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Codificada por: Cleópatra

Finalizada em: 01/08/2024
As nuvens cinzas e carregadas que cobriam Onigashima refletiam o sentimento ardiloso que se arrastava pelo palácio do imperador, os piratas das feras eram conhecidos por sua crueldade então, não é algo incomum ter relatos de atrocidades sendo cometidas.

Mas neste dia específico até mesmo os guardas no portal conseguiam ouvir os brados raivosos que vinham de Kaidou. As paredes tremiam, os medrosos recuaram e fracos fugiam perante os berros que rasgavam a garganta do homem. Dentro daquela sala com paredes de madeira escura era possível ver restos das garrafas que foram arremessadas e as tábuas soltas e quebradas revelavam que até mesmo o chão tinha sofrido com tamanha fúria.

Aquela face tomada por raiva parecia ser nova até para os Tobiroppo, grupo especial composto pelos seis mais fortes shinuchi, que estavam na sala a mando do comandante das feras.

Duas únicas figuras pareceram não se afetar pelos gritos, uma delas sendo o executivo e primeiro comandante de Kaidou, a calamidade King "dos incêndios". E a segunda uma figura que o conhecia há tanto tempo quanto os grandes astros.

A mulher manteve as costas retas e o queixo erguido enquanto via o governador-geral virar a sala de cabeça para baixo. Os cabelos cor de noite caiam como um rio em suas costas, as vestes eram tradicionais de Wano tinham um tom de branco perolado com bordados azuis e uma faixa negra abraçava sua cintura.

— Como assim Yamato se recusa a participar? — o recipiente de saquê foi arremessado na direção da mulher que sequer se mexeu. A garrafa passou ao lado de sua cabeça, fazendo com que alguns fios de cabelo voassem.

— Jovem Mestre parece bem empenhado em desobedecer todas suas ordens.

— É um insolente! Você deveria manter o olho nele .

— Posso dizer exatamente onde está durante o dia, mas controlar suas ações, não é algo que eu possa fazer. — um riso deixou a boca da mulher — Acima de tudo a criança é sua Kaidou-san.

Para muitos parecia estranho e até desrespeitoso a maneira casual com a qual ela se referia ao imperador, mas o modo que suas histórias se cruzavam no passado permitiam isso. Ele havia lhe dado a liberdade, uma vida para se viver. Uma história onde as páginas não precisavam ser escritas em sangue e nem pintadas com sofrimento.

— Minha função é evitar que Yamato cause problemas demais. Não posso fazer mais do que isso.

— Quero que esteja presente na próxima reunião, nem que seja amarrado. De um jeito .

— Sempre as missões mais fáceis — a mulher se levantou e mesmo sendo alguém mais alta que o comum. Existia certa graciosidade enquanto andava com as pernas longas para fora da sala. Deixava para os outros os assuntos de guerra, havia muitas coisas que preferia não se envolver ou sequer saber sobre.

Parou apenas para se direcionar a um dos Tobiroppo, o tigre mais especificamente.

— A próxima vez que você ficar olhando meu traseiro Who's Who esses dois olhos na sua máscara não vão passar de enfeite.

Não virou o rosto, mas o tom em sua voz era cortante como a mais afiada lâmina samurai, e foi o suficiente para deixar a ameaça clara. Embora o ex membro da CP9 fosse relativamente alguém fácil de se conviver, quando comparado aos irmãos Ulti e Page-One, algumas vezes ele podia ser um tanto quanto inconveniente.

O homem soprou a fumaça do cigarro para cima antes de rir - Algumas coisas são belas demais para não serem admiradas .

Num estalar de dedos o homem começou a engasgar, seu cigarro caiu ao chão e seu corpo se dobrou, o forçando a buscar apoio com as mãos. Kaidou mantinha o rosto apoiado contra o punho com uma expressão de tédio. Mesmo sendo um dos mais fortes, não tinha força no mundo que aguentaria uma luta com o próprio corpo. Vencer uma rebelião com o próprio sangue era uma coisa que simplesmente não acontecia.

— King a chamou com um tom leve de aviso.

Ela apenas o encarou pelo canto de olho antes de mais um estalar ecoar no silêncio da sala. O tobiroppo sendo o único arfando buscando por ar.

