamente. — O ônibus escolar passa em frente de casa. Você estudará em período integral e depois procurará um emprego nos fins de semana. Ashley estudará de manhã e me ajudará com os serviços da casa.
— É sério, mãe? Não poderei trabalhar?
— Se quiser, você também poderá conseguir algum emprego — Lauren mudou o tom de voz de maneira condescendente, o que às vezes a fazia ultrapassar limites sem perceber. — Mas não escapará do colégio. Disciplina em primeiro lugar, profissionalismo em segundo.
— Então é assim com ela? — As pernas da loira saracoteavam embaixo da mesa rústica. — Ashley terá vida fácil e eu ficarei na pior? Legal, estamos todos quites.
— Nos dê boas razões para acreditarmos que você será menos delinquente daqui para frente, em vez de trazer mais confusões dentro do nosso lar.
— Eu posso ter xingado o diretor naquele dia porque ele era irresponsável, mas o que aconteceu foi verdade! Um cara me assediou! — Cassie retrucou. O olhar reprovador de sua madrasta só a deixava mais irritada.
— Não sou o seu pai, garota! — Lauren gritou impaciente. — Isso não significa que você vai parar de ser a irresponsável de sempre. Estou tentando te ajudar; isso é o que posso oferecer. Se não quer aceitar, problema seu.
— Também não precisa agir com hostilidade, querida — William a alertou.
— William está certo, vocês duas deveriam chegar a um acordo em vez de brigarem. Nos mudamos para cá, teremos vidas e costumes diferentes a partir de agora — a ruiva argumentou. As brigas entre as duas lhe davam dor de cabeça. — Eu também posso trabalhar nos fins de semana e reconstruir minha vida. Pensar dessa maneira é mais justo e honesto.
A irmã mais velha ficou surpresa com o que Ashley acabara de dizer. Nunca antes na vida a ruiva havia defendido Silverstone diretamente. O que ela estava querendo? Cassie questionava consigo mesma.
— Verdade. Então a conversa está encerrada — Cassie se levantou e enxugou as poucas lágrimas que teimavam em seus olhos. — Estou exausta, acho que vou dar uma volta pelo bairro para espairecer. Se algum babaca vier com gracinha, vou arrebentar o rosto dele.
— Passar bem — a mulher ruiva disse, por fim, ajeitando mais os cachos da cabeça.
— Cassandra, tome cuidado. A cidade ainda é desconhecida para nós. E não ouse compartilhar informações pessoais sobre nossa família com estranhos — o pai a advertiu, repentinamente tendo uma ideia melhor. — Ashley pode ir com você.
— Eu? — Ashley apontou para si mesma, surpresa. — Mas por que?
— As duas precisam ficar unidas.
— Desde que ela não fique em cima de mim igual um carrapato, por mim não faz diferença — a loira revirou os olhos, amarrando sua blusa na cintura e revelando uma camiseta da cantora Joan Jett. — Vamos nessa?
— Eu não estava planejando sair mas… — ela riu sem mostrar os dentes. — Podem me dar um minuto? Preciso pegar minha jaqueta no quarto.
A ruiva não esperava que a irmã concordasse em caminhar pelo bairro com ela. Em sua mente, esse era um começo para desabafar sobre as coisas terríveis que aconteceram. As brigas entre Cassie e Lauren eram desgastantes.
Ela subiu os degraus e entrou no novo quarto, adoravelmente decorado em tons de rosa. A cama ampla, com lençóis macios e travesseiros delicados, estava exatamente onde ela esperava. O tapete felpudo também estava lá. A estética rosa dos cômodos a acalmava.
Dobrando suas roupas e organizando tudo no devido lugar, a ruiva pegou uma jaqueta jeans preta com lantejoulas no bolso. O frio estava aumentando, e não fazia sentido sair com regata e minissaia sem um casaco elegante para lhe fazer companhia.
Marchando solitárias pela calçada, seguiram em direções opostas, mas fizeram um pacto para se encontrarem novamente quando se perdessem. A ruiva, com as mãos nos bolsos, informou à irmã que havia memorizado a cor da casa. Cassandra virou as costas e continuou a ouvir músicas altas em seus fones de ouvido.
O bairro Siegfried era composto por mansões e casas de estilo gótico. Famílias de alta sociedade e de baixa renda compartilhavam o mesmo canto; a vizinhança não era exatamente barulhenta. Enquanto andava, Ashley averiguou janelas meio abertas e cães latindo. Os vizinhos raramente saíam para o quintal, exceto para encarar as ruas.
Naquela tranquila manhã, a garota não se sentia assustada ou receosa enquanto caminhava sozinha. No entanto, o medo dos homens permanecia desde o incidente de abuso por um dos alunos. Ela sabia se proteger e não confiava em estranhos facilmente.
De acordo com sua experiência, homens fragilizados pela heterossexualidade compulsiva mereciam ser evitados. Ela nunca teve expectativas de tê-los e amá-los. Entretanto, achar um cara decente não estava em seus planos, especialmente porque tinha sonhos com um fantasma exatamente desconhecido.
Com os olhos fechados, Ashley parou de andar por alguns segundos até ouvir vozes de dois rapazes. Seu medo a fez se esconder, mas logo percebeu que eram apenas dois gêmeos conversando enquanto iam para a escola. Um suspiro de alívio escapou de seus lábios, permitindo que ela continuasse sua caminhada em paz.
A garota de dezoito anos desejava se libertar do cansaço e do peso que carregava. Sempre notou o quão exaustivo era lidar com conflitos familiares e ser considerada perfeita por sua mãe. Ela se encaixava naquele mundo e buscava a popularidade a todo custo.
— Aí, branquinha! — um molequinho de aparentemente oito anos abordou a ruiva. Quando parou para encará-lo, percebeu que era um jovenzinho afro-americano, de regata azul do Lakers, calças de moletom, olhos escuros e cabelos trançados para trás. — Tu é nova aqui? Cê toma cuidado, hein?
— Oh… sou sim — sorriu educadamente. — Como vai, amiguinho?
— Tudo de boa! — Cruzou os braços contra o peito, olhando-a de cima para baixo. — Caramba! Você é mais alta que meu primo.
— Richard! Pare de incomodar a moça! — A atenção dela foi atrapalhada por um homem idoso sentado em uma cadeira de balanço, segurando uma bengala. Ele remexia constantemente. Tinha sobrancelhas e cabelos grisalhos, pele parda e uma voz extremamente rouca e asmática. — Seja bem-vinda ao nosso bairro, meu bem. Sou Alfred Smith. E esse garotinho fedelho é meu neto Richard.
— Prazer em conhecê-los. Me chamo Ashley Wilbur, me mudei hoje para cá.
— O prazer é todo nosso. É difícil ver vizinhos brancos que sejam sociáveis com os pobres — o velho revirou os olhos de tédio. Embora sua esposa fosse governanta de uma família, nem sempre os bem-sucedidos do bairro os cumprimentavam. — Geralmente, uma cambada de racistas burros só aparece aqui para dizer que o maior ídolo de futebol deles é aquele vagabundo safado do O.J. Simpson.
— Que horror! — exclamou Ashley, indignada. — O senhor mora aqui há muito tempo?
— Desde meus doze anos de idade. Época dura, menina. — Ele limpou a garganta, pois Albert tossia muito. — Ah, minha esposa está chegando. June, querida! Ganhamos uma nova vizinha.
Uma mulher uniformizada em um conjunto preto e branco, com sandálias antigas, se aproximava segurando duas sacolas de papelão. Tinha cabelos brancos mesclados, suas madeixas estavam amarradas em um coque desgrenhado. Sua pele era meio enrugada, mas ela não perdia a classe com seu andar teatral.
Ashley deduziu que aquela senhora fosse trabalhar em alguma residência muito nobre; seus brincos apresentavam certa beleza, assim como suas unhas pintadas.
— Vim trazer umas roupas que o filho da minha patroa não quer mais para o Nicholas — disse, sobrepondo as sacolas no chão e chegando para beijar a testa de seu marido. — Ele já está na escola?
— Nick acabou de sair. Moleque teimoso — resmungou. June então olhou para a nova vizinha, achando-a perfeitamente bonita.
— Você me lembra quando tinha sua idade — falava Hopkins para a garota. — Espero que goste de nossa cidade, embora esses casos não solucionados apareçam.
— Oh, vó, você soube que tem um cara desaparecido? Ele é da escola do Nicholas! — Richard comentava sobre o desaparecimento de Yoshida para sua avó. — Estou achando que esse mano aí morreu!
— Nada de gírias, Richard! — o avô repreendeu as falas do neto. — Vá, já pra dentro. Vá.
— Espera! Alguém desapareceu aqui? — perguntou Ashley, sem entender nada.
— Longa história, garota — respondeu June. — Bom, vou preparar o café da manhã deles antes de voltar para o trabalho. Foi um prazer conhecê-la.
— Certo… nos vemos por aí.
Ashley então se retirou daquela casa, atravessando outra calçada.
Voltando ao lugar onde esteve atenta, quando virou a cabeça para a frente e observou a direção em que os gêmeos estavam, de repente sentiu um olhar sobre si, como se estivesse sendo observada e perseguida. No entanto, era apenas paranoia; o caminho estava deserto.
Ao chegar a uma entrada que levava à cidade, Ashley percebeu que estava longe do caminho de casa e precisava voltar para encontrar sua irmã. Ao retornar, algo a chocou. Essa descoberta dissipou a sensação de perseguição. Uma figura distante capturou sua atenção, uma pessoa que ela não esperava ver. Ele estava do outro lado da calçada, e a revelação do rosto dele pela primeira vez foi uma surpresa.
A garota vasculhava em busca de qualquer movimento suspeito; uma sensação pairava no ar. Continuou a andar pela calçada, ponderando se tudo não passava de uma ilusão de ótica. Logo, porém, Ashley avistou um rapaz parado nas proximidades. A personificação de seus sonhos estava diante dela.
O rapaz enviou um arrepio pela sua espinha, franzindo o rosto. A coincidência era tão aguardada que ele, de pele pálida e vestes escuras, parecia um retrato dos seus devaneios. A fumaça do cigarro que ele fumava aumentava conforme tragava, e assim eles se cruzavam à distância. O pálido de olhos azuis e rosto diabólico notou a aparência angelical daquela ruiva sardenta, com cabelos flamejantes. Tão feminina, tão delicada e, no entanto, tão confusa… seus globos azulados procuravam outra imensidão azul.
O céu estava escuro. Matizes de azul e cinza se misturavam. Enquanto seus olhares se encontravam, ela se sentiu confusa por vê-lo ali; por esse rosto familiar e desejado que preenchia sua mente. Por que essa mistura de intensidade e aflição? Poderia ele ser seu novo vizinho? E por que ele surgiu? Nunca antes Ashley havia visto um garoto tão sinistro e, ao mesmo tempo, tão belo quanto aquele estranho.
Do outro lado, Henry também ficou impressionado ao cruzar seu olhar com o dela. A ruiva lembrava uma elfa mitológica, uma deusa insaciável. Seus lábios eram graciosos, revelando uma malícia incontrolável. Para ele, ela era a mulher mais interessante que já tinha encontrado, embora aparentasse solidão e tristeza. Albarn esmagou o cigarro com a sola de suas botas, avançando em direção à garota.
Ela ansiava por falar com ele, por confirmar que ele não era apenas um furto de sua imaginação. Entretanto, movida pelo alarme, Ashley fugiu sem olhar para trás. Seu coração batia incômodo em seu peito. Ele a seguiu, mas, com sorte, ela conseguiu se esconder. Tapando a boca e mantendo-se quieta, testemunhou o garoto desistir da busca. Ele seguiu seu caminho em direção à escola, para encontrar Billy e Brian Grant.
"Ele é real? Esse garoto não pode ser real." Ela se culpava, abraçando suas próprias pernas e tentando não chorar.
— Ah, por que você não atendeu minhas ligações, idiota? — Cassie apareceu por trás dela, notando o cabelo da irmã entre os arbustos. — Ashley? Você está chorando? — Ao ouvir a voz de Cassandra e olhar para ela, um alívio a inundou.
— Não estou — levantou-se, ajeitando suas roupas. — E que eu saiba, não estava te atrapalhando.
— Certo... — A loira suspirou. — Uns garotos idiotas esbarraram em mim, um deles loiro e outro meio estranho. Quase dei uma surra neles.
— Espere... que garotos eram esses? — Wilbur ergueu as sobrancelhas.
— Ah, era um gêmeo e um cara esquisitão todo de preto, parecendo um personagem do Tim Burton — ela descreveu os rapazes à sua maneira. — Não sei, mas acho que eles estudam na escola para onde Lauren nos matriculou. — As duas irmãs então seguiram em direção à casa.
— Entendi.
Cassie e Ashley não trocaram muitas palavras, pois era cedo para um entendimento mais profundo. No entanto, os sentimentos da mais nova floresceram junto com seu desejo pelo desconhecido. Ela ansiava por falar com o rapaz e descobrir suas intenções, torcendo para que fossem compatíveis com as que seus sonhos revelavam. Contudo, um medo latente a atormentava: o medo de estar enganada.
Enquanto isso, Henry saiu acompanhado por Brian, seu olhar percorrendo os arredores. A figura ruiva parecia tão real... a oportunidade de conhecê-la e descobrir sua história era intrigante para ele. No entanto, ele compreendia que tudo tem seu tempo, e os encantos de Brian eram os primeiros que ele pretendia explorar.
Habitualmente, feirantes e comerciários voltavam à ativa. No entanto, os agentes começaram as deduções sobre o sumiço de Yoshida Miller, sob as quais sequer foram encontradas cinco por cento das possíveis certezas. No mínimo, neste processo, não houve pistas adequadas; afinal, a vizinhança do bairro Odile era negativamente enxerida com as histórias de outras casas de outros residentes.
Porém, na residência Albarn, Vincent esconde um mistério desde o dia fatídico do desaparecimento. Aquelas mulheres mal saíam para a rua; elas não abriram mais as janelas nem cumprimentavam as pessoas dizendo: “Deus te abençoe” quando finalizavam curtas conversas. Na realidade, Miranda e Gisele queriam privar suas vidas, silenciando as provas do crime.
A primeira tia de Henry se questionava: “Por que o deixei sozinho com aquele menino?” O garotinho parecia ser muito respeitoso e amado por sua família. Ela achava que Henry não matou inesperadamente — mesmo tendo causado um homicídio por espontânea vontade — de propósito. Gisele se recusava a aceitar que seu sobrinho feriu aquele garoto. Henry sussurrava entre lágrimas, soluçando e engasgando sempre que tentava explicar.
Dizendo a elas que um homem havia invadido a casa e matado Yoshida, será que também saberia explicar o assoalho avermelhado por sangue humano? Esse vermelho era exatamente igual ao que manchava as roupas do sobrinho. Gisele não era burra; em sã consciência, soubera que, se continuasse a esconder isso, ela e sua mulher seriam consideradas cúmplices do assassinato.
Ela se arrependia constantemente por não ter supervisionado. Estabeleceu poucas regras, mas esqueceu de ser mais atenta; assim, saberia o que realmente ocorreu. À medida que os dias passavam, o receio de saírem para as ruas aumentava. Ela não conseguia admitir que o garoto fosse um monstro.
Melissa havia telefonado, avisando que sua análise iria fundo e que suas notícias viriam em breve; contudo, nenhuma novidade foi anunciada, já que a psicanalista apenas disse a Gisele o quão ele estava se adaptando aos poucos, sendo benevolente e intimidador.
Vinte de outubro estava marcado no calendário pendurado na parede da cozinha. Os dias seguiram adiante; entretanto, as mulheres verificavam determinados lados do jardim para que ninguém suspeitasse do odor fétido, onde o corpo da primeira vítima permanecia oculto debaixo da terra, circulado por vermes que sugavam todas as expansões de um cadáver sem cor.
Em cada rotina matinal que seguiam, ainda clamavam o nome do sobrinho, mesmo sem querer, pedindo-lhe para rezar antes das refeições. Mas, devido a tamanha sorte, Gisele e Miranda pensavam estar livres da perturbação.
Investigações se desenvolveram entre cada local interligado com a última aparição de Yoshida, e, desta vez, a situação se agravou para os envolvidos. Miranda auxiliou sua esposa a limpar toda a poça de sangue unificada no assoalho, usando detergente neutro, vinagre e água oxigenada. Castigaram Henry em sua capela até o momento em que usariam uma pá para cavar a terra e enterrar o garoto inocente, juntamente com as roseiras brancas, numa “tentativa” de livrar-se do corpo.
Queimaram as vestimentas sujas do rapaz na lareira e esconderam a arma branca que Henry utilizou, deixando os principais vestígios longe da moradia. Após soltarem o pálido, que exibia preocupação e fingimento, as tias dele resolveram crer em sua mentira, assim solicitando ajuda da melhor psicanalista da região.
Todavia, uma denúncia feita por um dos vizinhos próximos ao casal religioso veio à tona; confirmaram ter ouvido altos e histéricos pedidos de socorro naquela tempestade do anoitecer. Pistas seriam finalmente reunidas e, como contrapartida, o caso foi aberto de forma custosa, onde nada poderia ser desmentido.
Acordando da cama de casal king size, Miranda e Gisele perceberam que haviam adormecido por muito tempo, um cochilo pesado que não permitia nem ouvir o tilintar do relógio acima do criado-mudo. De súbito, a de cabelos avermelhados chamou por sua esposa. Miranda Vincent enfim atendeu ao chamado de Albarn, ambas percebendo que haviam passado quase ao meio-dia.
Atônita, a mulher de cinquenta e oito anos — Miranda era dona de um obsoleto aspecto branco enevoado, nariz fino com a ponte não muito visível, sobrancelhas pretas alinhadas. O comprimento de seus cabelos negros-azulados, repletos de fios ondulados, chegava quase ao final de suas largas costas; tonalidades marrons claríssimas deslumbravam as íris dos seus olhos. Seu corpo estava envolto por uma longa camisola vermelha carmesim. — Correra para a imensa janela do quarto, arrastando as portas de madeira que atrapalhavam a visão da sacada.
Miranda avistara minuciosamente uma dupla de detetives do FBI, acompanhados por policiais, paralisados em frente ao portão da residência. Ela, inteiramente relutante naquela situação, queria poder não abordá-los. Elas não imaginavam fielmente do que se tratava; no entanto, era nítido que a descoberta da cena real do crime havia ocorrido.
— Acho melhor você sair desta cama e dar uma olhada lá fora — aconselhou, em meio a um pedido grosseiro. Sua mulher não entendeu de imediato qual era o problema. — A polícia e o FBI estão aqui!
— O quê? Não é possível! — Gisele empalidecera, tentando respirar descompassadamente: uma… duas… três vezes! Alguém testemunhou o homicídio? Quais seriam seus destinos? — Tomara que não tenham vindo aqui por causa de Henry… Maldição! Maldição! O que faremos agora, Miranda? — ofegante, num frenesi desolado, batendo os calcanhares no chão, acompanhada por tremedeiras sob as largas mãos. Albarn entrava em desespero, suplicando para que Deus a salvasse e não as incriminasse.
