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Revisada/Codificada por: Calisto

Última Atualização: 10/08/2024
(Sienna)

O mar estava uma calmaria, o vento leve indicava que estávamos certos em nosso destino, e o cheiro do oceano nunca fora tão doce quanto hoje. Todo o percurso foi planejado por mim e, especialmente aquela noite, eu queria que essa calmaria sumisse.

Com um barulho alto, o navio tremeu e eu pude sentir aquela euforia percorrer meu sangue e vibrar junto ao meu coração ansioso pelo combate final. Do lado de fora da cabine do capitão, pude ver Aidan correndo de um lado ao outro, sempre com duas ou três balas de canhão nas mãos e mirando com maestria no navio à nossa direita. Assim que um pirata se aproximou das costas dele, tratei de o chutar e esfaquear também pelas costas, do mesmo jeito impiedoso que faria com meu amigo. Aidan virou para mim e agradeceu com um sorriso, mas não era hora pra isso, mais piratas chegavam vindo do outro navio pela água ou por cordas devido à proximidade, e eu ouvi o grito de meu pai alertando os demais. Sentia que a água balançava mais que o normal agora, os tripulantes saíram dos seus postos e se focaram na batalha com o navio que supostamente tinha surgido de repente — mesmo que eu o estivesse perseguindo por anos sem que soubessem.

Meu pai, o capitão Guilliard, berrava a plenos pulmões sob o controle do mastro e nos guiava calmamente, como se não estivesse usando a espada com a outra mão e contra atacando dois de uma única vez, e eu... estava fazendo o que fazia de melhor.

Peguei uma corda e fui à outra ponta do navio, tomando impulso e me atirando em pleno mar para chegar no navio inimigo. Com um pouco de esforço, consegui chegar em sua rede lateral, o que me pareceu boa sorte, então continuei a escalando. Ao chegar no navio Demônio Sanguinário, um arrepio familiar percorreu minha espinha, mas dessa vez não estava sozinha. Aidan vinha logo atrás, negando seu posto aos canhões e trazendo com si sua irmã gêmea.

Maeve nunca havia pulado assim, mas sempre foi muito boa em combate. Assim que chegaram, já encurralaram dois piratas na prancha, e com o balançar dos canhões, conseguiram que fossem chutados. Os piratas do navio vinham enraivecidos, tinham claramente a ordem de matar, e pelo canto do olho, vi um deles enfiar a espada por trás em Castiel, um dos homens de meu pai. Nada satisfeito, o pirata quebrou o pescoço dele em um golpe bruto das suas próprias mãos ensanguentadas e o jogou para longe antes de continuar.

Eu, por outro lado, já tinha adentrado aquele lugar cheio de homens que nem sequer sentiram minha presença, de tão cegos de batalha que estavam, não ousariam consideravam uma mulher como ameaça. Procurava alguém, minha mão gélida tremia e meu corpo inteiro temia falhar, mas, quando ele saltou da posição alta no ninho do corvo e parou bem na minha frente, recuperei a coragem e firmei a mão na espada.

— Sentiu saudade?

Respirei fundo e não respondi, fazendo uma investida com a espada que foi prontamente desviada por ele, e vi seu sorriso triunfante antes que ele contra atacasse. Ficar nessa dança com Ethan me era familiar demais, quando sua mãe e meu pai estavam juntos, a gente treinava e vivia no mesmo navio. Ele era um garotinho doce e de olhos escuros, e chegamos a planejar nosso casamento também. As lembranças eram boas e quase me faziam sentir mal por ter provocado essa luta e matado mil homens para chegar na minha vingança, talvez fosse eu que estivesse cega afinal.

Mas aí pude lembrar de quando sua mãe conheceu o capitão do navio Demônio Sanguinário e eles se foram sem nem se despedir, partindo o coração do meu pai e levando mais da metade de nossa tripulação junto. Acreditei que seria para sempre, mas anos depois, vi que o capitão e a mãe dele tinham morrido, Ethan era o capitão mais novo do século e estava tão diferente... Sabia que deveríamos voltar para o nosso navio e partir, mas não pude deixar de sentir o gostinho ao notar que tinha enfim derrubado a espada dele da mão e apontava a minha pro peito dele.

Ele notou a satisfação no meu rosto, mas nada abalava aquele sorriso cretino. Da última vez que nos vimos, eu jurei que o mataria quando tivesse a chance, era meu momento de me vingar por tudo.

— Sienna! Seu pai!

A voz doce de Maeve dessa vez estava alta e confusa, e me faz perder o sorriso quando virei a cabeça para a chamar pra assistir o meu tão aguardado momento. Mas ele não aconteceu, em meio a gritos e barulhos de espadas se chocando, meu navio afundava ao longe, tão destruído das balas e do fogo que a madeira jamais resistiria.