— Não tente morder mais do que pode mastigar, filhote.

Fechou a porta atrás de si apenas para ouvir Kaidou gargalhar atrás dela, pelo menos ele estava de bom humor novamente e deixaria o trabalho de uma certa calamidade bem mais fácil, já que King era o único que acompanhava diretamente o imperador.

Queen passava a maior parte do tempo na prisão, e Jack fazendo qualquer outra porcaria inconsequente. Confessava que não era a maior fã dele, pelo contrário, quanto maior a distância melhor.

Não mentiu quando disse que sabia exatamente onde Yamato estava, então seguiu direto para a árvore sagrada onde o jovem mestre costumava se esconder, “jovem” era algo para se rever já que estava na casa dos vinte anos, mas tendo acompanhado desde pequeno ainda via como uma criança.

Quando se aproximou da árvore, imediatamente sentiu um ataque vindo em sua direção, sendo o suficiente apenas desviar para se livrar da investida.

— Animado como sempre jovem mestre. — disse, continuando a andar apenas para se sentar embaixo da árvore.

Alguns falavam que era a babá, mas para a maioria apenas um guarda que fazia companhia ao prisioneiro. Tinha uma parcela de bons sentimentos em relação a ele, mas de alguma forma sua lealdade ainda morava com Kaidou, cada cicatriz cravada em sua pele a lembrava disso.

— Disse a Kaido seu desejo de não comparecer na próxima reunião. Bem acho que até mesmo daqui ouviu os gritos, se seu objetivo era o tirar do sério conseguiu por algum tempo.

Yamato levantou a clava do chão onde agora uma nova cratera reinava. As algemas nas mãos serviam de amarras a Onigashima da mesma maneira que um dia prenderam Kaidou à Punk Hazard.

— Ouvi, mas não foi o suficiente. Ele ainda está vivo.

— Hum… — olhou para as próprias mãos — Acho que é preciso de um pouco mais do que rebeldia para seu pai tentar se matar.

— Não é meu pai — rebateu imediatamente. — É um monstro.

— Como bem-quiser.

Continuaram ali em silêncio, Yamato não a odiava por completo. Esteve tanto tempo na companhia da mulher que a presença dela quase parecia amigável, embora soubesse que ela apenas seguia ordens.

Yamato sentou na frente dela cruzando os braços em seguida e mesmo com a feição um pouco emburrada perguntou — Como desviou do meu ataque?

era tão alta quanto Who’s Who, mas mesmo assim o impressionava que conseguia ser tão ágil.

Apesar do atributo principal dos piratas das feras ser a parte animal, ela não compartilhava dessa característica. Já tinha uma akuma no mi desde antes dos piratas das feras serem formados.

— Algumas folhas caíram revelando a sua posição, tive tempo para prestar atenção. Mas é claro que senti o fluxo do seu sangue aumentar bem antes disso. - respondeu alisando o colo e tirando algumas dobras do kimono

— Se vai atacar alguém, mantenha a calma — e continuou —, se espelha tanto em Oden e nos samurais, mas não tem muito controle sob a sua respiração.

— Não é como se eu tivesse um professor!

A mais velha riu, se qualquer um os ouvisse falando sobre o antigo shogun de Wano estariam com problemas.

— Sua presença é grandiosa Yamato, quanto mais suprimir sua força mais fácil será de se passar despercebido.

— Como um ninja?

— Talvez — respondeu —, solte seus ombros, preste atenção ao seu redor, respire fundo e controle seu coração.

As folhas da árvore sagrada se desprenderam com a brisa que soprou, dançando em espirais junto do vento que passava entre as duas figuras sentadas próximas às suas raízes. Era bonito, como um cenário de livro de fantasia.

Os olhos de se prenderam no cenário, gravando cada cor viva e movimento. Se um dia tivesse inspiração de novo descreveria aquele lugar numa cena, uma simples singela, mas repleta de sentimentos.

Voltou os olhos para o jovem mestre apenas para reparar que havia dormido em pleno treinamento de respiração. Chegava a ser cômico, nem mesmo o corpo batendo contra o chão foi o suficiente para que acordasse e por hora talvez fosse melhor assim.

Vendo a figura descansar tranquilamente se lembrou de um passado distante onde dormir não era uma opção.