— Por favor, não se desespere! — limitou os andares circulados da parceira, tornando-se estática por um instante. Viu a outra mulher ser agarrada e sacudida levemente, querendo tranquilizá-la. — Querida, eles não irão desconfiar. Antes, precisamos saber se Henry estará seguro. Melissa nos proporcionou segurança; ela também pensa em nossa inocência.
— Qual é sua ideia? A polícia vai perceber!
— Seja inconspícua. Diga a eles que nenhuma de nós está sabendo. Assim, irão embora; garanto a você. — Juntou as camadas de seus lábios, selando um beijo rapidamente na testa da esposa. Em seguida, deu-lhe pequenos tapas nas bochechas. — Confie em meu plano, vai dar certo!
Quando prestou atenção nos conselhos de Miranda, finalmente resolveu agir por conta própria. Apressadamente, conduziu-se ao guarda-roupas, despindo sua veste de dormir e pegando um vestido marrom longo, até o fim dos joelhos, encoberto por um sobretudo branco de lapela. Penteou os cabelos avermelhados, amarrando-os e notando os fios caídos por suas têmporas, transformando-os em um coque desgrenhado.
A mulher lavava o rosto instintivamente, mentalmente suplicando a seus espíritos santos que lhe perdoassem pelo feito inadmissível. Elas não eram capazes de receber uma alternativa; a famigerada malevolência de Henry as cercava através de uma enferma sepultura. Mais cedo ou mais tarde, suas cúmplices não prevaleceriam, assim como o pecado pelo qual pagavam, residindo em seu lar.
Gisele encontrou sua escadaria descendo pressurosa. Entre andares barulhentos ecoando no corredor escuro, outrora iluminado por velas acesas sob a imagem sagrada da Santíssima Santa Maria, ela interpelou genuinamente como teriam a denunciado, embora quisesse uma chance de ocultar as informações.
Obtusa, saiu da casa para o jardim, semicerrando os olhos em direção ao portão, que revelava a vista de dois homens atrás de uma viatura enfaixada por cores preta e branca, reconhecendo o distintivo do departamento policial de Swan Lake nas portas do veículo.
Não precisou sanar dúvidas sobre o motivo da visita; as ações de seu único sobrinho responderam sem precisar de um amparo. O “acidente” cometido pelo desconhecido assassino — sendo de fato o pálido inegavelmente sociopata e transtornado — havia camadas emaranhadas numa maldição.
A felicidade do belo jardim florido agora estava encarcerada em uma alma injustamente tirada, sob o subsolo da terra… a carcaça de Yoshida Miller até fora sepultada; contudo, ali ele não descansava em paz.
Albarn tocava na textura da cruz prateada, cujo rosário ônix enfeitava formosamente os arredores de seu pescoço, com o pingente cálido até a abertura de seu decote em “v”. Posteriormente, rezava, continuando sua súplica diante de Deus Pai, do Filho e do Espírito Santo, implorando para que suas divindades atendessem seu pedido. Caminhava devagar pelo cenário íngreme da residência, pressentindo as gotas d’água daquela fraca chuvarada despencando sobre seus ombros.
Brevemente, o zéfiro cortante levitava fios pertencentes à juba ruiva volumosa, refletindo seu universo nefasto. Gisele era uma camponesa da Idade Média lutando contra maus indícios em seu jardim queimado pelas chamas, onde Lúcifer e seus outros anjos caídos rondavam; seus olhos viam a presença de Cristo afastar-se simultaneamente.
Agora, pertencia aos demônios pecaminosos selecionados em seus pecados violentos, alimentados por sangue. Concluindo, não era diferente daquelas que ela abordava, mas sim, transformava-se na pecadora mortal!
Os ensinamentos heréticos dos protestantes cercavam-nas em condenação e preconceitos; práticas homossexuais eram, de fato, um pecado mortal. Gisele optou por comungar e entregar-se à castidade, porém não à atração amorosa.
Em 1 Coríntios, realmente se anunciava: “Você sabia que os ímpios não herdarão o reino dos céus? Nem os impuros, nem os bêbados, nem os avarentos, nem os efeminados…” Entretanto, muitos ignoram o fato de interpretarem o texto erroneamente, pois a Bíblia, infelizmente, foi revisada e alterada quatrocentas mil vezes! Isso leva a compreender que estariam no inferno após tamanhos julgamentos, mas quem somos nós para julgar, se o próprio Papa nos disse?
Cristãos buscam salvar e abençoar os pecadores, tomando a lição de Jesus; sendo ela socorrer e acolher todas as almas sofridas. Gisele e Miranda, infelizmente, foram excomungadas na Santa Igreja, mas não desistiram da fé, venerando os santos e adorando Cristo.
Aquele casal renunciou aos desejos carnais, entregando-se à castidade. No entanto, quem ignoraria o fato de serem cúmplices de um assassinato? A pobre alma inocente, cuja vida foi brutalmente ceifada, carregava a heresia dentre os maiores pecados — assassinato a sangue frio.
Ocultando um sobrinho hediondo e impiedoso, queriam protegê-lo de prisões perpétuas e injeções letais, alimentando ilusões sobre Henry ser um degenerado vitimista, mantido aprisionado no sanatório Boulevard, buscando a segurança do jovem monstro.
Gisele, profundamente, continuava a ser pecadora, assim como aqueles julgadores neopentecostais, não sendo diferente deles. Deus salvaria os imperfeitos; contudo, ele certamente não salvaria mulheres conhecedoras de inúmeros erros, embora rezasse pela salvação.
Avançando atrás das grades do portão, pôde conseguir a visão dos homens. Ela deu passagem para ambos os detetives, rangendo um pequeno som ligeiramente perturbador do velho portão da residência; no entanto, a dupla masculina solicitou a Gisele que permanecesse parada.
— Pois não?
— Boa tarde, senhora Albarn — disse o primeiro homem a se apresentar. Ele era de terceira idade, com uma fisionomia de rosto quadrado, pele negra, uma branquíssima barba acompanhada por um bigode raso e lábios carnudos rosados. Trajava uma jaqueta de couro que ia quase até o fim das coxas; uma camisa social cor vinho era visível, e um redondo chapéu fedora estava em sua cabeça.
Era magro, mas imensamente alto, usando uma armação Ray-Ban estilo aviador de óculos escuros, que não permitia discernir a cor de seus olhos.
— Sou o oficial Jason Carter. Faço parte da investigação estadual — na palma de sua mão direita, ele revelava o emblema do FBI, algo inesperado para Gisele, que estava atenta a todos os detalhes. — Fomos convocados através de uma denúncia nesse endereço. O caso Miller está em aberto… viemos com o objetivo de interrogá-la e gostaríamos que fosse breve.
— Aquele garoto desaparecido? — O maxilar trincado denunciava uma conduta aterrorizada. Miranda avisou friamente para que sua esposa fosse inconspícua com o assunto. Gisele engoliu em seco e voltou a falar. — Por quais circunstâncias esse desaparecimento os fez vir aqui?
— Esta é nossa última casa a ser verificada — anunciou Carter, em uma postura ereta e autoritária, cruzando os braços involuntariamente. — Rondamos os outros domicílios, mas ninguém soube verdadeiramente onde Yoshida poderia estar.
— Oh… sim.
— Inesperadamente, uma testemunha alegou ter ouvido pedidos de socorro exatamente nesta casa no mesmo dia da última aparição da vítima! — O segundo homem, de estatura baixa e acima do peso, vestia um terno preto e ostentava um bigode. Sua pele era cor de mel, e seu hálito exalava aroma de café e cigarros. Ele coçava a barba incessantemente, quase não tendo cabelo algum na cabeça. — Neste exato dia, um adolescente sumiu. A família Takeshi Miller nos pediu ajuda nessa investigação; nossa única evidência é que ele esteve na casa de um “amigo”. Após isso, Yoshida não retornou para casa.
— Lamento muito por isso ter acontecido. — Mesmo censurando sua opinião para os detetives, ela explicitamente negava saber mais sobre o assunto, querendo vê-los partir. — Esse amigo era muito próximo?
— Não sabemos dizer, senhora, pois nem a família da vítima o conhecia pessoalmente — disse Jason, abanando as mãos. Seu parceiro desconfiava claramente que a mulher estava mentindo descaradamente e tinha certeza de que ela era a principal envolvida. — Sinceramente, é possível que a senhora também tenha alguma informação sobre isso.
“Oh, senhor… por favor, mandem-nos embora daqui!” Uma onda de tremores percorreu seu organismo, torcendo para que eles se afastassem de sua casa; nada justificaria uma tensão crucialmente intrincada.
No anoitecer de sete de outubro, Gisele ficou cara a cara com o falecido rapaz jovial, agarrado aos braços do alucinado sobrinho. Ela se recusou a esquecer nenhum detalhe do que testemunhou, gravando na memória cada particularidade da peripécia em um turbulento vendaval, com folhas outonais sobrevoando o cenário mórbido excessivamente.
As tias de Henry voltaram para casa encharcadas, tremendo pela friagem, segurando sacolas penduradas sobre os ombros e aguentando cargas pesadas devido às compras do supermercado. Todavia, Miranda, com sua audição apurada, pôde avistar distantes sombras cercadas no centro das roseiras: um coro ensurdecedor de lacrimação e dor. À medida que seus passos se aproximavam, pôde ver a figura pálida em um vínculo pavoroso. Abraçando um defunto, ilustrado por feridas, o sangue espirrado em seus joelhos. O brilho das órbitas sumira, tornando as pálpebras claras, além de machucados e cortes… era possível observar minuciosamente os braços frágeis agarrarem o colarinho da blusa de Henry. Um retrato figurativo de Hades admirando mais uma alma eliminada, prestes a queimar no Tártaro.
Miranda pousou sua mão na de Gisele enquanto ambas corriam aceleradamente, querendo verificar pessoalmente o motivo da choradeira alta. Encontraram o menino gravemente ferido — o crânio esmagado, costas, pescoço e pernas quebradas. A princípio, os espinhos compridos das plantas perfuraram sua garganta bem no fundo. Metamorfoseando uma pele alva em tons frios, o aspecto sem vida! Sem o rosado das bochechas e o espontâneo sorriso, a expressão refletia um horror entorpecido.
Cortes fatais adornavam a perna, a nuca, os rins e a área do joelho; provavelmente, uma artéria estava completamente estourada. Os ossos estavam quebrados e flácidos. A camiseta ainda envolvia o corpo defunto em farrapos, mas o espantoso era como o sociopata jovial esboçava uma reação de espanto, porém negava-se a largar sua vítima. Um sentimento vagarosamente funesto.
Não obstante, a figura de aparência pálida ajoelhou-se ao lado do corpo, deitado no imenso espaço do gramado. As longas mãos leitosas estavam sobrepostas em ambas as coxas, e lágrimas rolavam por seu rosto ao mesmo tempo em que afagava os fios de cabelo do rapaz outrora cheio de vida.
Henry suportava o hircismo exalando do recém-cadáver; as roupas de Albarn estavam manchadas de sangue, e seus dedos magros estavam levemente arroxeados, evidentemente pelos golpes. Ele empurrou agressivamente os espinhos cortantes para fora da goela de Yoshida, afastando-os; apenas admirava melhor o garoto repousando eternamente.
Antes de deitar sua cabeça no dorso do finado Miller, ele ponderou, cuidadosamente, todas as suas concepções alucinógenas e dementes. Henry beijava a testa incolor; entretanto, murmúrios e gemidos amenos conseguiram se fazer ouvir: “Eu vou atrás do homem que te machucou. O importante é que estaremos juntos agora, te prometo, Yoshida, eu te prometo.” A voz, inicialmente baixa e confusa, transformou-se em um timbre irreconhecível. Quem assistia a aquele ato sentia um medo resplandescente crescer. Gisele recusou-se a compactuar com aquela situação, pensando em como lidaria com isso.
Era complicado deduzir se o sobrinho delirava ou realmente imaginava conforto e alívio em algo que não possuía vida. Os dígitos enredavam os fios castanhos, numa cena tão repulsiva e chocante que mal se podia conceber.
— Henry… por que você fez aquilo? — murmurou, olhando de um lado para o outro, paralisada e embasbacada. — O meu sobrinho, ele… ele foi quem…
— Está tudo bem? — preocupado com o estado da mulher, Jason pousou as mãos nos ombros dela. Notou uma respiração dificultada, quase em meio a uma crise de ansiedade. — Por favor, senhora, um garotinho deve estar em perigo e precisamos que nos responda. Por acaso o seu sobrinho também conhecia Yoshida?
— Não, não mesmo — sacudiu a cabeça negativamente.
— Tem certeza?
— Absoluta. Meu sobrinho não está mais conosco.
— Quem está morando com você atualmente?
— Minha esposa.
— Posso estar sendo hipócrita, mas… nos disseram que eram cristãs. Pelo que sei, vocês abominam relações homoafetivas. — Embora a hipocrisia infame em sua fala, Jason não estava errado. Os religiosos de Swan Lake sempre foram extremistas e radicalistas, desde épocas notórias. — Estou certo?
— Não acho isso um assunto relevante para se discutir — argumentou Albarn. — Miranda e eu nos apaixonamos antes de nos conhecermos, diante de Deus.
— O seu sobrinho esteve morando com vocês, por quê? — O outro detetive continha-se impaciente. Não confiava naquela pessoa. — Qual o nome dele?
— Christian, não precisa ser tão incisivo — interveio Jason, repreendendo seu parceiro.
— Meu irmão estava com problemas de saúde e não tinha condições de cuidar dele. Então, fomos obrigadas a mantê-lo em nosso lar — inventou a primeira história que passou por sua cabeça, voltando a responder sobre Christian. — Meu sobrinho se chama Henry. Ele tem dezoito anos; cuidamos dele por muito tempo.
— Certo. — Os detetives ergueram as sobrancelhas, finalmente indo direto ao ponto. — Gostaríamos de verificar sua residência por um momento. Nos concederia a permissão?
Gisele engoliu em seco, com o maxilar trincado e os lábios sendo mordiscados.
— Podem entrar, vou servir café.
— Prometo que não iremos causar transtornos — decretou Carter, avançando um passo à frente. — Queremos obter mais informações sobre esta casa.
— Acredito que temos muito para discutir. — Os portões foram totalmente abertos, e Albarn solicitou a entrada dos detetives, teorizando mentalmente o que diria a eles.
— Você pode confiar em nós — disseram os dois em uníssono. — Compreenderemos seu ponto de vista.
Guiando os homens em direção ao alpendre de seu casarão, certas análises foram feitas entre eles. Christian rondava os olhares para diferentes lados do recinto; em contrapartida, teve uma atenção focada na piscina do quintal, com a água podre há dias, que sequer fora limpa. Os restos das plantas cercavam metade do espaço, tornando-se um vislumbre abstrato, assim como uma pintura feita por uma criança, onde o papel era escuro, mas riscado por um giz de cera.
A mulher Albarn hesitou por um momento, relembrando o insalubre devaneio, antes de voltar à realidade e continuar respondendo aos agentes. Quisesse ou não, assumir a verdade nem sempre era um erro. Contudo, desistiu dessa alternativa, voltando a mentir novamente.
Jason manteve o semblante entusiasta no canteiro de rosas brancas e vermelhas, mas, por um instante, arfou ao sentir um cheiro desagradável. Tossindo consecutivamente, não teve muito sucesso no momento em que procurava ar. E, pelas suas experiências, aquele odor não era comum… era o cheiro de algo morto, análogo ao de carne estragada fora do congelador.
— Céus! — exclamou a mulher, tentando impedir que os visitantes examinassem de onde estava vindo o cheiro. — Deixe-me ajudar, senhor. — Rápida como um pulo felino, Gisele afastou Jason do ambiente.
— Oficial Carter? — O detetive prodígio reconheceu a falta de ar vinda do mais velho. Ignorando a dona da casa, resolveu amparar seu parceiro de investigação. — Puta que pariu! Que cheiro é esse? — pigarreou, tampando as narinas e afastando-se também do local.
Após quatro segundos, o afro-americano voltou a respirar.
— Estou bem, estou bem — arfava, dificultado, quase tendo refluxo. Os óculos queriam cair do rosto, revelando olhos castanho-escuros.
— Nosso cãozinho recentemente se foi… — Gisele arrumava um clássico pretexto para que nenhum deles desconfiasse, com os cotovelos colados na barriga. — Ainda não fizemos um enterro decente para ele.
“Isso não é cheiro de animal… É cheiro de um ser humano”, pensou Christian Braxton, aflito. Obviamente, naquela casa jazia um corpo enterrado.
— Meus pêsames pelo seu cachorro — disse Jason, querendo novamente investigar aquela área. Estava intrigado e suspeitava claramente que Yoshida estava lá. — Enfim, vamos iniciar o interrogatório.
Logo em seguida, o outro investigador reagiu de uma maneira diferente:
— Espera! Nenhum vizinho reclamou de mau cheiro vindo de seu quintal? — indagou, em uma postura séria. Christian esperava que aquela religiosa confessasse, mas foi em vão. — Que eu saiba, existe um cemitério de animais por aqui.
— Bom, nós… não tínhamos dinheiro para um funeral decente. — Olhou para o lugar, voltando a conversar com Jason e Christian. — Então decidimos enterrá-lo aqui, para que sua alma viva conosco.
— Certo… — É, realmente nada estava bem. Ambos os detetives saíram para fora do quintal. Christian, ainda cabisbaixo, sabia que teria muitas pistas contra Gisele Albarn. — Vamos logo dar início ao seu depoimento.
Horas depois, todas as perguntas foram respondidas. Gisele acreditou na possibilidade de sua prece ter sido escutada. Contudo, teria que ser mais cautelosa. Eles certamente tinham razão; algum vizinho reclamaria do cheiro.
Jason e Christian entraram na viatura, questionando-se e arrependendo-se por não terem ido examinar aquela área. Braxton precisou novamente dar uma analisada profunda nas perguntas que foram gravadas no toca-fitas.
“Neste dia, estava fora de casa… Só minha mulher e meu sobrinho estavam presentes. Não ouvimos gritos; espero que esse garoto esteja bem. Obrigada pela atenção.” A reprodução da fita rodava no walkman, e o prodígio Braxton voltava e pausava repetidamente. Ela não estava falando a verdade — descobriria futuramente.
Quando as aulas maçantes finalmente acabaram, todos os alunos de Chesterfield iam aproveitar um tempo livre nos dormitórios. O ambiente masculino da instituição não diferia muito do feminino.
A principal exceção era a disposição desorganizada dos quartos e a falta de limpeza nos banheiros. Tudo estava desordenado, e o cheiro desagradável era ainda mais intenso do que se poderia imaginar. Muitos estudantes — exceto os habitantes da cidade — eram novatos elitistas e filhos delinquentes de famílias negligentes, sendo aquele o único e pior colégio rígido dos Estados Unidos.
Felizmente, os estudantes eram permitidos a passar noites no campus, tendo benefícios de reforços e aulas extracurriculares. No entanto, ninguém era capaz de impedir as festas clandestinas que rolavam entre o grupo de jogadores e líderes de torcida: alcoolismo, drogas ilícitas, música alta e contatos sexuais. Tudo isso só transmitia problemas estressantes.