Tentei parecer forte, mas quando encontrei o olhar de meu pai parado próximo ao mastro e com uma espada cravada no peito, não me contive e deixei minhas armas caírem. Meu corpo parecia não querer me obedecer, e eu tive medo de desmaiar na frente de Ethan. Maeve se aproximou e balançou meus ombros, mas o barulho das ondas tinha ficado tão alto que mal ouvi o que ela dizia, estava aérea e ansiando que minhas lágrimas limpassem aquela visão e eu pudesse enxergar meu navio de volta, meu pai acenando confiante e tudo bem para que pudéssemos voltar. Nada disso, no entanto, aconteceu.

Nunca passei mais de três meses longe do meu navio. A minha casa... E vê-lo afundando em uma poça de sangue vermelha onde meu pai jazia era a sensação mais única que já tive: vazio. Eu não ligaria se me matassem ali, nem mesmo o gelado da arma de Ethan contra as minhas costas me fez acordar.

— Pelo que vi você agora é minha tripulante, princesa pirata. Vamos ver se essa cara bravinha também é boa em obedecer.

— Vá pro inferno.

Ele riu e me jogou nos braços de um cara enorme e forte que me segurou com força mesmo que eu não estivesse tentando o chutar. Pude ver que estávamos indo direto para a cabine do capitão, e só aquilo já me deu náuseas e em um estado de formigamento no corpo inteiro, meus pensamentos inebriados com a dor não queriam me deixar fugir, e eu só repetia a imagem do meu navio sendo destruído de novo e de novo e de novo.

Escutei um grito ao fundo e olhei na direção de Maeve. Ela e Aidan me encaravam com tristeza e pude ver minha última sombra de esperança, eles eram minha família agora. Eu sabia que não tinha tempo para me recuperar, devia perecer com honra ou continuar firme e lutando. Os mares eram traiçoeiros e os piratas mais ainda, aquela dor não seria nada caso eu os deixasse para morrer também.

— Meu único dever como seu capitão é fazer da sua vida um inferno, Sienna.

Ali dentro tinha o exato cheiro dele, rum e algum tipo de cigarro. Eu fui amarrada perto de uma janela e aproveitei disso para procurar pelos meus amigos novamente e julgar se estavam sofrendo nas mãos desse mercenário babaca ou se eles poderiam sair vivos. E os deuses sabiam o quanto Maeve defendia o Ethan e queria estar em suas mãos agora.

— Está pensativa... Compartilhe comigo.

Falando no diabo, o senti puxar meu queixo em sua direção e apoiar um pé na minha cadeira para me olhar mais de perto. Seu olhar era firme, como exigido de um capitão, mas os vestígios de diversão ainda estavam ali, poucos sinais do Ethan que eu conhecia de verdade.

— Não tem mais ninguém pra atormentar?

Ele escuta meu comentário e ri alto, sabendo que eu não me renderia fácil aos seus encantos. Sozinha naquela sala com ele e todos os seus objetos pessoais no seu navio, eu me amaldiçoei por estar em uma situação tão frágil que também parecia ser propriedade dele. E como se pudesse ler meus pensamentos, o seu rosto suaviza e ele fecha os olhos, me deixando inebriada antes de perceber o quão próximo estava e o que faria a seguir.

— O que você pensa que está fazendo? Ethan!

Tentei gritar, mas minha voz falhou assim que senti a respiração dele no meu rosto. Eu sabia que odiava ele, e mesmo assim não me afastei, sabendo tudo o que me esperava a seguir. Assim que me beijou, pude ver as cenas de duas crianças ingênuas fazendo promessas para os mares. Promessas de um amor eterno à luz da lua e das estrelas, noite após noite dormindo próximos e fazendo planos até ele voltar completamente mudado e irritante.

Sua boca estava gelada e o amargo do rum parecia doce pelo momento, especial demais para que eu me afastasse. Eu tinha crescido, fui treinada para ser capitã e ser a força e direção daquele navio afundado, mas minha vingança me levou até ele, e pior ainda, matou meu pai. Meu desejo de suprir toda a falta que sentia dele com ódio tinha destruído minha vida. E com o beijo amargando pela verdade, consegui me afastar.

Com meu rosto longe do dele, senti minhas bochechas esquentarem e tentei fingir que nada me afetou. O meu maior pecado era gostar dele com todo o meu ser, e eu me odiava por isso. Antes mesmo que ele fosse capaz de se vangloriar por algo, a porta se abriu.

— Senhor, temos problemas.

— Diga logo, Klaus, estou ocupado.