Desde muito jovem só conheceu as paredes de pedra cinza que serviam para a aprisionar. Tinha uma vaga lembrança de uma bola brilhante que se chamava sol, mas fora isso seu mundo se resumia ao laboratório de pesquisas de Punk Hazard.

Fora capturada depois de um ataque à sua ilha, homens vestidos de branco e azul lhe apontaram armas e a tomaram dos braços de seus pais. Naquele dia o céu estava escuro, como se previsse que apenas uma tempestade poderia lavar todo o sangue derramado sob a terra.

Ela e talvez outras cinco ou seis pessoas foram feitas de cobaias. Idades variadas escolhidas por acaso, mas mesmo assim sortudas por serem os únicos sobreviventes de um massacre. Diziam as histórias que aquela terra foi abençoada com o dom da cura, não existiam doenças, feridas se curam com rapidez e as pessoas viviam mais do que o esperado para um humano comum.

Claro que o governo mundial deslumbrado com a ideia resolveu agir em benefício próprio. O dom da vida e da cura eram poderosos demais para ficar restrito apenas a um certo grupo de pessoas.

Se lembrava dos testes, dos gritos de agonia em prol da pesquisa. Cada pedaço de seu corpo sendo quebrado apenas para que pudesse ser montado de novo e estudado enquanto isso acontecia. Drogas que faziam as feridas verterem sangue por dias, experimentos que podiam durar meses, uma agonia que se provava eterna.

Já era uma jovem quando conheceu um certo guarda chamado de demônio.

— Como alguém tão magra como você pode ser considerada tão perigosa? — sua voz era grave e ecoava ressoando junto da escuridão da cela

As mãos quebradas estavam presas por luvas e acorrentadas ao chão. Na boca uma mordaça de ferro também a impedia de responder, o guarda tinha ido até ali guiado pela curiosidade e pela lenda que a cercava.

Apesar de não parecer apenas alguém extremamente poderoso estaria restrito daquela maneira, ele decidiu então fazer uma aposta. Com a ponta da arma abriu um corte na própria mão e deixou que o sangue escorresse para dentro da sala da garota.

— Apenas quero conversar.

Os olhos afiados que antes o fitavam pareceram mirar o chão e então, pela fresta na porta da cela e claro como a luz do dia, escritos feitos de fios carmesim apareceram.

Sobre o quê?”

Aquela foi a primeira vez que usou sua fruta do sangue para fazer algo que não fosse matar, nos momentos mais descuidados tinha feito alguns dos cientistas encontrar a morte.

Desde então, de tempos em tempos, o guarda parava em sua porta e doava do próprio sangue para que pudessem trocar algumas palavras. Era bom ouvir ele falar, mesmo que suas histórias fossem de um tempo longínquo de quando era um pirata e viajava pelo mar com uma tripulação um tanto quanto problemática. Mas ainda assim era o suficiente para deixar que sonhasse com grandes aventuras.

Fazia dias que não a tiravam dali para testes, mas quando saiu amarrada de frente contra a mesa, deixando as costas expostas. Mesmo que tentasse, não conseguia se mexer.

Viu uma sala nova surgir, nunca havia estado ali antes.

Os experimentadores conversavam coisas que não entendia e na sua esquerda uma outra mesa parecia estar sendo usada. Estava distraída, portanto, não previu o momento em que seu próprio teste começou, nem mesmo a mordaça foi capaz de conter os gritos que dilaceraram sua garganta.

Flashes de uma luz esverdeada alcançaram o canto de sua visão enquanto a dor lentamente descia por sua coluna, tornando a ideia de morte muito mais do que bem-vinda. Estava cansada daquilo tudo, se ao menos pudesse usar seu poder… Mas ela podia, estranhamente as correntes não eram daquele tipo estranha que a restringem, então tomada por uma raiva descomunal, tomou controle sobre o sangue daqueles que passaram tanto tempo a abusando, testando a usando como uma cobaia.

Os homens caíram ao chão, olhos, ouvidos e a boca sangrando violentamente. Foi o suficiente para que a outra mesa de experimentos parasse, o alarme geral foi tocado e as poças feitas daquele líquido vermelho e sujo serviu para que finalizasse o restante das pessoas da sala.