No mundo privado dos garotos, muitas brigas e sons estridentes de televisores ecoavam pelos corredores, enquanto os grupos tribais se reuniam para dividir cigarros e lanches comprados na lanchonete local. Às vezes, jogavam conversa fora e zombavam uns dos outros, algo relativamente normal em sua natureza.
Em um dos penúltimos quartos do corredor, Henry estava deitado no colchão macio de uma cama feita de madeira, observando o teto claro. Sentia-se entediado, apenas focando seus pensamentos mais impuros em Brian; para ser mais específico, relembrava os breves momentos juntos e a descoberta feita naquela pacata manhã. No entanto, outra parte de sua mente estava fixada na garota ruiva que havia cruzado seu caminho mais cedo.
Henry lembrava vividamente dos olhos assustados dela, como um coelho introspectivo perdido numa floresta. A moça aparentava ser fascinante e sensível. Era a peça que faltava para que seus planos finalmente se desenrolassem e saíssem de sua mente. Além disso, ele acreditava que seria interessante ver seu rosto inocente transformar-se em uma ameaça, algo que ele sentiu ao ser moldado pela violência.
Apesar do gêmeo louro ser belíssimo e atraente, seu corpo frágil e delicado era comparado ao de um personagem de um livro arcaico. Albarn facilmente se deixava hipnotizar pelo movimento dos quadris de Brian, querendo ansiosamente tê-lo sob seus domínios de insalubridade.
— Oi, Henry! — Os devaneios do pálido foram interrompidos quando Grant entrou no dormitório esdrúxulo. Era tarde e justamente na hora de ir para casa. — Não tenho atividades extras hoje, então voltarei para casa. Iremos embora juntos.
— Onde está seu irmão? — O hóspede perguntou pelo paradeiro do outro gêmeo.
— Não faço a menor ideia — replicou, suspirando, pois Billy lhe dava dor de cabeça. — Ele veio com uns papos sobre eu não confiar em você, além de ser um crianção… quer mandar em mim! Vê se pode uma coisa dessas. — De fato, Billy tentou obedecer à sua mãe; ela sabia de algo que os irmãos não estavam cientes. O segundo Grant alertou Brian, alegando que Henry não era uma figura confiável; porém, o loiro sequer deu ouvidos.
— Deve estar com ciúmes — disse, mudando de posição na cama e sentando-se desleixado, fixamente perdido na imensidão esverdeada quase fluorescente das íris do rapaz à sua frente. — Te garanto que sempre estará seguro comigo. — Obviamente, aquela frase estava carregada de falácias.
— Me sinto melhor conversando com você — Brian foi sincero. — Só não entendi uma coisa, ontem à noite.
— Como assim?
— Enquanto estávamos no banheiro, senti que iria me dizer algo… daí você saiu de lá. Foi estranho, não vou mentir.
— Ah, sobre isso — murmurou, coçando atrás da cabeça, como se tivesse uma pulga atrás da orelha. — Sei lá, queria puxar assunto, mas estava tão perdido que não soube mais o que falaria.
— Entendi — foi se acomodando, vendo o hóspede dar um pequeno espaço para que ele se sentasse ao seu lado. Ao sentar, mudou brevemente de assunto. — Caramba, estou recordando agora daquela esquisita que tentou bater na gente. Você viu como era maluca? Provavelmente é nova no bairro. — Referia-se à Cassandra, sua recente vizinha. Ela andou pelo bairro se chocando com os garotos; Brian teve o prazer de zombar dela e tomar uma atitude dominante para repreendê-la. Imaginou que estaria dando trabalho em Chesterfield.
— Vizinhos são loucos por natureza — opinou Henry. — Além dela, também acabei cruzando com outra garota. Muito diferente daquela.
— Como ela era? — perguntou, sem entender realmente qual a impressão que o garoto pálido teve ao encontrar as novas vizinhas. — Vocês se depararam inesperadamente?
— Era ruiva, tinha olhos claros, estatura alta… — ele fornecia os detalhes enquanto contava nos dedos cada característica da garota misteriosa. — Também tinha uma feição peculiar, sabe? Era sardenta e, de alguma forma, me parecia tímida. Ela andava sozinha na rua; quando tentei falar com ela, saiu correndo. Acho que ficou assustada.
Lendo os lábios de Henry, era possível conectar-se com suas palavras. Em tamanhas características específicas sobre a pessoa que o olhava, o loiro não parecia sentir-se confortável em saber que o hóspede olhava para garotas. Brian não entendia exatamente se suas atrações por ele eram algum tipo de ciúmes ou uma dependência emocional não desenvolvida.
O rapaz de madeixas douradas acreditava estar submerso na voz doce e rouca do pálido, agitada como as ondas do mar e silenciosa como as profundezas do oceano. Ele voltou a usar suas luvas pretas de couro, que combinavam lindamente com seu estilo vitoriano e gótico: uma blusa de tecido de lã escuro e mangas compridas, na qual estava costurado o emblema da serpente ardilosa e ácida da instituição. As calças sociais eram quase coladas, e os sapatênis simples brilhavam.
Grant achava-se menos estiloso e não gostava de usar as peças do uniforme. Para ele, a camiseta com gravata encoberta por sua jaqueta preta de couro bastava, assim como seus tênis Converse e calças folgadas e rasgadas nos joelhos. Ademais, era inevitável não dizer que Henry possuía um charme exótico e antiquado, juntamente com seu vocabulário.
— Independente de quem seja, espero ser uma boa pessoa — disse, jogando a cabeça para os lados e ajeitando sua franja emaranhada. — Será que ela estudará em nosso colégio?
— Talvez, sim.
— Bom… Henry — mudou de posição, afastando-se um pouco do campo de visão do pálido, estando no meio do colchão. Enquanto dobrava as pernas em um “Z”, manteve as costas sob um travesseiro. — Você não me acha estranho, acha?
— Por que está me perguntando isso? — a sobrancelha erguida em interrogação, os tons azulados e confusos de seus olhos.
— Nós dois estamos mantendo uma amizade muito fluida e legal. Mas… sinto que estou atrapalhando, sei lá, fazendo alguma merda sem querer — avoado e inseguro, não queria estragar o vínculo que ambos tinham. Billy pôde até ter dito que ele era perigoso; contudo, quem duvidaria de algo que sequer conhece? Queria não estar errado, mas, mesmo assim… uma flecha parecia impedir que ambos tivessem algo a mais.
“Eu não sou homem para você, garoto. Tudo que desejo é manipular e te controlar. Nunca estarei apaixonado por uma pessoa… apenas quero seu bel-prazer. Uma aura de sedução percorre minhas veias quando estou próximo a você, porém os demônios sádicos gritam e sopram em meu ouvido. Meu plano está quase se concluindo; ele poderá saber a minha verdadeira intenção. Posso não ser seu companheiro, mas irei agir como tal.”
— Para mim, você não é assim — disse, sincero, cruzando os braços. — Você é um garoto comum.
A dúvida que Brian expôs fez com que Albarn tivesse uma ideia maliciosa. Ele sabia compreender totalmente alguém de coração puro e torná-lo frio e tendencioso.
O loiro não era sua vítima; era sua marionete. Então, quanto mais controlasse e iludisse seu aliado, mais o enfeitiçaria com sua lavagem cerebral. Iria reproduzir os mesmos atos carnais que seu pai fazia com aquelas mulheres, só para satisfazê-lo, enquanto procuraria mais vítimas “insolentes” para caçar.
Em um minuto de silêncio, devolveu a mesma pergunta:
— Você também me acha estranho? — Albarn sorriu levemente, chegando um pouco mais para frente, o polegar tateando o queixo do garoto. — Tem medo de mim?
Mantendo um aconchego intimidante, ele condescendia uma disposição gostosa e relaxante na textura macia do aspecto de Brian, fixamente compenetrado em seu carinho, sem esticar qualquer músculo.
Seu companheiro remexia as retinas para os lados, preso em uma sensação quase emocionalmente perfeita, mas, pelos toques, Grant achava estranhamente abstraído, porque Henry parecia enfeitiçá-lo — um obscuro feitiço tóxico e obsessivo, mentalmente perfurando seu psicológico e seu coração com pregos e alfinetes.
Brian, por sua vez, retorquiu:
— Claro que não — falava, ruborizado, enquanto os dedos compridos continuavam a afagar os contornos de suas bochechas, inusitadamente o confortando. — Você só me intimida, bastante. — De repente, um arfar saiu de sua boca intensamente, enquanto o couro das mãos enluvadas descia até seu pescoço. — Como está fazendo agora.
— E como você está se sentindo? — demandou seriamente, apontando para o meio do pomo de Adão, fechando o polegar e o indicador, puxando e soltando um pouco da pele da laringe, causando estalos. O loiro rangia os dentes, levemente incomodado com os apertos. Albarn cansou de explorar ali e foi chegando ao fim de sua nuca, coçando a parte de trás. — Ao meu ver… me parece tenso.
— Tenso? — Revirou o olhar, sob um gaguejo impensado. Não conseguia descobrir qual era o tipo de ternura que seu hóspede trouxera. Mal sabia dizer se aquele contato causava medo ou confiança. — Estou só… — Durante um toque nos ombros, acompanhados por um apertão em sua carne, obteve um espasmo e, de golpe, voltou para o campo de visão do pálido, atônito ao notar seu gemido doloroso. — Porra, isso é muito gostoso, mas… — sem palavras, possuído por um instinto desconhecido, Brian engoliu em seco. — Sinto que está querendo me perturbar… Mas, ainda assim, uma parte de mim quer mais, mesmo não cedendo totalmente. — Outro aperto o calou, sobrando novamente arfares que o encrespavam, sucumbindo frente a ele.
— Gosta de ser tocado assim? — sorrindo sem mostrar os dentes, chegou ainda mais perto, progredindo em jocosos sussurros sob a audição da figura dourada, provocando tentação extrema. — Você gosta?
Definitivamente, Albarn queria esmaecer a pureza no desorientado rapaz. Reconheceu sua adrenalina querendo se manifestar, embora impossibilitando essa vontade — despretensiosamente atentado. Mais ele procedia com autonomia para o pálido explorá-lo. Toques repentinos e abruptos furtavam murmúrios de seus lábios, nascendo emoções sequer conhecidas.
— Você… — Desconexo e moderado por Henry, o loiro deixava tudo acontecer lentamente. A lâmpada do teto ofuscava ao seu redor, e o quarto diminuía, reduzindo-se a apenas corpos em cima do colchão, um sob o reflexo do outro. — Você está… me deixando perplexo. Eu não sei, acho que só quero sentir.
— Diga para mim que não está com medo — disse o pálido, dominante e astuto, erguendo o queixo do loiro e observando de relance seus olhos preguiçosos e salientes. — Deixe seu medo sair. Eu estou aqui para você, Brian… Me conceda seu medo.
— O quê? — Não havia entendido.
— Vamos… diga pra mim.
Henry conteve as cinesias, posicionando a destra e a canhota em ambas as linhas dos ombros largos de Brian. Nenhum dos jovens conversava mais sobre as interações. No entanto, o hóspede oscilava, procurando mais espaço na cama estreita, ficando meio apartado do gêmeo: Grant estava no lado esquerdo e Albarn no direito, inspirando os mesmos ares. Serpenteando a cabeça para os dois lados e dobrando suas pernas, o dono da voz articulada esbarrava quase no peitoral do garoto de cabelos claros, mantendo-o fascinado e inerte na vastidão mediterrânea de seus olhos azulados.
A complexidade da tensão sexual fora anunciada. Quando um gêmeo submergido fitava a boca do hóspede, implorando para que fosse beijado, ele impulsivamente esticou e abriu suas duas pernas, colocadas ante os quadris dele, sendo fortemente puxado ainda mais perto, tendo somente sua espreita disponível.
Abaixando o olhar em sua direção, Henry notou a implícita súplica de livrá-lo da jaqueta calorenta — que atrapalhava sua primeira e curiosa exploração corporal — e da camiseta clara. Brian não precisava adivinhar que o êxito tomaria conta do motivo de seus pelos e mamilos eriçados dentro das vestes, enquanto acontecia uma sintonia de deslizes e apertos em sua bunda. Queria segurar sua ereção, mas era impossibilitado de ficar parado; quanto mais se mexia, piorava.
Ele não queria ser apenas apalpado, por mais intrínseco que o contato fosse. Brian sentia-se demasiadamente perdido nele, porém tudo mudou quando Henry finalmente resolveu pressionar seu rosto em direção ao dele.
A atmosfera daquele momento fez o loiro sentir-se inquieto, intensificando seu entrosamento para algo relativamente inspirador na mesma medida. Antes de selarem os lábios grossos nos macios, o pálido teve uma pausa brevemente antes de estrear seu ato:
— Olhe só! — Impressionado pela nítida formosura e pela brilhante vista esverdeada, vigorosamente comovia o psiquismo de seu companheiro, que avistava totalmente aquela passagem libertina pronta para ser afamada. — Você está louco para me beijar, não é? — Henry riu maliciosamente, notando um balanço positivo como resposta. — Quer ser beijado justamente por alguém que possa fazer muito mais.
— Sim — balbuciou, enroscando seus braços pela nuca do hóspede e sentando-se mais em seu colo. — Por favor, Henry… me beije! — O pálido erguia o pescoço ossudo, impedindo que seus lábios cruzassem com os dele. Era só isso que ele precisava: um beijo, sentir a capacidade temerosa e eletrizante que imaginava.
— Quem garante que isso valerá a pena? — inquiriu, testando os limites de sua mente. — Se você mesmo disse que tem medo de que eu faça alguma merda? — Ele não estava errado. Brian havia deixado claro que isso traria algum problema entre a relação deles; no entanto, a dissertação interferia literalmente em inúmeros de seus sentidos. — Então, provavelmente, este é um dos seus principais medos — Henry, peremptório, dera seu ultimato.
— Talvez… — sibilou, deitando sua cabeça no meio do peito do hóspede. Brian continuava a insistir. — Quero que me faça sentir vivo! Me mostre sua capacidade de envolver-me com seus lábios. — Um vislumbre desesperador, friccionando contra ele. — Eu quero um beijo, nada mais. — Foi direto ao ponto, porém, na interpretação do hóspede, as coisas eram muito diferentes. Sinceramente, irritou-se, esperando que Brian ficasse logo calado.
— Tem certeza? Quer mesmo isso? — Albarn distanciou-se alguns centímetros da proximidade do loiro, não perdendo a intuição sôfrega de querê-lo para si. Era nítido perceber sua excitação; o aumento de sua libido certamente iria enlouquecê-lo. — Acha mesmo que isso será necessário? Ou vai querer me aguentar até o fim? — Duvidou, com o cenho estendido e o semblante suspeito.
— Até o fim? Bom, eu não sei — De acordo com suas convivências no dormitório masculino de Chesterfield, as paredes tinham ouvidos e boatos vinham como um raio. Ele não estava pronto para um amasso fervoroso, por mais que seu corpo quisesse. — Vão nos ouvir; se nos ouvirem, ficaremos encrencados. — O loiro sequer pensava nas palavras ditas. Henry continha um diabólico dom de desligá-lo da realidade, tendo em vista apenas seu controle sobre ele.
Batuques vertiginosos lesionaram o tórax, enfrentando a hesitação interior e tentando liberar ocitocina, anestesiando seus problemas de aflição. Convidado para um refúgio fúnebre… Encontrando sua alma gêmea em uma floresta nebulosa, Henry era Incubus e Brian Chamuel — o arcanjo guardião de seu coração, que protegia sua alma imaculada, foi derrotado pela luxúria da criatura demoníaca do sexo.
— Saiba que você só está assustado — instigava o jovem de cabelos claros, dando a entender que era tolo o suficiente para reconhecê-lo. Albarn não se interessava em saber no que Brian fielmente supunha a respeito dele. — Ninguém existe agora… aqui seremos você e eu.
— Mas eu acho que nós… — foi interrompido pelo hóspede, que virou o rosto do loiro com agilidade novamente para o dele.
— Oh, por favor, Brian — pousou o indicador em seu lábio, em um pedido silencioso. Automaticamente, o pálido fechou os olhos, retornando para frente do loiro. Com uma voz terapêutica e monótona, ele alcançou sua mão direita nas maçãs da feição de Brian. Levando os lábios aos dele, finalmente encostou em sua boca aberta, selando pausadamente um beijo. — Estará tudo bem… — O dedo médio girava um dos fios dourados, causando uma atração descomunal entre os dois. Grant subliminarmente quis mais de seus beijos; Albarn, por sua vez, empurrava o companheiro para si: — Deixe-me cuidar… — puxou a jaqueta para baixo, livrando-a do corpo dele, jogando-a para algum canto do lugar. Visualizando o tecido claro da camiseta que Brian usava, o loiro notou uma de suas roupas arrancadas, começando a não mais sentir falta delas. — De você.
Após mais um contato íntimo, o gêmeo, sem esboçar reações, simultaneamente abria a boca e fechava os olhos confusos, contornado nas garras do monstruoso homem disfarçado por sua aparência fria e jovial. Sentia o frescor do hálito gelado sob suas narinas, enquanto ele fazia miseravelmente o subconsciente de Grant acostumar-se com suas ilusões.
— Eu sei que você me quer. — Ele trilhava beijos: na sua testa, no seu nariz, em suas orelhas e no canto da boca. O semblante outrora perverso metamorfoseou-se em uma expressão fantasmagórica. — Você me quer, não é, Brian? Quer ser surpreendido por mim? — desafiou, com as sobrancelhas levantadas de modo categórico.
— Henry… sim, eu quero, te quero comigo — desengonçado, ele balbuciou, cansado de olhar para seu rosto, desviando a atenção para outra direção, pavorosamente ofegante. Brian claramente recusou admirar sua expressão para que não fossem descobertos. Queria desistir, queria sair dali… todavia, era difícil não tolerar seus instintos minuciosos. — Eu quero, mas… isso está acontecendo tão rápido que mal pude ver o tempo passar — sobrepondo sua mão macia nas costas da mão de Albarn, jogou o peso da cabeça em seu ombro. Fungando o perfume afrodisíaco, percebeu que o hóspede cheirava a azaléias e dama-da-noite. — Tudo ao nosso redor é estranhamente bonito e enigmático.
— Você acha nossa conexão enigmática, então? — Viu-o assentir com a cabeça, olhando para baixo, sentindo mais toques invadirem seu interior. — Quer que ela seja especial, mas está bloqueado nela, certo?
— Isso mesmo.
— Então, volte a olhar para mim — murmurou, simplificadamente. Dado ao mandato, assim fez. — Olhe para mim, Grant! — exclamou, predominando o sobrenome de seu companheiro. Ele manteve a dominância atingida em seu âmago.
A voz suave, combinada com o manejo, deu sinais de submissão instalados no garoto loiro. Grant avistava Albarn, surtindo um efeito surreal que amplificava nas radiantes pupilas. Em contrapartida, o rapaz ajoelhou-se perante seu hóspede, favorecendo a dádiva enquanto paralisava pelos burburinhos saídos de uma figura orante e soturna.