Klaus, um loiro de olhar animado que parecia ter a nossa idade e a mínima noção de como viver em um navio, veio trazendo Mae e segurando em sua mão. Fiquei aliviada ao vê-la, mesmo com alguma parte de suas roupas rasgadas, ainda parecia bem.

— Por que ela ainda está aqui? Prancha. Eu ordenei antes, ou quer ir junto?

Klaus se encolheu um pouco e olhou para suas botas, dava pra notar que era novato na tripulação, nem chegava a ter um chapéu.

— Ela é ótima curandeira, capitão. Com alguns bálsamos, está conseguindo milagres. Samir, o mais antigo membro da tripulação, estava ferido, mas ainda precisamos dela.

Ethan começa a se afastar de mim e andar ao redor dela, analisando seu corpo e rosto. Mae tinha um sorriso de quem sempre esperou esse momento, e isso me faz revirar os olhos, impaciente com aquilo tudo. Queria tirar os gêmeos daqui o mais rápido possível.

— Ótimo, a deixe por enquanto. Bom lembrar que a vida dela e do irmãozinho só dependem da boa vontade de Sienna em cooperar comigo. Mas qual o problema que tinha dito?

Ele estava me ameaçando em frente à Mae. A garota era minha melhor amiga há uns 5 anos e não precisava disso tudo para saber que a raiva que eu senti agora era descomunal, então me olhou e movimentou a boca baixinho tentando dizer "calma" e "está tudo bem". Sua paciência era de se invejar, mas não pude ver muito do seu rosto quando entraram com Aidan logo atrás.

Ele estava bem pior, seu olho tinha uma enorme mancha roxa e um corte abaixo do olho, fora marcas por todo o corpo e sem a camisa que usava ao chegar ali.

— O que houve com nosso novo tripulante, Klaus?

— Se envolveu em brigas, senhor. Dois tentaram agarrar a garota e ele os deixou desacordados até agora.

— Interessante. Tem bastante força, garoto?

Aidan o olha com sua postura ereta e uma cara nada amigável. Ele era gentil a maior parte do tempo, mas se mexessem com sua irmã, poderia virar um verdadeiro monstro. Concordou com a cabeça sem vontade nenhuma de responder, e apenas aquele gesto familiar me fez dar um pequeno sorriso. Eu ainda tinha eles, nem tudo parecia perdido. E a promessa que o fiz de ser meu imediato um dia iria acontecer.

— Ficará nos canhões. Não tolero brigas sem fundamento aqui, pirata, da próxima, espero que se resolvam até a morte. Quero todos fora. Já. Menos você, Sienna.

Senti um par de mãos hesitantes me desamarrarem e vi Klaus próximo após liberar meus pulsos com sua adaga. Finjo não escutar enquanto sigo o pequeno grupo que saía da cabine de Ethan, sabendo que ele não me pressionaria a ficar mais do que isso. Por mais canalha que fosse, ele adorava que fossem até ele, e isso não tinha mudado em todos esses anos. Eu, por outro lado, sabia que não seria prisioneira, ele queria algo de mim e era por isso que me mantinha ali e tolerava meus amigos, ou eu estaria morta junto com os corpos que ainda jogavam para fora do navio. Todos desceram aos pequenos beliches onde a tripulação dormia, alguns piratas vigiavam o mastro e as velas, mas a calmaria já era notável, e aquele tremor da batalha tinha deixado todos. O chão de madeira gelado sob meus pés me deu forças para andar e, de olhos fechados, relembrando cada momento da noite que mudou a minha vida, fui descendo também.

Me sentia nostálgica até sentir que bati em algo e, ao abrir os olhos, não me encontrei em lugar algum. Uma névoa ao meu redor me fez acreditar que era só um sonho, mas eu não entendia como meus pés descalços pareciam ainda congelar naquele frio, e por mais que tentasse falar, senti que minha boca estava seca, e sabia que sonhos comuns não faziam isso parecer tão real.

Vazio. O lugar era todo preto e tinha um som de batida em algum lugar dali, meu coração martelando no peito acompanhava o som que me fazia suar frio, a cada batida o gosto amargo invadia minha boca e eu sentia estar prestes a sufocar no meu próprio sangue. Olhei em volta, procurando de onde vinha aquele barulho latejante que torturava minha cabeça, e quando pensei em desistir, uma mão segurou meu pulso de maneira firme, me impedindo de puxar minha própria espada e me matar.

— Quem é você? E por que me procurou?