Puxou os braços de livrando das correntes, suas mãos se curaram no pouco tempo que passou longe de sua cela. A porta do laboratório abriu, mas ao contrário do que esperava, não eram dezenas de guardas, apenas um. Aquele mesmo que parava em sua cela.

O guarda andou até ela sem se importar em pisar nos corpos jogados no chão do laboratório. Era a primeira vez que o via por inteiro, tinha chifres e vestia preto da cabeça aos pés, deixou a clava de lado por um instante apenas para tomar aquela mordaça que restringia a fala e a quebrar em dois.

— Estou fugindo, venham comigo. Os dois.

Uma explosão longe a tirou das lembranças antigas, encarando as costas das mãos conseguiu enxergar as marcas dos anos que as mesmas passaram quebradas. Os homens que se diziam cientistas lhe aplicavam drogas que impediam que sua cura fizesse efeito.

Batidas continuaram a ecoar pelo terreno, a tirando da repentina cortina de memórias, imaginava que devia ser Ulti a estar causando certo alvoroço.

O sol começava a se pôr, significando que logo os soldados e as rondas tomariam conta da noite, alguns fariam uma parada no bordel de Black Maria ou cairiam bêbados em qualquer outro lugar da ilha.

— Yamato não durma do lado de fora — disse ao se levantar cutucando o jovem mestre de lado. Havia uma certa parcela de pessoas que o odiavam por completo, não que os de baixa patente tentassem algo. Mas alguns outros podiam tentar algo apenas para ganhar alguns pontos com Kaidou.

Sem dar muita atenção, apenas se virou e continuou dormindo, suspirou e bateu com a mão na nuca de Yamato que se levantou imediatamente. Pegando a clava e investindo, a mulher parou o ataque com a mão, não se importando com as feridas que ganharia, já que elas já estariam fechadas em poucos segundos.

— Ah, desculpe! — por mais que tentasse demonstrar frieza, Yamato tinha uma certa gentileza que não residia com os piratas das feras.

— Não é nada — respondeu — não fique do lado de fora, sabe as regras. Te encontro aqui pela manhã.

Havia uma certa tradição em banquetes serem servidos quase todas as noites, mas preferia ficar em sua ala nos confins de seus aposentos. Ser alguém tão antigo e de confiança nos piratas feras tinha suas vantagens, tinha praticamente um andar apenas para ela no palácio afastado do restante onde podia descansar.

Ao contrário dos outros que tinham uma parcela de subordinados, ela tinha apenas duas garotas que a ajudavam com algumas tarefas. Talvez ela perdesse apenas para King que não deixava que ninguém nunca sequer chegasse perto de seus aposentos.

Sempre nas horas finais do dia sentia um incômodo nas costas, e sabendo disso tanto Tomoko quanto Madoka já a esperavam com um banho. O kimono caiu ao chão junto com as bandagens que protegiam sua coluna.

-sama, vamos precisar trocar as suturas — Tomoko comentou — estão soltando novamente.

As costas da vestimenta tinha diversos pontos vermelhos atravessando sua cor branca, alguns já secos tinham uma cor marrom e as manchas mais recentes ainda pareciam vívidas. Com sorte os cabelos os esconderam por tempo o suficiente.

— Faça o que for necessário — foi sua única resposta antes de deixar que as duas se livrassem dos pontos antigos apenas para fazer novos. Um corte que nunca se fechava, esse foi o presente de despedida que ganhou dos cientistas em Punk Hazard. O último experimento.

Perdera a conta de quantas vezes teve as costas remendadas e os pontos refeitos. Esses sendo os mais eficazes entre os métodos de tentou ao longo dos anos, mas não deixava de doer menos com o tempo.

Um balde estava ao seu lado cheio de curativos manchados de um sangue que nunca parava de verter. Ainda parecia um mistério como ela mesma não faleceu pela falta do líquido no corpo.

— Apertamos como conseguimos -sama deve ficar alguns dias… Justo.

— Vamos trazer seu jantar.

E com um aceno ambas saíram a deixando sozinha, sentada na frente de algo que se parecia com uma penteadeira, encarou seu reflexo, parecia mais pálida embora saudável. Quando Kaidou permitiu que ela fugisse com ele, não passava de um amontoado de pele e ossos.