— Neste quarto restarão você e eu… os outros nunca saberão ou dirão sobre nós dois — disse, segurando as mãos pequenas e apoiando ambas em seu pescoço. — Eu não passo de um garoto estranho e instável; tenho uma personalidade louca para essas pessoas. — Perplexamente motivado em sentenças descontraídas, Brian só escolhia concordar positivamente. Nenhum sinal de outras vozes estava presente no corredor — exceto os chiados da televisão de tubo. Henry e Brian estavam solitários em um repugnante alcova adolescente.
— Você está certo… ninguém está aqui.
— Viu? Isso é só mais uma miragem vinda de sua mente. — Promovendo sua segurança em Brian, viu-o inspirar tranquilo.
Incontrolavelmente, o gêmeo foi puxado pelo cós da camiseta, mais pregado contra o corpo de Henry, prestando atenção em seu rosto. Os lábios do pálido voltaram aos do loiro — pernas erguidas e colocadas sob o quadril —, contudo sua cavidade bucal foi dando abertura para a língua áspera atravessar a sua, ambas dançando em uma erótica melancolia.
Henry era significativamente mais alto, e Brian, com sua falta de altura, teve que segurar o hóspede, inclinando-o para baixo e alcançando facilmente seus lábios. Ele movia sua cabeça entre esquerda e direita, enquanto massageava os cabelos escuros.
O jovem Albarn recuperou sua expressão cética quando o garoto acanhado parou de beijá-lo por alguns segundos, encontrando seu semblante fantasmal. Grant impulsionou aquele rapaz alto, causando um estrondo no estrato de ripa, com seus cabelos negros-azulados jogados no colchão, encarando o teto de vez em quando. Engatinhando até sua direção, Brian chegava próximo ao hóspede, sentando-se em seus quadris e abaixando o olhar sob o dele, sentindo as mãos passando por suas costas e bunda. Esfregando em seu colo, conseguia notar seus íntimos pulsarem.
Os fios das madeixas douradas eram puxados por ele — uma sensação controladora que fez o gêmeo arfar e emitir um gemido dolorido, fazendo Henry rir. — Embora mentalmente recusasse o calor e a imprevisibilidade da ternura bestial de Henry, o corpo ansiava por contato completo; no entanto, Brian só queria um beijo, intensificando um respiro suave e friorento que percorria suas narinas.
Desenvolvendo o beijo para algo mais intenso, ambos os rapazes moviam-se para os lados, enquanto sons de saliva e gemidos mínimos chegavam. Brian estava envolvido por suas fortes carícias, mais alucinado do que o normal. Num instante, os braços da figura pálida permaneceram inativos ao lado do corpo. Grant teve que finalizar, pois estava evitando perder completamente seu ar. Tirando o hóspede de um transe, ele mordia a ponta de seu lábio lentamente, soltando-a após quase ultrapassar os limites do clímax.
O hóspede queria mais, não entendendo por que ele estava parado sem avisar. Ele ficou insatisfeito, observando o loiro ofegante, que estava com os joelhos dobrados, meio em pé entre suas pernas.
Brian parou por alguns segundos, arfando e desconfortável pela protuberância visível em sua região íntima. Isso fez Henry perceber sua excitação. Sem dizer nada, atreveu-se a sobrepor sua mão nele, subindo lentamente pelas coxas até o órgão sexual, mas foi impedido quando o gêmeo retirou a mão do local, incrédulo e boquiaberto, pois nunca havia sido tocado por alguém além dele mesmo.
— Não, melhor não — negou com a cabeça, inseguro. — Nunca fiz isso…
— Como é?
— Nunca na minha vida deixei alguém me masturbar — entrelaçou seus dedos nos dedos do pálido. Voltando sua insegurança, realmente não sabia que teria sua virgindade roubada por alguém que não o amava. — Eu nunca fiz sexo com ninguém… e não sei se podemos chegar a esse ponto.
— Você é virgem? — perguntou, surpreso. Queria terminar de testar aquela mente, adivinhando certamente que ele era inexperiente. — Nunca pensei que você fosse.
— Sim… eu sou — suspirou, cabisbaixo. — Meu irmão fica me caçoando por isso.
— Tem certeza de que não quer experimentar sua curiosidade um pouco comigo? — Henry encontrou-se em uma situação indesejada; era difícil possuí-lo.
Ele lembrava das vezes em que uma garota de sua antiga turma do ensino médio o tinha convidado para uma atividade sexual, mas, no começo, havia se atrapalhado e ficado com as lembranças de seu pai fazendo sexo com prostitutas, até que não aguentou e foi direto ao ponto. Indo embora sem se despedir, percebeu que a jovem não acordava. Ele não lembrava de seu rosto ou em qual bairro morava — porém, depois daquele dia, ela não havia retornado mais ao colégio.
— Estaremos indo longe demais — argumentou, sem pensar. — É arriscado.
— Você não precisa pensar assim. — Ele se ergueu da cama, girando o loiro para sua direção. — Só será arriscado se você deixar.
— O que quer dizer com isso?
— Só relaxe. — Lentamente, soltava os dedos de suas mãos. Invertendo as posições, Brian deferiu um ofego ao ser jogado na direção em que Henry se colocou, com a cabeça caída pelo travesseiro. — Você agora pertencerá a mim… farei você estremecer. — Inclinou-se sobre o gêmeo imóvel, beijando sua testa, algo que ele não havia gostado.
— Mas…
— Confie em mim.
Mais beijos foram selados, percorrendo toda a região do pescoço. O loiro, novamente hipnotizado pelos encantos de um jovial Incubus repleto de desejos ardentes, sentia-se sob o comando de Henry, assim como um marionetista comanda seus fantoches.
Brian não sabia exatamente como aquilo tinha acontecido. Ele queria parar, mas o controle não era facilmente possível de impedir. O momento era prazeroso, no entanto, acabaria de uma maneira ruim se ele não fizesse nada. No minuto seguinte, estava paralisado entre as pernas de Albarn, suando frio e desconfortável.
Reparando o quão longe as coisas iam, Grant suava frio, observando seu hóspede brutalmente pressionar o tecido de sua camiseta, erguendo-a calmamente e, aos poucos, apresentando sua carne desnuda. O loiro arqueou automaticamente as costas enquanto a peça ultrapassava os braços e a cabeça — jogada no mesmo canto que sua jaqueta — revelando para o pálido uma visão de poucos tufos dourados em suas axilas, os eriçados mamilos róseos, um peitoral e abdômen perfeitamente voluptuosos na concepção de sua quimera desproporcionada.
— Que corpo admirável — elogiou, apreciando os traços e linhas de sua descoberta, assim como um colonizador aterrissando em uma vasta ilha. — Você parece uma pintura rica em detalhes.
— Pareço? — indagou, sem fôlego.
— Vai ser um prazer revigorar você — disse no momento em que se livrava das luvas, colocando-as em um criado-mudo.
Henry sequer hesitava; guiou a ponta da língua ferina, subindo e descendo por sua musculatura, fazendo Brian arquear pela segunda vez por conta dos arrepios que causavam nele, alicerçando os chupões em seus mamilos e as lambidas repentinas no rosto. Isso resultou em gemidos roucos e desesperadores, enquanto visualizava gotas de suor cálidas na nuca do hóspede, com os cabelos negros quase jogados sobre suas têmporas.
O gêmeo rangia os dentes quando unhas arranhavam o meio de sua barriga, torturado e riscado por um artista sádico. Não obstante, Henry livrou-se de sua blusa de lã, mostrando seu físico atlético e trincado. Ao levantar um de seus braços, era possível notar as axilas depiladas e limpas. Um corpo quase semelhante ao de um atleta, onde os músculos eram o destaque.
Voltava a contraí-lo — cansado das preliminares e quase avançando para o próximo passo — metendo toda a sua destra no pescoço do gêmeo, não o fazendo se mexer. Depois, deslizou sua canhota, que violentamente desafivelou o cinto, dando liberdade para Henry abrir o botão da entrada e descer o zíper de sua calça.
Numa fração de segundos, adentrou por dentro de suas peças íntimas, pegando no pau escorregadio e molhado. À medida que forçadamente apertava a garganta do loiro, começou devagar os ritmos de uma masturbação, estremecendo o rapaz inteiramente confuso e vulnerável.
O dormitório preenchia-se de sons lúbricos escapando do gêmeo durante os deslizes em sua glande, transformados em toques agressivos. Só restava a opção de aceitar, torcendo para que acabasse em sigilo. Era diferente conter uma mão que não fosse sua em áreas individuais; porém, o tempo desperdiçado naquele lugar fez com que ele quase chegasse inesperadamente ao ápice de seu orgasmo. Seu ar faltava e ele gemeu mais alto. No entanto, Henry se surpreendeu com algo:
— Você já está gozando? — Tirando a canhota de dentro das calças xadrez por alguns segundos, surpreendeu-se com seu feito. — Eu mal estou tocando você… isso é bem raro, sabia? — Seus dedos estavam úmidos. Ele falava e, ao mesmo tempo, notava o efeito causado.
— Você é o primeiro — gesticulou com a cabeça para os lados. Numa dificuldade de respirar, afastou o pulso da destra, porque Henry segurava com muita agressividade. — O primeiro que está me trazendo isso.
— Isso está cada vez mais interessante — aquilo, de algum modo, o empolgava. Era esplêndido dominar e manipular um jovem homem imaculado, como se estivesse manipulando suas fraquezas. — Estou cada vez mais impressionado.
— Não acha isso um empecilho para você?
— Você nunca será um empecilho para mim.
— Mas Henry… eu não acho bom fazer isso aqui — voltando ao assunto, o pálido o calou. — Estou te dizendo para mantermos o controle, mas você não obedece.
— Quem precisa obedecer aos controles é você — afirmou novamente em seus murmúrios mortais. — Se não quiser mais, é só me dizer. Você não está me dizendo nada!
Retornando a enforcar sua garganta e roçar o membro rijo, brincava com seus testículos e comprimento largo, sendo respondido com mais gemidos. Embora não soubesse como era o tamanho de seu órgão, ele imaginava que fosse médio. Sentia a palma da mão sendo melada pelo pré-gozo, enquanto o jovem loiro balançava as pernas para os lados.
Brian não estava mais perplexo naquele momento; ele queria estar pronto para perder sua virgindade, mas não naquele quarto esdrúxulo. Ele tossia com dificuldade e sua visão começava a ficar turva e embaçada, sentindo que desmaiaria.
Foi se adaptando à masturbação, porém, ao notar as situações complicando-se, puxava a franja do pálido em protesto, ouvindo um arfar sair dele. Albarn continha uma vontade avassaladora de querer asfixiá-lo.
Vozes em sua mente ordenavam que ele se entregasse ao desejo destrutivo: "Estrangule-o, corte-lhe a garganta." A sensação amalgamada de horror e morte crescia; no entanto, seria burrice matar o filho de sua psicanalista.
Todavia, foi abaixando um pouco as calças de Grant, querendo tirar sua peça íntima escura, que parecia implorar para ser abaixada. Antes de fazer tal ato, notou que Brian estava saracoteando e faltando respirar por conta dos apertos, suplicando pela última vez:
— Henry… você está me machucando — tossindo e quase perdendo a visão, ele insistia para que o pálido o deixasse inspirar, contendo seus gemidos e seu organismo definitivamente enfraquecido. — Por favor, é melhor… melhor pararmos — as unhas cravando e incomodando sua laringe. — Eu preciso… preciso de ar!
— Acalme-se, Grant — ignorando seu pedido em torno de sua imaginação tresloucada, ele mordiscava a pele de seu pescoço, ouvindo-o perder o fôlego, já quase sem ar. — Você vai se acostumar — soltou sua garganta, quase descendo a peça íntima dele, que atrapalhava sua exploração.
— Henry, para! — berrou, empurrando-o para trás com suas mãos livres. Tossindo constantemente e esperando que sua visão voltasse ao normal, Brian vestiu suas roupas, tremendo e assustado com o que acabara de ocorrer.
O plano maléfico realmente não faria sentido; se o enforcasse durante a relação sexual, testemunhariam um ataque dentro da instituição.
Henry não esperava aquela reação. Resolveu inspirar profundamente e, por um lado, o companheiro sequer processou sua realidade. Brian claramente saberia que o pálido que beijou o mataria por ser legalmente insano e perigoso.
Ao tirar sua destra de seu órgão, notou o brilho de um pouco de sêmen grudado em seus dedos, lambendo-os propositalmente, assim permitindo que Grant ajeitasse sua postura, voltando à realidade.
Brian não era experiente o suficiente quando o assunto era sexo; nunca havia sido tocado ou beijado ferozmente por alguém. Algo em Henry era singular: o sussurro era perturbador, os toques eram mortais e seus beijos eram turbulentos, amargos, apressados e sem ritmo. Porém, uma enigmática atração nutria-se internamente.
Impaciente, Albarn decidiu consolar a alma ferida; se queria impactar medo, não seria forçando-o a dar seu consentimento.
“Se ele fosse como o Yoshida, seria mais simples”, pensava irritado, planejando encontrar outra oportunidade. Brian não o aceitaria de primeira; esse processo demoraria.
— O que passou na sua cabeça pra fazer isso?! — Alarmado, o gêmeo cruzava as pernas, afastando-se um pouco e querendo choramingar. Felizmente, estava livre das garras demoníacas do hóspede sob as quais suportava, absorvendo tudo que acontecia no espaço. O êxtase se partiu. — Eu só queria te beijar; mesmo te beijando… é impossível não imaginar alguma catástrofe.
— Me perdoe, acabei me empolgando — fingia remorso, querendo abraçá-lo. — Eu nunca quis te machucar; venha aqui.
— Não — ia se distanciando. — Eu não posso ficar próximo de você, eu não…
— Me desculpe, está tudo bem — estendeu os braços, puxando-o para si. — Está tudo bem agora… esqueça tudo.
Grant subiu o zíper de sua roupa e procurou seu cinto, sentindo que o aconchego do hóspede o acalmava, porém não surtiu efeito. Quanto mais ficava ao seu lado, uma parte dele desaparecia; ficava sonolento e preso numa fantasia instável.
Uma combinação de dourado e negro, como se fosse o sol entregando-se à lua, formando um eclipse na Terra, evaporando a última luz que se restaurava do céu. Brian era a claridade sendo apagada pela penumbra que pertencia ao instigante e venturoso Henry Albarn.
Ele não sabia seus reais sentimentos, mas naquele momento íntimo havia descoberto tamanha aflição em regozijo psicótico. Era um fascínio mórbido, pois Henry usufruía de dinâmicas espontâneas e amaldiçoadas, instalando trevas e ferocidade em suas vítimas.
— Você está melhor? — Albarn quis entender como aquilo o afetou. Seus olhos pareciam transbordar de lágrimas, fechando-os cansadamente. Só queria dormir e processar os efeitos causados pelo seu corpo e alma. Manipular alguém nunca foi tão fácil para ele. — Brian?
— Oh… sim, acho que estou — sacudiu a cabeça para os lados, ignorando seus devaneios. Por um instante, afastou-se dos braços de Henry para conseguir se acalmar. — Eu só preciso respirar um pouco… na verdade, eu sinto uma merda e acho que nem consigo olhar pra você.
— Não fale assim — tocou seu ombro, querendo serená-lo. Obviamente, não era burro em querer contar a ele sobre seu temperamento anormal. — Sei que fui impulsivo e estraguei as coisas, mas foi porque estou gostando de você. — Omitindo e sorrindo para ele, averiguava a imprecisão sobre o semblante triste.
— Se gosta de mim, então por que é tão intenso? Por que me disse para parar, mas não me escutou? — indagava, choroso. — Eu não tenho medo de você… mas às vezes sinto que nosso convívio vai acabar dando errado. Algo vindo de você me deixa confuso, cansado, descontrolado.
— Eu sei — concordou, limpando as lágrimas do rosto de Grant. Sério e quieto, Henry acariciava sua nuca, deixando que ele ficasse novamente consigo. — Esse sou eu. Mas juro que irei consertar minhas atitudes; ouvirei da próxima vez.
— Promete?
— …Prometo — mesmo mentindo, ele beijava sua testa. — Vou esperar pelo momento certo… quando quiser, estarei por você.
Terminando o assunto, de repente, Henry se repreendia internamente, murmurando palavras de recusa somente para si, levantando-se e saindo da cama. Grant encontrou sua camiseta e pôde vesti-la; o pálido fez o mesmo, colocando suas luvas em seguida. De súbito, sua atenção foi atrapalhada:
— Merda! — O loiro pigarreou, vendo uma pequena mancha branca de sêmen manchada pelo meio de suas calças. — Como vou explicar isso pra minha mãe? — Uma risada saiu de Henry; foi inevitável não olhar mais para baixo. — Ei! Não ria disso.
— Oh… foi mal — conteve-se, voltando à sua personalidade séria. — Talvez tenha algum uniforme no achados e perdidos.
— Verdade. Nem morto vou dizer pra minha mãe que quase transamos no dormitório masculino.
No fundo, algo fez com que o loiro sentisse compaixão pelo pálido. Era uma situação complexa, e ignorar o que viveram seria imprudente. Brian queria animar Henry para evitar que ele sofresse mais ou pensasse em algo pior, embora não soubesse o verdadeiro passado dele e que havia matado uma pessoa.
Ele precisava ser confiante para conseguir um aliado que o protegesse e depois eliminá-lo para sempre. Henry instigava Brian; o semblante alegre dele ainda se tornaria fechado. Imaginou várias vezes aquelas cenas no quarto, como seria se ele estivesse mais arranhado e cheio de marcas. Em algum momento, teria aquela chance — só precisava ser paciente.
Olhares cruzaram-se e trajetos separados seguiram. Os estudantes ignoraram pensamentos fictícios e concentraram-se no caminho de casa. Os dois rapazes permaneceram juntos; o motorista da família havia chegado para buscá-los. Ele abriu a porta para que ambos entrassem.
Albarn ficou em silêncio, nervoso e arrependido. Sua mente doía como se um caco de vidro estivesse nela; não era amor ou desejo, apenas desgosto por ser atrapalhado, não terminando seu plano violento, que quase prestes a começar naquela hora.
Encostou a cabeça repetidamente no banco, semicerrando os olhos em direção ao loiro. Finalmente, acalmou-se quando sentiu um toque suave nas costas da mão. Virou-se para olhar o rosto de Brian e deitou sua cabeça em seus ombros, focado no rádio do veículo, onde a estação noticiária anunciava casos de assaltos e o desaparecimento de Miller. Por enquanto, o caso não tinha novidades.
Henry acreditava que não seria capturado algum dia; portanto, ninguém saberia quais ações e crimes estaria cometendo por Swan Lake. Aquela belíssima ruiva seria essencial para uma vítima perfeita; no entanto, teria que conhecê-la abertamente e investigar suas principais fraquezas.
Mas será que ele realmente errou em ter parado o ato com Brian? Ele faria aquilo novamente? Consequentemente, as coisas estavam destinadas a piorar.