Olhei para onde vinha a voz dele e seus olhos castanhos me encaram. Era um homem alto e bonito, tinha sua barba pra fazer e estava sujo como eu também acreditava estar depois de uma batalha frenética, mas o que me assustou foi seu cheiro tão familiar e tão marcante, que eu não me lembrava de ter sentido antes, mas me trazia uma segurança e conforto que nem meu pai, autoritário e rígido, poderia trazer. Sua expressão impaciente o fez me soltar, e quando me afastei uns passos, percebi como sua mão estava passando pelas grades de uma cela para me alcançar, atrás dele uma simples e pequena janela também com barras deixava a lua aparecer de trás de muitas nuvens.

— Como entrou aqui, garota?

— Veja bem como fala comigo.

Arregalei os olhos, tentando entender de onde tirei tanta coragem para falar algo assim, mas, visto meu histórico de impulsividade, não era uma surpresa que tivesse apenas dito sem pensar em uma situação dessas. Coragem ou burrice, mas eu estava segura por ser só um sonho.

Com isso em mente, decidi acabar logo com aquilo que meu subconsciente decidia me mostrar e adiantei a conversa que iria se seguir.

— Meu nome é Sienna e eu estava no meu navio. Que lugar é esse?

— Não era no seu navio, era?

Ele inclina a cabeça para o lado, me analisando de um jeito que leria até minha alma, quando a luz da lua atravessou a pequena janela da cela e envolveu seu corpo em uma luz roxa e vibrante como partículas brilhantes de pura energia. Antes que eu pudesse perguntar, a luz rastejou dele e me envolveu, e eu senti o meu corpo se contrair do mesmo jeito que o dele deveria ter feito, aquilo doía de um jeito tão absurdo que quase tive pena desse homem misterioso. E podia dizer que essas partículas me perfurando demoraram, várias pontadas ignorando minha pele e meus ossos, e me fazendo chorar de dor, nenhum sofrimento para mim parecia o suficiente, e mesmo assim, eu sentia que só precisava desistir para encontrar a mesma paz que meu pai encontrou. Era tudo o que eu queria.

— Escuta bem, Sienna. Vou te trazer até mim todo dia e ensinar um pouco do que sei. Dá para ver que tem magia dentro de si, mas é fraca como uma brisa, e vou te transformar em um furacão.

— Não te pedi nada. Quem é você?

A fumaça roxa ainda percorria meu espírito e eu quase podia sentir minha garganta se fechar ao redor daquilo, lento e torturante como uma cobra invadindo meu espaço. Acabei entendendo a raiva de Ethan ao ter todo o seu controle roubado por outra pessoa, mas ainda não o suficiente para o perdoar. Nunca seria.

— Não tenho tempo pra isso, te manter aqui e ouvir essas besteiras é o que menos preciso. Escute com atenção. Vou te ensinar a usar sua magia. E você vai me tirar daqui.

— Onde diabos é aqui?

— Espanha.

O encaro com uma risada presa na garganta e temendo que escapasse. Era brincadeira né? Apesar dessa descrição horrível, eu sabia que a Espanha não era lugar para piratas, pelo menos não os que queriam permanecer vivos. Pensei que, se me virasse, veria um pônei com cabelos de frutas, mas só vi a escuridão… ele parecia ser a única luz dali. Irônico.

— Primeira lição? Posso te fazer sentir muita dor se não fizer o que quero.

Com isso, meu corpo entrou em chamas, e uma dor mais alucinante do que as agulhas percorrerem toda minha pele, fazendo arder como se fosse perfurada por cacos de vidro. Escutei um palavrão, alto o suficiente para explodir minha cabeça, e percebi que fui eu que gritei, eu que caí no chão berrando até tudo finalmente escurecer… até o homem da cela desaparecer e com ele toda a lembrança dessa noite se dissipar no dia seguinte, onde acordei confusa e perdida, mas com um cheiro novo em minhas roupas. Cheiro de alecrim? Com certeza era uma erva. Não me lembrava de nada, nem daqueles olhos que eu sentia que veria em breve, mas tinha algo a mais para me preocupar agora: eu estava de volta à cabine de Ethan.




A rotina tinha se tornado algo involuntário, eu ansiava pelo dia que acordaria e estaria no meu navio, sentindo o cheiro da maresia e ouvindo os gritos do meu pai. O cheiro ainda estava ali, mas tinha se misturado com rum e gritos de festejo. Aquele navio era uma total bagunça, os piratas não se controlavam hora nenhuma e só o balançar me dava náuseas. Para quem sempre ficou bem no mar, isso era algo que eu nem ousaria repetir em voz alta.

— Por que não desiste? Sabemos que até seu corpo me quer.