Um vento repentino entrou pela janela aberta, apenas para um calor repentino bater contra a lateral de seu corpo. Ajustou as vestes cobrindo os cortes que eram eternos antes de encarar King pelo reflexo.

Aquele que levava o título de calamidade parecia encarar o chão e o fogo em suas costas crepitavam quase de maneira preguiçosa. A cabeça levemente baixa denunciava seus pensamentos.

— Já tivemos essa conversa algumas dezenas de vezes King — disse enquanto se levantava. — Não é culpa sua.

— Diz isso, mas fui eu que ouvi seus gritos enquanto queimava a pele em suas costas.

Há muitos anos numa tentativa arriscada conseguiu convencer o jovem a fazer uma tentativa de cauterização, não era preciso de muito para saber que a marca ficou, mas o corte reabriu pouco tempo depois.

— Porque eu te convenci a fazer, não é nada que precise se culpar. Se fosse assim, quantos gritos atormentados não te deixariam acordado a noite?

— Nenhum deles me importa, mataria centenas se sufocassem as lembranças daquele dia.

Fugiram, cresceram, compartilharam coisas juntos que talvez a maioria dos humanos não acreditasse. Mas mesmo assim, era uma relação complicada de ambos os lados, um segredo que era compartilhado apenas durante as noites mais escuras.

Puxou uma cortina que tampava a visão do lado de fora, encontros como aqueles eram íntimos demais e gostava de manter assim.

— Who’s Who te tirou tanto do sério assim? — perguntou com um tom de riso, sabia que ele não quebraria seu padrão se não fosse por um motivo maior.

Os passos dele andando até uma enorme poltrona no canto da sala foi sua única resposta, sabia que mesmo embaixo da máscara devia ter algum rubor espalhado por seu rosto.

— Não estou aqui por conta disso.

Só por isso, parecia mais adequado.

O lunário mexeu nos itens da mesa tomando em mãos um caderno de capa escura, as páginas todas em brancas, salvo a primeira que tinha apenas uma linha escrita. Um clássico e clichê “Era uma vez”.

— Ainda não consegue continuar?

— Ideias vêm e vão — respondeu —, mas nenhuma delas parecem boas o suficiente para serem escritas, apesar de estar sendo feito em tinta.

— Já pensou em trocar a primeira linha, parece algo comum demais.

— É justamente por isso que é maravilhoso, é o começo de todos os começos.

Batidas nas portas soaram, um aviso de que a mesa estava posta no cômodo ao lado. Mesmo atrás da porta fechada, dispensou as duas garotas dizendo que gostaria de ficar sozinha pelo resto da noite.

Deixou a porta aberta para que King a seguisse, sempre havia comida demais para apenas uma pessoa. Então ter mais um com quem dividir não faria diferença, se serviu colocando alguma bebida num copo antes de dar sequência na conversa.

— Então qual é o assunto que você quer falar? — manteve os olhos nas comidas enquanto as botas do colega ecoavam ao vir em sua direção. Conhecia sua postura, e todas suas faces, então sabia que quem estava ali ainda era a Calamidade, não o amante.

— Alguns de nossos subordinados em Wano ouviram boatos sobre uma possível invasão em Onigashima.

— Parece loucura — respondeu ainda sem levantar a cabeça, mas ouvindo a voz dele soar mais de perto — Não é algo que normalmente te deixaria preocupado.

— São piratas desta vez.

Isso, sim, parecia algo novo, Wano não era uma ilha fácil de se achar, mas mesmo assim de tempos em tempos tripulações conseguiam ultrapassar as fronteiras do país e causavam algum rebuliço até que fossem abatidos

— Mesmo assim, com tantos piratas das feras, alguém como você não…

— O alvo é Yamato. — interrompeu fazendo com que todos os movimentos da mulher parassem. Imediatamente a cabeça de se levantou, os olhos mirando as orbes escarlates do comandante com intensidade.

Ela não precisou abrir a boca para que King entendesse o questionamento escondido por trás de sua feição séria. — Não sabemos, preciso que você informe onde o jovem mestre está.

— Impossível.

— Não é um momento para dar valor a qualquer que seja a ligação entre vocês.