Apertando as mãos no guidão, o garoto procurava um bicicletário para estacionar sua BMX azul-marinho. Movendo os pés em ambos os pedais, ele se dirigiu a um ponto de encontro mais próximo. Estacionou em um lugar paralelo, de frente para outras bicicletas, sem se importar se roubassem seu pertence, já que Billy costumava praticar isso ocasionalmente.
Excursionistas de outras cidades norte-americanas surgiam em busca de distração e férias curtas; geralmente, os hotéis da cidade esgotavam suas vagas. Billy e outros adolescentes de Swan Lake marcavam encontros frequentemente naquela área, sem conhecer os turistas — todos os bancos de madeira eram reservados para casais, famílias, idosos e crianças.
Pela claridade solar sucinta dos céus, as luzes fustigavam com força o rosto da garota de madeixas peroladas. Ela não deu importância aos turistas e nativos, mas prestou atenção aos cisnes da serena e profunda lagoa, imaginando as lágrimas da mãe de Odette, que representavam a essência do nome daquela localidade onde estava sendo obrigada a morar.
Continuava com os olhos nela, irritando-se com tamanha curiosidade. Desde quando uma novata desconhecida conseguia instigá-lo? Independente de quem ela poderia ser, Billy entendia que a garota, com certeza, participaria de sua vida — em alguma situação, ela estaria presente.
Cassie observava o gêmeo de cabelos castanhos andando em sua direção e, consequentemente, torcia para que ele não fosse alguém inconveniente ou esnobe. Estava cansada de aguentar sua madrasta anunciando regras ou William pedindo respeito de sua parte. Decidiu explorar, mesmo assustada pelos crimes que a nova cidadania trazia, em localidades afoitas. Superando isso, adultos e idosos curiosos queriam saber qual era a origem da Silverstone.
Não foi surpresa que outros adolescentes começassem a rondar por ali. À medida que mais cidadãos circulavam, o lago se enchia de espectadores. Cassie se afastou da área, sentindo-se incomodada; foi quando o gêmeo de cabelos castanhos seguiu seus passos.
A loira já estava ficando impaciente com as novas pessoas em seu cotidiano. No entanto, reparou no indivíduo que a seguia. Antes de conversar, Billy lançou um contagiante sorriso metálico, e a garota reconheceu seu rosto sem esforço. Cassie resmungou, sentando-se em um banco vago, com a figura extrovertida em sua visão.
— Está querendo levar outra surra de novo? — ameaçou o garoto, ríspida e erguendo o punho direito. — Você estava me seguindo, né? Deu pra reconhecer sua cara de lerdão. — Logo, cruzou os braços, indignada.
— Calma aí, bonitinha — tentava tranquilizá-la, mesmo que impaciente. Billy estava interessado nela de alguma forma. — Você não parece bem. O que andou fazendo por aqui?
Silverstone recusava-se a descrever as confusões entediantes de sua vida pessoal. No entanto, aquele garoto era interessante para se conversar. Billy sorria entre cada diálogo momentâneo; não era chato ou intrometido, conseguindo deixar Cassandra simpática e confortável.
Will e Lauren ordenaram à primogênita que não saísse novamente escondida de casa; entretanto, ela desobedeceu — como de costume. Apesar dos perigos e crimes que o advogado anunciou no fim da viagem, a garota sentia-se extremamente desconfiada: assassinos, blitz, lendas e temporais nebulosos. Isso era assustador pra caralho. O inverno em Golden Oaks aparentemente se considerava somente gelado, enquanto outras estações tinham seus climas normais nas épocas do ano.
— Me mudei pra cá hoje. Meu pai é insuportável e minha madrasta também — enunciou, revirando os olhos e contando nos dedos seus eventos recentes. — Fui obrigada a sair do colégio. Segunda-feira estarei numa instituição… Pelo meu histórico de bullying e agressões físicas, estou vendo que estarei fodida de qualquer forma.
Cassie deu espaço para que Grant pudesse sentar-se ao seu lado. O garoto andou até o banco e assim se sentou, ambos escutando suas reclamações diárias. Billy observava a loira erguendo o pescoço e soltando a fumaça impregnada em seus pulmões — após largar e pisotear a bituca do Marlboro com os sapatos no chão áspero, sibilando profundamente.
— Entendo… Também não suporto minha mãe e meu irmão! — desabafava o gêmeo, sacudindo seus tênis, com os braços cruzados e cabelos desgrenhados. — Eles sempre me subestimam ou jogam na cara que sou um infantil. Realmente gosto de ser provocador e engraçado, mas nem sempre vão entender minhas piadas — riu sem humor, notando a Silverstone fazer o mesmo. — Você estará em Chesterfield então? Ih, coitada! Matriculou-se na pior época e na pior escola dessa cidade.
— Você estuda naquele lugar?
— Desde o fundamental — balançava a cabeça positivamente. — Antigamente era legal… Só que no ensino médio, mudaram inúmeras coisas. Um aluno muito querido pelos professores desapareceu, e ninguém sabe como.
— Puta merda! — Cassie se espantou, concluindo que os boatos ditos pelo patriarca sobre desaparecimentos eram, infelizmente, verdadeiros. — Mas você desconfia de algo, pelo menos? Tipo, acha que isso foi obra de maníacos ou de uma entidade maligna?
— Entidade maligna é impossível ser.
Na realidade, Billy suspeitava de quem poderia ser o responsável pelo sumiço de Yoshida Miller: seu novo hóspede. Embora tivesse advertido o irmão para não se envolver com Henry, definitivamente entendia qual situação plausível poderia ter feito Melissa avisar o segundo filho. A mulher era especializada em psicologia criminal; se Albarn mantinha-se dentro da moradia, de fato havia alguma justificativa para acolherem o rapaz — ele cometeu um crime e foi obrigado a sair de casa para conviver em uma família desconhecida.
Os irmãos Grant, assim como as irmandades tradicionais, discutiam e brigavam entre si, portanto isso não era demasiadamente justo. Brian achava que era maduro e inteligente; tampouco queria ouvir as palavras de seu irmão, que alertava sobre os perigos que o hóspede poderia trazer ao loiro. Futuramente, ele iria se arrepender; esse dia chegaria.
“O suposto diabo está tomando conta de minha casa… Tenho certeza de que Henry sabe do Yoshida e inventa mentiras para o Brian,” cogitava silenciosamente, teorizando sobre quais seriam as intenções de Henry com seu irmão. Ele fingia não se importar, mas aquela situação era impossível de esquecer.
— Tá brincando, né? — indagou Silverstone, jogando o cabelo para trás. — Esse lugar é frio até no verão! Deve existir alguma maldição… Não é possível ser normal. Aposto que pessoas somem inesperadamente ou são mortas, sei lá.
— Nisso você está certa — anuía, franzindo uma das sobrancelhas, entretido pelo desespero da novata. — Swan Lake está longe de ser pacífica. Quem vem pra cá imagina um local sossegado, mas sabe que existem lendas e crimes doentes e loucos pra caralho.
— Realmente é "lago dos cisnes", porém mancharam as lágrimas da mãe de Odette com sangue, e a maldição de vários Von Rothbarts transformou uma cidade de música e dança em um memorial sombrio e frio. Odette morreu na história, mas garanto pra você que, pelo menos, se libertou e foi feliz.
— Exatamente isso… Você é foda! Nunca imaginei encontrar uma garota que pensasse fora da curva — elogiou-a com carisma, fazendo Cassandra revelar um sorriso para o gêmeo de cabelos castanhos. — Voltando ao assunto do Yoshida: sim, desconfio muito dessa história. Você lembra do cara alto que tentou me enfrentar junto ao meu irmão, né?
— O esquisitão branquelo? Ou o loiro revoltado? — questionou, sarcástica, vendo a expressão do moreno de olhos esverdeados mudar em reprovação, enquanto abanava as mãos. — Qual é?! Eles são uns folgados! — sobrepôs a mão na cintura, orgulhosa do que havia dito.
— Só eu posso criticar meu irmão, beleza? — avisou, dando um soquinho leve no ombro esquerdo da jovem. — E não… Não é o Brian, estou falando do novo “amigo” dele: Henry. — apontava para cima, mostrando sua análise do assunto.
— O Henry é o branquelo?
— Sim, o “branquelo”.
— Mas por que está incluindo ele nisso?
— Bom… Como posso explicar pra você? — respirou suavemente antes de iniciar o assunto. Billy desejava que não estivesse certo nas acusações que mentalmente fazia sobre o hóspede. — Aquele garoto simplesmente foi obrigado a passar um mês em nossa casa. Não sei qual motivo teria feito ele morar conosco, sabe?
— Nossa, sua mãe está abrigando um desconhecido? — Cassie quis saber. — Vocês dividem quarto? Jantam e almoçam com ele? — Billy afirmou positivamente com um breve menear. — E como é isso?
— Estranho pra caralho, eu admito.
— Se fosse algum parente da família, até entenderia — foi sincera. — Nesse caso, é loucura! Tipo assim… Qual foi o real motivo que te fez realmente desconfiar dele?
— Ontem à noite… Aconteceu algo muito estranho. Minha mãe é psicanalista, então, além de estar abrigando esse cara, está tratando dele. — relatava breves ocorrências sobre o dia anterior. — De repente, ela veio me pedir o seguinte: “avise o seu irmão e não o deixe próximo de Henry.”
— E depois? — a loira pediu, implicitamente, para que o gêmeo prosseguisse.
— Eu tenho a impressão de que ele é muito perigoso! — comentava, espantado, com as mãos indo de um lado para o outro e os lábios parados, retornando ao outro assunto instantaneamente. — Quando ela me avisou, fui direto até o Brian. Ele não me ouviu… Me xingou e disse que sequer conhecia verdadeiramente o Henry, sendo que os dois se conheceram em apenas um dia!
— Bizarro.
— Pois é!
— Se esse maluco está sendo tratado e acabou sendo retirado do lar… Realmente há uma tremenda merda e justificativa para ele estar convivendo com sua família.
Os novos vizinhos de Cassandra — embora ela não soubesse de fato os detalhes da história toda — intensificaram mistérios rapidamente. De certo modo, a garota deveria se precaver e proteger-se dos males violentos, sucumbindo ao terror e ao caos; ela atacara e lutara contra diversos hipócritas ao longo de sua infância e adolescência. No entanto, era inusitado pensar na existência de um indivíduo mentalmente instável habitando em uma família que provavelmente ele mesmo destruiria.
Algum dia, uma presença nociva iria se impregnar em Brian Grant. Ela não o conhecia pessoalmente, mas, através dos relatos de Billy, sabia que a história iria piorar.
— Fielmente, acredito que ele esteja dentro desse caso. O Yoshida não ligava se os amigos e colegas do núcleo escolar de Chesterfield o odiavam e o humilhavam… Era um menino bondoso, aceitava quem estivesse próximo a ele. Tenho certeza de que Henry uniu-se a Yoshida em um instante de tristeza e solidão. — Virou o olhar para Cassie, enquanto a loira percebia um semblante pesadamente triste aparecer em Billy. — Henry é como aquela história do flautista que amaldiçoava crianças com sua música.
— Agora essa música está envenenando o seu irmão — concluiu Silverstone.
— Talvez, sim, talvez não.
Gotículas de garoa sobressaíram dos céus acinzentados, pingando no tecido da camiseta que Cassandra vestia. Ela levantou a cabeça para verificar as mudanças repentinas do temporal; não esperava que a chuva aparecesse. A loira xingava por ter esquecido um guarda-chuva, suportando a chuva que transbordava. Billy precisava voltar para casa — assim como Cassie.
— Droga! Não imaginava que ia chover — reclamou, batendo os calçados no chão, vestindo o moletom amarrado na cintura e subindo o capuz. — Preciso voltar pro meu quarto antes que minha madrasta acorde.
— Te dou uma carona, vim de bike — ofereceu o gêmeo, estendendo a mão para a jovem. — Relaxa, gata, não quero que se molhe! Você é bonita demais pra ficar doente — sorriu de canto, voltando ao seu comportamento galanteador.
— Estava premeditado, né? — ergueu a sobrancelha, desconfiada. — Foi me procurar, puxar conversa e me convidar pra sair com você. É… Você é previsível.
— Claro que não — omitiu, rindo enquanto se abraçava por conta do frio. — Vim resgatar uma vizinha melancólica que tentou brigar comigo mais cedo e me chamou de lerdão — fez uma reverência, assim como um cavaleiro concede sua dama para dançar nos arredores de um castelo.
— Beleza, não tenho escolha! Vamos!
O piano da residência Grant era invadido por longas mãos, enquanto os dígitos trabalhavam em conjunto nas teclas. Assim como nas classudas apresentações de ópera Actéon, um instrumentista coloria o deslumbrante espetáculo no teatro greco-romano — todo o público sentado em cadeiras aveludadas, aplaudindo lastimados pela sinfonia dos violinos, enquanto a cantora tremia perfeitamente as cordas vocais, sua fauce sob tremores expressando gritos vibrantes e melodiosos.
A inspiração da penumbra, visivelmente chuvosa na majestosa janela, era severamente distópica na perspectiva do moreno de carne leitosa e luzeiros azulados.
Sentia-se na dramática companhia da solidão: sobrancelhas grossas levitando, língua seca e coordenação motora agilizada. Pois o sucesso de amaldiçoar um homem inocente dificilmente era subjetivo, mas sim abrangente. Isso incomodava Henry.
Brian não era tão vulnerável quanto pensava ser; as perversões dolorosas entregues ao querubim de Vênus surtiam um efeito lentamente tóxico no âmago imaculado. Bastava uma ponta de maldade instalada nele… Hades finalmente iria alastrar obsessão e adrenalina em Eros.
Dançando nas partituras de Bach, encontrava-se de olhos fechados, atentamente penetrado nos arredores da sala, querendo apenas investigar os prazeres da música clássica. No entanto, o delicado rapaz pousara os sapatos nos primeiros degraus da escadaria que descera — ansiosamente lacrimejando diante do pianista macabro — ficando atrás de Albarn, estático, sem fôlego, sem demonstrar qualquer reação.
Avançava os passos, enxergando o pálido concentrado. Um sentimento culposo preenchia subconscientemente Grant; assim como Henry não aguentava mais ficar sozinho, também sonhava com a possibilidade de transformar o vazio de ambos — emitindo uma obsessão unilateral — em uma aventura ilimitada. O mundo do gêmeo loiro adentrava mais no encantamento intolerável, erguendo propositalmente o braço e tocando nas costas de seu hóspede demoradamente, subindo e acariciando a textura de seus trajes.
Quando automaticamente os dedos deslizavam nas teclas, passando carinhosamente os quatro dedos no pulso até finalmente alcançarem as costas das mãos dele. De supetão, Albarn teve um espasmo, parando de tocar no mesmo instante em que abriu os olhos, debatendo-se com Brian, atônito pelo choque. O loiro deu um passo atrás, levemente assustado. Henry não esperava ser interrompido daquela forma; certamente isso o irritou — Brian era quem mais o irritava por estar aterrorizado por si mesmo, e a consequência disso daria muita dor de cabeça.
Suspirando pesadamente, o pálido redarguiu, virando-se em torno do campo de visão de Grant, cruzando as pernas elegantemente na confortável banqueta e apresentando um sorriso largo e desalinhado:
— Você me assustar desta forma inesperada, não é convincente o bastante.
— Desculpa. Não foi minha intenção assustá-lo — o sentimento de ansiedade transicionou para um pavor, mas também despertou caminhos nunca explorados.
Queria descobrir as camadas. Quais nuances eram significativas quando se tratava de um relacionamento nunca vivido? Embora ambos tivessem uma intimidade descontrolada, Brian estava viajando em quimeras nocivas sem perceber. Isso era fodidamente tendencioso, com certeza; sinceramente, isso não era bom para ele, nem para nenhum ser humano.
— Adorei a música que você estava tocando, achei linda! Nunca imaginei que tocasse piano — elogiou, constrangido, batendo os dedos de ambas as mãos nas coxas.
— Oh… as variações de Bach, Goldberg, te agradaram — enfatizou, ufano, enquanto Henry docemente ria. O loiro, desentendido, apenas escolheu anuir, balançando a cabeça; o brilho prateado de seu brinco adornado em uma das orelhas reluzia. — Eu tocaria várias músicas clássicas se fosse possível, porventura para te fazer esquecer as aflições que o importunam.
— Mas… não estou querendo me sentir aflito.
— O medo se manifesta inesperadamente, Brian — decretou, abaixando os três dedos de sua mão, com o polegar para cima e o indicador horizontalmente no rosto do loiro, simulando uma arma. — Mesmo você não o deixando sair… Ele se torna um pânico ainda mais letal se você o deixar emitir: bang! — uma estranheza saindo dos lábios, arfares.
A simulação fez o gêmeo de cabelos loiros ficar temeroso; ele entendia o fato de Henry ativar sua coragem. Mas que merda de analogia! Jamais ninguém em sã consciência faria um tratamento de choque no mesmo sentido dele!
— Percebeu? Você continua se assustando. Homens corajosos precisam lutar contra seus demônios ocasionalmente. Eu não sou o demônio? Ou sou? — Sim, achava que não era, contudo era… Entretanto, ele não era o anjo caído do cristianismo; era o demônio da mente de um garoto inseguro. Embora não fosse culpa de Grant estar naquela situação, ele se mantinha envolvido na influência esquizóide de Henry.
— Tudo bem… Confesso que não gostei do que fizemos naquele quarto — de fato, as marcas de arranhões cicatrizados em sua pele e aquela mão sufocando fortemente seu pescoço eram imperdoáveis. — Aquilo foi perturbador! Estou me achando um merda! E mesmo que sua intenção tenha sido diferente, não sou capaz de concretizar isso. Não adianta também fingir apontar uma arma na minha cabeça, como se isso fosse algo natural — o criticou, desapontado. — Henry… Você nunca será um demônio, mas quero saber por que age assim e entender você, portanto, não desta forma. Nossa adaptação tem nuances errôneas; essa porra toda tá muito estranha.
— Ótimo ter opinado sobre isso… Realmente passei dos limites. — O pálido, por mais que não quisesse desenvolver empatia, soubera fielmente quão inconvenientes e perigosas foram suas atitudes com aquele ser.
Seu antigo lar e vivências contrastadas sem amor materno e paterno envenenaram tanto seu cérebro que ele precisava tomar conta de outro indivíduo para destacar-se sob sua altura. Brian, ambiciosamente, trouxe um preenchimento à sua solidão; ademais, não seria justo ou suportável perder futuramente a chance útil de possuir alguém. Albarn abdicaria do sofrimento emocional afetado, assim optando pela utilização de uma agressividade extrema em um podre sadismo utópico.
Na concepção de Brian, ser tratado com agressividade em um quase sexo ainda assim o deixava sem reação, ou ele pensaria seriamente em qualquer normalização quando se falava de um assunto daqueles. O pálido alcançava as pequenas mãos do loiro, trazendo-o para si, lidando e respirando pela segunda vez o mesmo ar. Enquanto a chuva brutalmente caía do lado de fora da janela, as trovoadas barulhentas e a friagem surgiam. Grant fechava os dedos nas mãos longas dele, apenas correspondendo à sua presença.