E mais uma vez tive que ouvir Ethan logo após acordar, olhando para a cabine dele, sem entender o motivo de estar ali. Todo navio tinha divisões para os piratas, algumas redes e madeiras apoiadas no canto com almofadas sujas. Eu costumava dormir na cabine de meu pai, mas Maeve dividia espaço com o irmão, e às vezes eu gostava de ficar em sua companhia. A questão era que, por mais que eu quisesse chegar aos beliches desse navio, eu nunca conseguia, noite após noite, mesmo com todos ao meu redor, ninguém entendia por que eu desmaiava e reaparecia em frente à cabine de Ethan, que, paciente, me levava pra dentro até que acordasse. Nesses momentos, passavam pela minha cabeça alguns flashes de sonhos bizarros e eu sempre acordava com uma dor diferente do dia anterior, um cheiro de ervas novo e algum hematoma visível.

— O que menos preciso agora é ouvir a sua voz.

Por dormir no pequeno sofá perto das janelas, meu corpo todo doía. Pela minha contagem, era nosso terceiro dia assim, com meu corpo apenas reagindo ao que acontecia, e eu não aceitava a morte de meu pai. Tinha para mim que isso tinha sido culpa dele, sempre se mostrou tão imortal quanto um pirata deveria ser, e só a sua ausência me consumia. Minha mãe tinha morrido no meu parto e ele cuidou apenas de mim a vida toda… Eu sabia que sonhava com algo importante também, mas não conseguia me lembrar do que, nada me tirava daquele estado de nervosismo. A parte boa era que Ethan também não parecia animado, ele estava com uma aparência de cansado e olheiras enormes atrás da própria mesa de capitão com papéis espalhados, uma adaga fincada neles e uma garrafa de rum pela metade.

Levantei e me aproximei da mesa, analisando os mapas que cuidadosamente estavam expostos, sem ouvir uma palavra do que ele dizia além dos murmúrios de ódio habituais por ser péssimo nisso. Eu podia passar horas me divertindo e vendo essa expressão do rosto dele, mas meu instinto não deixaria aquela falha acontecer, por isso, virei um mapa para baixo e coloquei a bússola entre os dois, ajeitando a posição que estavam como meu pai me ensinou.

— Tortuga fica por ali. Esse mapa me parece roubado de um navio europeu. E esse com Ilhabela… Aqui embaixo é onde começa o outro. Você tem que começar a marcar para onde vai e onde estamos.

— Por que isso seria importante?

A voz dele tinha mudado de tom, já não parecia mais tão irritado. Era engraçado como raramente levava as coisas à sério, enquanto eu passei a vida toda tomando as responsabilidades de tudo para conseguir me tornar capitã sem ter chegado nesse objetivo de modo tão fácil. Tentei ao máximo esquecer sobre o meu navio naufragado e fui indicando os lugares, mesmo que ele se recusasse a me dizer a rota que estávamos, me concentrei ao ponto de esquecer tudo ao meu redor. Alguns anos atrás, quando ele e a mãe foram embora, eu tinha criado esse método de defesa, mas jamais falaria que foi por causa dele, não mesmo.

— Pra não ser morto ao roubar o mesmo lugar duas vezes no mês. Não que eu não queira você morto... — falei, irônica, até me atentar em sentir sua mão em mim, parecendo bem confortável apoiando o braço na minha perna, já que sentei ao seu lado.

Tive que me levantar e me interromper para que ele notasse o que fazia, mesmo que eu também tivesse me distraído, não iria deixar que acontecesse de novo, um homem não seria capaz de me distrair.

— É só deixar a gente na próxima ilha e de lá eu me viro. — Firmei a voz, um sorriso escapando ao ver Aidan jogar uma maçã para a irmã. Mae sempre amou frutas, mas, aqui no mar, eram tão raras que a sua alegria parecia maior que qualquer coisa.

— Por que você não ficaria comigo, Sienna? Esse era o nosso sonho, um navio só nosso pra liderar como quiser.

— Besteira.

Meu coração parecia bater mais rápido, eu odiava conversas pessoais assim onde devia expor o que sentia, e ele sempre foi bem melhor em liderar um assunto que seja. Eu sabia que, no menor deslize ele, conquistaria minha confiança, então faria de tudo para não cair nessa conversa.

— Sempre tive todas as mulheres que queria, por que não posso ter você?

E mais uma vez, ele teve o poder de estragar qualquer gesto romântico que tivesse feito antes. Ele descartava todas. Ousava dizer que eu descartava todos também, e eu não seria tirada da sua vida de novo, dessa vez a escolha seria minha.

— Não vou discutir sobre isso com você, meu pai morreu por sua causa. Isso sem listar tudo o que já fez.

Tentei controlar a raiva que comecei a sentir, todo meu corpo fervia em ódio. Por anos, fiz de tudo para ser a melhor capitã que poderia, pela primeira vez, eu me senti sem qualquer rumo, e essa história estava longe de acabar, Ethan sabia disso... Era exatamente o que ele queria. Eu não tinha como dominar algo e ele, se continuasse assim por um tempo, ia ter tudo o que sempre quis sem nenhum esforço. Como sempre.