— De fato eu valorizo o traço de parceria que temos, caso contrário Kaidou teria muito mais problema com Yamato — rebateu imediatamente. — Contudo, não é por isso. Não sei onde o jovem mestre fica durante, nos encontramos na árvore sagrada pela manhã.

— Não disse que sabia exatamente onde estava?

ignorou seu olhar e o tom de sarcasmo — Se prestasse verdadeiramente atenção no que falo, saberia que a fala teve um “durante o dia” bem específico.

— Talvez nesse momento eu estivesse de fato olhando outra coisa.

— E é claro que isso não tem nada a ver com Who’s Who.

Os ombros do companheiro se soltaram tomando uma postura mais relaxada, King se sentou em sua frente e levou as mãos a cabeça tirando a máscara que escondia sua identidade. Sem ser Kaidou e talvez Queen, a mulher era a única com quem poderia compartilhar de momentos como aquele.

A primeira vez que a viu foi durante um teste feito nas cobaias de Punk Hazard, se lembrava que tinham mais como ela. Mas eles sumiram conforme o tempo se passou foi a única que sobrou, a única que aguentou.

Estava na mesa ao lado da dela quando o incidente aconteceu e soube por Kaidou-san, que na época era um guarda, que ele havia trocado as correntes dela a fim de dar início a grande fuga deles. Alguém forte e desesperada para viver, naquela época foi assim que ele se referiu a ela e mesmo hoje aquelas qualidades ainda se mantinham, juntas de um leque inteiro que a tornava uma peça chave na tripulação. Talvez não de força, mas ainda assim um pilar.

— Pode ficar com a garrafa — o braço dela se estendeu colocando a bebida em sua frente.

— Se não te conhecesse tão bem, acharia que está tentando me embebedar.

A risada melodiosa dela ecoou pela ante-sala bem iluminada — Talvez por conhecer tão bem ache que precisa. Principalmente depois da reunião.

King, ou melhor, Alber como eles se conheciam, deixou que uma risada rouca escapasse de seus lábios antes de virar a garrafa em sua boca. Não era uma bebida forte nem grosseira como os piratas normalmente tomavam, era suave e surpreendentemente agradável.

— Sinto dizer que precisa de muitas garrafas como essa para conseguir algo.

— Fique à vontade, se quiser se embebedar posso pedir a Tomoko que traga algo mais forte.

O homem balançou a cabeça, apreciava momentos como aquele, embora fosse algo que ficasse confinado e em segredo no fundo de sua mente, apenas para que apreciasse nos dias mais perturbadores com a esperança de trazer alguma tranquilidade aos seus pensamentos. Então preferia manter a sobriedade.

— Não tem necessidade — até mesmo a jaqueta deixou seus ombros o deixando com as vestes comuns e leves que levava por baixo. O couro ajuda a proteger sua pele e a esconder sua identidade dos outros, sabia muito bem o quanto o governo queria que voltasse para uma jaula qualquer e não daria essa chance para eles.

Jantaram como bons amigos a princípio vez ou outra um tom de flerte aparecia camuflado entre breves alfinetadas.

— Não sei se eu confiaria tanto em Doflamingo assim — comentou —, claro que ele tem seu nome feito no submundo, e encontrou diversas das akumas no mi dos comandantes. Mas… Até quando? As Akumas no mi são limitadas.

— De acordo com ele e o restante dos seus executivos. Em alguns anos isso não será mais um problema.

não voltou a falar, mas a testa estava franzida.

— No que está pensando?

A mulher em sua frente ergueu seus bonitos e afiados olhos para que pudesse o encarar de frente. — Você não vai querer saber, comandante.

Certamente deveria ser algo que talvez fizesse com que os dois discordassem, então por hora foi esquecido. Pouco a pouco ele viu que os movimentos dela se tornaram mais restritos e em alguns momentos seus olhos cerraram como se estivesse contendo uma dor profunda, com certeza causado pelos recentes pontos em suas costas.

Ele não esperou uma confirmação para se levantar e voltar para o quarto onde num armário um pequeno pote com pomada ficava.

— Você não precisa — tentou se levantar, mas um sibilo de dor lhe roubou a voz. Apoiou a mão na mesa apertando com força a madeira entre seus dedos, os primeiros dias sempre eram os piores.