— Seus limites precisam de controle — levantou a cabeça, antes focada diretamente no visor do assoalho, reparando no semblante melancólico do garoto. Ele estava prestes a chorar? — Você está chorando? Ei… Não fique assim! Sei que decidi revelar isso, mas está complicado aceitar.
“Brian… Eu matei alguém (na verdade, Yoshida não foi o primeiro a ser executado). Você acha mesmo que vou sentir pena se você sofrer? Ainda mais por alguém que está sinceramente pouco se fodendo para a bondade de pessoas que irão abandoná-la no futuro? Você entenderá quem sou eu… Primeiramente, preciso testar o máximo possível e evitar sua ira… Pois não passa de um tolo cordeirinho.” Ele, em suas lágrimas fabricadas de falsidade, saiu da banqueta abraçando o gêmeo. Brian não mexia nenhum músculo — consentindo com seu calor — enquanto os globos oculares rodopiavam sem pausas.
— Me desculpa… Desculpa por machucar você — sussurrou diretamente na audição do rapaz. — Quero apenas te proteger… Por favor, entenda que, nesse mundo, você e eu somos importantes. Você precisa entender que seus medos precisam ser combatidos, e sou unicamente a favor de fazê-los sumir.
— Henry… Eu não sei mais o que dizer — ele não sabia aonde seu hóspede queria chegar. — Eu…
Um interrompimento os atrapalhou quando a porta da entrada do casarão se abriu fortemente. Ambos, por uma fração de segundos, acabaram se separando quando Billy chegou tarde e ensopado pela chuva, tremendo de frio e com as roupas coladas ao corpo. Henry e Brian pararam para olhar; todavia, o outro Grant estranhou a curiosidade do casal.
— O que estavam fazendo?
— Não interessa! Eu é quem me pergunto o que você estava fazendo para ter chegado só agora. — O irmão batia os pés indignado; já estava acostumado com Billy chegando tarde em casa. No entanto, era genuinamente irritante escutar reclamações de Melissa quando o garoto não ia diretamente para casa após sair do colégio. — Enfim, isso nunca foi novidade. Acho melhor subir para meu quarto; estou levemente exausto.
Billy deixara a nova vizinha em sua casa; felizmente, ninguém os viu. Ela havia sido uma boa companhia; entretanto, o gêmeo de cabelos castanhos não podia negar que Cassie provavelmente estava certa sobre Henry — de algum modo, o pálido estava planejando uma lavagem cerebral no irmão.
Brian cruzou os braços, levantando uma das sobrancelhas. O ombro direito sendo tocado por Albarn, também encarava o outro Grant com desgosto. Novamente, um fedelho interrompia seus planos.
— Tá certo… Eu tentei ser legal, mas estou vendo que não adianta — incomodado pelo garoto de roupas escuras, resolveu não se calar. — O que você está olhando, hein? Esquisito!
— Me chamou de quê? — indagou, contendo-se para não agredir ou mostrar que ele o deixava furioso. — Não pode chegar e me xingar assim! Brian e eu não estávamos fazendo nada de mais.
— Foda-se, não acredito em nenhuma palavra sua. Sei muito bem que você está destruindo a cabeça dele…
— Cala a porra da boca, Billy! — esbravejou o irmão, dando cobertura para o hóspede. — Estou cansado dessa sua teimosia. Estou bem e não preciso da sua opinião.
“Puta merda, olha como você está reagindo… Mesmo tendo se conhecido ontem, parece que conseguiu espontaneamente se entregar pra esse cara. Brian, sei que você irá se arrepender.” A família Grant corria perigo nas mãos daquele maldito rapaz desconhecido; era nítido que a maldição se instalaria no lar.
— Olhe para você, Brian, esse cara tá fazendo sua cabeça.
— Ninguém está fazendo nada, pare de apresentar suas paranóias. — O loiro redarguiu, enfurecido e chateado. — Vou procurar o que fazer… Tchau! — Deu as costas para os dois, indo em direção à escadaria.
— Como eu disse… Isso não passa de um ciúme inseguro — provocou implicitamente o gêmeo de cabelos castanhos, querendo mais raiva e ódio no ambiente. Billy mordiscava a ponta do lábio inferior, fechando o punho e segurando-se para não esmurrar o rosto de Henry. — Desculpe, mas… o seu irmão não é apenas seu e de sua mãe. Se você não tem uma companhia, isso claramente é culpa sua.
— Vou provar para todos quem você é! — garantiu o rapaz, trincando os dentes enquanto apontava o dedo raivosamente para Albarn. — Só aguarde.
— …Isso é só o começo — uma voz maquiavélica, acompanhada de um riso de escárnio, arrepiou o moreno da cabeça aos pés. — Bom… preciso continuar as sessões com Melissa, me dê licença.
Um ódio e uma adrenalina percorreram suas veias, quase provocando um ataque. Billy tinha certeza de que isso não seria a primeira vez.
Precisava lutar contra aquilo, mas antes deveria trocar de roupas e tomar um banho quente, senão ficaria gripado.
A mulher desconfiava de que seu paciente estava com algum tipo de transtorno relacionado à sua personalidade, ligeiramente decifrando pistas. Desde o “suposto” assassinato de Yoshida, Henry iniciou um contato mais amigável com seus filhos — exceto Billy — e com a governanta. Batidas na porta do escritório chamaram sua atenção: era June, servindo uma xícara de café e um croissant. No entanto, um anúncio sobre o trio de garotos a deixou chocada, sem entender absolutamente nada.
June não costumava se intrometer na vida particular da família para a qual trabalhava, mas os gritos foram difíceis de ignorar. Ela também convivia com jovens em seu lar humilde. Diferente de Melissa, a matriarca de Richard e Nicholas os abandonou, obrigada a cuidar de seus netos e marido contra sua vontade.
Embora tivessem se passado dez anos, Billy e Brian até se desentendiam, mas não daquela forma que acabara de ocorrer na sala. Também era impossível não notar a aproximação do hóspede com o garoto loiro; ambos estavam intimamente unificados… Porém, não quis dizer realmente se estavam sendo mais que amigos, afinal, não sabia cem por cento da verdade.
Grant passava as mãos no rosto, massageando suas têmporas, completamente exausta.
— June? Como disse? — perguntou uma única vez.
— Eu vi Billy e Henry quase discutindo — afirmou a governanta seriamente —, quase um confronto entre os dois.
— Minha nossa… — disse, chocada.
— Vou ficar mais atenta na próxima vez — enunciou a mais velha, separando o pedido da patroa em sua mesa. — Agora irei me retirar. Boa noite!
— Certo, boa noite e obrigada por me avisar — logo à frente da entrada do escritório, seu paciente apareceu, extremamente cansado e respirando descompassado. — Olá, Henry. Por favor, sente-se.
Albarn se sentou no divã afastado da psicanalista, colocando uma perna dobrada horizontalmente em cima da coxa.
— A senhora me parece tensa — comentava o óbvio, umedecendo os lábios. — Aconteceu algo?
— Me diga você: por que você e Billy discutiram? — inquiriu curiosamente.
— Ele sinceramente me irrita.
— Por qual motivo aparente?
“O motivo é que, se ele se intrometer novamente… garanto que vai se arrepender por mexer comigo.” Pensava ameaçador, semicerrando as íris oceânicas para os lados opostos do cenário.
— Ele gosta muito de ser intrometido, minucioso e imaturo — suspirou, relaxado. — Brian e eu somos melhores amigos agora; quero muito protegê-lo. Sei que nós nos conhecemos apenas há um dia… mas, de alguma forma, ele é um garoto muito especial para mim.
— Brian também gosta de você; percebi o quanto vocês se deram bem — aquela frase “ele é um garoto muito especial para mim” tornava-se preocupante para Melissa, algo que não esperava de imediato. Com certeza, iria se tornar uma natureza nunca imaginada.
Albarn também provavelmente queria ter compaixão — falsa — pelo seu filho; um vislumbre brilhante e significativo de incertezas. Ela teorizou que o motivo da briga, quiçá, era por causa de Billy estar tentando separá-los. Uma amizade não bastava entre eles, porque o pálido não conseguia ter relações normais. Ele foi agredido, xingado e negligenciado, aprisionado por uma vida tolerante, cercado pela insanidade.
— Me diga uma coisa: Yoshida também era alguém especial? Se aquele homem, do qual você falou na sessão anterior, não tivesse sido morto, você sentiria alguma felicidade ao lado dele?
— Er… Não sei — “Yoshida está morto, senhora Grant. Acha mesmo que ele gostaria de ficar comigo? Ele nunca foi digno o suficiente.” Negativamente, balançava a cabeça, querendo criar uma confusão. — Acho que… Yoshida foi minha inspiração para meus desenhos, nada mais além disso.
Outra evidência interessante foi decretada. Melissa teria o prazer de adentrar na arte soturna de seu paciente. Alguns assassinos em série desenhavam e pintavam quadros na prisão — Richard Ramirez, John Wayne Gacy e Dennis Nilsen — e, infelizmente, ela presenciou várias artes macabras do falecido cruel assassino das tesouras: Dwight Campbell. Enquanto terminava seu doutorado, aquele homem podre que perseguia mulheres indefesas por Swan Lake ilustrava seus crimes e os vendia para membros de bandas do gênero black metal. Se Henry deixasse-a explorar seu caderno, saberia mais.
Foi então que fez a seguinte pergunta:
— Um dia terei a oportunidade de ver sua arte?
— Talvez sim; você ficaria impressionada — riu sôfrego. — Eu costumo desenhar tudo o que vem à minha mente, uma forma de evaporar traumas e problemas, admito.
— Ah… iremos trabalhar com essa questão em breve — Melissa bebericava seu café amargo, delicadamente esticando o mindinho no apoio da xícara, sentindo o líquido descer pela superfície da garganta. — Como foi seu dia hoje? — quis saber, com os cotovelos perfeitamente apoiados na mesa, enquanto o dorso da mão escorava em sua bochecha. — Bom ou ruim?
— Medíocre, entretanto… algo chamou minha atenção: uma garota. — Contava sem pausas, fabulando e disfarçando as reais histórias, piscando as retinas ansioso; torcendo para que o tempo durasse pouco. — Ela parecia uma raposa vagando sem rumo nas ruas, mas não uma raposa ameaçadora. A garota tinha medo instalado em seus olhos, parecendo conhecer os lugares e levemente apavorada. Não faço ideia de onde ela veio; creio que seja nova nesse bairro.
Muitos ciclos aparentemente tomariam conta de Swan Lake. A chegada de vizinhos e mais novidades sobre Henry eram relativamente chocantes; uma noite de lua cheia viria, assombrando a região. O que aguardavam? Quais sensações os cidadãos teriam agora? Nada justificava futuras tragédias — por enquanto.
O pálido relembrava da ninfa dos cabelos flamejantes encurralada no bairro Siegfried, análoga a uma vítima sob qual sofrera diversos horrendos eventos. Ela precisava correr dos homens que iriam perturbar sua alma — contudo, suplicava em ser resgatada —, procurando seguir uma luz demasiadamente magistral. Ela fixamente contemplava sua imagem ofuscante; Henry viu nela… seu próprio reflexo.
— Essa garota nova na cidade, pelo visto, deve ter intrigado bastante, não?
— Sim… — revirou os olhos, batendo os dedos no encosto do divã. — Foi estranho, mas acabei me deparando quase com uma figura da mitologia grega.
— Qual figura? — A psicanalista se interessou no assunto, embora seu paciente lhe causasse desconforto.
— Perséfone — sorriu ladino, mas não de um jeito carinhoso e gentil.
“Estou acreditando fielmente que essa garota não estará em boas intenções com ele. Preciso telefonar para Gisele e Miranda.” Engoliu em seco, vendo que o tempo da consulta tinha finalmente acabado. Melissa pediu para que Henry se retirasse.
— Nossa sessão infelizmente acabou — descruzou as pernas. — Não trabalho nos fins de semana. Entretanto, meus filhos e você irão para o parque de atrações da cidade amanhã. Espero vê-lo mais animado, Henry.
— Certo… Obrigado, senhora Grant.
Quando o Albarn livrou-se da sala, a mulher esperou até que ele estivesse distante. Ao observá-lo, rapidamente ia até o telefone fixo de sua parede, discando o número da residência, desesperadamente aflita.
Precisava marcar um encontro com as tias do rapaz; estava preocupada:
— Gisele… por favor, o seu sobrinho está necessitando de ajuda. Estou preocupada com ele! — falava para a mulher, enquanto pensava em seus filhos. — Peço que me encontre amanhã no parque: Black Swan! É urgente.
Desligou a chamada, sobrepondo o telefone no gancho, olhando de relance sua janela embaçada. Era apenas o início; a família Grant circulava em um grande perigo.
Ashley era tomada por um intenso e anormal desejo, cuja origem nem ela mesma reconhecia. Determinadas características incomuns frequentemente se uniam quando sua sanidade diminuía, tornando-se inconsciente dos dedos grossos e das unhas afiadas que agarravam seu pescoço.
Em seguida, tais garras monstruosas abafavam seus gritos… Ela derretia, evaporando no kafkaesco, metamorfoseando-se em uma mariposa sufocada na fumaça e na brasa. Pousava em um limbo onde era sacrificada pelas criaturas de seus traumas.
Cientificamente, dizem que os sonhos abrangem simbolismos abundantes; nosso entendimento humano processa lembranças independentemente das situações vivenciadas pelo indivíduo. Contudo, nenhum indício conclusivo explicava o caso de Ashley acordando com a respiração pesada, enquanto lágrimas deslizavam por seu rosto – eram um alívio, um típico lembrete de que ainda permanecia viva. Quem vivesse na pele da garota distinguiria fielmente o sentido de sua visão distorcida da realidade.
Ashley mal conseguia se distrair com qualquer outra coisa; ferozmente, roubaram uma parte importante dela. Para sua concepção, era inadmissível aceitar que isso não teve a justiça que merecia. Todavia, quando seu caminho cruzou o do fantasmagórico homem alto de seus pesadelos, hesitou em admitir que ele era verdadeiramente um ser humano. Terrivelmente, aquela aparência intimidante, diante do semblante cruento, acendera uma luminosidade que reverberava mortalidade.
Ela — tresloucadamente imersa no vórtice de sua psique arruinada — ansiosamente esperava ser uma reencarnação de Perséfone, a deusa da primavera. Cansada de “encantar” homens sujos da humanidade, que injustamente roubaram sua pureza e castidade, desejava finalmente ser arrastada por Hades para o submundo, retribuindo um amor incompreendido e transcendentalmente intenso.
Sua meio-irmã não deixaria, de fato, que ela cometesse uma maluquice daquelas; porém, Ashley acreditava que eram apenas sonhos… Então, não custava nada romper os males da realidade aos poucos.
Acontece que Hades conteve a flecha fulminante e a retirou de seu peito, porque Eros, infelizmente, entregou-se ao senhor do Tártaro. E assim como ela, permaneceu nos seus encantos de maneira inusitada.
Naquele luar radiante, bloqueado pelo breu do céu estrelado, a beleza da lua crescente a fascinava. Ashley esquecia os breves repousos em seu colchão, inclinando seu tronco sob o peitoril da janela aberta, apoiando os cotovelos seguidamente, em um objetivo admirador de querer ter a paisagem noturna para si.
Enquanto dedos delgados massageavam os contornos de seu rosto preguiçoso, o zéfiro erguia gradualmente os sedosos fios de tom cenoura. A ruiva experimentava sensações terapêuticas e, seminua, encarava brutalmente a intensidade outonal e fria do horizonte.
Sobrecarregada pelo final do dia, atolada na desilusão e desconectada do mundo real.
O vislumbre de seu quarto para a vizinhança — mesmo sendo amplo — facilitava que ela visse mais de perto cada residência. Porém, algo surpreendente foi contemplado: as cortinas balançavam na janela da casa à frente, instigadas pela sombra estática de uma altíssima silhueta, que coincidia descritivamente com o rapaz que encontrara muitas horas antes.
Correndo para o closet, Ashley vestiu rapidamente o penhoar e saiu brutalmente pela fresta. Quando retornou, não havia visto mais nada; nenhuma brecha restara. Era certamente um vulto produtivo, especificamente de sua imaginação. O lugar observado era um enorme e gótico lar, sem vistas para os moradores da casa. Seus olhos azuis-acinzentados estavam decepcionados.
Emitindo um bocejo rouco, a jovem adulta decidiu finalmente adormecer. Silenciosamente, agradeceu por Lauren não invadir sua privacidade como habitualmente fazia; a matriarca costumava lhe dar beijos de boa noite, embora sua faixa etária não fosse mais adequada para isso. No entanto, pela pressa e pela organização dos quartos e da cozinha, o advogado e sua filha mais velha deveriam ter causado grandes enxaquecas na mulher durante o processo.
Lauren dormia feito pedra, e Cassandra saiu do quarto — ao voltar do curto passeio encharcada de chuva — para se banhar.
Mordiscando as camadas de seus lábios rosados, desamarrou o laço de seu penhoar, que caiu abaixo de seus pés descalços no assoalho. Jogava moderadamente os longos cabelos para a direita, sobrepondo a mão esquerda em suas feridas, enquanto inspirava pesadamente. Odiava segurar o pranto nas vezes em que se deparava com o reflexo de seu corpo inteiro; não pertencia mais a ela… Pois filhos da puta o marcaram.
Revirava-se ornamentalmente para os lados; na puberdade feminina, sempre fora tabu a própria exploração do corpo. Ela sentia falta da época em que ninguém cobiçava seu físico, quando era uma menina sorridente e feliz que brincava no escorregador do parque e levantava os braços. Agora, era uma Wilbur infeliz e crescida, nunca enxergada como um erro, mas sempre como uma perfeição.
Desde o amadurecimento dos hormônios, tudo parecia estranho: alma, rosto, seios, pensamentos. Eles não apenas revelaram a vida como um todo, mas também mostraram o quão meninas perfeitas contêm segredos e frustrações como qualquer outra.
Desistindo de encarar sua aparência inteiramente, resolveu aconchegar-se no colchão enfeitado com edredons cor-de-rosa, antes de realizar suas preciosas horas de sono. Rapidamente, fechou os vidros da janela, puxando ambas as cortinas para os lados.
Apagando a lâmpada forte da cúpula do abajur em busca da melhor posição, Ashley foi se jogando lentamente na cama, escorando a cabeça no travesseiro. Por fim, caiu verticalmente, notando uma dupla visão do lustre pendurado no forro do teto florido. Censurado, o busto médio arredondado era coberto por inúmeras camadas da ondulada juba avermelhada, e suas finíssimas pernas se dobravam contra o rosto, entrelaçadas por minúsculas mãos delicadas.
Ashley estava confortável agora, nua sob a escuridão, rente à calmaria da madrugada. Piscou os olhos, suportando os preenchidos cílios naturais, enquanto repousava. No entanto, complexados pesadelos se despertavam, invadindo seu ser vital e arrastando-o ao inferno quimérico.