Um barulho alto em cima das nossas cabeças me faz esquecer essa maldita conversa, caso houvesse outra briga, eu agora queria me meter nela, e antes que ele pudesse dizer algo, eu peguei sua espada e saí rápido, olhando em volta. Alguns piratas estavam ao redor de uma rede de pesca que parecia ter um peixe muito grande. Tentei afastá-los, mas Ethan chegou, reclamando, e tirou a espada da minha mão, tomando a frente.

— Capitão, nós a pegamos.

— Silêncio, Klaus. Virem.

Quando eles viraram a rede, um longo cabelo loiro foi jogado pra frente antes que sua cauda desaparecesse junto com as gotas de água em seu corpo e virassem um par de pernas. Ela tentava freneticamente se livrar das cordas, mas os piratas a seguravam forte. Ethan sorriu e aproximou a espada do queixo da sereia, forçando-a para que virasse na sua direção.

— Não tem sereias nesse mar, o que fazia tão longe, gracinha?

Eu pude sentir vergonha do modo como ele tratava qualquer mulher, mas por que iria dizer algo? Nada daquilo era da minha conta mesmo. Fiquei do lado dos meus amigos, encarando aquela cena sem a mínima expressão.

— Não é da conta de vocês — a sereia falou com toda sua coragem e me fez dar um sorriso, mas Ethan, por algum motivo desconhecido, fez um corte reto no braço dela, o que fez a menina gritar. Eu olhei para o horizonte, sereias? Era sinal de alguma ilha próxima, isso parecia bom até demais.

— Sienna… ajuda ela.

Uma voz bem baixa chegou no meu ouvido quando Aidan encostou delicadamente no meu braço. Eu tinha mil argumentos para ignorar esse pedido, mas Mae estava ao seu lado com lágrimas no rosto, e o jeito que Ethan agia, pressionando-a a falar com a espada no corte que tinha feito na pele dela também estava me dando nos nervos. Suspirei fundo, teria que fazer algo pelo visto.

Fui até onde Klaus estava distraído e passei a mão no coldre dele, pegando sua pistola. Dali, segui até Ethan com vários olhares sobre mim e coloquei a arma atrás da sua cabeça, a destravando. Imediatamente, os piratas miraram em mim e eu sorri do jeito mais debochado que pude.

— A espada, capitão.

Eu sabia o quanto ele amava me provocar, era um babaca impulsivo perigoso, mas nem ele duvidava da minha vontade de tirar sua vida. Ethan deixou cair a espada suja de sangue e indiquei para Aidan ir ajudar a garota a se soltar e levantar, o que ele fez com cuidado, e emprestou sua camisa para que ela vestisse.

— Não pode mandar em mim assim, Sienna. Minha paciência com você tem limite.

Aproximei a boca do ouvido dele e deixei uma risada debochada escapar, com todos os seus homens do navio vendo. Eu entendia que tinha entrado no seu jogo doentio por poder, mas ficar no controle era tão bom que nem eu ousaria ser contra, especialmente agora que estava por cima e não tinha mais volta.

— Vou te ensinar como faz. Atenção vocês, idiotas! Abaixem as velas e as virem para seguirmos a direção do vento, vamos ter tempestade essa noite e nenhum dos babacas quer ficar na chuva corrigindo a merda que fizeram, certo? Agora!

Todos olhavam atentamente pra Ethan, que concordou quando acabei de falar, fazendo com que voltassem aos seus postos e abaixassem as armas contra mim. Tirei a arma da cabeça dele e ele se virou, a puxando da minha mão e guardando em seu coldre.

— Teimosa pra caralho. Diga o que quer fazer com esse monstro então.

Observei a sereia apoiada em Daniel, pouco acostumada com suas novas pernas humanas e muito confusa em ter conseguido isso.

— Meu plano é esperar ela cantar e matar você.

Ele sorriu, seus dentes perfeitos em contraste com o uniforme mal arrumado pareciam o trazer direto de um livro de romance que eu odiaria. A garota se aproximou de mim, agora vestindo a camisa de Aidan, e olhou nos meus olhos, o que para Ethan era uma deixa para sair de perto, ele já demonstrou ser contra ela no navio e não falaria de novo.

— Eu vim atrás de você. Sienna, não é?

Levantei a sobrancelha, a olhando até que tirou do próprio pescoço um colar com pingente e me entregou. Eu o segurei na mão, confusa.

— Eu sou Charlotte. Tem uns rumores sobre a nova profecia, quero fazer parte da sua tripulação.