Sem nenhum tipo de cerimônia o homem voltou e se sentou atrás da mulher mesmo sob protestos de que ela podia chamar uma das garotas para que aplicassem a mistura. Com ela sentada de costas passou de leve a mão por sua nuca, as pontas dos dedos roçando de leve contra a pele em seu pescoço enquanto tirava os cabelos do caminho.

Mesmo que ela fosse alta, ainda parecia pequena quando comparada a ele.

Vendo que não tinha saída e que Alber parecia mais do que disposto em ajudar com a questão deixou que o robe escorregasse por seus ombros deixando as costas expostas, com a ponta dos dedos desembaraçou alguns fios enquanto a pomada gélida parecia aliviar a dor ardente em suas costas.

— Não deve ser uma coisa agradável para se ver durante um banquete.

— Já tive refeições em situações muito piores.

virou o rosto apenas para que conseguisse o encarar pelo canto de olho — Se eu devia me sentir melhor com isso, não está funcionando.

O homem não respondeu, mas continuou aplicando até que chegasse na base em suas costas, as feridas estavam vermelhas embora o local dos pontos já parecessem cicatrizados, uma linha fina mantinha os dois lados dos cortes juntos, embora ainda tivesse algum sangue brilhante ameaçando escapar pela ferida.

— Que nome você daria para uma lâmina mágica?

A pergunta repentina o tirou de pensamentos e lembranças profundas — Como?

— Uma arma, que te faz o mais poderoso dos guerreiros, mas te força a falar apenas a verdade. Que nome você daria?

Provavelmente ela devia estar pensando em alguma história, embora nunca conseguisse passar para o livro, parecia sempre ter algo em mente. Respirou fundo, não tentando achar um motivo para aquilo.

— Não sei… Trudy?

Um resmungo em resposta foi tudo que teve, colocou o remédio para o lado, mas se manteve por perto. — Do que tem medo?

sabia exatamente sobre o que aquela pergunta se referia, se passou tanto tempo sonhando com as histórias contadas pelo guarda Kaidou e vivendo aventuras ela mesmo. O que a impedia de dar sequência a frase “era uma vez”.

— Tudo que escrevi em sangue se tornou realidade, para o bem ou para o mal. Querendo ou não ele sempre tem uma história, cabe a minha fruta tentar decidir como continua.

Ele ficou em silêncio ouvindo os pensamentos da mulher em sua frente. — E se mesmo em tinta nanquim as páginas revelarem um futuro devastador? São meus pensamentos mesmo ou algo que vem escondido nas veias dos meus antepassados?

Num movimento leve a companheira se virou para que pudesse o encarar de frente o robe ainda estava caído até a cintura deixando para que ele pudesse apreciar seu torso desnudo. Os seios firmes que estavam a poucos centímetros de seu peito, a pele lisa que se escondia atrás dos cabelos jogados para frente.

Inclinou-se levemente para que pudesse capturar seus lábios tom de carmesim, uma mulher deveras complicada de fato. Mas era isso que a tornava tão única, mesmo num bando tão excêntrico.

A diferença de alguns metros de altura não pareceu fazer diferença quando ele a puxou para seu colo, uma perna de cada lado de sua cintura enquanto suas frentes se pressionavam. As mãos dele se mantiveram na base de sua cintura casualmente traçando círculos sobre o fino tecido que ainda cobria parte das pernas e bunda.

Em outras noites talvez já estivessem jogados na cama presente no outro quarto com nada além de suor entre eles. Mas sabia que as feridas nas costas dela tomariam alguns dias para se tornarem menos dolorosas.

As mãos de subiram até seu rosto, tomando uma porção de seus cabelos claros que foram levemente puxados.

— E você jura que isso não tem nada a ver com um certo tobiroppo ganancioso e linguarudo?

Alber inclinou a cabeça para o lado levemente antes de abrir um sorriso que era reservado apenas para aquela mulher — Talvez, só um pouco.

Intoxicados pela presença um do outro, perdidos numa paixão secreta que se revelava apenas perante a lua, mas estranhamente entrelaçado com o ar gélido que entrava pela janela, havia uma sensação que inspirava a presença da morte.

Uma onda de choque invisível fez com que se separassem, apenas para encarar pela janela coberta por um véu esvoaçante o reflexo laranja vindo de uma explosão não muito distante dali.