A silhueta desacordada murmurava enquanto dedos com unhas compridas traçavam regiões corporais, muito semelhante a um navegador girando o compasso em um mapa. Os dígitos alcançaram o rosto, desenrolando uma carícia que ia do pescoço até a testa visivelmente sardenta — as sardas desenhadas na feição leitosa.
Vagarosamente, o irreconhecível daquelas enormes mãos assoprava próximo aos lábios fechados e passava os dedos na região das curvas, alcançando quase a virilha. Entretanto, Ashley despertou abruptamente, com o ventre tremendo e adquirindo um aspecto fantasmagórico. Tocando o meio de seu coração, que batia apressadamente em seu peito, ela preferiu recusar o susto, deitando-se novamente em sua cama.
Enganou-se quem achou que era o fim dos pesadelos tenebrosos, que mal haviam começado. Na outra realidade, embasada e desproporcional, seu rosto havia caído em um território áspero e, quando levantou com dificuldade, o suor escorria em sua nuca, e as maçãs de seu rosto incomodavam-na no meio da atmosfera vazia e abafada. Visualizando de cima para baixo, trajava um sobretudo branco, mas o tecido mostrava-se ensanguentado; seus pés pisotearam no chão, rastreado por hemolinfa — abelhas mortas.
Certamente, não se localizava mais em seu quarto.
Abertamente, processava a dimensão classificada como um “lugar nenhum”. Possivelmente, era fácil saber o nascimento de sua criação: paredes invisíveis em um vazio negro. Era uma lástima, de fato; buscava pela esperança e por viagens harmônicas dentro de sua psique. Contextualizando: a viagem de uma garota emocionalmente ferida — que pode ter sentimentos nunca expostos — deseja ser purificada.
Todavia, a purificação que os seres humanos procuram não se refere especialmente aos bens do universo; por isso, escolhem mergulhar na sujeira e na podridão do mundo.
Zumbidos de abelhas e vespas cercavam-na. A entomofobia se desenvolveu, fazendo com que a garota ruiva engolisse em seco, chacoalhando de um lado para o outro. Os insetos aumentavam de tamanho, querendo feri-la e perseguindo seu principal alvo como um simbolismo ameaçador. Gritando desesperada, ela optou por correr, tentando apagar o medo, embora fosse complicado. Os bichos voadores se multiplicavam, e quanto mais pisava no chão de origem duvidosa, mais sentia ferrões grudados nas superfícies dos pés: conforme ia esmagando, mais se multiplicavam.
As vespas atacavam em conjunto; no entanto, Ashley caiu em uma poça d'água e jogou água sobre elas. Quando deu um passo para trás, a ruiva se defendeu enchendo ambas as mãos com a água gosmenta que cobria os insetos.
Correndo e correndo, ajoelhava-se quando um obstáculo a impedia de passar, engatinhando apressadamente. Porém, imensas baratas passavam por suas canelas, e mais gritos de horror saíram dela. Restou, por fim, a opção de tirá-las de si. Assim, num súbito, o cenário desapareceu, girando em sentido anti-horário, causando enjoo e náuseas.
Os cabelos ergueram-se para cima, e ela caiu de cabeça para baixo em um salão com pouca claridade, enxergando paredes com diversos olhos. Mais manchas sangrentas permaneciam em sua roupa, e ela, à beira da estranheza, imaginava aqueles olhos frequentemente piscando para ela. Suplicando para acordar, batia os punhos na testa, e a parede se aproximava, enquanto o cenário se tornava minimalista.
“Quero acordar, por favor… acaba com esse sonho, eu quero acordar.” Esticava os braços contra os olhos das paredes, e uma luz branca chegava ao ambiente, e foi chegando… chegando… e chegando.
Encarando outra mudança, agora tudo parecia tranquilo e nada distorcido. Não havia mais perseguição, apenas a dona do pesadelo acordando em um jardim de margaridas, sob um belíssimo clima ensolarado. Onde as nuvens eram mais felizes e branquíssimas como algodão. Entretanto, Ash tossia ao sentir o cheiro de algo deteriorado e podre vindo do outro lado.
Chocando-se com si mesma na mesma posição sem vida, sua versão alternativa estava morta em um “paraíso”. Qual era o real significado? Ela com certeza não sabia onde seus pensamentos mais dolorosos e obscuros queriam chegar! Quiçá os olhos das paredes fossem os espectadores que assistem e não fazem nada. Quanto às abelhas e vespas: eram as violências contra a garota, multiplicando os perigos à medida que ela os confrontava.
Um canteiro de margaridas brancas revelava ambiguidade em sua pureza e esperança no amor. Fazia sentido que uma versão dela não possuísse mais vida — finada assim como a pureza.
Então, nitidamente, os sonhos tinham simbologias e menções às inseguranças que a prendiam ao mundo real. Torcia para que seu inferno acabasse, mas seu antebraço esquerdo foi puxado fortemente; costelas saindo das flores e na visão do paraíso. Renunciando às trevas da personificação jovial, sua capa longa trazia à vítima uma angústia deliberada. De costas, o pálido permanecia submerso no obscurecimento, entrelaçando seus dedos nas mãos da adolescente maculada, levando-a à floresta nebulosa.
O nevoeiro aumentava a cada passo, e Wilbur dificultava o discernimento de sua presença. Era impossível olhar para as saídas do ambiente, pois cegava e incomodava as pupilas de seus olhos azulados, que constantemente lacrimejavam pelo ar desconfortável e poluído da floresta.
Quando a criatura fantasiosa parou de andar, Ashley e ele se cruzaram… Entretanto, estavam em um território de cisnes brancos e negros presos em um lago densamente notável. Apresentando o rosto que ela já conhecia de seus pesadelos anteriores: o garoto estranho que amenizava sua criadora em relação aos inimigos que só serviam para vulnerabilizá-la e testar os limites de sua sanidade. Ele parou diante dela, as batidas de seu coração se intensificaram, e ela o viu repuxar um sorriso afável.
Ashley não concedeu sua intenção. Revirando o contato visual, a enorme mão leitosa com unhas afiadas limpava o choro da criadora. Ela jogou a cabeça na região onde localizava o coração do garoto; sequer eram audíveis as batidas, semicerrando os olhos diretamente para as majestosas asas negras de um dos cisnes dali.
Ali era outro inferno? Ou era uma alternativa explícita para evitar uma drástica mudança nos futuros sinais? Independente do que fosse, não era comum e muito menos natural.
— Por que me trouxe aqui? — questionou baixinho, recebendo a ternura áspera. — Você quer me salvar? — Levantou o semblante confuso para o campo de visão do mais alto. — Me resgatar da maldade?
— Não sei… eu sou um fruto da sua imaginação, nada mais — a voz serena da figura penetrou seus ouvidos. O pálido cravou sua visão profundamente nela, tocando o indicador entre os lábios de Ashley. — Acho que você está me guiando sem perceber. Quero estar na sua altura, sendo a única que pode me controlar. — Realmente, o homem tinha razão; aquele estranho garoto era uma ilusão pertencente somente às dimensões dela.
Diante do homem das sombras, a criadora refletia sob os efeitos sonoros do lago; realmente era notório qualquer elemento trazido dela. O ambiente cinza era seu país das maravilhas. Ashley era a versão da rainha vermelha exilada de seu castelo pela rainha branca, enquanto seu “protetor” era um mero valete de paus, obrigado a servi-la em uma parte ignorada da fantasia de Alice. Os cisnes negros representavam impacto, e os brancos significavam algo mais ortodoxo nela — um caminho de luz.
A respiração irregular da ruiva fazia com que ela abrisse e fechasse os olhos lacrimejantes. Wilbur estava começando a apreciar a proteção dele, mas internamente ansiava que o pesadelo acabasse.
— Eu pude te encontrar na vida real; nossos universos se fundiram sem que eu percebesse! — falava de forma melancólica e confusa, piscando os olhos. Espantoso, de fato, descobrir que sonhos podem ser portas para um futuro nunca imaginado; contudo, naquele contexto, era um futuro desesperador. — Ele era você por inteiro: o mesmo tom leitoso de pele, as mesmas cores de olhos e as mesmas vestimentas.
— Então… sou alguém na vida real? — indagou, surpreendido, distanciando-se aos poucos da criadora, que sacudia positivamente em breves acenos.
— Sim — ela confirmou sinceramente, mudando o olhar para os cisnes e sentando-se próxima ao lago. — Mas não acredito na possibilidade de sermos dois condenados. Ele parece ser estável e despreocupado, enquanto eu… sou uma garota que nunca terá o amor de ninguém.
— Acha que minha versão humana possui coração?
— O coração dele… — mergulhou demoradamente os dedos na água gelada, brincando com seu reflexo que mudava de expressões, enquanto gesticulava caretas singularmente. Efeitos circulares na água fria pareciam ser de ouro.
— Mas Ashley… monstros não são propensos à compaixão.
— Ele não é um monstro, pelo menos acho que não.
Nitidamente, dava para compreender que ela dividia ficção com realidade. Não obstante, o homem pálido, sucumbido na penumbra, impressionava com esmero a personalidade que sua criadora pôde ostentar: aparência entristecida, contudo ambiciosa. Ela sorria ante tais espécies de anatídeos, carinhosamente tocando o longo pescoço, semelhante a uma elfa florestal conhecendo sua terra nativa e se familiarizando com os animais.
Tão polido e amistoso, o ser de cabelos negros-azulados ajoelhava-se ao seu lado, inspirando o aroma da juba avermelhada. Ashley silenciosamente o encarava; os dois continuaram a se unir, enquanto ela ansiava para que o rapaz sentisse suas repentinas frustrações.
As possibilidades sobre a figura pálida de sua utopia ser contrária à realidade tornavam-se mínimas teorias; o clima do sonho, inesperadamente, voltava a se tornar turbulento. As nuvens daquela dimensão escureceram conforme a velocidade temporal avançava. O homem levantou-se e soltou um riso malévolo de seus lábios, junto com as sobrancelhas franzidas. A partir daí, o rapaz não disse mais nada; segurou as mãos dela e puxou seu corpo para perto, na direção da entrada do lago.
Ele dera o recado:
— O perigo te consumirá. A partir de agora, seu sofrimento irá prevalecer — aclamava, sádico, arrancando levemente um desgosto da ruiva quando sua língua atingiu sua bochecha. — Mesmo acordando… o pesadelo te segue. Garanto que esta minha versão não é segura. É necessário aprender a sacrificar e lembrar que a morte não existe apenas nos sonhos. — Finalizou empurrando a criadora para a profundidade do lago, que escapou um grito.
— Espera? O que você está fazendo comigo? — Tentando nadar e respirar, ela ia se afogando. Ashley insistiu para que o homem voltasse, mas ele desapareceu, abandonando-a com os cisnes, que arremessavam-se nervosos. O balançar das asas e as penas caindo ao redor dela a afogavam. — Por favor… me diga! — gritava, pulando na ponta dos pés. — Volte aqui! — O fôlego se perdeu, e algo embaixo d'água a puxava mais para o fundo.
Puxada por uma enorme planta de origem desconhecida, ela era levada para outro local. Não havia saída. Ashley conseguia ouvir ruídos, mas seus olhos permaneciam bem abertos, embora sua respiração não voltasse ao normal. Tudo era escasso.
No instante em que morreria ali, Wilbur retornou ao mundo real, acordando com um sobressalto. Ao perceber que havia entrado em um estado de loucura temporária, ela implorava internamente para não se deparar com aquele garoto novamente, pois achava que ele estava determinado a matá-la, como sua visão indicava — embora fosse fruto de sua imaginação.
A ruiva despertou aos raios solares, que fustigavam seu rosto, com uma parte comprida da juba atrapalhando a visão. Suspirava pesadamente; sua caixa torácica descia e subia, criando um ritmo frenético. O quarto cor-de-rosa de praxe não se mantinha desorganizado. Remexeu sua cabeleira para trás, ficando em posição de lótus, sustentando o impacto de seu quinto bizarro pesadelo.
Ignorando o que presenciou em outra realidade, Ashley desejava que seu fim de semana fosse bom. Era um momento em que ela e sua meio-irmã buscariam conhecer os empregos disponíveis na cidade; após isso, visitariam o parque de diversões.
Agora, era hora de lidar com as questões familiares e novamente superar as picuinhas da matriarca e do padrasto. Vestiu algo mais confortável: uma camiseta preta, calças de moletom azul-marinho e sapatilhas que combinavam com os tons de sua camiseta, dirigindo-se ao banheiro da casa. No entanto, logo percebeu que não teria uma manhã tranquila, já que Cassandra fora a primeira a chegar.
— Cassie! — bateu na porta com força, revelando sua impaciência e tensão. — Eu também preciso usar o banheiro. Saia logo daí!
Depois de esperar por nove minutos, a loira destrancou a porta, saindo do cômodo com um semblante fechado e indisposto. A companhia de seu novo vizinho acabara lhe dando um tremendo resfriado e dores nas pernas — sentada no quadro, enquanto Billy acelerava os passos na bike —, e ela nunca mais se submeteria a um passeio na chuva.
— Oi — abanou os braços, fazendo uma cara desgostosa em péssimo humor. — Tá livre, pode usar.
— Obrigada — revirou os olhos, mas decidiu questionar algo para a loira em seguida. — Desculpa ser intrometida, mas… onde você esteve à noite? — sobrepôs uma das mãos na cintura.
— Fui perambular nessa cidadania chata e, no final do caminho, peguei chuva — Cassie cruzou os braços, evitando dar mais detalhes sobre a noite anterior. — Você está ciente de que odeio quando pergunta sobre mim, né?
— Sim, eu sei — assentiu, caminhando até a porta escancarada. — Bom… a programação para hoje certamente vai ser uma merda — reclamou, com um semblante triste. — Mal chegamos e minha mãe quer proclamar regras.
— Ora, ela sempre foi assim. — Cassie não se impressionou, dando de ombros. — Enfim, vou tomar café… nada melhor do que Lauren e meu indigníssimo pai enchendo a porra do saco. — Ironizava, saindo do lugar e indo em direção aos degraus da escadaria.
“Se William também fosse mais atencioso comigo… não teria medo de falar sobre quão loucos são meus sonhos e o fato de me assustar terrivelmente por desconfiar que meus segredos futuramente irão me afetar”, sibilou após seu pensamento, começando suas higienes matinais.
Ambas as irmãs dirigiram-se à cozinha americana, sentando-se nas cadeiras em lados paralelos da mesa, onde o advogado navegava em seu smartphone enquanto sua esposa preparava cappuccino e ovos mexidos de frente para o fogão.
O bule fumegava conforme o leite borbulhava, exalando um cheiro que incomodava Cassandra, pois ela odiava laticínios. Ashley observou sua mãe afrouxar o laço do avental, deixando-o pendurado em um prego da parede. Logo em seguida, a mulher serviu ovos e panquecas em diferentes pratos; o marido desligou o aparelho, cumprimentando as garotas e a esposa.
— Estava viajando no mundo da lua, querido? — Lauren brincava com seu marido, servindo uma xícara de café quente. O homem aproveitou para beijar rapidamente sua bochecha. — Bom… parece que você está animado o suficiente para um primeiro dia de trabalho estressante.
— Satisfeito é a palavra certa — respondeu ele, com uma voz rouca e cansativa, enquanto bebericava o líquido adocicado. — Quero nem imaginar os casos insalubres que essa cidade possui. Tenho medo… muito medo.
A Silverstone mais nova resmungava algo, saboreando o banquete da mesa.
Lauren logo se incomodou:
— O que foi agora?
— Oras… nada! — exclamou, mastigando o alimento que comia, com um barulho irritante e desagradável. Afinal, Cassie gostava de provocar sua madrasta. — Se eu enunciar minha opinião, sou xingada.
— Pelo menos, coma devagar! Nenhum de nós precisa dizer que isso é falta de educação. — Suplicava o óbvio, encarando a afilhada enquanto ela cortava a massa, preenchendo o garfo com três pedaços dela. — Ah, não adianta falar.
— Cassandra… mal amanheceu e já está perturbando? — indagou o patriarca, nervoso.
O advogado não suportava as maneiras de sua filha de expressar provocação aos adultos da casa. Devido a tal indagação, a loira não manifestava remorso algum; Will ocasionalmente escolhia interagir com a filha, esperando alguma reação dela. Ademais, as reviradas de olhos e os resmungos já demonstravam seu desinteresse. Já sua relação com Ashley era natural, considerando-a justa e respeitosa — o oposto de sua filha biológica, que praguejava muitos palavrões e soltava risadas estridentes em tom de sarcasmo.
Revigorar os sabores de uma refeição matinal era terapêutico, embora desavenças surgissem no âmbito familiar.
Lauren aperfeiçoava suas habilidades na gastronomia desde seu primeiro marido — sendo ele o patriarca de sua única primogênita — e, quando se profissionalizou na carreira de doceria e confeitaria, no longínquo ano de dois mil e oito.
Quem olhava para os cachos arredondados da madeixa curta e vermelha automaticamente a associava a uma icônica mulher saída da antiga Hollywood, com arcaicos trajes femininos e vestidos longos e farfalhantes; sapatos elegantes de grifes geralmente californianas e nova-iorquinas.
William conhecera Lauren numa acalorada primavera brasileira, onde ambos, turistas, haviam se deslocado do interior do estado de São Paulo, em uma cidade chamada São Roque (terra das flores e do vinho). A mulher viajava para o Brasil e o Chile acompanhada pelo ex-marido, pois os doces e bebidas do continente sul-americano eram novidades em seus comércios. O advogado não soube exatamente por que aquela nativa estadunidense, outrora misteriosa, havia se encantado por ele.
Muitas histórias inventadas foram ditas, mas Silverstone acreditava que Lauren estava com um homem do qual precisava aproveitar-se do dinheiro e do status; por isso, se divorciou do outro homem e levou sua filha de volta aos Estados Unidos, relacionando-se com Will. Essa história é mesmo verídica? Bom, na perspectiva do advogado, algo era ambíguo e não totalmente explicável.
O pequeno comércio da Wilbur mais velha escalava-se nos eixos, apesar de Golden Oaks ter sido uma boa cidade para trabalhar; contudo, sua loja havia sido forçada à falência, abdicando dos negócios em vendas online.
Tradicionalmente, ela criou receitas: brigadeiros de licor, bolos de frutas e doces de leite conservados, algo impopular nas regiões estadunidenses. Devido à mudança de localidade, suas vendas foram pausadas com o intuito de se localizar na nova moradia.
Cassie, quando ainda habitava no lar de sua mãe, adorava experimentar os doces que sua madrasta fazia. Todavia, era uma criança e, naquela idade, ama-se tudo.
Voltando para a atmosfera atual, os familiares conversavam entre si; porém, Ashley continuava quieta e lúgubre, repensando sobre o misterioso garoto de sua rua: mãos empurrando-a para dentro da lagoa, enquanto os cisnes de seu sonho arremessavam-se. Aquele manto preto levitando — como uma bandeira em um mastro — na ventania bruta, a figura partia, e ela marejava os olhos azulados em lágrimas ao se afogar, clamando pelo homem para que a acudisse.