— Chegou tarde, não tenho nem navio.

Tentei devolver o colar, mas, na sua recusa, o coloquei no meu bolso, pensando em penhorar depois. Aidan e Maeve se aproximaram mais para ouvir tudo, o que deu a ela mais motivo pra falar.

— Todas as nações vão ruir, um reino querendo dominar, mas todos sabem da profecia. Países já estão em decadência, a vida lá está desabando… Fiquei meses procurando a filha da terra e acredito que pode ser você.

— Isso não faz o menor sentido. Inclusive acreditar em sereias, vocês são manipuladoras.

Aidan era nosso lado racional e agradeci a ele mentalmente por dizer isso. Ele conseguia manter nosso pequeno grupo são mesmo com minha impulsividade e a alma bondosa de sua irmã, mas a sua crença em nenhum tipo de magia se desfez quando viu uma sereia pela primeira vez ali na nossa frente. Ela abriu um sorriso travesso, ainda se apoiando nele para se manter de pé.

— Me deixem ser da tripulação, então. Vou te convencer do contrário, todos vocês.

— Garota, desiste disso.

Minha cabeça doía como se fosse explodir, anos de maresia e eu ainda não tinha me acostumado com a agitação de todo esse mar imprevisível.

— Sua magia é poderosa se for você mesma… e preciso de uma aliada. Eu sou boa com direções, conheço todo esse oceano.

Eu não tinha navio, muito menos tripulação. Acreditando que ela logo se cansaria dessa besteira de profecia falsa, apenas concordei com a cabeça e me virei indo em direção à proa, onde Klaus estava tentando se explicar sobre a arma roubada para Ethan. Levei minha mão ao cabelo de Klaus e isso o fez parar de falar, meio envergonhado. Ethan me encarou nesse momento com desejo nos olhos escuros e dessa vez não parecia nada bom.

— Não mande em mim de novo na frente dos meus homens, Sienna. Ou mato todos os seus amigos.

Ele se aproximou e segurou em meu pulso, me afastando de Klaus, o que fez o garoto acordar e pedir licença pra sair o mais rápido possível.

— Você está louco por uma discussão, não é?

— Nem imagina.

Infelizmente, eu também. E já sabia onde isso ia dar.

Naquela noite, eu dormi de vez na sala dele, eu ia me preparar e nenhum cara ia me distrair dessa vez, mas o sonho se manteve como algo que eu não conseguia me libertar. Assim que fechei os olhos, eu adormeci na mesma hora e, em um impulso, me senti caindo naquele lugar que já me era familiar, ao redor uma névoa hipnotizante e, quando olhei pra baixo, vi algemas me prendendo ao chão, somente aquele vazio sufocante me fazia querer morrer.

— É bom te ver de novo.

Me virei na direção da voz, o homem ainda estava ali atrás da sua cela. Ele apontou para as algemas como se esperando algo de mim.

— O que, acha que consigo sair disso?

O vi concordar com a cabeça sem se importar com a dor que eu sentia, parecia que estava até gostando. Olhei pra baixo, sem entender muita coisa, mas tentaria tudo pra sair o mais rápido possível dali já que a cada segundo eu parecia ter mais dificuldade de respirar. Puxei meus pulsos com força e tentei usar as pernas pra prender as correntes, mas nada fazia efeito. Ali no sonho, eu conseguia lembrar claramente de todas as outras vezes, e sabia que ele ficaria em total silêncio até que eu admitisse precisar de sua ajuda como o canalha que era, igual todos os outros homens.

Virei em sua direção e o vi tirar a camisa calmamente, a deixando pendurada nas grades e voltando a me olhar com um sorriso preguiçoso.

— Gosto da fúria no seu olhar, garota. Use ela para canalizar toda sua energia nas mãos.

— Isso é ridículo. Me tire logo daqui.

Ele virou de costas e olhou para a lua na pequena janela da cela. Seu corpo arrepiou e uma brilhante aura azul o envolve. Eu poderia passar a noite toda olhando como seu corpo era perfeitamente envolvido naquela luz ou algo do tipo, mas aquele lugar parecia diminuir a cada segundo, então tentei fazer como disse. Nas primeiras horas, eu fracassei, logo depois, comecei a gritar com ele que, fazendo um sinal de mãos, me amordaçou de longe, e eu, tão absorta na raiva, não entendia como a hora podia passar tão rápido, e mesmo assim demorar em uma angústia eterna. Fiz uma lista de todos os palavrões que conhecia e voltei a tentar, me recusando a ser derrotada por um homem que eu mal sabia o nome. Meu corpo sentiu o cansaço do longo tempo que tentei, e quando me senti prestes a desistir, toda minha visão ficou verde. Dei uns passos para trás, esperando voltar ao normal, e funcionou. Eu tinha derretido as algemas e nem sabia como.