Onigashima estava sob ataque, tão repentinamente quando o boato surgiu, o ataque com a intenção de capturar o jovem mestre aconteceu.

Foram segundos para que o gentil Alber desse lugar a calamidade King que disfarçado de noite se lançou pela janela do quarto sem olhar para trás.

não recebeu nenhuma ordem, mas sabia que se Yamato era o alvo como os boatos falavam somente ela poderia ser capaz de conseguir alguma colaboração. Então não deixou que o tempo escapasse de seus dedos e mesmo que as feridas quase lhe roubassem o fôlego, ajustou as vestes no corpo e correu pedindo para que as duas garotas se escondessem no cômodo mais distante.

Os pés descalços batiam contra o chão de madeira de maneira apressada rumo a já conhecida árvore que era seu ponto de encontro. Nos outros locais da propriedade conseguia ouvir barulhos de tiros sendo disparados e metais se chocando, piratas do bando gritando aos ventos que os invasores estavam munidos de oceanite.

Como esperado, Yamato estava na base da árvore sagrada, a clava caída ao chão e uma rede em sua volta. Os olhos que durante o dia eram fervorosos quase fechados, completamente sem forças.

As armas foram apontadas em sua direção e os tiros disparados em seguida foram desviados com certa precisão. Do sangue que agora vestia suas costas, onde os pontos haviam estourados, tomou controle usando para deter aqueles que ousavam tentar sequestrar o jovem mestre.

Poderia usar o mesmo truque que fizeram com Who’s Who, mas não tinha certeza da situação em que Yamato se encontrava, e julgando pelas esferas que circulavam seu pescoço era possível que estivesse com explosivos. Precisava de sobreviventes para desfazer a armadilha.

Ouvia os homens gritarem palavras sem sentido e então numa dança maldosa a morte se apresentou em sua frente. Soube então que não haveria nem um novo livro e nem uma nova história, naquela vida só restaria mais uma página e memórias.

Um estranho momento para se fazer valer um enredo, mas sorriu em meio aos ataques que lhe tiravam pedaços de existência sem medo. Junto do filete de cor carmesim, palavras sopradas ao vento traziam ao “era uma vez” um digno fim.





***



Não podia se esperar muito de um grupo de piratas que acreditavam fortemente em seus próprios ideais, mas na manhã seguinte a uma noite sangrenta havia uma concordância unânime e silenciosa de que todos ali tinham pelo que sentir pesar.

Na base da árvore sagrada uma pedra, alva como a lua iluminada numa noite sem nuvens, marcava a nova sepultura.

Pela primeira vez em anos Yamato e Kaido estavam próximos, um silêncio sufocante presente entre eles. Ninguém se surpreenderia se começassem a brigar ali mesmo, de certa forma esperavam que isso fosse acontecer, mas ninguém estava disposto a separar os dois para evitar um novo desastre.

Nem mesmo o primeiro comandante, pela primeira vez, agradeceu pela máscara esconder seu rosto. Embora uma parcela vital tivesse deixado seus olhos junto com a vida de , num momento ela estava ali em seus braços viva, quente como deveria ser e no outro fria, pálida, jogada nos braços de um Yamato que chorava copiosamente.

Não sobraram bandidos e talvez tivessem algumas baixas nos piratas das feras depois da fúria que acometeu King, mas nem Kaidou ligou para o fato. Tendo sido ele a resgatar ambos, já tinha visto muito mais do que o necessário para justificar algumas ações.

— E pensar que minha última ordem foi para que trouxesse Yamato para reunião — disse o yonkou mirando a pedra — Conseguiu de certa forma.

— Não estou aqui por você — respondeu imediatamente, não conseguindo suportar mais estar ali naquele local.

Foi o único a ver a morte tomar nos braços e a levar, fora o único a presenciar as palavras encantadas que surgiram do sangue jogado ao vento.



Era uma vez, um jovem príncipe que foi salvo por três.

No primeiro se espelhou, com o segundo sorriu. E junto do terceiro, enfim para o mar, partiu.




Talvez para ele um dia aqueles versos fizessem sentido, mas por enquanto seriam apenas as últimas palavras de uma grande amiga.




Fim.


Nota da autora: Obrigada por ler até aqui!
Até mais, Xx!

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