Embora tentasse gostar do café da manhã, a dimensão harmoniosa e os risos descontraídos eram irreais.
— …Eu sei, preciso arrumar emprego — a loira replicava à madrasta, que dissera as obrigações pela sétima vez, batendo suas unhas ritmicamente na mesa. — Ei, Ashley? Você está bem? — Claro que sua meio-irmã não mostrava preocupação consigo; em contrapartida, apenas notava a estranheza na ruiva. — Ash? Terra chamando, Ash! — gesticulando com a mão direita, sinalizava para a figura distraída.
— Oh… O quê? — reagiu, juntamente com um espasmo; sua cadeira rangeu e, num instante, seus punhos bateram na mesa. Todos a encararam assustados. — O que houve? Não prestei atenção. — Balbuciou, envergonhada, afastando os cotovelos da mesa feita de madeira.
— Querida? — Lauren, com um semblante chocado, não esperava que Ashley fizesse algo daquele tipo.
— 'Tava viajando, sabia! — disse Cassandra, sem emoção na voz.
— Ah… Desculpem, não dormi bem essa noite — mentiu, olhando para baixo. — Tive insônia, nada demais.
O advogado pronunciou, seguidamente:
— São os efeitos de Swan Lake; logo você irá se acostumar.
— Engraçado que dormi tranquila — comentou Lauren, sentando-se ao lado de sua filha. — Deve ser falta de costume; garanto que iremos nos adaptar. Indiana e Golden Oaks precisavam acabar de qualquer forma.
— Tudo isso porque era uma civilização diferente deste inferno gelado — reclamava a garota loira, impaciente. Apesar de todos os lugares serem chatos para ela, era inevitável dizer que Swan Lake também não era. — Seria mais aceitável irmos ao Michigan.
— Nossas condições financeiras não permitem. Iremos morar aqui, quer você queira ou não, Cassie — argumentou William, retirando-se da cozinha. — Bom, estou saindo para trabalhar. Vejo as senhoritas à noite. — Procurou sua pasta e despediu-se do trio.
Quando William despediu-se do lar, o homem ia em direção ao automóvel, mas uma alta e esbelta mulher cruzou-se no local onde o carro estava estacionado. A moça era sua vizinha ao lado — Melissa. Primeiramente, ela lhe cumprimentou, e Will fez o mesmo, contemplando detalhadamente a figura elegante da psicanalista, embora não conhecesse sua índole.
Melissa reconhecia aquela residência, mas nunca pensaria que dentro dela haveria novos moradores; geralmente, ninguém comprava imóveis no bairro Siegfried pelo altíssimo custo de despesas e quitações. Em contrapartida, era excelente receber diferentes pessoas em Swan Lake.
A névoa, por algum milagre, havia diminuído em pleno sábado e não aparentava esfriar mais do que normalmente esfriava. Portanto, o temporal climático às vezes enganava; era nitidamente notório o acúmulo de folhas caídas das árvores por conta da brutalidade da chuvarada anterior e as mínimas poças d'água nas beiradas das calçadas.
Obtusa e intrigada, Melissa puxava conversa com o recente vizinho:
— Nunca te vi antes. Quando veio para cá?
— Ontem pela manhã — respondeu a pergunta da vizinha. — Qual é sua graça?
— Melissa Grant — ambos deram um aperto de mão. Os acinzentados olhos de William ampliaram-se nos esmeraldas de Melissa, definitivamente encantado pelo timbre aveludado da mulher. — E o seu?
— William Silverstone.
— Prazer em conhecê-lo oficialmente — disse ela, simpaticamente, puxando um sorriso branco ao homem e balançando os cabelos dourados para ambos os lados. — Caso você ou sua família precisem de ajuda, estou disponível. Moro ao lado — apontou para o casarão gótico do outro lado da calçada.
— Er… certo, obrigado, Melissa — virou-se para o Cardillac, abrindo a porta do motorista. — Se não se importa, poderia me informar por que me abordou? Sei que há muitos conflitos nesse lugar e não quero achar que você seja um deles — foi direto, desconfiando da interação da loira.
— Não sou um conflito, garanto a você — confessou. — Estaremos no mesmo patamar; trabalho com psicologia, tanto comum quanto forense. Facilmente consigo captar um advogado criminal.
O perfil de Silverstone era intimidador para a mulher; queria saber mais e reconhecer as habilidades democráticas pertencentes ao homem. William adentrou na advocacia criminal quando sua filha mais velha causou intrigas no passado — honestamente, fazia sentido. Em sua antiga cidade, tampouco havia muitos crimes; no entanto, era um objetivo inegável para ele recusar empregos bem-sucedidos.
A vizinha concluiu que ambos futuramente trabalhariam no mesmo caso: Henry. O garoto mencionou uma garota recém-chegada, provavelmente moradora daquele lar.
Rezava para que ela e seu paciente não se encontrassem, mas isso aconteceria de qualquer forma.
— Legal para você. Então seremos bons companheiros — anunciou, por fim, sentando-se no banco e ligando a chave de ignição. Interessado nela, contrapunha-se seguidamente. — Quer carona?
— Eu ia chamar meu motorista, mas já que você está gentilmente me convidando… Vou aceitar de bom grado. — Escorou-se na janela do Cardillac. — Tenho muitos afazeres e um compromisso; prometi que acompanharia meus filhos… embora eles não tenham mais idade para serem vigiados.
— Estou na mesma — falou o advogado. — Minha mulher e minhas duas filhas cansam de vez em quando. Mal cheguei aqui e já sinto um fardo nas costas.
— Filhos são complicações, é normal. Tenho dois rapazes gêmeos.
— Nossa.
Will evitava olhar o decote da vizinha, embora fosse muito atraente. Pediu, sinalizando com a cabeça, para que Melissa fosse na frente. Ao entender, Grant caminhou até a outra porta; visivelmente, as coxas grossas destacavam-se pelo curto tecido da saia godê. Enquanto se sentava no banco do passageiro, os sapatos marrons Yves Saint Laurent reluziam.
“Deus me perdoe, mas… que mulher é essa? Parece ser mais interessante do que aparenta.” Maliciosamente, cobiçava as pernas cruzadas da vizinha, abrindo sua bolsa e tirando um batom vermelho matte. Puxando o espelho do carro, admirava seu reflexo. “Oh, Lauren, se eu não fosse casado com você.” Movia o volante enquanto as rodas percorriam o caminho, esquecendo um pouco a passageira.
O som holístico da água derramando na esplêndida cascata do jardim Grant enaltece o pacifismo e a magnitude do belíssimo canteiro de lírios brancos e orquídeas flecha do cupido. A escultura Vênus de Milo abstrai o habitat: silencioso e fundamentado, compatível com a natureza desdenhosa do lar.
A governanta Hopkins fora autorizada a trazer o neto — mais velho — Nicholas Smith. Graças à união do rapaz com os gêmeos, quase todos os fins de semana eles se visitavam, pois eram muito amigos.
Nicholas era um humilde jovem negro de dezenove anos que possuía ascendência moçambicana por conta da família paterna, embora a matriarca fosse norte-americana e nunca tivesse realmente conhecido outros parentes.
O garoto era dono de uma juba encaracolada castanho-claro, olhos azuis-esverdeados ampliados, com cílios naturalmente volumosos, rosto fino e queixo relativamente oval. Sua pele era salpicada por minúsculas pintas, ante o nariz arrebitado e nas bochechas. Devido ao seu astigmatismo, Nick usava armação de lentes quadradas com hastes douradas.
Diferente do irmão mais novo, costumava ser imponente e educado, contribuindo com os serviços de seu pobre lar e sonhando positivamente com a carreira de escritor. Nicholas adorava literatura, empenhando-se fielmente em um padrão de alta classe — vestindo marcas de roupas importadas e suéteres Louis Vuitton, peças estas doadas por Melissa.
Minuciosamente, reparava sua avó e outras trabalhadoras da casa regando flores dos arbustos. Querendo amparar a mulher de terceira idade, caminhou destacando os tênis brancos Adidas na grama molhada. June recusou sua ajuda, mas ele queria ser útil e não apenas uma visita dos ricos.
— Ver as senhoras trabalhando me deixa nervoso — afirmou o rapaz. — Participar é importante.
— Como gostaria que meus netos fossem assim — comentava Evelyn, uma idosa branca e ruiva responsável pela lavanderia e pelo jardim. — E você nos diz que eles devem ser jovens. — Respondendo diretamente a June, agarrava um dos lençóis fabricados com linha egípcia, estendendo-os em seguida no varal.
— Os séculos são outros — disse a governanta, retirando as luvas manchadas de terra. — Nick nem parece ser deste século; por isso, quando vem aqui… ajuda e ouve nossas conversas.
— Isso são inverdades, vovó — o Smith riu sôfrego, também retirando os cobertores e lençóis de determinadas cestas. — Eu sou antiquado, mas isso não me restringe a ser como os outros garotos.
— Falando em outros garotos… ouviram as brigas de ontem à noite? — perguntava uma terceira mulher: Angeline, de curtos cabelos negros amarrados em um coque alto, com olhos verdes e pele cor-de-mel. Ela auxiliava na faxina, organização de móveis e sobremesas.
— Depois da chegada desse Henry, muitas coisas tornaram-se estranhas — falou Hopkins, apontando para o neto, que estava agachado, pegando um pregador que estava abaixo de seus pés.
— Henry? Quem é Henry? — O afro-americano desconhecia o nome mencionado. — Ainda não o conheci.
June queria relatar ao neto que manter distância do hóspede dos Grant era necessário. Ela não tinha informações suficientes sobre Albarn e temia completamente os membros de sua família próximos ao garoto. E, no entanto, era desesperador adivinhar que os dias sombrios viriam excessivamente em Swan Lake.
O Smith perguntara novamente:
— Ele é algum parente dos Grant?
— Não, meu bem, ele é um paciente que chegou nesta quinta-feira — informou Evelyn no lugar de sua avó. Nicholas, cada vez mais, gostaria de conhecê-lo. — Oh… os garotos estão indo para os fundos — apontou discretamente para a dupla de gêmeos paralisada na porta inicial, indo até onde se localizava a piscina.
— Acho melhor dar companhia, Nick — pediu a governanta ao neto. — Você ajudou o bastante.
— Sim, senhora — decidiu obedecê-la, batendo as mãos uma na outra e ajeitando os óculos meio caídos na ponta do nariz. — Conversaremos mais tarde.
Aparentemente, incertezas jaziam nas empregadas e, a princípio, em Nicholas. Uma preocupação incomodava o peito de Hopkins, mas ela soubera fielmente que, porventura, delirava. Henry não era capaz de intimidar o neto, assim como intimidou Billy na noite anterior — afinal, Nick tinha juízo.
O Grant de cabelos castanhos tampava as narinas, correndo e pulando estupidamente dentro d'água, causando um estrondo gigantesco. Flutuando para cima, na profundidade em que outrora estava mergulhado, conseguiu abrir os olhos e cuspir a pouca água que engolira, nadando de costas e respirando acertadamente.
No meio da diversão, cabisbaixo, sentava o jovial rapaz de cabelos dourados no balanço pendurado, movendo-se para lá e para cá, concentrado nas músicas de sua playlist: "Are You Afraid of the Dark?", selecionada por instrumentais e bandas com canções fáceis de tocar em sua guitarra. Ele tentava apagar pensamentos incoerentes relacionados a Henry; o episódio ocorrido na noite anterior o perturbava. No entanto, após as discussões, Brian avistava a imagem desacordada na cama ao lado e gentilmente depositou um beijo estalado na testa do pálido, virando-se para trás.
Henry não havia comentado sobre o assunto, aderindo à ideia de sigilo para argumentar o necessário quando houvesse motivos convincentes. Entre o amanhecer, sequer cumprimentou os moradores ou mediu palavras contra Billy; não se desculparam, criando inimizade e barreiras entre ambos. O efeito sonoro dos fones de ouvido e os guturais de Venom intensificaram fortemente a aptidão em si, como bater os dedos na madeira do balanço e adentrar no próprio ritmo bagunçado de sua cabeça.
Atrapalhado em cenários falsos na intensidade e sonoridade do black metal que ouvia, sentiu alguém cutucá-lo. Olhando para cima, o Grant de cabelos loiros retirou os fones — pausando o tocador de músicas de seu celular —, mantendo sua atenção em seu melhor amigo, unindo as sobrancelhas, confuso.
— Estava distraído, né? — Nick sobrepôs uma das mãos na cintura, abaixando um pouco a cabeça por ser mais alto que Brian. — Por que não foi dar um mergulho igual ao Billy? Raramente faz sol aqui.
— Ah… mais tarde pretendo ir — disse, sem entusiasmo e com mínima alegria na voz. — Eu não quero muito papo com o Billy; quase arrumamos encrenca ontem à noite.
— Desde que os conheço, sempre brigam por qualquer babaquice — então, o acontecimento realmente era verdade. Nicholas concluiu que a turbulência psicológica fora causada pelo hóspede que as domésticas citaram. — O que houve dessa vez?
— Ele se intrometeu em um assunto particular e quis arrumar briga com Henry.
— O Henry, no caso, é o hóspede? — quis saber, a fundo.
— Sim.
Brian assentiu positivamente, notando a chegada do pálido, tragando um cigarro e erguendo o pescoço para soprar a fumaça. O garoto apontou para seu amigo, que enxergava a figura soturna, desconfiado.
Albarn usava uma boina que encobria os cabelos negros e vestia uma camisa polo de botões, acompanhada por um short curto, preto e branco. Digno estilo de um profissional jogador de golfe, ele andava em direção ao balanço, explicitamente comovido pela presença de Brian. Não era um ciúme significativo, mas um anseio de destruir seus planos.
Na perspectiva de Henry, quanto mais envolvidos no ciclo, mais problemáticas nasceriam. As pessoas continuavam previsíveis e intrometidas — o que, na maioria das vezes, era satisfatório, porque Smith, decerto, não abaixaria sua cabeça para um sociopata.
Estreitando a visão em Brian e seu amigo, o rapaz, por fim, sentou-se na grama, de joelhos dobrados:
— Quem é você?
— Prazer, meu nome é Nicholas — cumprimentou afavelmente, negando contato visual. — Brian estava me dizendo sobre você.
— Digo o mesmo — retorquiu, amargo, encaixando o filtro nos lábios e sentindo a nicotina preencher o estresse, soprando a pouca fumaça restante. — Confesso que tudo está mudando facilmente; não esperava saber que teríamos visitas.
— Ele é neto da senhora Hopkins — admitiu o loiro. — Pensei que estivesse magoado comigo.
Uma intimidade progrediu no ar, e Nicholas honestamente ficou desconfortável, já que o gêmeo e seu hóspede interpretavam relações complexas e amorosas entre eles, mesmo sem a aproximação do garoto pálido. Henry estava interessado apenas em lavagem cerebral composta por desejos sexuais e manipulação. Cravando olhares no afro-americano, Albarn demonstrava indiferença.
Reagindo singularmente, Brian esperava algum pronunciamento de Henry. O pálido, entretanto, absorvia suas palavras devagar, voltando à realidade que estava acostumado a originar:
— Estou avoado, só isso. Nunca ficaria magoado com você; quem fez e se intrometeu foi o Billy. — Amassou o maço usado na esverdeada grama, ocultando-o discretamente. O loiro estendeu a mão para alcançar um dos cigarros dentro dos bolsos da frente de seu short. Atendendo ao pedido de Grant, ele o acendeu com a faísca do isqueiro. — Você fuma, Nicholas? — ofereceu ao outro rapaz.
— Obrigado, mas devo recusar, em nome dos meus pulmões — gesticulou negativamente, vendo o pálido guardar seu pertence.
“Frouxo, tinha mesmo que ser amigo dessa gente mesquinha”, pensou amargamente, ajeitando o chapéu e tampando a boca para tossir.
— Se não está magoado comigo… vou ficar despreocupado então. — O gêmeo de cabelos loiros deu um riso de satisfação, saindo para onde se localizava, querendo estar junto ao hóspede, assentando-se no mesmo espaço e deitando o corpo, visualizando os céus. — Ah, Nick? Pode nos dar licença?
— Er… claro! — levantou-se sem graça; já era nítido que ambos iriam falar sobre um assunto particular. — Vou olhar o Billy nadando. Até daqui a pouco.
O casal deitava-se alinhadamente na grama, juntos na toxicidade dividida entre cigarros e um avassalador silêncio repentino, amalgamados em conjuntos enigmáticos. Henry revirou o corpo numa postura supina, encantadoramente focando em Brian, com as retinas piscantes e suspiros dimanados, cansados de ficarem sem assuntos. O Grant inclinava o pescoço de Albarn para si, querendo consignar um beijo suave nos lábios dele, mas, no instante em que iriam selar os lábios, Henry jogou o rosto para trás, negando a conexão.
— Não vai querer fazer isso em público, vai? — indagou, novamente ficando sentado; a companhia imitava sua ação. — A propósito… seu amigo e irmão olharam para nós dois — era uma omissão; os beijos e carícias de Brian atrapalhavam o que lhe concernia.
— Pensei que gostasse de consertar as coisas.
— Dessa forma, não vai ajudar — diretamente artificioso e pretensioso, confirmava estar não muito insatisfeito como gostaria. — Pensando bem… tive uma ideia! — levantou, estendendo as longas mãos para o loiro e sussurrando em seu ouvido. — Venha comigo.
— Pra onde? — questionou, ingênuo, atraindo os dedos nos dele.
— Se contar, não tem graça.
— Tudo bem.
Direcionando-se para um espaço remoto do jardim, eles andavam vexados, e Brian, apenas com seus olhos ocultos pelas enormes garras diabólicas, andava com os sapatos demorados; um sentimento claustrofóbico e inquieto. Dançava conforme serpenteava e gargalhava, enquanto o hóspede dava mínimos saltos. Desbloqueando o visor dele, pervertidamente, Henry empurrou Brian contra seu corpo. Arfando com medo e desespero, ambos os lábios selaram-se.
Brian nunca entendia por que as atrações inusitadas de Henry se apresentavam daquela forma. O semblante antipático, de repente, tornava-se malicioso; parecia querer, nas horas e momentos, somente dele. Eles acrescentavam o calor de seus corpos com atrito frenético, mantendo-se controlados pela lascividade. No entanto, o loiro suplicou uma pausa antes que o clima evoluísse para algo turbulento.
— Ei… você sabe o que aconteceu na última vez? — O recordou do episódio no quarto pela segunda vez, rindo sofregamente enquanto agarrava os ombros do mais alto. — Deixe que isso seja mais tarde, depois do passeio no parque.
— Tem certeza? — saiu em cima de Brian, testando seus pensamentos. — E se sua mãe souber?
— Ninguém vai saber, e você me prometeu que respeitaria o meu tempo. — Assentiu positivamente. — Juro que… melhorarei daqui para frente; acho que não deve ser tão ruim assim.
“Merda, o que estou fazendo? Ele me machucou e ainda quero… Isso vai me afetar?” O relacionamento partiria numa sintonia precária e nebulosa. A ultraviolência de Henry contaminou Brian.
— Certo… então, acontecerá hoje à noite.