Me sentei no chão, tirando a mordaça do rosto, e olhei pra ele, surpresa.

— Boa menina.

Eu nem me senti raciocinar direito, mas uma pequena parte minha se levantou e se aproximou da grade, curiosa com o que tinha ficado na minha cabeça o dia todo.

— O que está acontecendo de tão ruim em terra?

Talvez a sereia estivesse mentindo, mas o olhar dele dizia que não.

— Amanhã. Agora vá.

Senti a mão dele no meu rosto, tão de leve que poderia ter sido imaginação, igual todas essas sessões bizarras de aula de magia em sonhos. Eu queria discordar, mas senti o sono pesar minhas pálpebras e, piscando devagar, acabei apagando de vez.

Acordei sentindo a mesma aflição de todos os dias por não estar no meu lar, mas levantei e respirei fundo por dessa vez me lembrar quase completamente do sonho que tive. Naquele momento, Ethan não estava ali, eu me encontrei sozinha pela primeira vez, e só isso já me animou a levantar.

Busquei uma taça de metal vazia na mesa dele e a segurei forte, de olhos fechados. Canalizei a energia nas mãos e esperei que funcionasse, repetindo comigo as palavras que eu me lembrava até que, com um estrondo, vi a taça derreter em minhas mãos e virar um monte inútil de metal distorcido.

Então tudo estava desabando: meu pai tinha morrido, toda a minha vida tinha mudado de repente, mas essa sensação nova era a única coisa familiar que eu sentia. Eu não tinha como explicar, mas já confiava nesse poder e, por um momento, voltei a me sentir no controle da minha vida.

— Caralho.

Virei com pressa para a porta e suspirei tranquila ao encontrar o olhar familiar de Aidan. Ele encostou a porta atrás dele e, ao meu sinal, se aproximou.

— Eu comecei a ter uns sonhos, Dan. Eu consigo sentir alguma coisa pulsando nas minhas veias a todo momento desde que… Tudo aconteceu.

Ele me olhou, preocupado, estendendo a mão para segurar a minha, mas parou no momento em que viu a taça de novo e, com um sorriso nervoso, fez um carinho ali, me acalmando como sempre fazia.

— Sienna, você teve uma perda e a gente vai entender caso precise de um tempo, nem que eu precise quebrar a cara daquele pirata maldito que se chama de capitão. Mas isso… Como isso aconteceu?

Consigo rir, Ethan era facilmente odiado, o que, por um lado, o trazia o respeito que apenas o medo poderia dar se tratando de alguns. E Aidan, mesmo me encarando como se eu tivesse três cabeças, ainda assim estava demonstrando lealdade, por isso eu o considerava o melhor amigo que tinha. Tentei ignorar a pergunta da taça, nem eu mesma sabia como tinha feito e sinceramente não tive condições de explicar no momento.

— Ele pode fazer como quiser. Dan, eu acho que a gente consegue. Viver em terra, sabe?

— Que isso, não confia em mim? Na sua tripulação? Sou um pirata, capitã. A gente caça problemas e não vai ser um medo que vai te consumir dessa vez.

O olhei desconfiada, ele parecia pensar muito antes de falar, mesmo agora que tentava passar confiança, então notei que já deve ter conversado sobre isso com a irmã. Eu precisava tomar uma atitude logo, minha palavra não valeria se eu tivesse medo de assumir a vida que agora me aguardava. Tinha sido repentina, mas meu sonho era ser capitã e dominar os mares, e eu estava me sentindo tão perdida que não via as possibilidades.

— Relaxe, Dan. Eu tenho um plano.

Eu não tinha um, mas precisava de tempo para pensar. Coloquei a taça destruída na mesa de volta e o puxei pela mão até o lado de fora da cabine, onde vi a cena mais assustadora de todo esse tempo. Por anos, eu esperava que algo assim acontecesse, mas nada foi tão estranho do que a realidade que ocorreu na minha frente.

Maeve estava caída no chão, uma poça de sangue se misturando aos seus cabelos ruivos. Aidan correu do meu lado enquanto eu tentava associar tudo, sem conseguir me mexer.

A sereia estava com a espada de Ethan em mãos, o sangue que escorria dela ia direto para Maeve, e eu podia ver um sorriso no rosto dela. Mas com todo aquele sangue, como Mae ainda respirava?

Então escutei gritos e vi Klaus, que parecia chorar de frustração, se aproximar da ruiva e retirar um corpo de trás do dela. O corpo de Ethan.


Continua...


Nota da autora: Sem nota.

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